CASAMENTO NO ESTRANGEIRO
INVENTÁRIO
REGIME DE BENS
Sumário

I- O casamento, como decorre da factualidade supra referida, foi celebrado em 1975 perante o conservador do registo civil de Nancy, em França, e a sua transcrição no registo pelo consulado daquela mesma localidade foi efectuada em 27 de Julho de 1977.
II- Se em tal documento não existe a menção da existência de qualquer convenção antenupcial (até ali consta expressamente que “não foi feito contrato de casamento”) nem consta ali referido o regime imperativo da separação de bens (como acima se analisou), o regime de bens a ter em conta é o da comunhão de adquiridos, como regime supletivo aplicável (art. 1717º do C. Civil).
E assim tem todo o cabimento o inventário pretendido pela requerente (art. 1404º nº1 do CPC).

Texto Integral

Processo nº520/09.1T2ETR.P1 (apelação)
(Comarca do Baixo Vouga – Estarreja – Juízo de Família e Menores)
Relator: António M. Mendes Coelho
1º Adjunto: Ana Paula Carvalho
2º Adjunto: Caimoto Jácome

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

Nestes autos de inventário para partilha de bens na sequência de divórcio em que é requerente B… e requerido C…, veio pela sra. juiz do processo a ser proferido o despacho constante de fls. 132 a 138, no qual considerou que a requerente não comprovou ter sido casada no regime supletivo de comunhão de adquiridos (por o seu casamento ter sido celebrado perante autoridade estrangeira e, em seu entender, não ser possível concluir, face às informações constantes dos autos dadas pelo consulado que efectuou a transcrição de tal casamento, que o mesmo foi precedido de processo de publicações), que é de aplicar o regime imperativo da separação de bens previsto no art. 1720º nº1 a) do C. Civil e que de tal decorre que os bens que os cônjuges possam ter em comum apenas poderão ser partilhados em processo de divisão de coisa comum, na sequência do que veio a determinar a extinção da instância por nulidade de todo o processado decorrente de erro na forma de processo e a consequente absolvição do requerido da instância.
De tal decisão veio a requerente interpor o presente recurso, tendo na sequência da sua motivação apresentado as seguintes conclusões, que ora se transcrevem:

I – No assento de casamento entre Portugueses celebrado no Estrangeiro em 1977 e posteriormente transcrito no Consulado é de menção obrigatória, se aplicável, o regime imperativo de separação de bens aplicável com a indicação da disposição que o determina;
II – Não constando do Assento de casamento entre Portugueses celebrado no Estrangeiro em 1977 e posteriormente transcrito no Consulado a menção aludida, e do mesmo assento constando que o casamento não foi precedido da celebração de convenção antenupcial, ter-se-á de atender, como regime de bens a vigorar no matrimónio, ao regime legal supletivo da comunhão de adquiridos;
III – A realidade dos factos (positivos ou negativos) decorrente do que conta do registo civil é inilidível, salvo em acções de estado ou de registo;
IV – Tendo a APELANTE feito junção, com o seu requerimento de inventário, de certidão do Assento do seu assento de casamento, deverá valorar-se e atender-se ao que da referida certidão resulta, mesmo que a APELANTE, no texto do requerimento, não haja feito qualquer referência ao regime de bens aplicável ao seu matrimónio.
V – Constando da aludida certidão de Assento de Casamento que o casamento foi contraído sem precedência de convenção antenupcial (contrato de casamento) e não sendo ali referida a vigência do regime imperativo da separação de bens (com a indicação da norma que o impõe) forçoso é atender-se que o regime de bens aplicável é o regime da comunhão de adquiridos.
VI – Nestes termos, o procedimento para a liquidação da comunhão conjugal é o processo especial de inventário previsto nos artigos 1.404.º e seg.s do C.P.C.,
VII - No processo de Inventário é através das Declarações de Cabeça de Casal que se fixam os elementos (objectivo e subjectivos) essenciais da acção;
VIII – A certidão de casamento junta aos autos impunha, só por si, que se considerasse que os cônjuges estiveram casados no regime da comunhão de adquiridos.
IX – Ao decidir nos termos da douta sentença aqui posta em crise, o Tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 342º nº. 2; 1.717º; 1.720º do C. Civil; 1º; 2º; 3º; 4º; 181º al’e) e 184º do C. Reg. Civil; artºs. 516º; 199º nº. 1; 206º nº. 2; 288º nº. 1 al’b); 494º al’b); 1.052º e ss., do C. P. Civil.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões (art. 684º nº3 do CPC), há uma única questão a apurar e que é a de saber qual o regime de bens do extinto casamento da requerente.
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II – Fundamentação

Vamos então ao tratamento da questão enunciada.

São os seguintes os dados dos autos a ter em conta:

a) – encontra-se junta de fls. 7 a 10, devidamente certificada pela Conservatória dos Registos Centrais, a transcrição do casamento da requerente e do requerido efectuada pelo Consulado de Nancy, França, em 27 de Julho de 1977, casamento esse celebrado em 25 de Julho de 1975 pelo conservador do registo civil daquela mesma localidade – documento esse cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
b) – de tal documento consta que “não foi feito contrato de casamento”;
c) – sob a epígrafe “Menções especiais” que dele consta não foi feita qualquer menção;
d) – a fim de averiguar se o casamento havia sido ou não precedido do processo de publicações, foi solicitada tal informação ao Consulado de Portugal competente, tendo tal Consulado informado:
- em 16.11.2009 que “não foi localizado qualquer processo preliminar de publicações respeitante à transcrição do casamento” (ver fls. 30 – ref. 421131);
- em 26.03.2010 que “não foi localizado qualquer processo preliminar de publicações precedente à elaboração do casamento civil”… “igualmente não foi encontrado qualquer processo de publicações prévio à transcrição do casamento…no seu texto não se fazendo menção do regime imperativo da separação de bens como regime matrimonial aplicável ao referido casamento” (ver fls. 107 – ref. 684473); e
- em 24.05.2010 que “a não localização do processo preliminar de publicações prévio à celebração do casamento…não significará que o mesmo tenha sido omitido …não se afigura verosímil a sua omissão…(a pedido dos utentes ou por exigência da D…)…o seu extravio prefigura-se como circunstância de mais elevada probabilidade…igualmente não foi localizado processo de publicações posterior à celebração do casamento e prévio ao assento de transcrição….se tivesse ocorrido uma omissão pelos nubentes de solicitarem ao Posto a organização do processo preliminar prévio ao casamento…o Consulado de Nancy teria assinalado no campo das “Menções especiais” do assento consular de transcrição o regime imperativo da separação de bens, o que não acontece (ver fls. 121 – ref. 805938).

Face às informações supra referidas sob a alínea d), a sra. juiz do processo considerou que não é possível concluir pela existência do processo de publicações prévio ao casamento, que, como tal, a requerente não fez prova de que o regime de bens de comunhão de adquiridos fosse o do seu casamento e que por isso seria de aplicar o preceito imperativo constante do art. 1720º nº1 a) do C. Civil, concluindo assim que o regime de bens do casamento é o de separação.
Analisemos.
O casamento, como decorre da factualidade supra referida, foi celebrado em 1975 perante o conservador do registo civil de Nancy, em França, e a sua transcrição no registo pelo consulado daquela mesma localidade foi efectuada em 27 de Julho de 1977.
A tal acto de registo era pois aplicável o Código de Registo Civil vigente à data – o aprovado pelo Decreto-Lei nº47678, de 5 de Maio de 1967 (depois deste foi aprovado um novo código pelo Decreto-Lei nº51/78 de 30 de Março, o qual entrou em vigor em 1 de Abril de 1978, e depois deste vários outros diplomas sobre a matéria, sendo que o actualmente em vigor foi aprovado pelo Dec.Lei 131/95 de 6 de Junho, já com várias alterações posteriores, a última das quais – e em muitos dos seus preceitos – introduzida pelo Dec.Lei nº324/2007 de 28 de Setembro).
Como resultava do disposto nos arts. 228º nºs 1 e 2 e 229º nº1 daquele diploma (em regime praticamente idêntico ao previsto na ulterior legislação e que actualmente se prevê nos arts. 184º e 185º do Código do Registo Civil na sequência das alterações introduzidas pelo Dec.Lei nº324/2007 de 28/9, que revogou a regulação que de tal matéria se fazia nos arts. 1664º a 1666º do Código Civil), se o casamento não tivesse sido precedido de publicações a transcrição do mesmo no registo consular era “subordinada à prévia organização” de tal processo (que naquele diploma estava previsto nos seus arts. 166º e sgs.).
Por outro lado, como resultava ainda do disposto nos arts. 222º nº3 e 214º nº7 (ex vi do art. 228º nº2) daquele diploma ao tempo em vigor, sempre que o regime matrimonial de bens tivesse carácter imperativo [e já ao tempo o tinha se o casamento não tivesse sido precedido de processo de publicações – art. 1720º nº1 a) do C. Civil] dever-se-ia, na transcrição, tal mencionar, indicando a disposição legal que o impunha.
Consentaneamente com este detalhe acabado de referir, até no próprio documento-formulário utilizado pelo consulado para proceder à transcrição se fazia constar, sob a alínea k) das “Observações” que em letra mais pequena ali constam na parte final [não obstante no caso concreto não estarem perceptíveis a partir exactamente de tal alínea, também porque a aposição da certificação pela Conservatória dos Registos Centrais “corta” o resto de tais observações, foi por nós confirmado o teor exacto de tal alínea em documento idêntico (caso de transcrição de casamento efectuada em 20/1/77 no Consulado de Portugal em Versalhes, em tudo idêntica à destes autos, referido no Acórdão da Relação de Lisboa de 1/7/2003, relatado por Abrantes Geraldes, disponível integralmente em www.dsgi.pt)], que o espaço constante do próprio documento de transcrição sob a epígrafe “Menções especiais” era “reservado à menção especial prevista no nº3 do art. 219º (do Código do Registo Civil em vigor). Se o casamento tiver sido celebrado com subordinação ao regime de bens imperativo, far-se-á também neste lugar a menção desse regime e da disposição legal que o impõe” (sublinhado nosso).
Decorre do regime de transcrição daquele tipo de casamento (celebrado por nacionais perante autoridade estrangeira) que tal acto de transcrição – que integra o ingresso do casamento na ordem jurídica portuguesa – foi delineado de modo a controlar sempre a existência do processo de publicações, já que, como dele emerge:
- se havia processo de publicações prévio ao casamento, o cônsul, como é óbvio, não tinha que o realizar e efectuava (ou recusava, com base no que ao tempo se preceituava no art. 229º nº3 do diploma aplicável) a transcrição do casamento;
- se não existia tal processo, o cônsul teria que o efectuar como acto necessariamente prévio à transcrição.
Logo, se o cônsul procedeu à transcrição é porque verificou que havia processo de publicações prévio ao casamento ou porque verificou que não existia tal processo e ele próprio o elaborou.
A efectividade da transcrição – já que nada nos diz que a mesma não deveria ter ocorrido (por exemplo por falta de algum documento ou formalidade necessária) ou que a mesma enferma de alguma invalidade – faz pressupor necessariamente uma ou outra coisa: isto é, ou houve processo de publicações prévio à celebração do casamento ou houve processo de publicações elaborado pelo cônsul.
Por outro lado, como supra se referiu, havendo que mencionar na transcrição, sob a epígrafe “Menções especiais” constante da mesma, o regime matrimonial de bens quando este tivesse carácter imperativo, indicando a disposição legal que o impunha, e nada ali constando, também por este lado nada temos que nos inculque que não houve processo de publicações prévio ao casamento (aquela circunstância, prima facie, até inculca que foi verificado que houve aquele processo, pois se se tivesse verificado que o mesmo não existiu tinha que ali constar mencionado o regime imperativo da separação de bens com base no disposto no art. 1720º nº1 a) do C. Civil)
Como tal, a incerteza decorrente da não localização física quer do processo de publicações prévio ao casamento quer do processo de publicações prévio à transcrição que decorre da alínea d) da factualidade supra referida aliada ao teor da transcrição constante de fls. 7 a 10, não autorizam a que se considere como provado que o casamento foi celebrado sem aquele processo de publicações.
Na verdade, além de da incerteza de um facto não resultar a certeza de que o facto não ocorreu, no caso concreto o regime legal não deixava que a transcrição ocorresse sem a existência daquele processo e obrigava a referir no respectivo documento, com expressa indicação da disposição legal que tal impunha, o regime de bens quando este fosse imperativo.
Assim, se não temos a certeza da inexistência do processo de publicações e só temos o teor da transcrição, é só por ela que nos devemos guiar [neste sentido, e até para situação em que se apurou como facto certo que o casamento foi contraído sem precedência de processo de publicações (no caso, entre portugueses no Canadá, em 1972), vide o Acórdão do STJ de 16/4/1998, cujo sumário se encontra em www.dgsi.pt, onde se refere que “tal casamento, transcrito na Conservatória dos Registos Centrais em 11-12-1981, sem referência a regime de bens, tem-se como contraído segundo o regime supletivo da comunhão de adquiridos” (sublinhado nosso)].
Na verdade, aquele documento, de natureza autêntica, faz prova plena dos factos dele constantes (arts. 363º nº2 e 371º nº1 do C. Civil) e tal força probatória não resulta ilidida – pois como resulta do disposto nos arts. 3º a 5º do Código do Registo Civil ao tempo em vigor (supra referido) e também dos arts. 2º a 4º do actual, a prova resultante do registo civil não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de Estado e nas acções de registo, sendo que, como é manifesto, os presentes autos não integram nenhuma destas categorias.
Ora, se em tal documento não existe a menção da existência de qualquer convenção antenupcial (até ali consta expressamente que “não foi feito contrato de casamento”) nem consta ali referido o regime imperativo da separação de bens (como acima se analisou), o regime de bens a ter em conta é o da comunhão de adquiridos, como regime supletivo aplicável (art. 1717º do C. Civil).
E assim tem todo o cabimento o inventário pretendido pela requerente (art. 1404º nº1 do CPC).
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III – Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, revogando-se a decisão recorrida, ordena-se o prosseguimento dos autos como inventário para partilha de bens na sequência de divórcio.
Não há lugar a custas.
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Porto, 03/10/2011
António Manuel Mendes Coelho
Ana Paula Vasques de Carvalho
Manuel José Caimoto Jácome