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CASO JULGADO MATERIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
Sumário
I - O caso julgado visa essencialmente a imodificabilidade da decisão transitada, exigindo-se que os Tribunais a respeitem ou acatem, não julgando de novo. II - Embora tenha sido decidido, por sentença transitada em julgado, que o segurado da ora Ré concorreu para a produção de acidente de viação, na proporção de 50%, e que, em regime de solidariedade, a ora Autora companhia de seguros pagaria a totalidade da indemnização, cabendo-lhe direito de regresso contra a ora Ré, na proporção de metade, não pode a Autora exercitar com sucesso tal direito, exigindo da Ré o reembolso de 50% do que pagou, se esta última já tinha sido, numa outra acção e por sentença transitada em julgado, absolvida do pedido contra si deduzido pelos lesados com fundamento no mesmo acidente. III - Não estamos aqui perante uma situação em que o caso julgado se apresente como excepção, ou seja, como meio de obstar ao conhecimento do objecto da causa, mas sim para impor às partes e ao tribunal o respeito pela autoridade do caso julgado (contraditório) formado em acção anterior.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. – AA, Companhia de Seguros, S.A. instaurou, na 2.ª Vara Cível do da Comarca do Porto, acção declarativa de condenação com processo ordinário contra Companhia de Seguros BB, S.A., na qual pede que se condene a ré a pagar-lhe a quantia de 18.741,26 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alega, para tanto, em síntese:
Por sentença, foi o segurado da ré considerado como tendo concorrido para a produção de um sinistro, na proporção de 50%, e que, em regime de solidariedade, a aqui demandante pagaria a totalidade da indemnização, cabendo-lhe posteriormente direito de regresso contra a Ré, na proporção de metade, sem que a demandada a tivesse reembolsado das quantias pagas, apesar de interpelada para o efeito.
A ré deduziu contestação, impugnando os factos articulados na petição inicial, invocando a absolvição da ex-SPS na primeira acção contra si deduzida, daí retirando não lhe poder ser assacada qualquer culpa ou responsabilidade quanto à pretensão deduzida pelos AA. na acção deduzida por CC e mulher, que obteve êxito por inteiro, mas apenas contra a DD, ora A., com decisão transitada em julgado.
Invoca, como tal, o caso julgado material e/ou inexistência de qualquer direito de regresso.
Replicou a A., invocando a não verificação de qualquer identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir entre as acções, pedindo, em consequência, a improcedência da excepção deduzida e, bem assim, a procedência do pedido, logo em sede de despacho saneador.
No despacho saneador foi julgada procedente a excepção de caso julgado, sendo a R. absolvida do pedido.
Inconformada, apelou a R. tendo a Relação do Porto concedido provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida.
Do acórdão da Relação recorre ora a A. de revista, para este STJ, recurso que foi admitido.
Alegando no recurso, conclui a Recorrente:
1ª) Em acção em que os lesados por certos danos emergentes dum acidente de viação demandam uma seguradora dum dos condutores envolvidos no sinistro, esta foi absolvida por decisão de mérito com trânsito em julgado;
2ª) Perante essa decisão, os mesmos lesados demandaram depois, pelos mesmos danos emergentes do mesmo acidente de viação, outra seguradora doutro condutor responsável também nele interveniente — e esta foi condenada, sozinha, no pagamento em exclusivo de tais danos;
3ª) Porque essa condenação envolveu pronúncia e decisão doutras acções apensas e se julgou o sinistro de responsabilidade conjunta (50% vs. 50%) de ambos os condutores segurados, nela se aventou a hipótese dum eventual direito de regresso da segunda seguradora (ali condenada) sobre a primeira (absolvida na acção primeva, mas condenada numa outra dessas acções apensas, doutra autoria, na base, agora, duma repartição de culpas entre os dois condutores segurados nas duas seguradoras)
4ª) Agarrada a tal hipótese, que não tinha em boa conta a existência do julgado anterior – v.g. conclusão 1ª supra – a ora Autora veio accionar a sua congénere e aqui Ré demandando-a, ao abrigo do disposto no art. 497º CCivil – v.g. responsabilidade solidária – para o pagamento de 50% (dita repartição de culpas) do montante dispendido com a condenação referida na conclusão 2ª supra;
5ª) Tal demanda infringe a noção de caso julgado, seja por via da sua eficácia, força e autoridade – cfr. arts. 671º, 673º e 675º CPC –, seja por via da sua invocação, enquanto excepção na defesa da causa, em face das conclusões 1ª e 2ª supra e da noção implicada pelo direito de regresso ora invocado — cfr. arts. 493º segs. CPC, maxime art. 497º CPC;
6ª) Autoridade de caso julgado de sentença transitada e excepção de caso julgado são efeitos diversos da mesma realidade jurídica, pressupondo aquela a decisão de certa questão que não pode voltar a ser discutida, e não sendo necessário, para que actue, a coexistência futura das três identidades referidas no art. 498º CPC;
7ª) Decidindo doutro modo, ao revogar a sentença comarcã, o tribunal a quo violou o disposto nesses preceitos legais, bem como o disposto no art. 2º CRP (“Estado de Direito democrático” – v.g. princípios da confiança e da legítima expectativa jurídicas).
Pede que seja concedido provimento ao recurso, com a consequente revogação na íntegra do acórdão recorrido.
A R. contra-alegou, defendendo a bondade do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. – OS FACTOS E O DIREITO APLICÁVEL
De acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso determina-se em face das conclusões da alegação dos recorrente pelo que só abrange as questões aí contidas, como resulta das disposições conjugadas dos arts. 690.º, n.º 1 e 684.º, n.º 3, do Código de Processo Civil — cf. acórdãos do S.T.J. de 2.12.82, BMJ, n.º 322, p. 315; de 15.3.2005, n.º 04B3876 e de 11.10.2005, n.º 05B179, ambos publicados em www.dgsi.pt.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (cf. artigos 713.º, n.º 2, 660.º, n.º 2, e 664.º do CPC, acórdão do STJ de 11.01.2000, BMJ n.º 493, p. 385 e RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, p. 247.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a única questão a resolver é se se verifica ou não a excepção de caso julgado.
III. – Fundamentos de Facto
1 – No dia 24 de Dezembro de 1993, na E.N. 13, em Belinho, ocorreu um acidente de viação, no qual intervieram os veículos Renault de matricula VJ-00-00, conduzido por EE e seguro na Companhia de Seguros SPS, o veículo motorizado 1-EPS-65-01, conduzido por GG e seguro na ora A. e o Volkswagen Golf de matricula de Andorra nº 40000, conduzido por CC e onde seguia também FF.
2º – Do referido acidente resultaram danos avultados em todos os veículos envolvidos.
3º – E uma vez que os diversos intervenientes não se entenderam relativamente às responsabilidades inerentes, foram propostas as seguintes acções, no sentido do ressarcimento dos danos respectivos:
– Acção sumária nº 86/95, que correu termos na 2ª Secção do Tribunal de Esposende, em que eram AA. CC e Mulher e R. a Companhia de Seguros, SPS, hoje BB.
– Acção sumária nº 170/95, que correu termos na 1ª secção do Tribunal de Esposende e que foi proposta por EE contra DD, S.A., hoje AA;
– Acção sumária 182/95, que igualmente correu termos neste Tribunal, e que foi proposta por GG contra a Companhia de Seguros SPS.
– Acção sumária 2/97, que correu termos na 1ª Secção deste Tribunal em que eram AA. CC e Mulher e R. a Companhia de Seguros DD, hoje AA.
4º – A acção sumária nº 86/95, que teve como AA. o CC e a Augusta e R. a SPS terminou com a absolvição desta R.
5º – Quanto às restantes acções, em que se encontraram em juízo TODOS OS INTERVENIENTES, foram apensas, correndo termos sob o nº 170/95, por ter sido esta a primeira a ter dado entrada no Tribunal.
Esta acção foi julgada, tendo sido proferida sentença em que se julgou a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, condenando-se, em consequência:
– a aí ré Companhia de Seguros DD, S.A., a pagar ao A. EEa quantia de 800.000$00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos desde a data de citação e vincendos até efectivo e integral pagamento,
– a aí ré SPS – Sociedade Portuguesa de Seguros, S.A., a pagar ao A. GG a quantia de 6.754.561$00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos desde a data de citação e vincendos até efectivo e integral pagamento;
– a aí ré Companhia de Seguros DD, S.A., a pagar ao A. CC a quantia de 4.161.589$00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos desde a data de citação e vincendos até efectivo e integral pagamento;
– a aí ré Companhia de Seguros DD, S.A., a pagar à A. FF a quantia de 575.737$00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos desde a data de citação e vincendos até efectivo e integral pagamento;
6º – No mais, absolveu-se as rés Companhia de Seguros DD, S.A. e SPS – Sociedade Portuguesa de Seguros, S.A. do mais peticionado – doc. de fls. 18/126, aqui dado por integralmente reproduzido.
7º – Interposto recurso, foi elaborado douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães em que se decidiu, a final, com data de 24.09.03, pela confirmação parcial da sentença apelada, alterando-a apenas na parte relativa aos juros moratórios devidos ao A. GG, considerando serem apenas devidos a partir da data da sentença da 1.ª instância e não da citação – doc. de fls. 51, aqui dado por integralmente reproduzido.
8º – A Aliança, já então AA, pagou aos AA. aquilo em que foi condenada, ou seja a quantia supra referida, acrescida dos juros de mora entretanto vencidos.
9º – Concretamente, em 26 de Março de 2004, pagou ao CC a quantia de 31.359,24€, e à Augusta Sacramento Lima a quantia de 4.338€, correspondentes à totalidade da quantia em divida e correspondentes juros de mora.
10º – Tendo a SPS, então já BB, pago ao GG a sua quota-parte indemnizatória, ou seja, 50% do quantum apurado.
11º – Em 29 de Setembro de 2004 a AA solicitou à ora R., por carta registada, o reembolso das quantias pagas – docs. de fls. 77 e segs, aqui dados por integralmente reproduzidos.
12º – Por escritura pública de 2 de Dezembro de 1997, e de acordo com o Despacho Ministerial 12.683/97, publicado no Diário da República, 2ª série, de 13 de Dezembro, a DD, depois Aliança UAP adoptou a denominação de AA – SEGUROS DE PORTUGAL, sucedendo, com esta nova denominação, em todos os direitos e obrigações da antecessora.
13º – Por sua vez, a SPS sucedeu à Companhia de Seguros BB, S.A.
14º – Na referida acção 86/95, que os aí AA. CC e esposa instauraram contra SPS – Sociedade Portuguesa de Seguros, S.A., a ré foi absolvida dos pedidos na sequência da improcedência da acção, por decisão final proferida em 28.03.97, transitada em julgado – doc. de fls. 193 e segs, aqui dado por integralmente reproduzido.
IV. – Fundamentos de Direito
De harmonia com o preceituado nos artigo 497.º, n.º 1, e 498.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a excepção do caso julgado tem como pressuposto a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, repetindo-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
A excepção do caso julgado tem como objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – artigo 497.º, n.º 2, do mesmo diploma.
O esclarecimento do disposto no n.º 1 do artigo 498.º já citado é nos fornecido pelos n.os 2 a 4 da mesma norma:
"2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. (…)”.
A chamada força ou autoridade reflexa do caso julgado também pressupõe, tal como a excepção do caso julgado, a tríplice identidade prevista no artigo 498.º do Código de Processo Civil.
Já ensinava o Professor ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pp. 92/93, que não é possível criar duas figuras distintas – o caso julgado excepção e a autoridade do caso julgado –, pelo que está errado quem entenda que «o caso julgado pode impor a sua força e autoridade, independentemente das três identidades mencionadas no art. 502º» (actual 498.º).
O que acontece, segundo a lição do eminente civilista, é que «o caso julgado exerce duas funções: - a) uma função positiva; e b) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. A função positiva tem a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade...a função negativa exerce-se através da excepção de caso julgado. Mas quer se trate da função positiva, quer da função negativa, são sempre necessárias as três identidades».
E as coisas não podem deixar de continuar a ser assim entendidas face ao que dispõe o n.º 1 do artigo 671 do actual Código de Processo Civil: “Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497.º e seguintes (…).”
É, portanto, a própria a lei, quando estabelece o valor da sentença transitada em julgado e os seus limites, a remeter expressamente para os normativos definidores da excepção do caso julgado, entre eles o que exige a tríplice identidade (art.498.º).
Acresce, para finalizar, que as sentenças (e os acórdãos, bem com as demais decisões judiciais de fundo) constituem caso julgado nos precisos limites e termos em que julgam – artigo 673.º do Código de Processo Civil.
Ora na decisão proferida no processo nº 86/95, em que os aí AA. CC e esposa instauraram contra SPS – Sociedade Portuguesa de Seguros, S.A., a aqui ré foi absolvida dos pedidos, na sequência da improcedência da acção, por decisão final transitada em julgado.
Por outro lado na acção n.º 170/95, na qual participaram todos os intervenientes, a ré SPS foi apenas condenada “a pagar ao A. GG a quantia de 6.754.561$00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos desde a data de citação e vincendos até efectivo e integral pagamento”.
Diz-nos o art. 675.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, que “havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar”.
Ora, o que se verifica é que a acção interposta pelos lesados CC e esposa terminou com decisão de mérito que absolveu a aqui ré, BB (à data SPS) e que tal decisão transitou anteriormente à decisão conjunta de 13 de Julho de 2001, transitada posteriormente com o acórdão da Relação de Guimarães que a confirmou parcialmente.
O A. argumenta com o disposto no art. 497.º, n.º 1, do Cód. Civil, que estipula que “se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade”, por forma a concluir no sentido do pedido que formula.
Porém, há que reconhecer, como o fez a 1.ª instância, que não se decidiu, a final, tornar extensivo, em termos de responsabilidade solidária, à Ré BB, Lda, a condenação do pedido dos referidos CC e esposa.
E a sentença – como se disse – só constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.
Não estamos perante uma situação em que o caso julgado se apresenta como excepção, nos termos acima referidos, ou seja, como meio de obstar ao conhecimento do objecto da causa, mas sim para impor às partes e ao tribunal o respeito pela autoridade do caso julgado formado em acção anterior.
Sobre o entendimento correcto a perfilhar quanto à autoridade do caso julgado, remetemos para o que se diz na decisão da 1.ª instância:
«Afigura-se indubitável, por força do preceituado no artigo 659.º, do Cód. Proc. Civil, que o caso julgado abrange a parte decisória da sentença, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos, sem, contudo, se poder esquecer que temos, em primeiro lugar, uma decisão transitada em julgado que absolve a aqui ré do pedido.
Já se entendeu, em interpretação meramente literal da norma do art. 673º do C.Proc.Civil, que "o caso julgado forma-se directamente sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo autor (ou pelo réu, através da reconvenção). É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força do caso julgado. A força do caso julgado cobre apenas a resposta dada a essa pretensão e não o raciocínio lógico que a sentença percorreu, para chegar a essa resposta" – ANTUNES VARELA, J. M. BEZERRA E SAMPAIO E NORA, Lições de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, 1985, p. 712.
Acontece que, pouco depois do início de vigência do Código de Processo Civil de 1961, já RODRIGUES BASTOS, (Notas ao Código Processo Civil, Vol. III, Lisboa, 1972, p. 253), considerando que "a posição predominante actual, principalmente devida à influência de um parte da doutrina italiana, com apoio da jurisprudência, é favorável a uma mitigação deste último conceito, no sentido de, considerando embora o caso julgado restrito à parte dispositiva da sentença, alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de decidir como premissas da conclusão firmada"; atendendo a que, como se vê do Anteprojecto publicado no BMJ n.º 123, pág. 120, "o Código actual, eliminando o § único do art. 660º e a alínea b) do art. 96º da lei anterior, à luz dos quais era de sustentar estar admitida a extensão do caso julgado à decisão cuja resolução fosse necessária, fê-lo confessadamente no propósito de não tocar no problema e deixar à doutrina a sua solução, caso por caso, mediante os conhecidos processos de integração"; defendia, "ponderadas as vantagens e os inconvenientes das duas teses em presença, que a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidos por aquele critério eclético que, sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado".
Parece ainda de acentuar que "como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto ou de direito) o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão" – MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, pp. 578 e 579.
Acresce que "o caso julgado da decisão também possui um valor enunciativo: essa eficácia de caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada". Excluída está, desde logo, a situação contraditória (...) como, além disso, "está igualmente afastado todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada" MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, obra citada, p. 579.»
Conclui-se, assim, com apoio na doutrina e na jurisprudência citada e acolhida no acórdão de 05.05.2005 (por lapso, é referida a data de 30.09.2004), proc. n.º 05B602, inserto em www.dgsi.pt (e ainda em MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, p. 317, VAZ SERRA, RLJ, ano 110.º, p. 232, TEIXEIRA DE SOUSA, Rev. Dir. Est. Sociais, 1977, pp. 309/316 e os Ac.s do STJ de 29.9.76, BMJ n.º 258, p. 220, de 24.11.77, RLJ, ano 111.º, p. 198, de 20.6.78, BMJ n.º 278, p. 149, de 21.2.80, BMJ n.º 294, p. 258, de 9.6.89, BMJ n.º 388, p. 377, de 3.4.91, Act. Jud., n.º 18, p. 9, de 17.05.2001 (Revista n.º 1220/01/7ª Secção, Sumários de Acórdãos do STJ, de 24.05.2001 (Revista n.º 216/01/2.ª Secção, Sumários..., cit. e de 30.10.2001 (Agravo n.º 2831/01/6ª Secção, Sumários..., cit.) que "todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas na sentença, por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, estão compreendidas na expressão precisos termos em que julga, contida no art. 673.º, do Cód. Proc. Civil, ao definir o alcance do caso julgado material, pelo que também se incluem neste"
Em suma, o caso julgado visa essencialmente a imodificabilidade da decisão transitada, exigindo-se que os Tribunais respeitem ou acatem a decisão, não a julgando de novo, como aconteceria, in casu, se se procedesse à reapreciação da questão decidida na primeira acção interposta contra a R. BB, pelos lesados CC e esposa.
Dúvidas não se nos parecem legítimas de que os sujeitos são os mesmos em ambas as acções, pela sua qualidade jurídica, uma vez que estão na acção os responsáveis pelo acidente e os lesados.
Outro tanto sucede quanto à verificação dos demais requisitos, entendendo-se que existe identidade entre o pedido ora formulado e o pedido formulado no processo n.º 86/95, bem como entre as respectivas causas de pedir.
O pedido, como explanado, consiste no efeito jurídico que se pretende obter, ou seja, é “a enunciação do direito que o autor quer fazer valer em juízo e da providência que para essa tutela requer” – cf. ANA PRATA, Dicionário Jurídico, Almedina, Coimbra, 1997, p. 724.
Ora, quer o pedido deduzido no processo n.º 86/95, quer no pedido deduzido nos presentes autos, é o mesmo o efeito jurídico pretendido pelos autores – a condenação dos réus a pagar-lhes a quantia de 6.457.896$00 (5.372.159$00+1075.737) e legais acréscimos.
E quanto à causa de pedir?
Como decorre do preceituado no artigo 498.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, a causa de pedir não consiste na categoria legal invocada, no facto jurídico abstracto configurado pela lei, mas, antes, nos concretos factos da vida a que se virá a reconhecer, ou não, força jurídica bastante e adequada para desencadear os efeitos pretendidos pelo A., ou seja, a causa de pedir traduz-se nos acontecimentos da vida em que o A. apoia a sua pretensão.
Conforme se decidiu no Acórdão deste Tribunal de 20.1.94 (BMJ n.º 433, p. 495) “[a] causa de pedir, como decorre da definição legal constante do artigo 498.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, é o facto jurídico concreto em que se baseia a pretensão deduzida em juízo; isto é, o facto ou conjunto de factos concretos articulados pelo autor e dos quais dimanarão o efeito ou efeitos jurídicos que, através do pedido formulado, pretende ver juridicamente reconhecidos “.
ALBERTO DOS REIS, citando BAUDRY e BARDE, ensina-nos que a causa de pedir “é o facto jurídico que constitui o fundamento legal do benefício ou do direito, objecto do pedido; é o princípio gerador do direito, a sua causa eficiente, a origo petionis."
E, desde logo adverte, apoiando-se em CHIOVENDA, que "há que repelir, antes de mais nada, a ideia de a que a causa petendi seja a norma de lei invocada pela parte. A acção identifica-se e individualiza-se, não pela norma abstracta da lei, mas pelos elementos de facto que converteram em concreto a vontade legal" (Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, vol. III, p. 121).
ANSELMO DE CASTRO, depois de reconhecer que a nossa lei – art. 498.º, n.º 4 do C.P.C. – consagra a chamada teoria da substanciação e de salientar que a lei consagra diversos conceitos de causa de pedir, acaba por reconhecer que para efeitos de caso julgado a noção consagrada é a que está referida ao acontecimento concreto ("aqui, a noção de causa de pedir está referida ao acontecimento concreto"), ao passo que, por exemplo, no que toca à alteração superveniente da causa de pedir e litispendência a causa de pedir é referida a categorias abstractas (Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. I, pp. 207 e ss.; Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, p. 39, nota 35, diverge neste ponto concreto, ao proclamar que "[a] inclusão desta definição numa norma sobre a litispendência e o caso julgado não lhe retira o alcance geral: a causa de pedir a que se refere o art. 498º-4 do C.P.C. serve tanto à delimitação do âmbito do caso julgado (...) e da litispendência como à configuração do objecto do processo").
Ora, a causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de viação – como é o caso das duas acções em confronto – é complexa, integrada não só pelo acidente e pela culpa (ou pelo risco), mas também pelos prejuízos, alegados e peticionados (cf., entre outros, VAZ SERRA, RLJ, ano 103.º, p. 311 e acórdão do STJ, de 14de Maio de 1971, BMJ n.º 207, p. 155).
Em consequência, entende-se verificada a existência de casos julgados contraditórios.
Logo, a decisão da Relação merece-nos censura, sendo a posição correcta a da 1.ª instância.
Nestes termos, tendo-se já decidido, face aos factos e considerações jurídicas mencionadas, absolver, por decisão previamente proferida e transitada em julgado, a aqui ré BB do pedido deduzido por CC e esposa, cuja condenação agora, nestes autos, pretende a Autora obter, na proporção do que pagou, há que atender, aqui, ao ali decidido.
Como tal, por aplicação dos referidos princípios, não se pode, pois, reconhecer à A. o direito de ser reembolsada da respectiva quota-parte que reclama.
V. – Pelo exposto, acordam em conceder provimento à revista, revogando-se a decisão recorrida.