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ACIDENTE DE VIAÇÃO
GABINETE PORTUGUÊS DA CARTA VERDE
LEGITIMIDADE
Sumário
I- A circunstância de a seguradora do veículo matriculado e segurado em França ter representante em Portugal, não impedia a Autora de dirigir a acção contra o R.- Gabinete Português da Carta Verde, na qualidade de “Gabinete Gestor”. II- Demandado este, tem interesse em contradizer, uma vez que lhe cumpre satisfazer as indemnizações peticionadas na acção (ainda que depois seja reembolsado), pelo que é parte legítima (art. 26°, n° 1 e 2, do CPC).
Texto Integral
Proc. nº 1780/06.5TBAMT.P1
Tribunal Judicial de Amarante 1º juízo
Relator: José Carvalho
Adjuntos: Desembargadores Rodrigues Pires e Pinto dos Santos
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
B…, residente em …, …, …, rés-do-chão direito, …, Felgueiras, instaurou, em 10-08-2006, a presente acção declarativa de condenação sob forma comum ordinária contra o Gabinete Português de Carta Verde pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de €18.551,89, acrescida de juros de mora que se vencerem, em razão dos danos causados pela ocorrência de um embate entre veículos.
Alegou que nesse embate, em Amarante, no dia 20 de Agosto de 2003, foram intervenientes o veículo matriculado em Portugal, por si conduzido, o ..-..-OL e um veículo matriculado em França, o ….VA.., este com seguro na Companhia de Seguros C…, titulado pela apólice n.º……. (art. 71.ºda petição inicial). Nessa peça processual faz referência a uma intermediária da companhia de Seguros C… (art. 27.º da petição inicial) e junta uma missiva que lhe foi endereçada nos termos da qual consta “(…) Acidente de: 20/08/2003-Matrícula do veículo: ..-..-OL, (…) comunicamos que o nosso perito concluiu pela perda total do veículo de V. Exa. Sendo a reparação desse veículo tecnicamente inviável, a indemnização final pela perda do mesmo, será correspondente à diferença de valores, ou seja, 8.700,00€, ficando os salvados sua propriedade. Ficamos na expectativa de receber a sua aceitação à proposta referida. De momento, ainda não nos encontramos habilitados a assumir qualquer responsabilidade do segurado na nossa correspondente pela produção do presente sinistro, (…)” – fls. 32.
Juntou, ainda, correspondência que enviou à D… e ao Gabinete Português de Carta Verde, com “pedido de peritagem” e informação “se já se encontra apurada a responsabilidade do acidente” – fls. 35 a 37.
A Ré contestou alegando, em síntese que a responsabilidade civil pelos danos causados pelo veículo ….VA.. se encontrava transferida para a Companhia de Seguros E…, por contrato titulado pela apólice n.º…….. (juntou um documento não impugnado nos termos da qual consta a seguradora como sendo E… – fls. 64), e não para a Companhia identificada na petição inicial; que, a Companhia de Seguros E… tem correspondente em Portugal, responsável pela gestão do processo de sinistro, a congénere D1…. Juntou um documento emitido pela E…, não impugnado (fls. 77 e 78), nos termos do qual consta “nous avons saisi notre correspondant habituel au Portugal – D1… – pour gérer cette affiare pour notre compte. En conséquence, nous vous remercions de bien vouloir nous confirmer que vous classez ce dossier sans suite” – fls. 65.
Concluía pela sua ilegitimidade.
Na réplica, a Autora, alegando que a menção à Seguradora C… se deveu a mero lapso, posto que, efectivamente, a responsabilidade civil pelos danos causados pelo veículo ….VA.. encontrava-se transferida para a Companhia de Seguros E… por contrato titulado pela apólice n.º…….., declarou alterar a causa de pedir, em termos de ficar a constar do art. 71º da p.i. esta apólice e esta seguradora.
No saneador foi admitida a requerida alteração ao artigo 71º da p.i. e foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade passiva. Para tanto, escreveu-se no despacho: “existindo seguro válido e sendo o veículo interveniente no evento matriculado no estrangeiro, representa o réu aquela seguradora francesa (cfr. Convenção – Tipo Gabinetes e art. 2º do DL nº 122-A/86, de 30 de Maio), tem por isso e em consequência interesse em contradizer e é parte legítima.” No mais, afirmada a validade e regularidade da instância, procedeu-se à selecção dos factos assentes e da base instrutória.
Inconformado com o despacho que julgou improcedente a excepção da ilegitimidade, o Gabinete Português da Carta Verde interpôs recurso de agravo, o qual foi admitido com subida diferida.
Finalizava as alegações com as seguintes conclusões:
1 - A presente acção foi intentada contra Gabinete Português de Carta Verde.
2 - Nos termos do artigo 3º e do parágrafo segundo do artigo 4º, ambos da Convenção Tipo Intergabinetes (Acordo Multilateral de Garantia — publicado em anexo à Decisão da Comissão de 30 de Maio de 1991 — 91/323/CEE) quando se verifique no país do gabinete gestor acidente que motive reclamação contra um segurado de uma companhia inscrita no gabinete emissor da respectiva carta verde, o gabinete gestor receberá, em nome daquele, todas as notificações que possam envolver o pagamento dos prejuízos que resultaram do acidente.
3 - Das várias adendas ao Acordo Multilateral de Garantia resulta que o Gabinete Gestor em Portugal é a Associação Portuguesa de Seguradores - Gabinete Português de Carta Verde.
4 - À data do acidente, a responsabilidade civil pelos danos emergentes da circulação automóvel do veículo ….VA.. encontrava-se transferida para a companhia de seguros E… por contrato de seguro titulado pela apólice ……...
5 - Assim, no dia do acidente dos presentes autos não existia contrato de seguro automóvel válido na seguradora C… relativamente ao veículo ….VA.., titulado pela apólice n………..
6 - Deste modo, é o Gabinete Português de Carta Verde parte ilegítima para representar em juízo a seguradora C…, por falta de interesse em contradizer.
7 - O ora Agravante actua como Gabinete Gestor, em representação da Seguradora Francesa C…, e no âmbito de tais poderes de representação não tem qualquer legitimidade passiva nos presentes autos, uma vez que à data do acidente o seguro do veículo nele interveniente estar em vigor, já não em si mesma, mas sim na sua Congénere Francesa E….
8 - Esta última Seguradora possui estabelecimento estável em Portugal através da sua representante D….
9 - Desta forma, a Companhia de Seguros Francesa não necessita de estar representada pelo GPCV.
10 - Com o devido respeito, deveria o douto despacho saneador, ora recorrido, ter julgado procedente a excepção de ilegitimidade alegada, e absolvido o Agravante, GPCV, da instância.
11 - Não foram incluídos na selecção da matéria de facto controvertida, a fls.. e salvo o devido respeito, quaisquer factos que permitam ao ora Agravante provar a existência ou inexistência de qualquer contrato de seguro, nomeadamente não foram incluídos factos da contestação relevantes para a apreciação da validade de tal/tais contratos de seguro, não tendo sido levada em conta a factualidade alegada nos artigos 5 e 6 da contestação a fls...
12 - Tal factualidade é imprescindível para definir em representação de quem está na lide o GPCV.
13 - Tal informação terá grande relevância, em caso de condenação do GPCV, nomeadamente para efeitos de exequibilidade da decisão e reembolso junto do Gabinete Francês dos pagamentos efectuados no âmbito do processo.
14 - Nesta forma, devem ser incluídos na base instrutória dois quesitos com a seguinte redacção: “À data do acidente o veículo francês de matrícula ….VA.. tinha seguro válido na Companhia de Seguros C… através da apólice nº ……… e “À data do acidente o veículo francês de matrícula ….VA.. tinha seguro válido na Companhia de Seguros E… através da apólice nº ……..?”
Nestes termos e nos demais de direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, alterando-se o douto despacho saneador recorrido no sentido de ser julgada procedente a excepção de ilegitimidade alegada e ser o ora Agravante absolvido da instância, caso assim não se entenda, deverá ser quesitada na base instrutória a existência dos dois contratos de seguros nas duas Seguradoras.
A Agravada contra-alegou, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
*
Os autos prosseguiram. No início da audiência de discussão e julgamento, o ilustre mandatário do R., ditou para a acta um requerimento, no qual alegou: que a seguradora estrangeira tem representante em território nacional e que este devia ter sido demandado, o que consubstancia uma situação de ilegitimidade; que a entender-se que se trata de uma questão de mérito, deveria ser absolvido do pedido, o que requeria.
A MMª juiz proferiu em seguida a decisão reproduzida a fls. 458 a 465, na qual, após concluir que “inexistem fundamentos legais para responsabilizar o Gabinete pela entrega da quantia peticionada nesta lide”, absolveu o R. do pedido.
A Autora interpôs recurso desse despacho, rematando as alegações com as seguintes conclusões:
1-A autora propôs a presente acção contra o GABINETE PORTUGÊS DA CARTA VERDE alegando que, no dia 20 de Agosto de 2003, interveio num acidente de viação quando conduzia o seu veículo de matrícula ..-..-OL, na E.N. .., no … do concelho de Amarante;
2-Que foi também interveniente o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula francesa ….VA.., conduzido pelo seu proprietário, F…, residente em França;
3-E que tal veículo estava segurado na companhia de seguros francesa C…, pelo que fundamenta o pedido, além do mais, nos arts. 20, nº 8 do DL 522/85 e no art. 2º do Dec. Lei 122-A/86.
4-Contestando o réu a sua ilegitimidade para representar a seguradora identificada na petição, por não estar nela seguro o veículo mas sim na seguradora E…, veio a autora requerer a alteração da causa de pedir, no que se refere à Seguradora e respectiva apólice.
5-Essa alteração foi admitida e proferido despacho saneador no qual foi julgada improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade do réu.
6-Despacho do qual este interpôs recurso de agravo com fundamento em matéria nova, ou seja, que tendo a E… correspondente em Portugal devia a acção ser proposta contra essa representante.
7-Ao mesmo tempo que, apesar de ter sido admitida a alteração da causa de pedir, mantém a posição de não saber qual das duas seguradoras representa na acção.
8-Já em sede de audiência de julgamento veio a ser proferida a decisão recorrida que entendeu, desde logo, que a questão era de mérito e não de legitimidade processual;
9-Ou seja, de saber se podia ser exigido ao réu FGA a indemnização pedida pela autora, havendo representante, em Portugal, do emissor do certificado internacional de seguro.
10-Nos termos do nº 8 do artigo 20 do DL 522/85, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei 122-A/86, o seguro celebrado em França, junto de uma seguradora francesa produz efeitos jurídicos em Portugal, como se aqui houvesse sido emitida a respectiva apólice.
11-Compete ao Gabinete Português de Certificado Internacional de Seguro a satisfação das indemnizações devidas, nos termos legais e regulamentares do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aos lesados por acidentes causados por veículos matriculados noutros Estados membros da Comunidade Económica Europeia.
12-Também a Convenção Tipo Intergabinetes confere ao réu a responsabilidade da gestão da regularização de um sinistro e de reparação dos prejuízos ocorridos em Portugal, concedendo-lhe o direito a ser reembolsado.
13-Contudo a decisão recorrida acaba por se fundar no Despacho Normativo nº 20/78 de 24.01, do Ministro das Finanças para justificar o entendimento de que a instrução e liquidação deve ser deixada ao representante em Portugal.
14-Concluindo que, sendo o veículo matriculado em França e aí seguro, deve ser demandado o representante para sinistros e só na sua falta o Gabinete Português da Carta Verde.
15-Somos assim forçados a concluir que foi o referido Despacho Normativo a norma essencial para a decisão proferida, atento o seu teor.
16-Apesar do texto daquela norma temos de atender à sua razão de ser e ainda ao facto de, ao tempo, não existir em Portugal, um regime legal de Seguro Obrigatório de responsabilidade civil para veículos automóveis, que só se concretizou com o Decreto Lei 408/79, revogado pelo Dec.Lei 522/85,
17-Aquele Despacho Normativo concretizava as funções do INS enquanto, e também, Gabinete Português do Certificado Internacional de Seguro Automóvel, na sequência da publicação do Decreto -Lei 514/77.
18-Este surge com a necessidade de atribuir ao INS poderes para assegurar, provisoriamente, os serviços prestados pelo extinto Grémio dos Seguradores e celebrar convenções bilaterais com organismos estrangeiros para recíproco reconhecimento dos certificados internacionais de seguro automóvel, contra o risco de responsabilidade civil.
19-Dispunha o nº 1 daquele Despacho Normativo acerca das competências da Secção da Carta Verde: c) -a liquidação de sinistros, enquanto gabinete instrutor, mediante autorização prévia das entidades congéneres estrangeiras ou das sociedades interessadas e por conta destas; d) – Gerir os processos de sinistro de acordo com o nº 3 da Convenção Tipo Intergabinetes, logo que, por força da entrada em vigor em Portugal do seguro obrigatório automóvel, passe a gabinete gestor.
20-Ora, nessa data, não tinha ainda entrado em vigor o regime legal do seguro obrigatório automóvel.
21-Dispõe o nº 3 do citado Despacho Normativo que “No caso de a companhia inscrita no gabinete emissor do certificado ter em Portugal um “correspondente”, ao abrigo do artigo 4º da Convenção Tipo Intergabinetes, a secção da Carta Verde abandonará a instrução do processo e a liquidação dos sinistros ao referido “correspondente”.
22-Assim, o que resulta do texto é que a secção da Carta Verde “abandonará” a instrução do processo e a liquidação do sinistro ao “correspondente”.
23-O que nos remete para o teor das alíneas b) e c) do nº 1 que lhe conferem poderes de instrução “quando os interessados o solicitem” e ainda enquanto gabinete instrutor, poderes de liquidação do sinistro mediante a autorização prévia dos congéneres estrangeiros ou das seguradoras interessadas e sempre por conta delas.
24-Assim, estando os poderes de instrução e de liquidação dependentes dos interessados e das entidades congéneres estrangeiras ou seguradoras, fazia sentido que esses poderes de instrução e liquidação fossem deixados ao correspondente em Portugal, quando o houvesse.
25-Igualmente, o artigo 9º da Convenção a que se faz referência prevê que o Gabinete Gestor poderá, se tal lhe for pedido, confiar a gestão e regularização de sinistro ao membro do Gabinete Emissor que disponha no país do Gabinete Gestor filial ou sucursal estabelecida e autorizada a efectuar seguros automóvel.
26-De nenhuma destas normas resulta uma imposição mas sim uma faculdade, uma possibilidade.
27-Ao tempo da publicação do Despacho Normativo 20/78, nem o INS, nem a sua Secção da Carta Verde tinham funções de Gabinete Gestor, como resulta da alínea d) do nº 1 do citado Despacho Normativo.
28-Por outro lado não podemos comparar o enquadramento legal dos termos definidos pelo nº 2 do Decreto-lei 122-A/86, no qual se prevê expressamente “Compete ao Gabinete Português do Certificado Internacional de Seguro …a satisfação ao abrigo da Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais das indemnizações devidas, nos termos legais e regulamentares do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aos lesados por acidentes causados por veículos matriculados noutros Estados membros da C.E.E. “, com o daquele em que surge o Despacho Normativo em causa.
29-Sendo a questão fundamental saber se o lesado em acidente de viação ocorrido em Portugal com veículo de matrícula estrangeira, ao abrigo de um certificado internacional de seguro, pode exigir ao GPCV a satisfação dos danos sofridos,
30-E tendo a decisão recorrida sido suportada no nº 3 do Despacho Normativo 20/78 de 24 de Janeiro,
31-Entendemos que nem essa norma, nem outras contemporâneas ou posteriores impõem tal entendimento.
32-As alterações introduzidas pelo Decreto-lei 122-A/86 no Dec.Lei 522/85 resultam da imposição de adaptar a legislação nacional às normas de Direito Comunitário, nomeadamente quanto ao âmbito territorial da produção de efeitos do contrato de seguro e de facilitar ao lesado o recurso a meios de obter o ressarcimento dos danos.
33-E as alterações introduzidas no Dec. Lei 522/85 pelo Decreto-lei 72-A/2003, porque se referem à protecção de lesados em acidentes ocorridos em País terceiro, com veículos também matriculados fora do seu país de residência, não tem aplicação ao caso dos autos.
34-Assim, restando como fundamento da decisão recorrida o nº 3 do Despacho Normativo 20/78 pelas razões supra expostas não pode manter-se a decisão.
35-Desde logo porque estaria posta em causa a unidade do sistema normativo actualmente em vigor, uma vez que aquele Despacho e o seu citado nº 3 se aplicam num contexto legal muito diverso, e quando ainda não existe a figura do Gabinete Gestor, nem do seguro obrigatório.
36-Aplicando-se tal norma apenas às funções de liquidação e instrução acabou por se configurar numa norma transitória tendo em conta a situação em que foi produzida.
37-Não sendo admissível a aplicação da norma, no momento actual, em sinal contrário a leis ordinárias e a regras de Direito Comunitário e internacional, com a evidente violação do princípio da hierarquia das normas.
38-Com a decisão proferida foram violadas por errada interpretação e aplicação as normas dos arts.20, nº8 do Dec. Lei 522/85 e art. 2º do Dec. Lei 122-A/86, bem como do citado nº 3 do Despacho Normativo 20/78 por não ser aplicável à situação concreta.
O Gabinete Português de Carta Verde contra-alegou, no sentido da manutenção do despacho recorrido.
O direito
Em ambos os recursos a questão principal consiste em apurar se a acção devia ter sido instaurada contra o R.
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Estamos perante um acidente de viação ocorrido em território português, no qual foi interveniente um veículo matriculado em França. Na perspectiva da Autora, o comportamento do condutor do veículo de matrícula francesa foi o causador do acidente, do qual resultaram danos cuja reparação peticiona.
De acordo com o previsto no nº 8 do artigo 20º do DL nº 522/85, de 31/12 – diploma que veio a ser revogado pelo DL nº291/2007, de 21/8, mas aqui aplicável dado que o acidente ocorreu na sua vigência – o seguro celebrado em França produz efeitos jurídicos em Portugal, como se a respectiva apólice aqui tivesse sido emitida.
Ainda para o caso importa o teor do artigo 2º do Decreto-Lei nº 122-A/86, de 30-05, segundo o qual “compete ao Gabinete Português de Certificado Internacional de Seguro (…) a satisfação, ao abrigo da Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais, das indemnizações devidas, nos termos legais e regulamentares do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aos lesados por acidentes causados por veículos matriculados noutros Estados membros da Comunidade Económica Europeia (…)”.
Nos termos da Convenção- Tipo Intergabinetes, o “Gabinete Gestor” significa o Gabinete (…) que tem a responsabilidade no seu próprio país da gestão e regularização de um sinistro de harmonia com as disposições deste Acordo e nos termos da respectiva legislação nacional (art. 3º, al. f).
No caso deparamos com a particularidade de a seguradora francesa ter em Portugal uma empresa seguradora que a representa para sinistros.
Sustentou-se no despacho recorrido que a responsável pelo pagamento era essa empresa – e não o Gabinete Português da Carta Verde. Para tanto invocaram-se, essencialmente: os artigos 41º e 43º do DL nº 522/85, de 21/12; a Directiva 2000/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Maio de 2000, transposta para a ordem jurídica interna pelo DL nº 72-A/2003, de 14 de Abril (que alterou o DL nº522/85) e o Despacho Normativo nº 20/78 (DR, I série, nº 20, de 24-01-1978).
Os artigos 41º a 56º do diploma de 1985 integram o título II, com a epígrafe “Da protecção em caso de acidente no estrangeiro”.
A Directiva 2000/26/CE (quarta directiva automóvel) visa a protecção das vítimas de acidentes de circulação ocorridos num Estado- Membro que não o da sua residência, como decorre do teor do nº 1 do respectivo artigo 1º. Não é essa a situação dos autos.
O nº 3 do Despacho Normativo nº 20/78, dispõe: “No caso de a companhia inscrita no gabinete emissor do certificado ter em Portugal um “correspondente”, ao abrigo do artigo 4º da Convenção Tipo Intergabinetes, a Secção da Carta Verde abandonará a instrução do processo e a liquidação dos sinistros ao referido correspondente”.
A designação pelas seguradoras de um representante para sinistros em cada um dos Estados-Membros estava prevista no nº 1 do artigo 4º da mencionada Directiva. Mas, no artigo 6º permitia-se que as pessoas lesadas apresentassem o pedido de indemnização ao “organismo de indemnização” (responsável pela indemnização das pessoas lesadas). Apenas se impedia que apresentassem o pedido ao dito organismo se tivessem processado directamente a empresa de seguros. Tal situação não ocorreu no presente caso.
A circunstância de o representante para sinistros da seguradora estrangeira dever dispor de poderes suficientes para representar a empresa de seguros junto dos lesados e satisfazer plenamente o seu pedido de indemnização (art. 43º, nº 3, do DL nº 522/85), não significa o afastamento do Gabinete Gestor; muito menos impede que este seja demandado.
O artigo 8º da Convenção Intergabinetes estabelecia a competência exclusiva do Gabinete Gestor “em todas as matérias que digam respeito à interpretação das disposições legais do seu país e à regularização do sinistro”. Logo que tivesse regularizado o sinistro, o Gabinete Gestor tinha direito a ser reembolsado, entre outras, de “todas as importâncias pagas a título de prejuízos ou indemnizações, bem como os custos e despesas emergentes de decisão judicial” (art. 11º - sublinhado nosso).
A competência exclusiva atribui ao Gabinete Gestor legitimidade para intervir na acção em que é peticionada indemnização por danos alegadamente causados por veículo automóvel matriculado e segurado em França. E o reembolso das despesas judiciais apenas se compreende se considerarmos que deve – ou, pelo menos pode – ser demandado na causa em que é reclamada a indemnização. No Acordo Multilateral de Garantia Entre os Serviços Nacionais de Seguros, publicado em anexo à Decisão da Comissão de 30 de Maio de 1991 (91/323/CEE), a competência exclusiva do “serviço gestor” para todas as questões relativas à interpretação da legislação nacional e à regularização do sinistro, surge consagrada na alínea d) do artigo 3º; o reembolso das importâncias pagas, incluindo os “custos suportados de forma específica com acção judicial” encontra-se previsto nas alíneas i) e ii) do artigo 5º. Valem aqui as considerações acima tecidas quanto ao artigo 11º do Acordo Intergabinetes.
No acórdão do STJ de 08-02-1994, depois de se considerar que “o correspondente de seguradora estrangeira não é um mero intermediário ou auxiliar dela ou do Gabinete Gestor (…), mas verdadeiro responsável pela indemnização ao lesado”, concluiu-se que em acção para efectivação de responsabilidade civil por acidente de viação ocorrido em Portugal com intervenção de veículo matriculado e segurado noutro Estado Membro, deve ser demandado, em princípio, o Gabinete Português da Carta Verde, como Gabinete Gestor; e que pode também ser demandada a seguradora, como directamente responsável pelos danos causados (BMJ, nº 434, pp. 559/563). No acórdão de 13-03-2003 foi mantido aquele entendimento (Proc. 03B3010, em www.dgsi.pt).
A mesma posição é sustentada por Adriano Garção Soares, José Maria dos Santos e Maria José Rangel de Mesquita, quando escrevem que a acção judicial deve ser dirigida contra o Gabinete Português das Carta Verde (Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 2ª ed., 2001, pág. 833).
Voltando caso em apreciação: a circunstância de a seguradora do veículo matriculado e segurado em França ter representante em Portugal, não impedia a Autora de dirigir a acção contra o R., na qualidade de “Gabinete Gestor”. Demandado este, tem interesse em contradizer, uma vez que lhe cumpre satisfazer as indemnizações peticionadas na acção (ainda que depois seja reembolsado), pelo que é parte legítima (art. 26º, nº 1 e 2, do CPC), conforme o sustentado no despacho agravado.
Apresentando-se a instância válida e regular, os autos deverão prosseguir para julgamento, o que implica a revogação do despacho recorrido e a procedência da apelação.
Decisão
Pelos fundamentos expostos:
1. Nega-se provimento ao agravo, confirmando-se o despacho agravado.
2. Na procedência da apelação, revoga-se o despacho recorrido, ordenando-se a prossecução dos autos.
Custas do agravo pelo agravante.
Custas da apelação pelo apelado.
Porto, 7.11.2011
José Bernardino de Carvalho
Eduardo Manuel Rodrigues Pires
Manuel Pinto dos Santos