I – O artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, concretiza, no que diz respeito à retribuição do trabalho, visando garantir um justo e equitativo valor, o princípio da igualdade consignado no artigo 13.º do mesmo diploma.
II – O direito de igualdade reporta-se a uma igualdade material que exige se tome sempre em consideração a realidade social em que as pessoas vivem e se movimentam, e não a uma igualdade meramente formal, massificadora e uniformizadora, devendo, pois, tratar-se por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual.
III – O que decorre do princípio para trabalho igual salário igual é a igualdade de retribuição para trabalho igual em natureza, quantidade e qualidade, e a proibição de diferenciação arbitrária (sem qualquer motivo objectivo) ou com base em categorias tidas como factores de discriminação (sexo, raça, idade e outras) destituídas de fundamento material atendível, proibição que não contempla, naturalmente, a diferente remuneração de trabalhadores da mesma categoria profissional, na mesma empresa, quando a natureza, a qualidade e quantidade do trabalho não sejam equivalentes, atendendo, designadamente, ao zelo, eficiência e produtividade dos trabalhadores.
IV – Nos casos em que a acção tem por fundamento algum dos factores característicos da discriminação consignados no n.º 1, do artigo 23.º do Código do Trabalho de 2003 e no artigo 35.º do Regulamento do Código do Trabalho (Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho), ou outros equiparáveis, segundo o critério da igual dignidade sócio-laboral, o trabalhador que se sente discriminado não tem de alegar e demonstrar factos relativos à natureza, qualidade e quantidade das prestações laborais em comparação, pois que, provados os factos que integram o invocado fundamento, actua a presunção de que a diferença salarial a ele se deve, invertendo-se, apenas, quanto ao nexo causal presumido, o ónus da prova.
V – Mas tem, em tais casos, de alegar e provar, além dos factos que revelam a diferenciação de tratamento, também, os factos que integram um daqueles factores característicos da discriminação.
VI – Isto significa que a presunção de discriminação não resulta da mera prova dos factos que revelam uma diferença de remuneração entre trabalhadores da mesma categoria profissional, ou seja, da mera diferença de tratamento, pois, exigindo a lei que a pretensa discriminação seja fundamentada com a indicação do trabalhador ou trabalhadores favorecidos (artigo 23.º, n.º 3, do Código do Trabalho de 2003), naturalmente, tal fundamentação há-de traduzir-se na narração dos factos que, reportados a características, situações e opções dos sujeitos em confronto, de todo alheias ao normal desenvolvimento da relação laboral, atentem, directa ou indirectamente, contra o princípio da igual dignidade sócio-laboral, que inspira o elenco de factores característicos da discriminação exemplificativamente consignados na lei.
VII – Deste modo, numa acção em que se não invocam quaisquer factos que, de algum modo, possam inserir-se na categoria de factores característicos de discriminação, no sentido referido, não funciona a aludida presunção, por isso que compete ao autor, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, alegar e provar factos que, referindo-se à natureza, qualidade e quantidade de trabalho prestado por trabalhadores da mesma empresa e com a mesma categoria, permitam concluir que o pagamento de diferentes remunerações viola o princípio para trabalho igual salário igual, pois que tais factos, indispensáveis à revelação da existência de trabalho igual, se apresentam como constitutivos do direito a salário igual, que se pretende valer.
VIII – Nesta conformidade, numa acção em que a autora alega a violação do princípio para trabalho igual salário igual, não constando dos seus fundamentos qualquer dos factores característicos da discriminação, e tendo-se apenas provado que desde 2001 até Setembro de 2003 aquela integrou o quadro de pessoal da ré, com a categoria de técnica jurista, e que, a partir desta última data, passou a desempenhar ao serviço da mesma ré novas funções, concretamente as funções de assessoria jurídica num determinado gabinete, auferindo, em Abril de 2004 a quantia mensal ilíquida de € 878,00, e a partir de Fevereiro de 2005 o valor de € 897,40, e que a jurista admitida para o exercício das funções anteriormente desempenhadas pela autora auferia, desde Setembro de 2003, € 1.250,00, e a partir de Setembro de 2004, € 1.500,00, tais factos são insuficientes para se concluir que o trabalho prestado pela autora, antes e depois de mudar de funções, é igual ou objectivamente semelhante em natureza, quantidade e qualidade ao prestado pela outra trabalhadora jurista que, com a mesma categoria de assessora jurídica, a substituiu no lugar por aquela anteriormente ocupado.
I
1. AA instaurou, em 20 de Setembro de 2005, no Tribunal do Trabalho de Matosinhos, contra GOP – Gestão de Obras Públicas da Câmara Municipal do Porto, acção emergente de contrato de trabalho pedindo a condenação da Ré: a) a integrá-la no Gabinete Jurídico existente na sua estrutura funcional, de acordo com as suas qualidades profissionais enquanto jurista e para as quais foi contratada; b) a distribuir à Autora os serviços necessários a permitir-lhe realizar a sua prestação de trabalho no âmbito das funções jurídicas a desempenhar; c) a atribuir-lhe a categoria de técnica superior, desde Setembro de 2003 e a correspondente remuneração a ser fixada nos termos do artigo 265.º do Código do Trabalho; d) a pagar à Autora as diferenças salariais resultantes da liquidação pedida em c), desde Setembro de 2003, e cujo valor fixou provisoriamente em € 16.754,00 acrescida de juros à taxa legal; e) a pagar-lhe a título de danos não patrimoniais a quantia que vier a ser fixada pelo Tribunal, mas nunca inferior a € 5.000,0.
Alegou, em síntese, que:
— Em 1 de Novembro de 2001 celebrou com a Ré, verbalmente, um contrato de trabalho, passando a integrar, desde essa data, o quadro de pessoal da empresa com a categoria de técnica jurista, integrando comissões e júris de procedimentos concursais promovidos no que concerne às empreitadas de obras públicas e aquisição de bens e serviços, cooperando na elaboração de determinados contratos de projecto, revisão de projecto, fiscalização de empreitadas, fornecimentos, estudos auxiliares e secretariando o Conselho de Administração da Ré;
— Em meados de 2003, a Ré propôs à Autora a assessoria jurídica do Gabinete Pós-Construção, implementado nessa altura como nova estrutura organizacional da Ré, com a promessa de que progrediria mais rapidamente na carreira, e que lhe seria atribuída a categoria de técnica superior, face ao que a Autora aceitou as “novas funções” que iniciou em Setembro de 2003, deixando de exercer as que até à data exercia;
— Contudo, a Autora veio a verificar que as “novas funções” não a ocupavam a tempo inteiro e começaram até a rarear, o que a levou, inclusivamente, a exercer tarefas que não se enquadravam nas suas funções específicas (de natureza jurídica);
— Perante o “vazio” de funções em que se encontrava, em Setembro de 2004, a Ré convidou a Autora a pôr termo ao contrato de trabalho por mútuo acordo, o que não foi por esta aceite;
— Desde então, a Autora tem desempenhado tarefas que não se ajustam à sua categoria profissional, passando por uma situação de quase não atribuição de qualquer trabalho, sendo que a Ré não a promoveu à categoria de técnica superior, como havia prometido, e atribui-lhe remuneração desajustada tendo em conta as remunerações atribuídas aos demais juristas, como é o caso de uma jurista que foi assumir as funções exercidas pela Autora antes do seu ingresso no referido Gabinete, à qual a Ré atribuiu a categoria de técnica superior e uma remuneração mensal ilíquida de € 1.250,00, muito superior à auferida pela Autora à data da contratação daquela (€ 860,80).
A Ré contestou, a pugnar pela improcedência da acção, alegando, em resumo, que:
— A Autora nunca exerceu as funções de assessoria jurídica com espírito de iniciativa, diligência, produtividade e qualidade e que a sua integração no referido Gabinete teve por finalidade proporcionar à Autora a oportunidade de demonstrar aqueles atributos, o que não aconteceu, sendo certo que, actualmente, ela é pouco solicitada pelos demais colegas do Gabinete para o aconselhamento na área jurídica;
— Acresce que à Autora, como responsável única do referido Gabinete, a nível jurídico, competia tomar determinadas iniciativas e procedimentos, o que não fez, tendo, antes, optado por “trabalhar menos”;
— Por isso, e atendendo ao pouco rendimento da Autora, não se justificava qualquer progressão na carreira nem qualquer actualização salarial;
— E a jurista, que a Ré contratou para preencher a deslocação da Autora para o Gabinete de Pós-Construção, passou a colaborar com os diferentes sectores da empresa.
Após resposta da Autora, prosseguiram os autos, vindo a realizar-se a audiência de discussão e julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, com a consequente absolvição da Ré do pedido.
Apelou a Autora, com relativo sucesso, pois o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento parcial ao recurso, condenando a Ré "a pagar à Autora, a título de diferenças salariais, a quantia de € 14.501,00 (reportado ao período que vai de Setembro de 2003 a Setembro de 2005), acrescida dos juros à taxa de 4% ao ano, a contar da data do vencimento de cada uma das prestações parcelares e até integral pagamento", bem como "a título de diferenças salariais, e a partir de Outubro de 2005, as quantias a apurar oportunamente e até à data em que reponha o salário da Autora nos montantes auferidos pela outra jurista", absolvendo-a dos demais pedidos.
2. Do acórdão que assim decidiu veio a Ré pedir revista, para ver julgada a acção totalmente improcedente, terminando a respectiva alegação com as conclusões que se transcrevem:
«1.ª - O douto Acórdão sob censura, na parte recorrida, tem subjacente a consideração de que se provou ter existido, por parte da recorrente, [ ] um tratamento salarial diferenciado entre a recorrida e outra jurista, sua Colega de trabalho, pelo que teria sido violado o princípio da igualdade de tratamento;
2.ª - Ora, como vem sendo orientação jurisprudencial deste Alto Tribunal, cabia à recorrida - que se considerou discriminada - alegar e provar que o seu trabalho era igual ao da outra jurista admitida em Setembro de 2003, não só quanto à natureza mas também quanto à qualidade e quantidade;
3.ª - Sucedeu que a recorrida não alegou nem provou quais eram as funções específicas que executava para a recorrente a fim de se poder comparar a respectiva natureza e o respectivo conteúdo com as que vieram a ser desempenhadas pela "nova jurista";
4.ª - E isso mesmo se constatou no douto Acórdão recorrido que, sem dar a devida relevância a tal falta, concluiu: "Tendo em conta a matéria provada - em especial a referida sob os n.os 3, 11, 12, e 14 do § II do presente acórdão -, podemos concluir que a Autora conseguiu provar que ela e a outra jurista exercem funções de assessoria jurídica, mas auferem remunerações diferentes (...)";
5.ª - O facto de se ter provado que a recorrida e a Colega a que se opõe exercem, para a recorrente, funções de assessoria jurídica não deve conferir, só por si, à recorrida o direito a receber igual retribuição;
6.ª - Para tal teria ela de alegar e provar os elementos do referido princípio da igualdade de trabalho,
7.ª - designadamente, que a quantidade e qualidade desse trabalho era igual à da outra Colega de trabalho;
8.ª - Só assim se poderia concluir pela existência, ou não, de discriminação ou diferenciação de tratamento,
9.ª - tudo dependendo, então, de a recorrente conseguir, ou não, provar que tal diferenciação não assentava em critérios meramente subjectivos, mas objectivos;
10.ª - O que invocou a recorrida - que ela e a outra jurista foram admitidas ao serviço da recorrente para lhe prestarem assessoria jurídica - é, manifestamente, insuficiente, genérico e impreciso;
11.ª - Nas assessorias jurídicas podem existir diferenças substanciais, quer em natureza do trabalho, quer em quantidade do trabalho, quer, ainda, em qualidade de trabalho, que bem podem justificar, e justificam, por regra, diferenças substanciais nas remunerações dos assessores;
12.ª - As funções até podem ser as mesmas. Mas ser bem diferente a forma de as exercer, tendo em conta a quantidade e a qualidade dos serviços prestados;
13.ª - Sucede, no entanto, no caso dos autos, que existe matéria de facto dada como provada que, claramente, aponta no sentido de que as funções da recorrida e as da outra jurista começaram por ser, e são, diferentes;
14.ª - Na verdade, a admissão da nova jurista - em Setembro de 2003 - coincidiu com a reestruturação dos serviços da recorrente em que,
15.ª - por um lado, a recorrida aceitou ir desempenhar novas funções no novo Gabinete de Pós-Construção, enquanto,
16.ª - por outro lado, a nova jurista passou a integrar o novo Gabinete Jurídico, então criado para dar assistência não só à recorrente, o que a recorrida fizera até aí, mas também à outra Empresa Municipal, o que a recorrida nunca fizera:
17.ª - Significa isto que as duas juristas nunca tiveram trabalho igual. Antes da admissão da nova jurista a recorrida desempenhou funções de assessoria jurídica, não especificadas em natureza, quantidade e qualidade para a recorrente;
18.ª - Depois da admissão da nova jurista, a recorrida passou a desempenhar funções novas (logo diferentes das anteriores) no gabinete de Pós-Construção, enquanto a nova jurista passou a desempenhar, no Gabinete Jurídico, as funções que antes cabiam à recorrida, mais as funções que passaram a ser exigidas pela outra Empresa Municipal a que o Gabinete Jurídico passou, naquela reestruturação de serviços, a dar assistência;
19.ª - Como, finalmente, a nova jurista nunca exerceu as funções próprias do gabinete de Pós-Construção, pode afirmar-se sem receio de errar que nunca as duas juristas tiveram trabalho igual;
20.ª - Consequentemente, se não se provou que o trabalho das duas juristas era igual, em natureza, quantidade e qualidade, não se provou a discriminação salarial violadora do princípio da equidade retributiva que se traduz na fórmula «para trabalho igual, salário igual»,
21.ª- pelo que não tem a recorrida o direito a receber o que recebe a outra jurista e, por isso, não tem direito a receber as diferenças salariais que peticionou e a douta decisão recorrida lhe concede;
22.ª - Decidindo diversamente, a douta decisão recorrida, na parte sob censura, violou o disposto, designadamente, nos artigos 13.° e 59.°, da Constituição da República Portuguesa, e 23.°, 3, e 235.°, ambos do Código do Trabalho.»
Contra-alegando, para sustentar a confirmação do julgado, a Autora concluiu nos seguintes termos:
«87.° Nas suas doutas alegações, a recorrente apenas pretende discutir a factualidade já definitivamente assente e estabilizada.
88.° Assim, nos termos dos art.os 721.° e 722.°, do Cód. de Proc. Civil - e salvo o devido respeito por melhor opinião - este Alto Tribunal não a deve conhecer.
89.° Afigura-se incompreensível - e até inaceitável - que a recorrente venha, hoje - e só porque não logrou fazer prova dos (atrás referidos) argumentos vertidos na sua douta contestação -, negar ou desdizer aquilo em [ ] que relação ao qual no seu devido momento já anuiu, acordou ou afirmou.
90.° Sustentar, em sede de revista, uma pretensão - assente na alteração daquilo que já se dissera, acordara ou anuíra por meio da sua contestação, sem que resultasse, minimamente, o contrário dos elementos de prova colhidos - deverá, salvo o devido respeito -, merecer a mais clara e firme reprovação.
91.° Com efeito, sempre convirá lembrar que, em sede de contestação, a recorrente preocupou-se apenas em demonstrar a concretização da 2.ª parte do n.° 3 do art.° 23.° do Cód. d[o] Trabalho, acordando, por conseguinte, quer na igualdade funcional, quer na existência de uma discriminação retributiva, apenas procurando justificá-la.
92.° O facto de existir outro jurista na Recorrente, à data da admissão da recorrida - ou seja, mais antigo na Empresa - auferindo então uma retribuição superior à desta última, apenas poderia evidenciar, ainda mais, a falta de critério, muito menos objectivo (ou, pelo menos, a sua não demonstração pela recorrente) nas admissões que se lhe seguiriam: a da aqui recorrida e a da assessora jurídica sua equiparanda.
93.° De acordo com a factualidade apurada, o dito «apoio transversal» à outra Empresa Municipal constituía uma função igualmente exercida pela recorrida.
94.° O direito à igualdade de tratamento nas condições de trabalho estende-se, igualmente, aos critérios de selecção e às condições de contratação.
95.° Para efeitos de aplicação do regime de prova previsto no art.° 23.°, n.° 3, 1.ª parte, do Código do Trabalho, bem como da concretização dos parâmetros estabelecidos nos art.os 32.° e 33.° da Respectiva Lei Regulamentar, o conceito de igualdade de funções não poderá ser de tal forma restritivo - tal como o que resulta das alegações da recorrente - que arrisque essas disposições normativas à sua inaplicabilidade prática, para além de esvaziar de sentido prático o princípio da igualdade contido nos artigos 13.° e 59.° da Constituição da República Portuguesa.
96.° Nas suas doutas alegações - e nos termos e para os efeitos do art.° 23.,° n.° 3, 2.ª parte, do Cód. do Trab. - a recorrente não logrou provar qualquer «causa justificativa» que determinasse, objectivamente, a diferenciação remuneratória verificada entre as juristas em equipa-ração, nem sequer introduziu ou discutiu - mormente, nas suas conclusões - a necessidade de prova (e a quem a mesma incumbiria) das «causas justificativas» e objectivas que pudessem determinar uma diferenciação de remunerações, tal como a verificada no caso sub judicio.
97.° Deste modo, tendo a recorrente conformado, assim, nas suas conclusões, o objecto de recurso - nos termos do art.° 684.°, n.° 3 do Cód. de Proc. Civil -, salvo melhor opinião que muito respeitamos, não cumprirá ao Excelentíssimo Tribunal de Recurso apreciar essa - e apenas hipotética - questão.
Assim, e ao contrário do que se descortina das doutas alegações da recorrente, o douto acórdão recorrido revela, para além de uma clara e manifesta coerência entre os fundamentos utilizados e as respectivas conclusões, um acerto na interpretação e aplicação das normas jurídicas convocadas.
Nestas circunstâncias, nenhuma objecção crítica se lhe poderá colocar.»
Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público pronunciou-se, em douto parecer que lavrou nos autos, no sentido de ser concedida a revista.
A tal parecer respondeu a Autora para reafirmar a posição que havia assumido na resposta ao recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, sem prejuízo de deverem ser apreciadas questões do conhecimento oficioso.
Nas conclusões da revista, a recorrente não põe em causa a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois o que, essencialmente, critica é a interpretação feita pelo Tribunal da Relação das normas atinentes ao ónus de alegação e prova dos factos integradores da alegada violação do princípio da igualdade de tratamento, que conduziu ao juízo formulado pelo acórdão recorrido.
Versando tal crítica matéria de direito, não está vedado, pelas invocadas normas do Código de Processo Civil, a este Supremo conhecer do objecto do recurso, por isso que improcede a referida alegação da Autora.
3. Não tendo a decisão proferida sobre a matéria de facto sido impugnada e não ocorrendo qualquer das situações que, nos termos do n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil, autorizam o Supremo Tribunal a sobre ela exercer censura, é com base no quadro factual fixado pelas instâncias que há-de resolver-se a questão fundamental suscitada na revista, que se reconduz a saber se houve da parte da Ré tratamento discriminatório, em termos salariais, em relação à Autora, questão cuja resposta passa pela solução do problema da repartição do ónus da prova dos factos que consubstanciam a violação do princípio da igualdade de tratamento salarial, condensado na fórmula para trabalho igual salário igual.
3. 1. As instâncias divergiram na solução do referido problema.
A sentença, com apoio em referências jurisprudenciais e doutrinárias, considerou, em síntese, que a equiparação de salários decorrente do supra referido princípio, consignado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa — cujo texto inspirou a redacção do artigo 263.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que rege a determinação do valor da retribuição —, pressupõe que os trabalhadores a equiparar estejam a trabalhar na mesma empresa, que haja identidade de funções e que o trabalho por eles prestado seja de valor igual, aferindo-se este requisito pela igual produtividade e pela mesma perfeição técnica, observando que do princípio para trabalho igual salário igual não decorre necessariamente que trabalhadores da mesma empresa e com a mesma categoria hajam de receber o mesmo salário, sendo necessário que se prove que o trabalho dos trabalhadores em confronto é igual quanto à natureza, quantidade e qualidade, prova essa cuja prova compete ao trabalhador que alega a discriminação salarial.
E, examinando o quadro factual disponível, afirmou que "[e]mbora em termos objectivos se verifique uma diferenciação entre a remuneração auferida pela Autora por contraponto à auferida pela jurista contratada para assumir as funções anteriormente exercidas por aquela — tomando por referência desde logo a data da contratação da nova jurista —, não é possível concluir pela alegada violação do princípio para trabalho igual salário igual, até porque as funções que passaram a competir ao Gabinete Jurídico não são necessariamente equivalentes às anteriormente desempenhadas pela Autora, porquanto os juristas que integram o, entretanto, criado Gabinete Jurídico da ré passaram a prestar apoio não só à empresa Ré como igualmente a outra Empresa Municipal, denominada MEI (actualmente Domus Social)", precisando que "não decorre dos autos que o trabalho — perspectivado quanto à natureza, qualidade e quantidade — desenvolvido pela nova jurista contratada pela Ré para assumir as funções exercidas pela Autora antes do seu ingresso no Gabinete Pós-Construção seja equivalente ou igual ao desenvolvido pela Autora neste Gabinete".
Por sua vez, o Tribunal da Relação, no entendimento suportado nalguma doutrina, de que, perante a invocação de uma discriminação, ao trabalhador que se sente discriminado apenas compete alegar e provar os factos resultantes da discriminação, incumbindo ao empregador justificar objectivamente as razões da diferenciação, considerou, atenta a matéria de facto descrita nos pontos 3, 11, 12 e 14, ter ficado provado o tratamento diferenciado e, dado que a Ré não logrou demonstrar a existência de causa justificativa da diferenciação, concluiu ter sido violado o aludido princípio, tendo, em consequência, reconhecido à Autora a ser remunerada nos mesmos termos em que o é a jurista contratada para o lugar anteriormente ocupado pela Autora.
3. 2. Nos termos do artigo 59.º, n.º 1, alínea a) da Constituição da República Portuguesa, todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna.
Concretiza este preceito, no que diz respeito à retribuição do trabalho, visando garantir um justo e equitativo valor, o princípio da igualdade consignado no artigo 13.º do mesmo diploma, segundo o qual todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (n.º 1) e ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual (n.º 2).
É consensual que o direito de igualdade se reporta a uma igualdade material que exige se tome sempre em consideração a realidade social em que as pessoas vivem e se movimentam, e não a uma igualdade meramente formal, massificadora e uniformizadora, devendo, pois, tratar-se por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual.
É também pacífico que o princípio da igualdade se analisa numa proibição do arbítrio e da discriminação e numa obrigação de diferenciação. A proibição de discriminação «não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento», o que se exige «é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio» — Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, pp. 127-128.
E o que decorre do princípio para trabalho igual salário igual é a igualdade de retribuição para trabalho igual em natureza, quantidade e qualidade, e a proibição de diferenciação arbitrária (sem qualquer motivo objectivo) ou com base em categorias tidas como factores de discriminação (sexo, raça, idade e outras) destituídas de fundamento material atendível, proibição que não contempla, naturalmente, a diferente remuneração de trabalhadores da mesma categoria profissional, na mesma empresa, quando a natureza, a qualidade e quantidade do trabalho não sejam equivalentes, atendendo, designadamente, ao zelo, eficiência e produtividade dos trabalhadores em causa.
Nesta linha de orientação, este Supremo Tribunal, chamado a dirimir litígios em que não se mostrava invocado qualquer dos factores característicos de discriminação, tem entendido, em termos uniformes, que para se concluir pela existência de discriminação retributiva entre trabalhadores, ofensiva dos princípios constitucionais da igualdade e de trabalho igual, salário igual, é necessário provar que os vários trabalhadores diferentemente remunerados produzem trabalho igual quanto à natureza (dificuldade, penosidade e perigosidade), qualidade (responsabilização, exigência, técnica, conhecimento, capacidade, prática, experiência, etc.) e quantidade (duração e intensidade), competindo o ónus da prova ao trabalhador que se diz discriminado — Acórdãos de 6 de Fevereiro de 2002 (Processo n.º 1441/2001, sumariado em www.stj.pt/Jurisprudência/Sumários de Acórdãos/Secção Social), de 9 de Novembro de 2005, de 23 de Novembro de 2005 e de 25 de Junho de 2008 (respectivamente, Documentos n.os SJ200511090013804, SJ200511230022624 e SJ200806250005284, em www.dgsi.pt).
3. 3. O Código do Trabalho de 2003 consignou o direito à igualdade no acesso ao emprego e no trabalho, no seu artigo 22.º, nos seguintes termos:
1 — Todos os trabalhadores têm direito à igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de trabalho.
2 — Nenhum trabalhador ou candidato a emprego, pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical.
E, no artigo 23.º, versando a proibição de discriminação, estabeleceu:
1 — O empregador não pode praticar qualquer discriminação directa ou indirecta, baseada, nomeadamente, na de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical.
2 — Não constitui discriminação o comportamento baseado num dos factores indicados no número anterior, sempre que, em virtude da natureza das actividades profissionais em causa ou do contexto da sua execução, esse factor constitua um requisito justificável e determinante para o exercício da actividade profissional, devendo o objectivo ser legítimo e o requisito proporcional.
3 — Cabe a quem alegar a discriminação fundamentá-la, indicando o trabalhador ou trabalhadores em relação aos quais se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que as diferenças de condições de trabalho não assentam em nenhum dos factores indicados no n.º 1.
A Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, que regulamentou aquele Código, tratou da matéria da igualdade e não discriminação no seu Capítulo V, dispondo, no que aqui importa registar:
2 — Considera-se:
a) Discriminação directa sempre que, em razão de um dos factores indicados no referido preceito legal, uma pessoa seja sujeita a tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou venha a ser dado a outra pessoa em situação comparável;
b) Discriminação indirecta sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutro seja susceptível de colocar pessoas que se incluam num dos factores característicos indicados no referido preceito legal numa posição de desvantagem comparativamente com outras, a não ser que essa disposição, critério ou prática seja objectivamente justificado por um fim legítimo e que os meios para o alcançar sejam adequados e necessários;
c) Trabalho igual aquele em que as funções desempenhadas ao mesmo empregador são iguais ou objectivamente semelhantes em natureza, qualidade e quantidade;
d) Trabalho de valor igual aquele que corresponde a um conjunto de funções, prestadas ao mesmo empregador, consideradas equivalentes atendendo, nomeadamente, às qualificações ou experiência exigida, às responsabilidades atribuídas, ao esforço físico e psíquico e às condições em que o trabalho é efectuado.
3 — [...]
[...]
c) À retribuição e outras prestações patrimoniais, promoções a todos os níveis hierárquicos e aos critérios que servem de base para a selecção dos trabalhadores a despedir;
[...]
O Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro de 2009, regula a matéria, em termos substancialmente idênticos, designadamente no que diz respeito aos conceitos de discriminação, de trabalho igual, trabalho de valor igual (artigo 23.º), ao elenco dos factores de discriminação (artigos 24.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1) e ao ónus da prova em caso de invocação de práticas discriminatórias (artigo 25.º, n.os 5 e 6).
3. 4. O particular regime de repartição do ónus de alegação e prova, que decorre dos atinentes preceitos acima citados, não dispensa o trabalhador, que invoca a prática discriminatória de que resulta um tratamento diferente, de alegar e provar os factos integrantes de tal prática.
O que tal regime consagra é uma atenuação daquele ónus nas situações em que sejam invocadas diferenças de tratamento, designadamente em termos salariais, motivadas por um dos factores característicos de discriminação consignados na lei ou a estes qualitativamente equiparáveis, por contenderem com o superior valor da igual dignidade social de todos os cidadãos.
Deste modo, a quem invoca a prática discriminatória compete alegar e provar, além do diferente tratamento (resultado de tal prática), os factos integrantes de um daqueles factores, pois que o juízo sobre a discriminação pressupõe que «em razão de um factor de discriminação uma pessoa seja sujeita a um tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou venha a ser dado a outra pessoa em situação comparável».
Alegado e demonstrado um desses factores, a lei presume que dele resultou o tratamento diferenciado, fazendo recair sobre o empregador a prova do contrário, ou seja, a prova de que a diferença de tratamento não se deveu ao factor invocado, mas sim, a motivos legítimos, entre os quais se contam os relacionados com a natureza, qualidade e quantidade do trabalho prestado pelos trabalhadores em confronto.
Assim, por exemplo, invocada a discriminação em função da filiação sindical, cabe ao autor alegar e provar, além da retribuição por si auferida e da que aufere o trabalhador, de idêntica categoria profissional, pretensamente beneficiado, os sindicatos em que cada um deles está filiado, incumbindo, nesse caso, ao empregador alegar e provar que a diferença salarial não resulta da diferente filiação sindical.
Em tal caso, como nos demais em que a acção tem por fundamento algum dos factores característicos da discriminação, o trabalhador que se sente discriminado não tem de alegar e demonstrar factos relativos à natureza, qualidade e quantidade das prestações laborais em comparação, pois que, provados os factos que integram o invocado fundamento, actua a presunção de que a diferença salarial a ele se deve, invertendo-se, apenas, quanto ao nexo causal presumido, o ónus da prova — artigos 23.º, n.º 3, do Código do Trabalho de 2003, 35.º da Lei n.º 35/2004, 24.º, n.os 5 e 6, do Código do Trabalho de 2009, 344.º, n.º 1, e 350.º, n.os 1 e 2, do Código Civil.
Isto significa que a presunção de discriminação não resulta da mera prova dos factos que revelam uma diferença de remuneração entre trabalhadores da mesma categoria profissional, ou seja da mera diferença de tratamento, pois, exigindo a lei que a pretensa discriminação seja fundamentada com a indicação do trabalhador ou trabalhadores favorecidos, naturalmente, tal fundamentação há-de traduzir-se na narração de factos que, reportados a características, situações e opções dos sujeitos em confronto, de todo alheias ao normal desenvolvimento da relação laboral, atentem, directa ou indirectamente, contra o princípio da igual dignidade sócio-laboral, que inspira o elenco de factores característicos da discriminação exemplificativamente consignados na lei.
Deste modo, numa acção em que não se invocam quaisquer factos que, de algum modo, possam inserir-se na categoria de factores característicos de discriminação, no sentido que se deixou delineado, não funciona a aludida presunção, por isso que compete ao autor, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, alegar e provar factos que, referindo-se à natureza, qualidade e quantidade de trabalho prestado por trabalhadores da mesma empresa e com a mesma categoria, permitam concluir que o pagamento de diferentes remunerações viola o princípio para trabalho igual salário igual, pois que tais factos, indispensáveis à revelação da existência de trabalho igual, se apresentam como constitutivos do direito a salário igual, que se pretende fazer valer.
3. 5. No caso que nos ocupa, em que não consta dos fundamentos da acção qualquer dos factores característicos da discriminação, os factos provados são manifestamente insuficientes para se concluir que o trabalho prestado pela Autora, antes e depois de mudar de departamento, é igual ou objectivamente semelhante em natureza, quantidade e qualidade ao do prestado pela jurista que, com a mesma categoria de assessora jurídica, a substituiu no lugar por aquela anteriormente ocupado; e são, também, insuficientes para se poder afirmar que o trabalho de uma e de outra é de valor igual, no sentido de corresponder a um conjunto de funções, consideradas equivalentes, atendendo nomeadamente, às qualificações ou experiência exigidas, às responsabilidades atribuídas e ao esforço físico e psíquico.
Com efeito, não contém a matéria de facto disponível factos concretos que permitam estabelecer comparação entre a actividade desenvolvida por uma e outra das trabalhadoras, ao serviço da Ré, por forma a suportar um juízo sobre a igualdade do trabalho prestado e do respectivo valor, não bastando para tal a prova de que ambas desempenhavam funções de assessoria jurídica.
E porque o ónus de alegação e prova de tais factos competia à Autora, sendo irrelevante que a Ré não tenha logrado provar o que alegou em ordem a demonstrar a menor qualidade e quantidade do trabalho daquela, quando comparado com o da outra trabalhadora, não pode proceder o pedido de retribuição igual.
Custas, nas instâncias e no Supremo, a cargo da Autora.
Lisboa, 22 de Abril de 2009.
Vasques Dinis (Relator)
Bravo Serra
Mário Pereira