ACUSAÇÃO
NULIDADE
INSTRUÇÃO
Sumário

I - É nula a acusação deduzida pelo Ministério Público que não cumpre o disposto no n.º 3 do art. 283.º do CPP, omitindo a narração de factos que fundamentem a imputação aos arguidos do crime por que foram acusados.
II – Uma vez notificado da acusação, o assistente podia: i. Arguir a nulidade da acusação pública perante o procurador titular do inquérito, com a subsequente possibilidade de sindicância da decisão adrede proferida, por via da reclamação hierárquica; ii. Em alternativa, o assistente podia deduzir, ele próprio, acusação “pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros" [art. 284.º, n.º 1, CPP]; iii. Por último, se os novos factos importassem alteração substancial dos factos descritos na acusação pública, o assistente poderia requerer a abertura da instrução [art. 287.º, n.º 1, al. b), CPP].
III - A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, finalidade e âmbito que não acolhe a pretensão do assistente em aspirar que, através dela, o Ministério Público seja convidado a suprir a dita nulidade, aperfeiçoando o libelo acusatório.

Texto Integral

Processo 652/09.6GCSTS-a.P1
Relator: Melo Lima

Acordam em Conferência na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório
1. Nos autos de Instrução, sob o número em epígrafe, a correr termos pelo 1ºJuízo Criminal do T.J. de Vila do Conde, foi proferida DECISÃO INSTRUTÓRIA de que se extrai e reproduz o seguinte segmento:
«Da nulidade parcial da acusação pública.
Em sede de debate instrutório, durante as conclusões finais, pelos ilustres mandatários dos arguidos B… e C… foi invocada a nulidade da acusação pública, por falta de alegação factual no que concerne aos crimes de ofensa à integridade física simples ali imputados aos arguidos D…, C… e E….
Cumpre apreciar.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado um crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.
Acrescenta depois o n.º 3 deste dispositivo legal que a acusação contém, sob pena de nulidade: a) as indicações tendentes à identificação do arguido; b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) a indicação das disposições legais aplicáveis; d) o rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no artigo 128.º, n.º 2, as quais não podem exceder o número de cinco; e) a indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação; f) a indicação de outras provas a produzir ou a requerer; g) a data e assinatura.
No dizer de Germano Marques da Silva, a acusação é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado com a pena prevista na lei ou requerida pelo Ministério Público.
Elemento essencial da acusação é a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, ou seja, os elementos constitutivos do crime. É que são estes que constituem o objecto do processo daí em diante e são eles que serão objecto do julgamento.
A descrição dos factos e de todas as circunstâncias pertinentes deve ser muito cuidada, pois se é certo que na fase de julgamento podem ser ainda consideradas as circunstâncias que não impliquem alteração substancial dos factos, é de todo o interesse que todas as circunstâncias conhecidas no momento da acusação sejam nela descritas para serem objecto de defesa, de apreciação no julgamento e consideradas na decisão.
A referência à necessidade de narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e de indicação das disposições legais aplicáveis, deve ser entendida nos termos supra referidos. Isto é, a acusação deve conter todos os factos necessários para uma eventual solução de direito adequada.
Acresce que, a indicação das disposições legais aplicáveis afigura-se da maior importância, pois é em função delas que se delimitam os factos e se formula o pedido de condenação.
Por outro lado, o conhecimento das disposições legais incriminadoras por parte do arguido é também objecto do julgamento, e é por isso que constituem também objecto da acusação e das fases subsequentes do processo.
Tendo presentes estes considerandos, revertamos agora para o caso dos autos.
Lida a acusação pública deduzida pelo Ministério Público constatamos que nesta peça processual não são, efectivamente, alegados factos que permitam imputar aos arguidos D…, E… e C… a prática do crime que lhes vem imputado.
Na verdade, na acusação refere-se apenas, no que a estes arguidos diz respeito, que “(…) Em acto contínuo e sem nada que o fizesse prever, os arguidos F… e B… envolveram-se em agressões mútuas, desferindo murros e pontapés um no outro, na zona da cabeça, face, joelho e zona lombar.
Nesse momento, os arguidos D…, E… e C… e, ainda, G… saíram do interior da carrinha e dirigiram-se a eles tentando separá-los.
Ali chegados e quando tentavam separar os intervenientes na contenda, o arguido F… começou a desferir murros e pontapés aos restantes arguidos”.
Resulta, assim, claro que esta factualidade não assume qualquer relevância juridíco-criminal, desde logo porque dela apenas ressalta que os arguidos saíram da carrinha e dirigiram-se aos demais, tentando separá-los.
Desconhece-se como em concreto tentaram os arguidos separar os demais que se encontram envolvidos em agressões, sendo juridicamente inadmissível concluir que o fizeram através de uma qualquer conduta ilícita.
Acresce que, se naqueles factos se refere algo com relevância jurídico-criminal, isso sempre há-de ser em relação ao arguido E…, quando se deixou escrito que foi este quem agrediu os demais arguidos.
Importa referir que a alegação conclusiva contida no artigo 11.º do articulado acusatório em nada altera aquilo que acabamos de deixar escrito. Tal alegação não contém uma qualquer concretização factual que possa permitir aos arguidos e ao Tribunal perceber, em concreto, qual a conduta imputada aos arguidos D…, E… e C….
Assim sendo, não resta outra alternativa senão concluir que em relação a estes arguidos a acusação deduzida pelo Ministério Público não cumpre o previsto no n.º 3 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, nomeadamente o constante da sua alínea b), sendo, por isso e nessa parte, nula.
Impõe-se, em consequência e a final, proferir despacho de não pronúncia nesta parte.»

Na decorrência do que o Exmo. Juiz de Instrução Criminal proferiu a seguinte DECISÃO:
«Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido: i Julgar verificada a nulidade da acusação pública, no que concerne aos crimes de ofensa à integridade física simples imputados aos arguidos D…, E… e C…, por violação do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal; ii. Em consequência, determino nesta parte o arquivamento dos autos.

2. Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Assistente F…, formulando as seguintes conclusões:
2.1 Entendeu o tribunal” a quo”, que a acusação pública enferma do vício de nulidade previsto no artigo 283°, n° 3, alínea b), do Código de Processo Penal, por aquela não alegar factos que efectivamente permitam imputar aos arguidos D…, C… e E… a prática do crime que lhes vem imputado.
2.2 Em consequência foi proferido despacho de não pronúncia, e em consequência nesta parte foi determinado o arquivamento dos autos.
2.3 Embora a acusação não descreva com perfeição e rigor os factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena ou de medida de segurança, certo é que dos autos resultam efectivamente indícios suficientes da prática pelos arguidos dos crimes denunciados, razão pela qual devem ser acusados.
2.4 O entendimento do Ministério Público em acusar os arguidos C…, D… e E…, é clara e inequívoca, no entanto, com todo o respeito, não soube, e com toda a certeza por mero lapso, exprimir em termos adequados o seu pensamento.
2.5 Ao acusar os referidos arguidos deu a conhecer perfeitamente qual o efeito jurídico que pretendia.
2.6 Não obstante a nulidade da acusação pública, o Tribunal “a quo”, em vez de proferir despacho de não pronúncia, poderia e deveria, ordenar a remessa dos autos ao M° P°, para reformular de novo a acusação pública.
2.7 Foi violado pela sentença, de que se recorre todas as normas, legislação referidas na motivação e conclusões do presente recurso.
2.8 Nestes termos, (…) deve o despacho recorrido ser substituído por outro que ordene (a remessa) dos autos ao M° P°, para reformular a acusação pública.

3. No Tribunal recorrido, a Exma Procuradora Adjunta (em regime de estágio) ofereceu Resposta que rematou com as seguintes conclusões:
3.1 A omissão dos requisitos constantes do artigo 283.º, nº 3 do C.P.P. constitui o vício de nulidade sanável, sujeito à disciplina processual constante dos artigos 120.º a 122.º do C.P.P.;
3.2 Assim sendo, a declaração de nulidade parcial da acusação, por omissão dos requisitos constantes do artigo 283.º, nº 3 do C.P.P. tem como efeitos os constantes do artigo 122.º do mesmo diploma legal, isto é, a remessa dos autos para inquérito e a reformulação do libelo acusatório;
3.3 Ao declarar a nulidade parcial da acusação e determinar, em consequência, o arquivamento dos autos, o Mmo. Juiz de Instrução optou por uma solução processual formal de absolvição da instância dos arguidos, solução essa que impede que o Tribunal possa apreciar o evento naturalístico que estava na base da dedução da acusação no seu conjunto o que briga com os princípios basilares do processo penal como o principio da legalidade, da oficialidade e da verdade material;
3.4 A sentença recorrida, violou, assim, além dos princípios acima enunciados, os artigos 120.º a 122.º e 283.º, nº 3, todos do C.P.P.
4. Respondeu, de igual passo, o arguido D…, resposta que rematou do seguinte modo:
4.1 Ao ser concedida a possibilidade ao Ministério Público para tal, conforme Acórdão do Plenário das Secções Criminais do S.T.J. n°2/96 de 6 de Dezembro de 1996, in Diário da República 1-A Série de 10.01.1996, «encontra um obstáculo esgotamento do prazo (peremptório) — artigo 283°, n°1 do CPP 2
4.2 Ao permitir a reformulação da acusação pública pelo Ministério Público,- repetir um acto nulo- estamos a permitir a violação da disposição legal- artigo 283° do CPP, face à extemporaneidade da nova Acusação Pública.
4.3 A Acusação Pública, no caso concreto, foi formulada pelo Ministério Público na data de 28 de Fevereiro de 2011. No entanto, ao ser permitida a reformulação da Acusação, a mesma ultrapassa largamente o prazo dos dez dias previstos na lei, pois que nesta data, já decorreu cerca de 4 meses.
4.4 O presente Tribunal «a quo», ao decidir pela possibilidade do Ministério Público reformular a presente acusação, não respeita as garantias de defesa do arguido- pelo que estamos perante a violação do artigo 32°, n°1 da C. R. P.
4.5 Conforme o previsto no artigo 32°, n°5 da CRP, ao Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, está vedado a pronúncia do arguido por factos não constantes da acusação- artigo 32°, n°5 da CRP. (com vista assegurar as garantias de defesa do arguido)
4.6 A nulidade de que a Acusação Pública enferma- vício de nulidade previsto no artigo 283, n°3b) do Código Processo Penal- constitui, conforme o disposto no artigo 119, n°1 do Código de Processo Penal, uma nulidade insanável (nulidade que invalida o acto, bem como, todos os actos que dele dependem e sejam afectados pela mesma) - artigo 122° CPP- sendo de conhecimento oficioso.
4.7 O Ministério Público, com o devido respeito, ao acusar os referidos arguidos, entre outros. o arguido D… se na verdade pretendia leva-los a Julgamento (uma vez existindo supostos indícios suficientes) face à nulidade da acusação pública, porque não tomou o mesmo qualquer posição?
4.8 Perante o silêncio do Ministério Público, face à nulidade invocada da presente Acusação. deverá permitir-se ao Mm° Juiz, que presidiu à Instrução, ordenar a remessa dos autos ao M.P., para formular novo acusatório?
5. O Ex.mo. Juiz sustentou a decisão proferida, dizendo, em síntese:
5.1 A situação em apreço é em tudo semelhante a um indeferimento liminar do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha a necessária alegação de facto, não se vislumbrando quem defenda a possibilidade de um convite ao seu aperfeiçoamento.
5.3 Seria, igualmente, indefensável o entendimento perfilhado pelo recorrente e pelo Ministério Público se, seguindo o processo para julgamento, a nulidade viesse a ser verificada aquando do despacho do artigo 311.° do Código de Processo Penal.
6. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento na consideração de que:
6.1 A acusação pública em causa enferma da nulidade prevista na alínea b) do no 3 do artigo 283°, do C. P. Penal, por não conter a narração de factos com relevância jurídico-penal imputáveis aos arguidos D…, E… e C….
6.2 Igualmente incontroverso que «(...) se os fundamentos invocados pelo juiz no despacho de não pronúncia disserem exclusivamente respeito a nulidades ou irregularidades processuais (...), tal despacho «(...) faz apenas caso julgado formal, podendo ser reaberto o processo desde que sanado o vício processual».
6.3 O respeito devido pela estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta pelo artigo 32°, n° 5, da CRP), dificilmente sustentará a devolução do processo ao Ministério Público para reformular a acusação.
6.4 Num caso como o presente — em que a decisão judicial se limitou a verificar que a acusação pública não cumpria os requisitos da alínea b) do n° 3 do artigo 283°, do C. P. Penal, e, em face disso, a declarar a nulidade parcial daquela, não entrando, portanto, na análise do inquérito e na apreciação da factualidade no mesmo apurada — não caberia ao Juiz a iniciativa da extracção e remessa ao Ministério Público da aludida certidão, pela singela razão de que, verificada a deficiência, não se lhe impunha a indagação da efectiva existência de elementos no inquérito susceptíveis de fundamentar uma acusação contra aqueles arguidos.
7. Observada a notificação a que alude o artigo 417º/2 do CPP, colhidos os vistos, realizada a conferência, cumpre decidir.
II Conhecendo
1. O thema decidendum reconduz-se à questão de saber se em face de uma acusação ferida de nulidade por via da ausência de factos suscetíveis de configurarem os elementos objetivos/subjetivos do tipo do ilícito imputado ao arguido, deve o juiz de instrução criminal – uma vez requerida pelo mesmo arguido a abertura de instrução - convidar, no desiderato do suprimento daquela nulidade, o requerente da acusação – in casu, o Ministério Público – a aperfeiçoar o requerimento-acusação deduzido.
2. Em jeito de nota introdutória e no único propósito de conseguir o enfoque adequado da questão ora em apreço, importa ter presente a filosofia subjacente à lei penal adjectiva nos pontos em que, quais princípios reitores, assume, de uma parte, a estrutura basicamente acusatória do processo penal e, de outra, na decorrência desta mesma estrutura acusatória, confere uma específica relevância ao inquérito que, “convertido na fase geral e normal de preparar a decisão de acusação ou de não acusação”, é realizado “sob a titularidade e a direcção do Ministério Público a quem, exactamente por lhe ser deferida tal titularidade bem como a competência exclusiva para a promoção processual, é atribuído não o estatuto de parte, mas o de uma autêntica magistratura sujeita ao estrito dever de objectividade”. (1)
Destarte, competindo-lhe, por mandato constitucional, o exercício da ação penal (219º/1 Constituição da República Portuguesa), cabe ao Ministério Público a direcção do inquérito.
Como lhe cabe, de igual passo, “deduzir acusação e sustentá-la efetivamente na instrução e no julgamento” [Artº 53º/2 al. c) CPP]
Daquele poder de direcção conjugado com a apontada vinculação ao dever de objectividade resulta que se por um lado tem ele o poder de praticar ou não praticar os actos de investigação e as diligências probatórias que entenda adequadas aos fins do inquérito não pode, por outro, deixar de pautar a sua conduta de direcção da actividade processual no âmbito do inquérito – do Inquérito, como em todas as vertentes do seu exercício funcional – pelo princípio da legalidade e por critérios de estrita objectividade.
Então, no específico exercício deste poder de direcção do inquérito, que há-de ser enformado, repete-se, pelos princípios da legalidade e do respeito por critérios de estrita objectividade, compete-lhe decidir ora a respeito dos pressupostos processuais (v.g, da legitimidade e da tempestividade da queixa ou sobre a verificação de causas impeditivas do procedimento como a amnistia, a prescrição), ora a respeito da suspensão do processo (aqui, com a concordância do JIC) como lhe compete, sobremaneira, decidir quer a introdução do feito em julgamento, deduzindo acusação pública (283ºCPP), quer acompanhando, no todo ou em parte ou introduzindo-lhe “factos novos”, a acusação particular [285ºCPP]
No reverso da medalha, porém, e posto que na decorrência daquele mesmo princípio do acusatório ou da vinculação temática, importará ressalvar a separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas, mais especificamente, no que ao caso importa, entre o Magistrado do Ministério Público e o Juiz, e, relativamente a este, seja na direcção da instrução, seja, depois, na presidência do julgamento. (2)
Nesta conformidade, dir-se-á com Paulo Pinto Albuquerque, que, por força do princípio da acusação, “O Ministério Público não está vinculado a ordens do juiz de instrução ou do juiz do julgamento quanto à dedução de acusação ou à delimitação do objeto do processo.” (3)
Decorrentemente, de forma mais pragmática, é por força do mesmo princípio da vinculação temática, que se vem entendendo que o juiz não pode devolver o processo ao Ministério Público para prosseguir a investigação de modo a incluir outros factos ou outros agentes e reformular a acusação. (4)
3. Aquele papel de titular da ação penal e de direcção do inquérito não apaga, todavia, a posição ancilar do assistente: é colaborador do Ministério Público a cuja actividade subordina a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei [Artigo 69º/1 C.P.P]
Curiosamente, na situação sub specie, posto que cabendo ao MºPº, como se deixa atrás referido, deduzir acusação e sustentá-la efetivamente na instrução e no julgamento, o recurso do despacho de não pronúncia, por verificação da nulidade no libelo acusatório, vem interposto pelo Assistente.
Não está em causa a legitimidade para o fazer. (5)
Mas – na específica referência à nulidade reconhecida e ao pretendido suprimento - já não pode deixar de estar em causa o modus e o tempo da sua atuação.
Dizer, agindo o assistente com melhor cuidado bem poderia ter corrigido em tempo, o que, como diz, «O Ministério Público ….não soube, e com toda a certeza por mero lapso, exprimir em termos adequados o seu pensamento» (sic)
Dizer, então: uma vez notificado da acusação deduzida pelo MºPº [285º/5 CPP]o Assistente poderia,
i. Arguir a nulidade da acusação pública perante o Magistrado do MºPº titular do inquérito, com subsequente possibilidade de sindicância da decisão adrede proferida, por via da reclamação hierárquica;
ii. Em alternativa, poderia o Assistente deduzir, ele próprio, acusação “pelos factos acusados pelo MºPº, por parte deles ou por outros neste caso, porém, com a ressalva de não poderem “importar alteração substancial daqueles” [284º/1CPP]
iii. Em última alternativa, importando os novos factos alteração substancial dos factos deduzidos na acusação pública, poderia o mesmo Assistente requerer instrução [287º/1 al. b) CPP]
In casu, o Assistente não reclamou, não acusou, não requereu instrução.
Pugna, agora, no sentido de que o MºPº seja convidado ao suprimento da dita nulidade, aperfeiçoando o libelo acusatório.
Sem razão, todavia.
4. Sem razão na atenção, desde logo, às “finalidades e âmbito da instrução”.
Nos termos do artigo 286º/1 do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Dizer, visa a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito.
“A instrução consiste na fase de discussão da decisão de arquivamento ou de acusação tomada pelo MºPº no final do inquérito. Mas o âmbito desta discussão é limitado pela lei, ou melhor, pelo objectivo que a lei estabelece para aquela discussão. Nela pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança (Artigo 308º/1). Portanto, a instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do MºPº de inexistência de indícios suficientes e discutir a acusação apenas no que respeita ao juízo do MºPº de existência de indícios suficientes”
Dizer também, a instrução não é em face da lei um novo inquérito – sem prejuízo do suplemento de investigação autónoma que o juiz de instrução pode levar a cabo (6) [6] – mas um mecanismo de comprovação.
Desta arte, se a finalidade da instrução é a prolação de uma comprovação judicial seja da decisão de dedução de acusação, seja da decisão de arquivamento do processo, naturalmente ela deverá conduzir à prolação de um “despacho de pronúncia ou de não pronúncia” [307º/1 CPP]
Nesta conformidade, acompanha-se, uma vez mais, Pinto de Albuquerque quando defende que “Não há lugar a instrução se se verificar uma nulidade insanável ou irregularidade não sanada, da acusação ou do arquivamento. As nulidades ou irregularidades devem ser arguidas, desde logo, diante do Magistrado do MºPº titular do inquérito.” (7)
Compreender-se-ia, por isso, um ideferimento in limine, confinado à nulidade em causa.
Mas não tendo sido proferida tal decisão liminar, outra não pode ser a decisão final, que não caiba no referido despacho de pronúncia ou não pronúncia.
In casu, em última instância, o despacho foi de não pronúncia na justa medida em que a acusação se mostrava infundada por manifesta insuficiência fáctica.
5. Posto que a lei consigne a nulidade [«A acusação contém, sob pena de nulidade…»(283º/3CPP)] e esta não deva ser entendida como absoluta ou insanável [119º, a contrario, CPP], entende-se que, com referência ao momento seja da apreciação in limine litis do Requerimento da Abertura da Instrução, seja na prolação da Decisão Instrutória, seja no despacho de saneamento do processo [311ºCPP] o regime aplicável não é o decorrente do artº 122º do CPP – ao menos na ideia de que ao juiz, por força do apontado princípio da acusação e/ou da vinculação temática, não lhe é «possível» proceder/ordenar/convidar à «repetição» - é, antes, o decorrente da norma ínsita no referido artigo 311º (rejeição da acusação), a traduzir, no âmbito da instrução, ora pelo não recebimento liminar (posto que parcial) do requerimento da abertura da instrução, ora por uma decisão final de não pronúncia, tudo como vem de ser referido.
Mutatis mutandis, tem aqui, se bem se ajuíza, inteira pertinência, toda a argumentação subjacente ao Acórdão nº7/2005 (Processo 430/2004 – 3ª Sec.) (8) que fixou jurisprudência nos seguintes termos:
«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.»
A partir da questão “sobre se deve o juiz convidar o assistente a colmatar o seu requerimento de instrução sempre que enferme de deficiente narração factual e de direito” o STJ foi reconhecendo ora “a ausência de qualquer segmento normativo proibindo ou negando o convite ao aperfeiçoamento”, ora que o figurino do processo civil – apelativo, por via do princípio da cooperação inter-subjetiva, à transformação do processo numa autêntica comunidade de trabalho – “não se harmoniza com o processo penal”, “já que o processo penal se não identifica com um processo de partes, de disponibilidade de interesses privados, antes vocacionado à realização da paz pública, segurança social e paz jurídica entre os cidadãos”: “aquela natureza dificilmente combateria disfuncionalidades, desvios e abusos, que o legislador reputou e detetou como responsáveis pela frustração de uma justiça tempestiva e eficaz”.
Tomando como certa a identificação do RAI (requerimento de abertura de instrução) como “uma verdadeira acusação”, conclui aquele alto tribunal no sentido de que “a falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respetiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283º nº3 alínea b) e 311º nºs 2 al. a) e 3 al. b) do CPP”.
Justifica, então, aquele mesmo Tribunal que sendo inadmissível o convite à correcção de uma acusação estruturada deficientemente, sai igualmente inadmissível o convite à correcção do RAI:
«A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada: o ser manifestamente fundada igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.»
É que, como ainda ali se justifica:
«Uma ilimitada investigação levada a cabo pelo juiz de instrução buliria com o princípio da acusação, pois seria ele a delimitar o objeto do processo contra os peremtórios termos do artº 311º nº3 alínea b) do CPP, não sendo curial, …, o tribunal substituir-se aos profissionais do foro…»
«O convite à correção dilataria o termo final do desfecho da instrução,…, brigando com a celeridade de uma fase intercalar do processo, cogitada para ser breve…»
«A renovação, pelo convite à apresentação de um novo requerimento, obstaria ao trânsito do despacho de não pronúncia e exporia o arguido à possibilidade de ver renovada a acusação, quando pela acusação o arguido adquire a garantia de ser julgado pelos factos dela constantes, por forma irrepetível e definitiva.
Significante, ainda, estar vedado ao juiz do julgamento direcionar convite ao Ministério Público para completar o elenco factual acusatório, ante e com apoio nos termos peremtórios do citado artigo 311º nº3 al. b).»
6. É tempo de concluir.
A estrutura acusatória do processo penal – a consubstanciar, de par com a garantia do direito de defesa, a concretização da axiologia inerente a um Estado de direito democrático – obriga a que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados, seja na acusação, seja no requerimento de abertura de instrução equivalente a acusação.
Outrossim, com Pinto de Albuquerque, poderá dizer-se que “a Lei 48/2007 de 29.8 inverteu o sentido da ideologia do CPP, que procurava aproximar a instrução do inquérito”, para aproximá-la, antes, do julgamento. (9)
Aquele princípio da vinculação temática a tornar defesa ao juiz a intromissão nas funções do detentor público da ação penal (direção do inquérito/dedução da acusação), quanto a natureza, decorrente da lei penal adjetiva, das finalidades e âmbito da instrução, levam a concluir que ao Exmo. Juiz vedado estava proferir qualquer despacho de convite ao aperfeiçoamento da acusação deduzida.
Nesta conformidade, mantém-se a decisão recorrida.

*
III DECISÃO
São termos em que, na improcedência do recurso, se confirma a decisão recorrida.
Da responsabilidade do Recorrente a taxa de justiça de 4UC, levando-se em conta o já pago.

PORTO, 30 de Novembro de 2011
Joaquim Maria Melo de Sousa Lima
Élia Costa de Mendonça São Pedro
__________________
(1) Preâmbulo do DL 78/87 de 17/2. Vide, ainda: Artigos 1º e 3º do EMP (Lei 60/98 de 27.8) e artigo 5 da LOTJ (Lei 3/99 de 13.1). De acordo com a Lei Fundamental da República, o Ministério Público é um órgão autónomo de administração da justiça de estrutura hierarquizada: «Os agentes do Ministério Público são Magistrados… hierarquicamente subordinados» Artigo 219º/4 C.R.P. Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira – citação que se refere sem prejuízo da controvérsia inerente -, “Na constituição judiciária o Ministério Público surge como um órgão do poder judicial ao qual são cometidas as funções de representação do estado, do exercício da acção penal, da defesa da legalidade democrática e dos demais interesses determinados por lei”.
(2) Diz a este propósito Paulo Pinto de Albuquerque – se bem se reproduz o seu pensamento, recolhido algures, - que a competência do juiz de instrução não deve constituir oportunidade para ele se alçar em senhor do inquérito, o que aconteceria se o juiz se colocasse numa posição de sindicante permanente da actividade do Ministério Público.
(3) COMENTÁRIO DO CÓDIGO DO PROCESSO PENAL, à luz da C.R. e da CEDH, 2ª Ed. Actualizada, Universidade Católica Editora, Lx. 2008, Nota 14 ao Artº 48º, pág. 143
(4) Neste sentido: Ac. TRE de 11.07.1995, in CJ, XX, 4, 287; Ac. TRLx de 06.06.2002, in CJ, XXVII, 3 136
(5) «Em processo por crime público ou semipúblico, o assistente que não deduziu acusação autónoma, nem aderiu à acusação pública pode recorrer da decisão de não pronúncia, em instrução, requerida pelo arguido e da sentença absolutória, mesmo não havendo recurso do MºPº». Ac. Uniformizador de 09.02.2011, Processo 148/07.0TAMBR
(6) Anabela Miranda Rodrigues, O Inquérito no Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, pág.78
(7) Ob. cit. Págs. 750, 751
(8) DR 1 Série-A, Nº 212 de 4 de Novembro de 2005
(9) Ob. cit. Nota 12, Artº 287º, pág. 753