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REIVINDICAÇÃO
USUCAPIÃO
PRAZOS
INTERRUPÇÃO
Sumário
A prescrição só se interrompe pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, atenta a regra constante do nº 1 do artigo 323º do Código Civil. Esta é aplicável à usucapião, por força do disposto no artigo 1292º do mesmo diploma legal. Desta forma, uma simples carta, enviada pelo mandatário dos RR. aos AA., não tem a virtualidade de interromper o prazo necessário para que a propriedade se consolide nestes, por via da invocação daquele instituto da usucapião.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1.
AA e mulher, BB, intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Ourém, acção ordinária contra CC, pedindo o reconhecimento do direito de propriedade do prédio, descrito na Conservatória de Registo Predial de Ourém, sob o nº 7262, da freguesia de Fátima, e a condenação da R. na sua entrega e no pagamento de uma indemnização diária de 3.000$00, desde a citação até à desocupação efectiva e entrega do mesmo.
A R. defendeu-se por excepção, arguindo a ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, e por reconvenção, pedindo que os AA. fossem condenados a reconhecerem (?!) que o dito prédio lhe pertence, em compropriedade com a sua filha, em relação à qual pediu a intervenção.
Replicaram os AA. para, contrariando a versão da R., manter o peticionado inicialmente.
Admitida a intervir, a filha da R., CC, apresentou articulado próprio, pedindo, igualmente, a condenação dos AA. no pedido reconvencional, deduzido por sua mãe.
Saneado e condensado, o processo seguiu, depois, para julgamento e, findo este, foi proferida sentença pelo Senhor Juiz do Círculo de Tomar, a julgar a acção totalmente procedente e, consequentemente, improcedente a reconvenção.
Antes, porém, as RR. agravaram do despacho saneador (fls. 190), recurso que foi admitido com subida diferida.
Inconformadas com a sentença, as RR. apelaram para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 25 de Janeiro de 2005, negou provimento ao agravo e anulou a decisão, com vista à ampliação da matéria de facto.
Voltando os autos à 1ª instância e, após o aditamento de novos quesitos à base instrutória, em conformidade com o que fora determinado, teve lugar novo julgamento que motivou a improcedência da acção e a procedência da reconvenção.
Sem êxito, apelaram, então, os AA. para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 28 de Abril do corrente ano, confirmou inteiramente o julgado.
Continuando inconformados, os AA. pedem, ora, revista do aresto prolatado, a coberto das conclusões (?) que se enumeram:
1 - O acórdão proferido nos autos em apreço fez uma incorrecta aplicação da Lei aos factos dados como provados.
2 - Verificando-se a nulidade do mesmo, por os seus fundamentos se encontrarem em contradição com a decisão – artigo 668º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
3 - Os recorrentes pretendem com o presente recurso, nos termos do artigo 729°, do Código de Processo Civil, que este Tribunal considere que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.
4 - Ou que ocorreram contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, o processo poderá ser reenviado para o Tribunal recorrido, para reapreciação.
5 – “Os (…) Juízes verificaram a contradição da decisão recorrida com a matéria dada como assente e em consequência errada aplicação da Lei civil” (sic).
6- Tendo sido considerada provada matéria cujo quesito foi respondido negativamente.
7- No entanto, tais conclusões e fundamentações partem de factos dados como provados ou não provados que os ora recorrentes consideram estar em oposição com a prova considerada provada e não provada e que determinam uma decisão diametralmente oposta à correcta, que seria sempre a procedência da acção intentada e a improcedência da reconvenção.
8 - Por outro lado, em 12/12/1975, DD, cedeu através de escritura publica, a quota de quarenta mil escudos, que detinha na já referida sociedade, pelo preço de noventa e cinco mil escudos, que declarou, através de procurador constituído, ter recebido em dinheiro, o que foi comprovado por documentos autênticos juntos aos autos, de forma irrefutável.
9 - A alegada ocupação do imóvel pelo DD, a título pessoal, se tivesse ocorrido, nunca o poderia ter sido antes de tal data, já que, pelo menos até à venda da sua quota na sociedade, em Dezembro de 1975, qualquer “ocupação” do imóvel teria que o ser em nome da sociedade, da qual até era gerente. Refira-se, aliás, que, curiosamente, nunca existiu qualquer renúncia à sua gerência.
10 - Assim, logo se conclui que o DD nunca poderia “ocupar” ou “instalar-se” no imóvel em causa, em nome próprio e com exclusão de quaisquer outros, a partir de 1972/1973, porque, na verdade, até à venda da sua quota, aquele imóvel era da sociedade, cuja cedência, assim permite inferir, faltando pois a essa posse o animus possidendi necessário ao funcionamento do instituto da usucapião a favor do DD.
11 – Deste modo, ao contrário do que consta na fundamentação de facto da sentença recorrida, não ficou provado:
Que “apesar da ausência de um título válido para tal ocupação, uma vez que nunca foi realizada escritura de partilha quanto à adjudicação do imóvel ao falecido ou outro negócio jurídico formal que, à luz da ordem jurídica, pudesse conferir tal validade e eficácia como fonte de aquisição do direito de propriedade, a verdade é que de uma verdadeira posse se trata, quer porque, do ponto de vista objectivo, se mostra integrado o corpus, quer porque dado o contexto negocial em que foi acordado entre todos os membros da família do falecido DD e levada a cabo tal ocupação, à luz das regras da experiência comum não pode deixar de ter-se por verificado o intuito de actuar sobre o prédio como único proprietário do mesmo, em que se traduz o animus, o qual, sempre se presumiria. E a verdade é que tal presunção não resulta elidida, como resulta da resposta ao quesito nº1”; “Ficou provado precisamente o contrário! Vejam-se as resposta aos quesitos 3, 4 e 5” (sic).
12 - A partir do momento em que foi constituída a sociedade, deixou de haver qualquer herança a partilhar.
13 - A partir do momento em que foi constituída a sociedade, passaram a existir apenas quotas de sócios, como em qualquer outra sociedade, deixando de fazer qualquer sentido falar-se em heranças de sócios ou partilhas de bens familiares.
14 - A partir da constituição da sociedade apenas é possível negociar essas quotas como em qualquer normal sociedade, por exemplo, por compra e venda ou por permuta.
15 - Assim, desde logo, é manifesto o erro da argumentação jurídica, pois os fundamentos invocados apontam num sentido, e contra a conclusão decisória que os mesmos apontam, optou-se, afinal, por decisão diversa.
16 - Verifica-se pois uma oposição considerada na aludida alínea c) do nº 1 do artigo 668° do Código de Processo Civil, uma vez que se verifica uma real contradição entre a parte dispositiva do acórdão e os respectivos fundamentos.
17- O exposto demonstra à saciedade que se deram como provados factos que se contradizem com a resposta à base instrutória, o que conduz a uma subsequente errada aplicação do direito, consubstanciando uma oposição entre os seus fundamentos e a decisão, por esses fundamentos, não se adequarem ao decidido na base instrutória.
18 - Na verdade e de acordo com o alegado no recurso que provocou o acórdão agora posto em crise, impunha-se a reapreciação da matéria de facto, nos termos do artigo 712°, nº 4, do Código de Processo Civil.
19 - A oposição registada entre as respostas aos quesitos, designadamente quanto aos quesitos 3°,4° e 5°, e a decisão neles fundamentada, torna inconciliável uma com a outra, verificando-se, pois, uma colisão frontal entre a matéria de facto respeitante às respostas e a fundamentação da decisão.
20 - O acórdão, agora posto em crise, ao manter como provado e fundamentar a ocorrência do instituto da usucapião, na posse das recorridas que, alegadamente, teve como inicio 1972/73, conforme é feito, não sendo tal data confirmada em qualquer dos quesitos.
21- Não pode ser considerada a mesma para efeitos de início da usucapião.
22 - Pois a usucapião, título invocado pelas recorridas para aquisição de direito de propriedade sobre o aludido imóvel, não se verifica com a instalação das recorridas no imóvel, sendo a sua utilização insuficiente para a presunção da sua intenção de exercer um direito de propriedade, e não constam do acórdão elementos suficientes que permitam a declaração do seu direito de propriedade.
23 – “A exclusividade do direito de propriedade (artigo 1305º do Código Civil) não é incompatível com a prática sobre a coisa, por terceiros, de actos consentidos ou tolerados pelos proprietários, que é manifestamente o caso em apreço”.
24 - Pelo que, não se podendo considerar o início da posse das recorridas em 1972/73, não se pode descortinar quando terá iniciado, sendo a data mais próxima, 1984, quando o DD e mulher foram viver para o referido imóvel.
25 - Na verdade, não se conformam os recorrentes com a conclusão de que as RR. estavam na convicção de não lesarem direitos de outrem, quando os recorrentes, por diversas vezes, interpelaram a recorrida para proceder à entrega do imóvel.
26 - Os documentos de interpelação juntos aos autos são documentos bastantes para o efeito.
27 - A conclusão de que, efectivamente, existiu uma oposição à permanência das RR. no imóvel, por parte dos seus legítimos proprietários, é legítima e correcta.
28 - Bem como que ficou interrompido o prazo da prescrição aquisitiva necessário à aquisição do direito de propriedade do imóvel por usucapião.
29 - Os documentos juntos aos autos, a fls. 250 e 253, impõem, inequivocamente, a conclusão de que a viúva tinha completo conhecimento de quem eram os proprietários do imóvel.
30 - A omissão na relação de bens entregue por morte do DD do imóvel em causa demonstra bem que a viúva bem sabia que aquele imóvel não era seu, não se podendo inferir o animus possidendi, por parte da viúva.
31- Assim, como o facto demonstra bem, que não pode considerar-se como ilidida a presunção de posse de má-fé, derivada da falta de título.
32 - Nos termos do artigo 7º do Código de Registo Predial, presume-se que o direito registado existe e emerge do facto registado, pertence ao titular inscrito e tem as configurações e características que o registo define.
33 - Os AA. juntaram aos autos prova de estarem inscritos como titulares do registo do imóvel em causa, bem como, fizeram prova do trato sucessivo até à compra do imóvel, pelo que se presume serem, efectivamente, os seus proprietários, a partir do momento em que o compraram, em 16 de Março de 2001, porque nessa data ainda existia na esfera jurídica da vendedora.
34 - As recorridas não poderiam invocar essa usucapião para efeitos de ilisão da presunção derivada do registo, tal qual está consagrada no artigo 7° do Código de Registo Predial, sob pena de se frustrarem as verdadeiras funções do registo, inutilizando, por completo, a sua eficácia e passando a não ter qualquer importância prática, pondo em causa o fim precípuo da segurança das transacções, que, através dele, se pretende atingir.
35 – “Na verdade, não tendo ficado como provada a sucessão da posse, desde 1972/73, porque apenas em 1984 as recorridas e marido da primeira foram viver para o imóvel, se as recorridas tivesse efectivamente adquirido o imóvel por usucapião e nunca obtiveram título, nem, consequentemente, procedeu ao registo da sua aquisição, não pode opor esse direito aos recorrentes protegidos pelo registo” (sic).
36 - Violando assim o acórdão o estatuído nos artigos 1254° e 1268°, do Código Civil.
37 - Os documentos juntos nos autos – cartas endereçadas à recorrida – impõem a interrupção do prazo prescricional, e remetem o termo inicial para a contagem do prazo de prescrição aquisitiva, a favor das RR., apenas pode ser fixado no ano de 1994, data em que foram praticados actos interruptivos por parte dos proprietários.
38 - À data de interposição da acção pelos AA., em 2001, ainda este requisito não se encontrava cumprido e não é possível, portanto, as RR. adquirirem o imóvel por usucapião.
39 - Assim, por efeito de tal acto interruptivo, ficou inutilizado, para efeitos de usucapião todo o tempo até então decorrido – o que conduz à inevitável conclusão de que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel em causa, fundada na sua aquisição por usucapião, que as RR./reconvintes deduziram, por via reconvencional, terá necessariamente de improceder.
40 - Aliás, como se encontra demonstrado pela certidão predial do prédio junta aos autos, tal prédio sempre esteve descrito na Conservatória, sendo o registo anterior a qualquer data de posse invocável pela RR..
41 – Portanto, os AA. entendem que gozam da presunção da titularidade do direito de propriedade sobre o prédio urbano em discussão, com base no disposto pelo artigo 1268°, nº 1, do Código Civil.
42 - Em sintonia com o princípio informador de que registo predial assume como finalidade conceder publicidade à situação jurídica dos prédios, o artigo 7º do Código de Registo Predial que contém uma presunção favorável aos AA. que as RR. não conseguiram ilidir.
43 - Atendendo a esta presunção de propriedade que decorre do estipulado pelos artigos 1268°, nº 1, do Código Civil, e 7º, do Código do Registo Predial, o possuidor inscrito, como é o caso dos AA., é, em princípio, o proprietário do bem e, como tal, pode exigir, judicialmente, de qualquer possuidor ou detentor, o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence, em conformidade com o estipulado pelo artigo 1311°, nº 1, do Código Civil.
44 - Sendo às RR. que competia o ónus da prova da posse, o que não lograram realizar, a acção, cujo fundamento radica no título de transmissão, pelo seu valor de presunção do domínio ou da titularidade do direito, deve, na dúvida, ser decidida, a favor dos AA..
45 - Assim sendo, não tendo os RR./reconvintes demonstrado os elementos, essencialmente, constitutivos do seu alegado direito, como lhes pertencia, na decorrência do preceituado pelo artigo 342°, nº 1, do Código Civil, importa concluir pela falência da posição que sustentam.
46 - A decidir como decidiu, viola o acórdão as disposições dos artigos 342°/1, 393°/2, 1263°/d), 1268°/1, 1290° e 1311°/1, todos do Código Civil, o artigo 7°, do Código de Registo Predial, e o artigo 668°/1/c), do Código de Processo Civil.
47- Nos termos dos artigos 729, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, por referência ao artigo 730º, pode e, neste caso, deve este Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão recorrida.
Em defesa da manutenção do acórdão, responderam as recorridas.
2.
A factualidade dada como provada é a seguinte:
A – Existe um prédio constituído por uma casa, quintal e dependências, sito em Boieiros, freguesia de Fátima, destinado a padaria, o qual se encontra inscrito na Repartição de Finanças de Ourém, na matriz urbana de Fátima, sob o artigo 156º e está descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém, freguesia de Fátima, sob a ficha nº 7262, com a descrição nº 20211, fls. 128 do Livro B-46, a favor dos AA., desde 4 de Abril de 2001.
B – Por escritura lavrada no Cartório Notarial de Ourém, em 26 de Março de 2001, Livro 162-E, fls. 122, os AA. declararam comprar e FF, como gerente da sociedade J...dos S...H..., Herdeiros, Limitada, declarou vender-lhes o imóvel referido em A).
C – A R. ocupa o referido prédio.
D – Com data de 29 de Setembro de 1994, a R. recebeu uma carta registada do mandatário dos AA., a convocá-la para uma reunião.
E – Em 28 de Fevereiro de 1996, voltou a ser enviada carta registada, em que os AA. voltaram a insistir para que a R. desocupasse o prédio.
F – O prédio em causa era propriedade de uma Sociedade Comercial, J...dos S...H..., Lda., constituída em 22 de Janeiro de 1971, com o objecto social de comercialização e produção de pão.
G – Tendo estado inscrito, a partir de 14 de Julho de 1971 e até à referida data de 4 de Abril de 2001, em nome de tal sociedade J...dos S...H..., Herdeiros, Limitada, para realização de capital social.
H – O falecido marido da R., o DD, foi sócio da referida sociedade, em solteiro.
I – Ainda no estado de solteiro, em 12 de Dezembro de 1975, o DD cedeu a totalidade da sua quota.
J – Após tal data, em 15 de Dezembro de 1984, a R. casou com o referido DD.
L – DD faleceu em 7 de Julho de 1987, no estado de casado com a R. CC.
M – Nos finais da década de 60, o falecido marido da R., DD, veio de Moçambique doente.
N – Por alturas de 1972/1973, o mencionado marido da R. passou a ocupar o referido imóvel.
O – E ali procedeu ao arranjo de um quarto, uma casa de banho e uma cozinha, divisões indispensáveis para que ali se pudesse instalar.
P – Por volta de 1978/79, no referido prédio, passou a funcionar um forno, onde o falecido DD fabricava pão.
Q – Em data não concretamente apurada, DD mandou, à sua custa exclusiva, mudar o forro de algumas divisões, substituir barrotes e vigas velhas por novos.
R – Mesmo depois de o marido falecer, a R. ainda fez vários trabalhos de arranjo, reparação e conservação da casa, nomeadamente, acabou por arranjar outra casa de banho, substituiu a canalização de águas particulares pela da rede pública, foi arranjando janelas e portas que envelheciam, mudou o telhado dos estábulos.
S – Sempre que achava necessário, a R. CC caiava a casa, por fora e por dentro, rebocava os muros que se esboroam, e cimentava e cimenta as partes dos muros mais fragilizados com a infiltração de águas e humidades.
T – O que ainda ocorre hoje.
U – Assim, há mais de 15, 20 e 25 anos que a R. ocupa a parte urbana do imóvel e cultiva a rústica, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e sem interrupção.
V – Na convicção de que não lesam direitos de outrem e que o bem só a elas pertence.
3. Quid iuris?
Das 47 conclusões com que os recorrentes fecharam a sua minuta, parecendo esquecer ou ignorar a sua verdadeira finalidade, fazendo tábua rasa do preceituado no artigo 690º, nº 1, do Código de Processo Civil, extrai-se a ideia de que nos colocam, para apreciação e decisão, as seguintes questões:
1ª – Há ou não necessidade de ampliação da matéria de facto, usando, para tanto, os poderes que nos são conferidos pelo artigo 729º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil?
2ª – Padece o acórdão censurado da apontada nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil?
3ª – Releva, hic et nunc, a irresignação dos recorrentes no que tange à decisão da matéria de facto? Impunha-se a sua reapreciação, por mor da alegada contradição entre as respostas dadas aos quesitos 3º, 4º e 5º e a sua fundamentação?
4ª – Na economia da decisão que importa tomar, qual o relevo a dar ao registo da aquisição da propriedade ajuizada? E o registo da descrição releva ou não, em termos de confronto com a posse invocável pelas RR./recorridas?
5º - Terão os AA., por via da correspondência que fizeram juntar aos autos e que foi dirigida à 1ª R., interrompido o prazo de prescrição?
6ª – Cumpriram as RR./recorridas o ónus de alegação e prova de molde a permitir concluir pela verificação da aquisição, por via do instituto da usucapião, da propriedade em causa?
Analisemos, pois, cada uma destas questões.
1ª – Da necessidade de ampliação da matéria de facto.
O Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal vocacionado para a decisão da “questão-de-direito” (artigo 721º, nº 2, do Código de Processo Civil), só em casos extremos intervém na “questão-de-facto”, ordenando a ampliação da base instrutória, nos exactos termos consentidos pelos nºs 2 e 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil.
Compreende-se, perfeitamente, que assim seja: só estando de posse de todos os elementos fácticos, pode o Supremo apreciar a solução de direito perfilhada pelo Tribunal recorrido, concedendo ou negando a revista pedida.
Se, por acaso, tiver havido, por partes das instâncias, omissão de apreciação de pontos da matéria de facto, que relevem para a decisão, então sim, deve o Supremo ordenar a ampliação da matéria de facto, com vista a ser dada resposta cabal à solução plausível indicada. E, se puder, deverá, até, definir, desde logo, o direito aplicável, nos termos do nº 1 do artigo 730º do mesmo diploma legal.
Este poder de ordenar a ampliação da base, por parte do Supremo Tribunal de Justiça, surge paralelo ao das instâncias, consagrado nos artigos 650º, nº 2, alínea f), e 712º, nº 4, ambos do Código de Processo Civil, para a 1ª instância e para a Relação, respectivamente, e reforça a ideia (certa) de que a decisão da matéria de facto nunca transita em julgado, antes da decisão final.
Bom.
Pode, pois, o Supremo Tribunal de Justiça ordenar a ampliação da matéria de facto, ordenando a baixa dos autos para a competente instrução.
Mas, para tanto, necessário se torna que tenha havido omissão na selecção de factos, imposta pelo artigo 511º, nº 1, do apontado Código, pela desconsideração de alguma ou algumas das diversas soluções plausíveis da questão de direito. Em tal hipótese, o Supremo Tribunal de Justiça acaba por visualizar matéria controvertida e decisiva para a decisão do pleito que o juiz da 1ª instância olvidou e a Relação desprezou.
Ora, lendo os articulados e tendo em conta tudo o que consta da base instrutória, nomeadamente, após o acrescento ordenado pelo 1º acórdão da Relação de Coimbra, temos como certo que não há qualquer razão para fazer uso dos poderes de ampliação referidos, pela simples razão de que tudo o que tinha interesse, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, foi já objecto de quesitação.
Os próprios recorrentes, referindo-se a tal possibilidade, logo no início da sua minuta, e, posteriormente, nas conclusões 3ª, 4ª e 47ª, não apontam um único facto que, com interesse para a solutio, tivesse ficado esquecido, a necessitar de instrução.
Do que fica dito, de uma forma sinóptica, retira-se a ideia de que, no caso concreto, o uso dos poderes de ampliação, conferidos pelo artigo 729º do Código de Processo Civil, não encontraria tradução prática alguma, representando pura perda de tempo qualquer iniciativa nesse sentido. É que, repetindo-nos, a matéria alegada pelas Partes e com interesse para a decisão, acabou por ter plena consagração não só nos factos assentes como também na base instrutória. Alargar esta, com algo de irrelevante, traduzir-se-ia na prática de acto inútil e, portanto, de acto proibido (artigo 137º do Código de Processo Civil).
2ª Questão – Da arguida nulidade do acórdão por contradição entre a decisão e a sua fundamentação.
Para chegar a esta conclusão, os recorrentes, desviando-se do que é essencial, fazem uma excursão pelo que é inútil e inócuo em termos decisórios.
Na verdade, esquecem que o que está em causa é saber se são eles os donos do prédio ou as RR., sendo irrelevante toda a história que, eventualmente, tenha acontecido com o falecido DD, ex-marido da 1ª R., enquanto ex-sócio da sociedade e detentor do mesmo.
Ou seja, o que interessa é saber se a R., juntamente com a sua filha, ocupou o prédio reivindicado, a que título e desde quando: é isto o essencial, não havendo, na decisão em apreciação, qualquer contradição entre o que foi sentenciado e os argumentos fácticos que lhe serviram de base.
A crítica que os recorrentes fazem agora ao acórdão poderia, a montante, ter alguma lógica, em sede de reclamação contra a base instrutória, que, pelos vistos, não obedeceu aos ditames exigidos pelo já aludido artigo 511º, nº 1, sendo seleccionados factos que, em bom rigor, não o deveriam ter sido, para além da omissão assinalada pela Relação, atenta a ideia já expressa de que o diálogo processual decorreu apenas entre os AA. e as RR., sendo irrelevante tudo o que se refira a outrem.
Para que a apontada contradição ganhasse relevo e importância ao nível decisório tornava-se necessário que os fundamentos invocados não conduzissem ao resultado lógico adoptado, mas ao contrário.
Não foi isso que aconteceu: perante a realidade fáctica apurada, a Relação, secundando o perfilhado na 2ª decisão da 1ª instância, acabou por concluir que as RR./recorridas eram, na verdade, as donas do prédio em causa, por o haverem adquirido por usucapião.
Não existe, assim, razão alguma para terem arguido a apontada nulidade.
3ª Questão – Da apreciação do juízo probatório firmado pelas instâncias. Sua possibilidade.
Como tribunal de revista, está o Supremo Tribunal de Justiça afastado da possibilidade de apreciação e censura em relação ao juízo probatório firmado pelas instâncias, na fixação da matéria de facto provada, excepção feita aos casos previstos no nº 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil, que são aqui inaplicáveis.
Ao se insurgirem contra a decisão da matéria de facto, fora do contexto excepcional assinalado, os recorrentes desviaram-se da verdadeira finalidade do recurso de revista, ignorando, ou parecendo ignorar, as competências próprias e específicas do Supremo Tribunal de Justiça.
Ainda no que à apreciação da matéria de facto diz respeito, manifestaram, ainda, os recorrentes a sua discordância em relação ao que apelidam de contradição entre a sua decisão e a sua fundamentação.
Pura perda de tempo atento o estatuído no artigo 712º, nº 6, do citado Código…
Sempre se dirá, contudo, que igual crítica já apontaram os recorrentes à decisão da 1ª instância, não visualizando a Relação o apontado vício (cfr. fls. 721 e 722), e, note-se, que bem, por inverificada.
4ª Questão – Qual o relevo da inscrição da aquisição do prédio a favor dos AA. no contexto global probatório?
A resposta só pode ser uma: nenhum – é que o registo de aquisição é posterior ao da (provada) posse das RR./recorridas.
Estando provado que o registo de aquisição por parte dos AA. é posterior ao início da posse daquelas (aquele data de 04 de Abril de 2001 e esta perdura há mais de 25 anos), permanece de pé a presunção de que são elas as titulares do direito (artigo 1268º, nº 1, do Código Civil). Daí que a sua invocação, por parte dos AA./recorrentes, perante as RR./recorridas, seja inócua.
E o da descrição?
Tendo a descrição de um prédio por finalidade a sua identificação física, económica e fiscal (artigo 79º, nº 1, do Código de Registo Predial) nada mais se pode tirar do seu conteúdo que isso mesmo.
Isto equivale a dizer que não é certo o vertido na conclusão 40ª.
A inscrição do registo de aquisição faz presumir que “o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, ut artigo 7º do Código de Registo Predial, mas já não, como parece ser pretensão dos recorrentes, que tem as configurações e características que define (conclusão 32ª).
Esta inscrição ganha foros de relevo, em matéria possessória, atento o já mencionado artigo 1268º, nº 1, do Código Civil: a presunção de que o possuidor goza da titularidade do direito, excepção feita para o caso de existir, a favor de outrem, presunção fundada no registo anterior ao início da posse.
No caso sub iudice, como dito, tal não acontece pela singela razão de que está provado que a posse das RR. é anterior a tal registo.
Mas se isso é assim em relação ao registo de aquisição, irreleva de todo, aqui, a invocação da data da descrição do prédio em causa, atento o referido.
5ª Questão – Da invocada interrupção do prazo prescricional.
Por força da resposta dada ao quesito 12º da base instrutória, ficou assente que “há mais de 15, 20 e 25 anos que a ré ocupa a parte urbana do imóvel e cultiva a rústica, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e sem interrupção”.
Defendem os recorrentes que o aludido prazo foi interrompido pelo facto de, através do seu mandatário, terem feito ver à 1ª R. a sua intenção de reaverem o prédio em causa.
E, na verdade, foi dado como provado o teor de tal missiva, datada de 28 de Fevereiro de 1996, como resulta da alínea E) dos factos dados como provados.
Ao defender tal posição, os recorrentes esquecem ou ignoram o preceituado no nº 1 do artigo 323º, aplicável ex vi artigo 1292º, ambos do Código Civil: “a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial ou qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente”.
Vale por dizer que não basta o exercício extrajudicial para interromper a prescrição, antes sendo necessária a prática de actos judiciais que, de forma directa ou indirecta, dêem a conhecer a intenção de exercer o direito por parte de quem se arroga titular.
E, desta forma simples, fica demonstrado que não há qualquer contradição entre a matéria referida e colocada ab initio nos factos assentes e a resposta que acabou por ser dada ao aludido quesito 12º: o facto de terem os recorrentes comunicado, via carta junta aos autos, a intenção de que a R. deixasse livre o prédio reivindicado não colide com o facto provado de que esta, juntamente com a sua filha, esteve na posse do mesmo, ininterruptamente, durante 15, 20 e 25 anos.
6ª Questão – Do respeito pelo ónus de prova.
Às RR., enquanto reconvintes, cumpria alegação, e subsequente prova, dos factos necessários e conducentes à aquisição do prédio em causa, pela forma originária prevista nos artigos 1316º e 1317º, alínea c), do Código Civil.
Para tanto, como sabido, necessário se tornava a comprovação do elemento corpus, já que o animus se presume, por efeito do que está prescrito no artigo 1252º, nº 2, do Código Civil.
As respostas dadas aos quesitos 9º a 12º não deixam margem para dúvidas de que a 1ª R. se comportou, em relação ao prédio, como verdadeira proprietária, praticando nele os actos aí enumerados e que são próprios de quem tem tal qualidade: estamos aqui perante um caso de aquisição por apossamento, ou seja, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito (artigo 1263º, alínea a) do Código Civil).
E, pertencendo aos AA./reconvindos, o ónus de ilidir a referida presunção relativa ao animus, o certo é que não o fizeram e até permitiram o reforço da verificação deste elemento, através da resposta obtida ao quesito 13º, ou seja, que as RR. exerceram aqueles mencionados actos possessórios “na convicção de que não lesam direitos de outrem e que o bem só a elas pertence”.
Perante isto, não podem restar quaisquer hesitações sobre o cumprimento integral do ónus de alegação que o artigo 342º, nº 1, do Código Civil, lhes impunha: era a elas e só a elas que cumpria a alegação dos factos constitutivos do direito de que se arrogaram desde a apresentação da peça contestatória.
E foi o que, na realidade, aconteceu: provaram não só os actos definidores do corpus, como também do animus, donde resultou a criação de uma situação possessória, contemplada na já aludida alínea a) do artigo 1263º do Código Civil, situação essa que perdurou no tempo, mais de 25 anos, o que, atenta a ilisão da presunção contida no artigo 1260º, nº 2, do Código Civil, permite, folgadamente, concluir pela aquisição do dito prédio, por usucapião, de acordo com o disposto nos artigos 1287º, 1288º e 1296º, todos do Código Civil.
Aqui chegados, resta-nos concluir pela total improcedência da tese apresentada pelos recorrentes.
Não há, pois, qualquer razão para censurar o aresto impugnado, pelo que se mantém.
4.
Pelo exposto, nega-se a revista e condenam-se os recorrentes no pagamento total das custas devidas.
Lisboa, aos 19 de Novembro de 2009
Urbano Dias (Relator)
Paulo Sá
Mário Cruz