ACÇÃO EXECUTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
CONFISSÃO DE DÍVIDA
CONTRATO MUTUO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
DECLARAÇÃO UNILATERAL
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
Sumário


I - Constitui título executivo, face ao disposto no art. 46.º, n.º 1, al. c), do CPC, o documento particular que contém o reconhecimento de dívida de reembolso resultante de mútuo nulo por falta de forma legal (art. 1143.º do CC).
II - Considerando que, por via de confissão contida no documento dado à execução, está demonstrada a realidade dum empréstimo no montante de € 39 903,83 feito pelo pai do exequente (e de quem este é único e universal herdeiro) aos executados, o facto de se tratar de mútuo ferido de nulidade, nos termos dos arts. 220.º, 294.º e 1143.º do CC, dado que não foi celebrado por escritura pública, não retira exequibilidade ao título.
III - Não tendo o exequente exigido no processo executivo o cumprimento da obrigação contratual a que alude o art. 1142.º do CC – a obrigação de restituição da quantia mutuada –, a qual pressupõe a validade e subsistência do contrato em que radica, antes tendo exigido a restituição daquela mesma importância, mas como consequência da nulidade do referido contrato, tal como é consentido pelo art. 289.º, n.º 1, do CC, e encontrando-se plenamente provada, por confissão, a realidade do mútuo ajuizado, nos exactos termos em que surge retratado no título executado, nenhum sentido faria, por via da negação da sua força executiva, remeter o exequente para uma acção declarativa destinada a obter o reconhecimento dum direito que, para além de já estar válida e eficazmente reconhecido pelo devedor, também se encontra definido em todos os seus contornos juridicamente relevantes na mencionada confissão de dívida

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório
AA e sua mulher BB opuseram-se à execução para pagamento de quantia certa que lhes foi movida por CC tendo em vista a cobrança de 39.003,03 € e na qual o título executivo apresentado é o documento denominado de “Confissão de Dívida”, junto a fls 8, cuja subscrição lhes é imputada.
Substancialmente, alegaram que as assinaturas apostas no título dado à exe­cução não são da sua autoria e que nada devem ao exequente, pois, segundo afirmam - artº 11º da oposição - nunca mantiveram com o exequente qualquer relação que pudesse justificar o montante peticionado.
O exequente contestou, reafirmando que a “Confissão de Dívida” foi elabo­rada pelo próprio executado/marido e subscrita por ambos os executados, que desta forma reconheceram serem devedores da quantia que nela se menciona.
Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que julgou a oposição procedente, com a consequente extinção da execução.
O exequente apelou, e com êxito, já que a Relação, por maioria, julgou o recurso procedente, revogando a sentença e ordenando o prosseguimento da execução.
Agora são os executados que, inconformados, pedem revista.
Sustentam que a decisão da 2ª instância deve ser revogada porque, ao admitir a exe­quibilidade de um documento particular de reconhecimento de dívida de reembolso resultante de mútuo de 39.003,03 € nulo por falta de forma legal, nos termos do artº 1143º do CC, interpretou e aplicou erradamente a norma do artº 46º, nº 1, c), do CPC.
Não houve contra alegações.
II. Fundamentaçãoa) Matéria de Facto:
1 - O exequente CC é detentor do documento deno­minado de “Confissão de dívida”, contendo apostas as assinaturas “AA” e “BB” que se encontra a fls. 8 dos autos principais de execução, do qual constam os seguin­tes dizeres dactilografados:“Eu, AA, casado com BB, declaro que pedi por empréstimo a DD e sua mulher EE a quantia de 39.903,83 Euros (‘noventae’ nove mil novecentos e três euros e oitenta e três cêntimos), na qual me comprometo pagar no mais curto espaço de tempo isto e logo que me seja pedido o reembolso desta quantia e passo a assinar, eu e minha mulher, a quantia deste empréstimo …Águas Santas, 12-01-2001”;E os seguintes dizeres manuscritos:“Rasurei 27.500,00”;2 - Os dizeres dactilografados “39.903,83” e “noventae” referidos em 1) estão rasura­dos, tendo sido apostos os dizeres manuscritos “trinta” por cima dos dizeres dactilo­grafados “noventae”;3 - Por escritura pública denominada de “Habilitação de herdeiros”, lavrada em 12 de Julho de 2006, no Cartório Notarial de M......................., o exequente CC o declarou:“Que … no dia 19 de Junho de 2006, na freguesia de São Martinho do Bougado, con­celho de Santo Tirso, faleceu DD… no estado de viúvo de EE;Que o autor da sucessão não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, e deixou como único herdeiro, por vocação da lei, seu filho: CC, o declarante …”;4 - As assinaturas “AA”, apostas no documento referido em 1) foram manuscritas pelo punho do executado AA;5 - Os dizeres “rasurei” e “27.500,00”, apostos no documento referido em 1), foram manuscritos pelo punho do executado AA;
6 - A assinatura “BB”, aposta no documento referido em 1), foi manuscrita pelo punho da executada BB
b) Matéria de Direito
A única questão posta no presente recurso é a de saber se o documento dado à exe­cução - a confissão de dívida datada de 12/1/01 identificada no ponto 1) da matéria de facto - constitui ou não um título executivo, face ao disposto no artº 46º, nº 1, c), do CPC.
Na sentença da 1ª instância, com a concordância dos executados, respondeu-se nega­tivamente à pergunta; no acórdão recorrido, com o aplauso do exequente, deu-se uma resposta positiva.
A nosso ver, a decisão legal e justa, e que por isso deve ser mantida, é a da Relação (se bem que por fundamentos não inteiramente coincidentes).
Vejamos porquê.
O artº 46º, nº 1, c), do CPC dispõe que à execução podem servir de base “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reco­nhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou deter­mi­nável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.
No caso presente, o documento de que consta o direito de crédito cuja satisfação o exequente pretende obter por via coactiva é um documento particular cuja veracidade, impugnada pelos executados na oposição deduzida, foi provada pelo recorrido, em conformidade com o disposto no artº 374º, nº 2, do CC (factos 4, 5 e 6).
Segundo dispõe o artº 376º, nº 1, do mesmo diploma, “o documento particular cuja auto­ria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento”; e consoante o nº 2 deste mesmo preceito “os factos com­preendidos na declaração con­sideram-se provados na medida em que forem contrá­rios aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão”.
Prova plena, de acordo com o artº 347º, é aquela que “só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras res­trições especialmente determinadas na lei”.
Finalmente, confissão é “o reconhecimento que a parte faz da realidade dum facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária” (artº 352º), sendo que, nos termos do artº 358º, nº 2, “a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou par­ticular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”.À luz destes textos legais nenhuma dúvida resta de que, por via da confissão contida no documento dado à execução, está demonstrada a realidade dum empréstimo no montante de 39.903,83 € feito pelo pai do exequente (e de quem este é único e uni­versal herdeiro) aos executados. É certo que se trata de mútuo ferido de nulidade, nos termos dos artºs 220º, 294º e 1143º, todos do CC, dado que não foi celebrado por escritura pública. No caso concreto, todavia, esse facto não retira exequibilidade ao título. Na verdade, e em direitas contas, o exequente não se apresentou a exigir no processo executivo o cumprimento da obrigação contratual a que alude o artº 1142º - a obrigação de restituição da quantia mutuada - exigência essa que pressupõe, logi­camente, a validade e sub­sistência do contrato em que radica; exigiu, isso sim, a res­tituição daquela mesma importância, mas como consequência, justamente, da nulidade do referido contrato, tal como é consentido pelo artº 289º, nº 1, nos termos do qual a declaração de nulidade do negócio tem efeito retroactivo, devendo ser res­tituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for pos­sível, o valor correspondente; ora, encontrando-se plenamente provada, nos termos que se expuseram, a realidade do mútuo ajuizado, nos exactos termos em que surge retratado no título executado, nenhum sentido faria, por via da negação da sua força executiva, remeter o exequente para uma acção declarativa destinada a obter o reconhecimento dum direito que, para além de já estar válida e eficazmente reconhecido pelo devedor, também se encontra definido em todos os seus contornos juridicamente relevantes na mencionada “confissão de dívida”. E tendo sido declarado propósito do legislador, com a nova redacção conferida ao artº 46º, nº 1, c), do CPC, ampliar signifi­cativamente o elenco dos títulos executivos, com particular incidência nos documentos particulares (cfr. o preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), afigura-se que a recusa de força executiva ao documento em apreço no caso ajuizado traduziria, na prática, um tal ou qual retrocesso, con­trário à letra e ao espírito (ratio legis) da lei.
Na sentença, bem como nas alegações da revista, alude-se a um acórdão deste STJ que, aparentemente, terá seguido um entendimento contrário ao aqui per­filhado (1). Acontece, todavia, que são inteiramente distintas, num e noutro caso, as situações de facto apreciadas. Com efeito, naquela que foi julgada no referido recurso ficou plenamente provado, também por via de confissão extrajudicial inserida em documento particular, que o mutuante tinha sido, não o exequente, mas um ter­ceiro, o qual por nenhuma forma interveio no processo para fazer valer o seu direito e nem sequer dispunha de legitimidade, face ao artº 55º, nº 1, do CPC, para promover a execução, visto não ser a pessoa que no título executivo figurava como credora. E assim, porque a obrigação de restituição fundada na nulidade do mútuo tem por destinatário o mutuante - ou seja, a parte contratante que tiver disposto do dinheiro - logo por essa razão ficou em definitivo posta de lado, ao contrário do que se passa no caso pre­sente, a hipótese de fazer valer o regime previsto no artº 289º do CC, relativo aos efeitos da declaração de nulidade.
Na situação aqui analisada a causa (ou seja, a fonte) da obrigação exequenda - o empréstimo da quantia de 39.903,83 € - está expressamente indicada no título, independentemente de também o ter sido no requerimento inicial da execução (2)”; mas para além disso, e como já se pôs em destaque, a existência, a realidade do empréstimo é um facto proces­sualmente adquirido por via da confissão feita pelos opoentes no próprio título; assim sendo, obrigar o exequente à propositura duma acção declarativa tendente à condenação do mutuário na obrigação de restituir a quantia emprestada em consequência da nulidade do contrato revelar-se-ia totalmente inútil e redundante; inútil e redundante, sem dúvida, porquanto o facto pre­sumido a que o artº 458º, nº 1, do CC se refere - precisamente, a causa da obrigação - está já antecipadamente demonstrado, encontra-se já válida e efi­cazmente confessado pelo devedor. A isto acresce que os opoentes alegaram, sem provar, nada dever ao exequente. Tudo o que antecede legitima a seguinte conclusão: se em consequência da recusa de exequibilidade ao título ajuizado o exequente tivesse que demandar os executados numa acção decla­rativa, grande seria o risco de vir a ser condenado nas custas, nos termos do artº 449º, nº 2, c), do CPC, por usar desnecessariamente o processo de declaração estando já munido de um título com manifesta força executiva.
Deve sublinhar-se, de resto, que pelo menos em duas situações semelhantes, no essencial, à que aqui se aprecia este STJ julgou em sentido idêntico (3).
Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso.

III. Decisão
Nega-se a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 01 de Fevereiro de 2011

Nuno Cameira (Relator)
Salreta Pereira
João Camilo
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(1) Revª 1582/08, de 10/7/08, desta mesma conferência de juízes, cujo texto integral está em www.stj.pt
(2) Aí o recorrido alega: “O pai do exequente em 12.1.01 emprestou aos executados, gratuitamente, a quantia de 39.003,03 €…”
(3)Ac. de 19/2/09 e 13/7/010, nos Procºs 07B4427 e 6357/04.7TBMTS-B.P1.S1, cujo texto integral está em www.stj.pt