NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DEPOIMENTO DE PARTE
CONFISSÃO JUDICIAL
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
GERENTE
RENÚNCIA
JUSTA CAUSA
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
ABUSO DO DIREITO
Sumário

I - A nulidade a que se reporta o art. 668.º n.º 1, al. d), do CPC é de índole formal, sendo certo que só existe quando em absoluto o Juiz tenha deixado de se pronunciar sobre uma questão que deveria ter apreciado e não já quando essa pronúncia seja incorrecta ou insuficiente.
II - O depoimento de parte é de certo uma via de conduzir à confissão judicial; todavia mostra-se ultrapassada a concepção restrita de tal depoimento vocacionado exclusivamente àquela obtenção, já que o mesmo tem um campo de aplicação muito mais vasto. Assim sendo, o Juiz no depoimento de parte, em termos gerais, não está espartilhado pelo escopo da confissão, podendo ali colher ainda elementos para a boa decisão da causa de acordo com o princípio da “livre apreciação da prova”.
III - Os gerentes ou administradores de uma sociedade respondem para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções; todavia já não incorrem em responsabilidade perante aqueles, quando o acto, mau grado sendo prejudicial ao património da sociedade, se reflicta indirectamente sobre o do sócio.
IV - O gerente é livre de renunciar à gerência quer haja ou não justa causa para tanto; apenas neste último caso, não avisando a sociedade com antecedência razoável, poderá ter que indemnizá-la pelos prejuízos que esse acto lhe possa causar. Contudo esta responsabilidade em que o gerente poderá incorrer, nos termos sobreditos, efectivar-se-á perante a sociedade e não face aos respectivos sócios enquanto tais.
V - Não se prevê no CSC a proibição de concorrência por parte dos sócios, esta vigente para a sociedade civil, nos termos do disposto no art. 990.º do CC, o qual não tem função integradora de qualquer lacuna na regulamentação das sociedades do tipo que analisamos nesta sede.
VI - Não podendo a A., enquanto pessoa singular, fazer valer os direitos a que se arroga, já que não o faz em nome da sociedade, certo é que só em nome desta poderia ajuizar do comportamento dos sócios “à face do abuso do direito”.
VII - É que muito embora reflexamente possa ser afectada pelos actos dos RR. gerentes, a responsabilidade destes efectiva-se perante a sociedade mesmo à luz daquele instituto.
VIII - O mesmo se dirá no tocante à invocação do instituto do “enriquecimento sem causa”, que visa obviar ao empobrecimento de alguém, que de outro modo ficaria prejudicado, mas nunca facultar-lhe um modo de o fazer quando expressamente uma norma do sistema jurídico o veda; seria uma contradição nos próprios termos do ordenamento jurídico dando com uma mão aquilo que tiraria com a outra.

Texto Integral




Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça.

AA intentou acção com processo ordinário contra:
BB e marido CC;
DD e mulher EE pedindo que:
a) Sejam declaradas inválidas as renúncias à gerência da sociedade FF - Gabinete de Contabilidade, Lda." por parte do primeiro Réu varão e da segunda Ré mulher;
b) Seja ordenado o cancelamento dos respectivos registos junto da Conservatória do Registo Comercial de Guimarães;
c) Sejam os Réus solidariamente condenados a pagar-lhe a quantia global de € 247.916,33 com as proveniências descritas nos artigos 71°, 73°, 76°, 77° e 81°, sem prejuízo de a mesma vir a ser fixada em montante superior, nos termos do artigo 569° do Código Civil, acrescida dos legais juros de mora vincendos, sendo os relativos às quantias peticionadas nos referidos artigos 76°, 77° e 81° a contar da data da citação e todos até integral e efectivo pagamento.
Alega que, juntamente com o primeiro Réu e a segunda Ré, são os únicos sócios da sociedade FF - Gabinete de Contabilidade, Ld", cada um com uma quota de Esc. 200.000$00, todos gerentes desde a constituição.
A sociedade tem por objecto o desenvolvimento das ac­tividades de contabilidade, auditoria e consultoria fiscal e, em finais de 2001, atingiu um volume anual de receitas na ordem dos € 140.000, com os quais suportava todas as despesas e encargos sociais, incluindo os fiscais, no valor médio anual de € 110.000, incluindo os valores respeitantes às remunerações fixas, gratificação de gerência e subsídio de alimentação que, no valor global de Esc. 329.261$00 ou € 1.642,35, cada um dos três sócios recebia mensalmente, apresentando um lucro que ascendeu a cerca de € 30.000.
Desde meados de Setembro de 2001 os referidos Réus deixaram de dialogar consigo, não permitiam se mantivesse a par dos negócios da sociedade, nem ter voto na matéria relativamente aos empréstimos que a sociedade, por deliberação daqueles concedeu aos primeiros Réus e à irmã do primeiro Réu, nos montantes de, respectivamente, € 4.489,18 e cerca € 2.244,59, alteravam a voz e carregavam o semblante nas poucas conversações que, no âmbito da actividade diária ainda tinham que manter, impediam-na de contactar com os clientes, ao mesmo tempo que perante estes tentavam denegrir a sua imagem, tudo com o objectivo pensado de, através da fragilização da sua pessoa, lograrem que esta se afastasse voluntariamente da sociedade.
Perante a sua firmeza em defender a permanência na sociedade, em Outubro de 2001, os Réus ofereceram-lhe pela cessão da respectiva quota a quantia de Esc. 4.000.000$00, que não aceitou.
Em 9 de Novembro de 2001 os Réus remeteram carta à sociedade renunciando à gerência a partir do dia 30 do mesmo mês, nomeando para gerentes substitutos dois estranhos à sociedade que nada entendiam.
Através dos seus "testas de ferro" procederam à revogação dos contratos de arrendamento do escritório e outros que a sociedade mantinha com entidades fornecedoras de bens ou serviços.
Devido ao comportamento dos Réus, viu-se obrigada a permanecer sozinha no escritório da FF a fim de, na medida do possível, continuar a honrar os compromissos para com os clientes, o que fez até 29 de Março de 2002, data em que ficou privada das instalações, dos equipamentos de trabalho e manietada por falta de recursos financeiros, sendo obrigada a renunciar à gerência.
A A. auferia € 748,20 de remuneração propriamente dita, € 111,98 a título de subsídio de refeição e € 782,16 respeitantes à gratificação de gerência, que deixou de receber por culpa dos Réus, a primeira a partir de Março de 2002 e a terceira desde Dezembro de 2001, em montante calculado até ao final de Janeiro de 2004 em € 46.689,93, acrescido de juros, sendo os vencidos de € 1.226,40.
Com a destruição da FF deliberadamente levada a cabo pelos Réus, estes impediram-na de continuar a beneficiar dos proventos que a actividade social lhe proporcionava, em montante não inferior a € 25.000.
A conduta dos Réus esvaziou de qualquer valia a sua posição social privando-a de um bem de valor não inferior a € 150.000.
Em virtude das perseguições, alheamentos, vexames e, sobretudo constrangimentos de que foi vitima, sofreu dores e forte abalo psíquico, receios e angústias de que se encontra a recuperar e que a obrigaram a submeter-se a exames e tratamentos diversos, causando-lhe sentimentos de inutilidade e de fracasso, tristeza acentuada, falta de esperança no futuro, perturbação do sono, perda de apetite, conflitos familiares e apatia, problemas de memória e de atenção. Pretende ser compensada a este título com quantia não inferior a € 25.000.
Os Réus contestaram, invocando a ilegitimidade da Autora, pois a factualidade alegada daria lugar, quando muito, a indemnização da sociedade.
Invocaram, igualmente, a ilegitimidade da primeira Ré mulher e do segundo Réu marido uma vez que a causa de pedir se resume às relações entre os seus cônjuges, a sociedade e a Autora.
Contrapuseram, ainda, que a clientela ascendia a cerca de uma centena de clientes que havia sido angariada pelo primeiro Réu, o volume de receitas no exercício de 2001 foi de € 98.370,43 enquanto o lucro ascendeu a € 23.460,53 e cada gerente apenas auferia € 748,20 a título de remuneração.
Acrescentaram que os contactos de carácter técnico e profissional com os clientes com contabilidade organizada tinham de ser levados a cabo pelo primeiro Réu e pela segunda Ré, que eram técnicos oficiais de contas, ao passo que a Autora não o era.
Devido à deterioração das relações derivadas do deficiente trabalho da Autora, com erros, atrasos e problemas criados com as funcionárias, propuseram-se adquirir a quota da Autora ou ceder as suas pelo valor de Esc. 4.000.000$00, proposta que não foi aceite.
Devido ao impasse criado, não estando dispostos a trabalhar com a Autora, renunciaram à gerência e foram nomeados outros gerentes, deliberação que aquela não impugnou.
Enquanto técnicos oficiais de contas estavam obrigados a comunicar aos clientes que cessavam as funções enquanto tal. Estes, ao tomarem conhecimento que iriam continuar a actividade integrados noutra empresa, por sua iniciativa rescindiram os contratos que tinham com a FF Lda..
Referiram, ainda, que os livros selados, pastas e documentos dos clientes, estão à guarda do técnico oficial de contas, sendo obrigatoriamente entregues findo o contrato; as funcionárias solicitaram-lhes emprego após a cessação do vínculo contratual com a FF Lda. e não procederam ao aumento de capital por deliberação que a Autora não impugnou.
A Autora replicou, pugnando pela legitimidade de todos os sujeitos.
Foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as excepções de ilegitimidade, pronunciando-se pela validade e regularidade de todos os pressupostos processuais, estado em que, aliás, se mantêm.
Considerando que o estado dos autos permitia o conhecimento de mérito foi proferida sentença que absolveu os Réus dos pedidos.
Inconformada, a Autora apelou.
O Tribunal da Relação de Guimarães confirmou a sentença proferida.
Mantendo-se inconformada, a Autora recorreu para este Supremo Tribunal que revogou o acórdão da Relação para que fosse substituído por outro que ordenasse o prosseguimento dos autos com selecção de factos assentes e definição de base instrutória.
Prosseguiram os autos a sua tramitação no Tribunal de 1ª instância, seleccionando-se os factos e elaborando-se a Base instrutória sem reclamações.
Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgando a acção improcedente por não provada e absolveu os RR. do pedido formulado pela Autora.
Apelou a Autora sem êxito, já que viu confirmada a decisão da 1ª instância.
De novo inconformada recorre, agora de revista, terminando por pedir:
a) Que se julgue a acção procedente por provada condenando-se os recorridos nos pedidos contra eles formulados ou que:
b) Pelo menos julgando a acção parcialmente procedente por provada equitativamente se condenem os recorridos no pedido constante da alínea c) da Petição inicial contra eles formulado.
Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) Na sua generalidade, a matéria de facto assente nas instâncias - e da que ainda venha a ser considerada como tal por este Tribunal - inclusive com respeito da equidade e correctamente apreciada e à luz das boas regras de experiência - permitiam que as mesmas julgassem a acção, ainda que parcialmente, provada e procedente, porquanto:
2) Ao renunciarem à gerência, (ainda que o não tivessem feito de forma planeada e dolosa), os recorridos tornearam a proibição vertida no artº 254º do CSC que, enquanto gerentes e já não como sócios, lhes proibia o exercício da mesma actividade que, como sócios e gerentes desempenhavam e desenvolviam na FF;
3) Sendo que a proibição de exercício de actividade concorrente com a da sociedade a que se reporta o artº 254º do Código das Sociedades Comerciais só se aplica aos casos em que os gerentes não são os próprios sócios da sociedade, mas apenas àquelas pessoas em quem estes (sócios) delegaram os necessários poderes para, em lugar deles (sócios), exercerem a actividade de administração e representação de uma qualquer sociedade;
4) Em parte alguma do artº 254º do CSC se vislumbra sequer uma referência à proibição de concorrência pelos sócios! Antes, a proibição nele imposta, apenas se reporta aos gerentes!
5) Sendo que, in casu e tendo ainda em conta o disposto no artº 2º do citado CSC, a proibição de concorrência caiba na previsão do artº 990º do Código Civil, onde - salvo se autorizados pelos restantes sócios - se proíbe aos sócios o exercício de actividade concorrencial com a sociedade;
6) Resultando com linear clareza que, todos os demais actos praticados pelos recorridos, melhor identificados na parte descritiva supra - ainda que ao abrigo formal do exercício de vários direitos e, mesmo que desprovidos de intencionalidade - o foram com manifesto e flagrante “abuso de direito”, excedendo os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelos fins sociais ou económicos dos seus eventuais direitos, causaram sério e grave prejuízo à recorrente;
7) Excessos estes que são manifestos e clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico, nomeadamente e, sobretudo, por violadores, entre outros, dos bons costumes, dos princípios da colaboração entre os sócios, da confiança, da boa-fé e da igualdade de tratamento;
8) E que, caso não sejam sancionados, constituirão perigoso precedente para casos análogos ao dos autos - sociedades de prestação de serviços, cujo valor reside somente no aviamento ou clientela e não nos equipamentos ou imobilizados _ permitindo a total impunidade de quem, como os recorridos, agindo em função de interesses particulares, pretenda lançar mão dos mesmos expedientes dos recorridos;
9) Sendo notório e manifesto que, independentemente das intenções dos recorridos, premeditadas ou não - os comportamentos destes, melhor descritos nos autos, ainda que sob a capa formal de direitos, lesaram de forma grave e séria múltiplos direitos da recorrente que, assim, injusta e injustificadamente, ficou privada de direitos e impedida de perceber rendimentos;
10) Nomeadamente e entre outros:
a)- O direito de perceber, pelo menos, a remuneração da gerência e subsídio de alimentação nos montantes de € 748,20 e de € 111,93, respectivamente e, bem assim, os subsídios de férias e de Natal em montante igual à remuneração;
b)- O direito de quinhoar nos lucros da sociedade esvaziada;
c)- O direito de proceder à venda da quota que possui no capital social; e
d)- Os direitos à estabilidade no emprego, à propriedade privada e à saúde;
11) Direitos ou interesses estes directamente protegidos, entre outras, pelas disposições legais constantes, respectivamente, dos artigos: 255° no 1; 21°, no 1, als. a), b) e c) e 217°; 228°, todos do CSC e 70° no 1 do CC e, ainda, 53°, 58° no 1 e 62° no 1, 64° nº 1, estes, todos da Constituição da República que, desta, forma, foram violados pela decisão recorrida;
12) Acresce, ainda, que, como resultado das condutas descritas nos autos - mesmo que se entendam as mesmas como não premeditadas - os recorridos lograram (e continuam a lograr) um enriquecimento injusto e injustificado à custa do consequente e proporcional empobrecimento da apelante;
13) Na prolação do recurso de apelação em causa, atento o valor probatório fixado no nº l do artigo 358° do Código Civil, foi incorrectamente apreciada a prova resultante do depoimento de parte dos recorridos, com influência directa no sentido da decisão da acção;
14) Com efeito, na decisão recorrida, os depoimentos de parte dos recorridos foram, e muito, levados em conta em tudo o que de algum modo contrariasse os factos articulados pela recorrente e relativamente aos quais - para daqueles obter a confissão - esta requereu o aludido depoimento de parte.
15) Contudo, o depoimento de parte só pode ser aproveitado pelo Tribunal em tudo que for desfavorável à parte que o presta;
16) Sendo que, ao não julgarem assim, as instâncias recorridas violaram o disposto nos artigos 352° e 361° do CC e 554° do CPC;
17) Devendo, pois, atento o valor probatório fixado no no l do artigo 358° do Código Civil e ao abrigo do disposto na parte final do no 2 do artigo 722°, na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei no 303/2007, de 24-08, ser dados como provados os factos constantes dos quesitos 14°, 15°, 16° e 17°, 24°, 25°-A; 26° e 37°, todos da base instrutória;
l8) Na verdade, ao não decidirem em conformidade com a descrita prova, as instâncias recorridas violaram, entre outras, as disposições constantes dos artigos 355°, nsº 1 e 2; 356°, nº 2; 358°, nº 1 e art° 668° nº 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil.
19) Acresce que, contrariamente ao que estava legalmente obrigado, o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre algumas das questões suscitadas pela Recorrente nas suas alegações/conclusões, nomeadamente sobre as questões vertidas nas conclusões 32° a 37°, inclusive e 48º a 50º, também, inclusive e, ainda, parcialmente na 53º, relativamente às quais expressamente se absteve de conhecer e apreciar o respectivo mérito (ou falta dele);
20) Sendo que, por via disso, o acórdão recorrido ficou a padecer de um vício que, por força do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 668°, e aplicável por força do estatuído no artigo 716º no 1, ambos do CPC, determina a nulidade da decisão recorrida, que ora se invoca para todos os legais efeitos dela decorrentes;
21) E, finalmente, ao julgar improcedente a apelação, o acórdão, para além de outras, não interpretou nem aplicou correctamente diversas normas legais, assim as violando, nomeadamente: os artigos: 70°; 334°; 352°; 355°; 356°; 358°; 361°; 473° e 990°, estes do Código Civil; 2°; 21° nº 1, als. a), b) e c); 22°; 217°; 254°; 255° e 259º, todos do Código das Sociedades Comerciais; 554°; 668° nº 1, alíneas b) e d); 684° e 690°, do Código de Processo Civil e, ainda, 53°, 58° nº 1 e 62° nº 1, 64° nº 1, estes da Constituição da República.

Não houve contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

2. FUNDAMENTOS.

A Relação deu como provados os seguintes,
2.1. Factos.

2.1.1. A Autora e o 1° Réu marido e a 2ª Ré mulher são os únicos sócios da sociedade comercial por quotas denominada "FF - Gabinete de Contabilidade, Lda.”, NIPC …, com sede na Rua ..., nº ..., R/C, da freguesia de ..., do concelho de Guimarães, com o capital social de Esc. 600 000$00 (ora correspondentes a € 2.992,79) dividido em três quotas iguais de esc. 200 000$00 (ou € 997,60) cada uma [alínea A) dos factos assentes];
2.1.2. Sociedade comercial aquela que, por escritura de 23 de Julho de 1997, lavrada de fls. 38 a 39 v., do livro de Escrituras Diversas no 219-D, do 1° Cartório Notarial de Guimarães, os seus três identificados sócios constituíram entre si para, em conjugação de esforços e com intuito lucrativo, desenvolverem as actividades de contabilidade, auditoria e consultoria fiscal [alínea B)].
2.1.3. [Sendo certo que,] desde o início, os três referidos sócios foram nomeados gerentes da aludida sociedade [alínea C)].
2.1.4. [Sendo que] durante os primeiros quatro anos de vida da sociedade, de forma segura, progressiva e consistente, expandiram a actividade social [alínea D)].
2.1.5. Os Réus deixaram de exercer a gerência em 17-11-2001 [alínea E)].
2.1.6. GG renunciou ao cargo apenas um mês e meio após para o mesmo ter sido nomeado [alínea F)].
2.1.7. Não obstante terem declarado nos Serviços de Finanças o respectivo início de actividade em 26/11/2001, com a denominação de "HH, Lda.", os Réus efectivamente constituíram[-na] no dia 7 de Dezembro de 2001 e registaram[-na] no dia 10 seguinte [alínea G)].
2.1.8. E que instalaram em novo espaço situado mesmo ao lado do escritório da sociedade FF de seu nome [alínea H)].
2.1.9. O espaço onde estava instalado o escritório da FF passou a ser ocupado pela sociedade HH, Lda. [alínea J)].
2.1.10. A Autora não é TOC (técnica oficial de contas) [alínea K)].
2.1.11. A FF é uma sociedade prestadora de serviços de contabilidade, cuja relação com o cliente tem de ser assumida pessoalmente pelo técnico oficial de contas, que assume directamente a responsabilidade pela execução da contabilidade e pela sua regularidade, pelo que se está sempre perante uma clientela que, mais que da sociedade, é do técnico oficial de contas responsável [alínea L)].
2.1.12. Em reunião extraordinária da assembleia-geral, realizada no dia 29.11.2001, com a presença de todos os sócios, incluindo a Autora, através de representante, foram nomeados novos gerentes, em substituição dos ora Réus [alínea M)].
2.1.13. A Autora renunciou à gerência, o que fez de forma voluntária, por carta de 09.04.2002 [alínea N)].
2.1.14. O volume anual de receitas da sociedade FF em 2001 foi de € 103.071,60 [resposta ao artigo 1° da base instrutória].
2.1.15. Com esse valor a sociedade suportava todas as despesas e encargos sociais, incluindo impostos, no montante de € 79.611,07 [artigo 2°].
2.1.16. No valor referido em 15) encontram-se incluídos os valores respeitantes à remuneração da gerência e subsídio de alimentação nos montantes de € 748,20 e de € 111,93, respectivamente, que cada sócio recebia mensalmente [artigo 3°].
2.1.17. Além dos montantes mensais referidos em 16), cada gerente recebia subsídio de férias e de Natal em montante igual à remuneração [artigo 4°].
2.1.18. No valor referido em 15) encontram-se incluídos os normais encargos com as remunerações respeitantes à entidade patronal e aos trabalhadores, nomeadamente com contribuições, quotizações e seguros [artigo 5°].
2.1.19. Em 2001 os encargos com as remunerações ascenderam a € 7.957,75 [artigo 6°].
2.1.20. Em 2001 o lucro da sociedade foi de € 23.460, 53 [artigo 7°].
2.1.21. Em Outubro de 2001 o Réu DD ofereceu à Autora pela cessão da respectiva quota a quantia de Esc. 4.000.000$00 [artigo 13°].
2.1.22. Os Réus comunicaram a mais de 100 clientes da sociedade FF que iriam deixar de ser gerentes [artigo 14°].
2.1.23. Os Réus transferiram para a nova sociedade as pastas e documentos dos clientes que o solicitaram [artigo 17°].
2.1.24. Os Réus continuaram a prestar os mesmos serviços a esses clientes através da sociedade HH, Lda. [artigo 18°].
2.1.25. As ex-funcionárias da sociedade FF passaram a trabalhar para a sociedade HH, Lda. [artigo 19°].
2.1.26. Em Novembro de 2001 os Réus cancelaram a linha telefónica da FF, activaram outra e passaram a utilizar a primeira na sociedade que constituíram [artigo 22°].
2.1.27. Os Réus recusaram proceder ao obrigatório aumento do capital social da firma para o montante de mínimo legal de Esc. 1.002.410$00 e a sua subsequente redenominação em euros [artigo 25°].
2.1.28. Em 27 de Fevereiro de 2002, os gerentes nomeados após a renúncia dos Réus procederam à revogação dos contratos que a FF mantinha com as entidades fornecedoras de bens ou serviços, nomeadamente, energia, telecomunicações, informática, seguros, saúde, água e saneamento [artigo 25°-A].
2.1.29. A Autora ficou sozinha no escritório da sociedade FF a fim de, na medida do possível, honrar os compromissos com os clientes que não rescindiram os contratos [artigo 27°].
2.1.30. Fê-lo até ao final de Março de 2002 [artigo 28°].
2.1.31. Por referência aos resultados do exercício de 2001 e aos negócios em curso a quota da Autora valia € 42.144,75 [artigo 35°].
2.1.32. Os Réus eram técnicos oficiais de contas [artigo 38°].
2.1.33. Os Réus propuseram-se ceder as suas quotas pelo valor de 4.000 contos, não sendo esta proposta aceite [artigo 39°].
2.1.34. Os clientes da FF, muitos dos quais eram clientes do Réu DD antes da constituição daquela sociedade, após tomarem conhecimento que os Réus iriam continuar a sua actividade enquanto técnicos oficiais de contas integrados numa outra empresa em constituição, manifestaram interesse em continuar a relação profissional com os mesmos e, por sua iniciativa, rescindiram os contratos com aquela [artigo 40°].
2.1.35. Os telefones foram cancelados pelos gerentes nomeados em 29 de Novembro de 2001 e o automóvel foi vendido com o acordo da Autora [artigo 43°].

2.2. O Direito.

Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- O acórdão sob revista enferma da nulidade de falta do pronúncia a que alude o artigo 668º nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil?
- Do alcance do depoimento de parte dos gerentes da sociedade FF Lda.
- Breves considerações sobre a responsabilidade dos gerentes das sociedades maxime no que se reporta aos respectivos sócios.
- O caso vertente à luz das considerações expendidas.
O cabimento dos princípios do abuso do direito e enriquecimento sem causa.

2.2.1. O acórdão sob revista enferma da nulidade de falta do pronúncia a que alude o artigo 668º nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil?

A recorrente AA, na sua alegação, veio arguir a nulidade do Acórdão da Relação na medida em que se não terá pronunciado sobre as questões vertidas nas conclusões 32º a 37º inclusive, 47º a 50º também inclusive e parcialmente na 53º relativamente às quais expressamente em seu entender se terá abstido de conhecer e apreciar o respectivo mérito.
Decidindo diremos que a nulidade arguida é de cariz formal, sendo certo que só existe quando em absoluto o Juiz tenha deixado de se pronunciar sobre uma questão que deveria ter apreciado e não já quando essa pronúncia seja incorrecta ou insuficiente.
Assim sendo, bastará a análise do Acórdão em crise para concluir que houve pronúncia sobre as matérias supra aludidas, já que o Tribunal a quo considerou as conclusões 32º a 34º como contendo afirmações e ilações sem fundamento na factualidade provada e aquelas a que se reportam os artigos 35º, 36º e 37º como versando questões alheias a esta acção.
No que concerne às conclusões 47º a 50º estão devidamente consideradas a fls. 950 conferindo-se-lhes o tratamento que resulta da linha de raciocínio que advém da conclusão a que se chegou no que toca à prova dos factos.
Quanto à conclusão 53º constata-se que a mesma consta de normativos citados que são o corolário de factos mencionados pela recorrente e que já foram objecto de tratamento que a Relação entendeu dar-lhe, não cabendo, como já referimos, aquilatar em sede desta nulidade o mérito ou demérito da fundamentação mas unicamente da respectiva existência.
Improcede pois a pretensão da apelante vertida na rubrica deste item.

2.2.2. Do alcance do depoimento de parte dos gerentes da sociedade FF Lda.

Refere a recorrente que na prolação do recurso de apelação em causa, atento o valor probatório fixado no no l do artigo 358° do Código Civil, foi incorrectamente apreciada a prova resultante do depoimento de parte dos recorridos, com influência directa no sentido da decisão da acção; na decisão recorrida, os depoimentos de parte dos recorridos foram, e muito, levados em conta em tudo o que de algum modo contrariasse os factos articulados pela recorrente e relativamente aos quais - para daqueles obter a confissão - esta requereu o aludido depoimento de parte.
Sucede todavia, adianta a Autora, que o depoimento de parte só pode ser aproveitado pelo Tribunal em tudo que for desfavorável à parte que o presta;
Sendo que, ao não julgarem assim, as instâncias recorridas violaram o disposto nos artigos 352° e 361° do CC e 554° do CPC;
A recorrente não tem razão. O depoimento de parte é de certo uma via de conduzir à confissão judicial; todavia mostra-se ultrapassada a concepção restrita de depoimento pessoal vocacionado exclusivamente àquela obtenção. Na verdade, o depoimento tem um alcance muito mais vasto, podendo o tribunal ouvir qualquer uma das partes quando tal se revele necessário ao esclarecimento da verdade material. E se é certo que “a confissão” só pode versar sobre factos desfavoráveis à parte, não é menos verdade que o Juiz no depoimento em termos gerais não está espartilhado pela confissão, podendo colher elementos para a boa decisão da causa de acordo com o princípio da “livre apreciação da prova”. Aliás este entendimento deverá ter-se por reforçado atenta a possibilidade que hoje existe de reapreciação da prova pelo Tribunal da Relação e assim de controlar eventuais excessos de valoração, pelo que nada justifica que o depoimento de parte se restrinja a simples meio de viabilizar uma confissão, o que aliás está de acordo com as normas aplicáveis a esta matéria (1).
Mas admitido em sede geral o depoimento de parte, já não cabe a este STJ aquilatar do seu alcance do caso concreto, já que não nos cabe em princípio a reapreciação da matéria de facto – artigo 722º nº 3 do Código de Processo Civil.
Improcedem pois as conclusões da Autora sob este item.

2.2.3. Breves considerações sobre a responsabilidade dos gerentes das sociedades, maxime no que se reporta aos respectivos sócios.

A administração e representação da sociedade comercial compete a um ou mais gerentes que, no exercício das suas funções, “deverão praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do seu objecto social com respeito pelas deliberações dos sócios – artigo 254º do Código das Sociedades Comerciais – Diploma ao qual pertencerão os restantes normativos a citar sem menção de origem - devendo ainda no seu múnus orientar-se pelos princípios gerais a que alude o artigo 64º que essencialmente se traduzem em lealdade, empenhamento e competência, atendendo aos interesses dos sócios “com atenção aos interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.
A prática de actos em violação dos aludidos deveres implica eventual responsabilidade civil dos gerentes que ficam constituídos na obrigação de indemnizar a sociedade – artigo 72º; os credores sociais – artigo 78º; os sócios e terceiros – artigo 79º. No caso em análise interessa-nos de sobremaneira analisar a responsabilidade para com os só­cios, já que é apenas nessa qualidade que a Autora intenta a presente acção contra os RR.. Estatui normativo legal por último supracitado que “1 – Os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções.
2 – Aos direitos de indemnização previstos neste artigo é aplicável o disposto nos nsº 2 a 6 do artigo 72º, no artigo 73º e no nº 1 do artigo 74º”.
Infere-se desde logo do nº 1 desse normativo legal que só são passíveis de indemnização os actos dos gerentes que de uma forma directa causarem danos ao sócio e não já os que apenas indirectamente o causem, nomeadamente quando o acto, sendo prejudicial ao património da sociedade, se reflicta de forma indirecta sobre o do sócio (2); é o que sucede desde logo com uma administração ruinosa do gerente que poderá ser fonte de responsabilidade, mas nos termos do disposto no artigo 78º, aqui já podendo os sócios fazer valer o direito de indemnização de que a sociedade seja titular. Prevêem-se no artigo 79º os actos praticados pelos gerentes no exercício da sua função, já que, não o sendo, sempre será perspectivável a responsabilidade aquiliana, nos termos gerais do artigo 483º ss do Código Civil (3) .
Postulado do princípio da lealdade supra-apontado, surge no elenco dos deveres dos gerentes a “obrigação de não concorrência” estatuindo o artigo 254º nº 1 que “Os gerentes não podem, sem consentimento dos sócios, exercer, por conta própria ou alheia, actividade concorrente com a da sociedade”. E o nº 5 do citado normativo legal adianta que “a infracção do disposto no nº 1, além de constituir justa causa de destituição, obriga o gerente a indemnizar a sociedade pelos prejuízos que esta sofra”.
A par destes actos ilícitos outros há cuja licitude, sendo indiscutível, exige no entanto o cumprimento de alguns requisitos sem o que o gerente poderá incorrer em responsabilidade civil, mas para com a sociedade. É o que se passa com a renúncia à gerência a que se reporta o artigo 258º. Estatui que “1 – A renúncia de gerentes deve ser comunicada por escrito à sociedade e torna-se efectiva oito dias depois de recebida a comunicação.
2 – A renúncia sem justa causa obriga o renunciante a indemnizar a sociedade pelos prejuízos causados, salvo se esta for avisada com a antecedência conveniente”.
Tal significa pois que o gerente é livre de renunciar à gerência quer haja ou não justa causa para tanto; apenas neste último caso, não avisando a sociedade com antecedência razoável, poderá ter que indemnizá-la pelos prejuízos que esse acto lhe possa causar. Pretende-se conciliar assim a liberdade do administrador com o interesse da sociedade em não se ver de forma abrupta privada do gerente, o que é susceptível de lhe causar perturbações a nível de funcionamento, quer interno quer externo, nas relações com terceiros. É o que se passa com a execução de programas em curso no que concerne ao giro diário da sociedade e toda a estratégia a nível de clientela externa que o gerente está numa situação privilegiada para conhecer e dirigir, já que naturalmente gizou os planos que terá vindo a acompanhar. Numa palavra: o que pode gerar aqui a responsabilidade civil do gerente e como refere Raul Ventura, são os danos ligados ao carácter abrupto da renúncia quando injustificada (4). Mas esta responsabilidade em que o gerente poderá incorrer, nos termos sobreditos, processar-se-á perante a sociedade e não face aos respectivos sócios enquanto tais.
Abordadas em tese geral as questões fundamentais que se debatem no caso em análise é à luz dos princípios e normativos enumerados que iremos reapreciá-las concretamente.


2.2.3. O caso vertente à luz das considerações expendidas e factos provados.
O cabimento do princípio do “abuso do direito”.

Revertendo ao caso concreto vamos abordar nesta sede os pontos fulcrais da alegação de recurso.
Refere a Autora recorrente que o comportamento dos RR. teve como resultado o esvaziamento da sociedade FF Lda. através de simuladas renúncias à gerência, da constituição em simultâneo entre os RR. de outra sociedade comercial sob outra firma, a HH Lda. prestando os mesmos serviços para o que lançaram mão dos mesmos equipamentos.
Deste esvaziamento da FF Lda. teriam resultado para a recorrente prejuízos patrimoniais e não patrimoniais, nomeadamente:
- Impedindo-a de perceber pelo menos a remuneração da gerência e subsídio de alimentação nos montantes de € 748, 20 e de € 111,93 respectivamente, e, bem assim, os subsídios de férias e de Natal em montante igual à remuneração.
- Retirou-lhe o direito de quinhoar nos lucros da sociedade FF Lda.
- Destruiu-lhe a possibilidade de proceder à venda da quota que possuía e possui no capital social da mesma sociedade; e
- Privou-a dos direitos à estabilidade no emprego e à propriedade privada.
- Proporcionou aos RR. um enriquecimento notório ilegítimo e injustificado.
Curiosamente, refere a Autora, que isto resulta dos factos alegados e das alegações de recurso… só que não é com base nestes que se decide a sorte de uma acção mas antes com fundamento em factos provados; e estes não dão sustentáculo ao que a recorrente sustenta neste particular.
Por outro lado e na sequência das considerações que deixámos expendidas, a Autora não poderia reclamar indemnização pelos danos em análise, já que mesmo a terem ocorrido nunca poderiam perfilar-se como indemnizáveis dado que não seriam causados directamente à Autora, mas antes se apresentando como reflexo dos produzidos na sociedade FF Lda., não tendo assim acolhimento no disposto no artigo 79º que só considera indemnizáveis os danos causados de uma forma directa na pessoa dos sócios e não os que o atingem reflexamente tendo como permeio a sociedade, sendo certo que não é em nome desta que a Autora faz o seu pedido (5).
Não é contudo apenas por esta via que a Autora procura esteio jurídico para o seu pedido; refere que o comportamento dos RR. se traduziu no exercício de actividade concorrente com a FF Lda., em manifesto prejuízo para si. Esta actividade estaria vedada aos RR. face ao estatuído no artigo 254º nº 1 quando refere que “Os gerentes não podem, sem consentimento dos sócios, exercer, por conta própria ou alheia, actividade concorrente com a da sociedade”. E não há dúvida que o comportamento dos RR. face ao que vem provado seria susceptível de cair sob a alçada do citado preceito legal; é que na verdade provou-se que os RR. instalaram o estabelecimento da sociedade HH Lda. em espaço situado ao lado do escritório da FF Lda. e, também as ex-funcionárias desta empresa passaram a trabalhar para a nova sociedade. De igual modo em Novembro de 2001 os RR. cancelaram a linha telefónica da FF, activaram outra, tendo passado a utilizar a primeira na sociedade que constituíram.
Esta actuação pode à face do nº 5 do artigo 254º ser geradora da responsabilidade dos gerentes…(6) só que tal responsabilidade só poderá efectivar-se perante a sociedade, sendo certo que a Autora actuou em nome próprio e não em nome daquela. Contudo não se prevê no Código das Sociedades Comerciais a proibição de concorrência por parte dos sócios, esta vigente para “a sociedade civil” nos termos do disposto no artigo 990º do Código Civil; estamos perante dois tipos de sociedade de índole muito diversa sendo certo que na sociedade por quotas vocacionalmente de grande dimensão não se verificam os perigos que a concorrência pode assumir na sociedade civil. Daí desde logo que, ao contrário do que a Autora pretende sustentar, o artigo 990º supracitado não tenha função integradora de qualquer lacuna neste particular em matéria de sociedades do tipo que analisamos.
Pretende por último a Autora recorrente que os RR. ao renunciarem à gerência actuaram com “abuso do direito”. Este instituto encontra acolhimento no artigo 334º do Código Civil, o qual estatui que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. A isto diremos que não podendo a Autora, fazer valer os direitos a que se arroga, já que não o faz em nome da sociedade, certo é que só em nome desta poderia ajuizar do comportamento dos sócios “à face do abuso do direito”. É que muito embora reflexamente possa ser afectada pelos actos dos RR. gerentes a responsabilidade destes efectiva-se, e frisamos, perante a sociedade, mesmo à luz daquele instituto.
O mesmo se dirá do “enriquecimento sem causa” a que a Autora igualmente se pretende agarrar. Estatui a tal respeito o artigo 473º nº 1 do Código Civil que “1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”. E o artigo 474º do mesmo Diploma Legal consagra a subsidiariedade da restituição do enriquecimento nos seguintes moldes “Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”. Só que, admitindo-se que por esta via a Autora obtivesse ganho de causa, seria frustrar o intuito do legislador que veda ao sócio da sociedade que possa fazê-lo sem ser por intermédio da mesma; o instituto do “enriquecimento sem causa” visa obviar ao empobrecimento de alguém que de outra forma ficaria prejudicado, mas nunca facultar-lhe um modo de o fazer quando expressamente uma norma do sistema jurídico o veda; seria uma contradição nos próprios termos do ordenamento jurídico, dando com uma mão aquilo que tiraria com a outra.
Nesta conformidade também por esta via não poderá a Autora obter ganho de causa.
Pelo exposto a revista irá ser negada in toto.

Poderá assim concluir-se o seguinte:

1) A nulidade a que se reporta o artigo 668º nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil é de índole formal, sendo certo que só existe quando em absoluto o Juiz tenha deixado de se pronunciar sobre uma questão que deveria ter apreciado e não já quando essa pronúncia seja incorrecta ou insuficiente.
2) O depoimento de parte é de certo uma via de conduzir à confissão judicial; todavia mostra-se ultrapassada a concepção restrita de tal depoimento vocacionado exclusivamente àquela obtenção, já que o mesmo tem um campo de aplicação muito mais vasto. Assim sendo, o Juiz no depoimento de parte, em termos gerais, não está espartilhado pelo escopo da confissão, podendo ali colher ainda elementos para a boa decisão da causa de acordo com o princípio da “livre apreciação da prova”.
3) Os gerentes ou administradores de uma sociedade respondem para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções; todavia já não incorrem em responsabilidade perante aqueles, quando o acto, mau grado sendo prejudicial ao património da sociedade, se reflicta indirectamente sobre o do sócio.
4) O gerente é livre de renunciar à gerência quer haja ou não justa causa para tanto; apenas neste último caso, não avisando a sociedade com antecedência razoável, poderá ter que indemnizá-la pelos prejuízos que esse acto lhe possa causar. Contudo esta responsabilidade em que o gerente poderá incorrer, nos termos sobreditos, efectivar-se-á perante a sociedade e não face aos respectivos sócios enquanto tais.
5) Não se prevê no Código das Sociedades Comerciais a proibição de concorrência por parte dos sócios, esta vigente para a sociedade civil, nos termos do disposto no artigo 990º do Código Civil, o qual não tem função integradora de qualquer lacuna na regulamentação das sociedades do tipo que analisamos nesta sede.
6) Não podendo a A., enquanto pessoa singular, fazer valer os direitos a que se arroga, já que não o faz em nome da sociedade, certo é que só em nome desta poderia ajuizar do comportamento dos sócios “à face do abuso do direito”.
7) É que muito embora reflexamente possa ser afectada pelos actos dos RR. gerentes, a responsabilidade destes efectiva-se perante a sociedade mesmo à luz daquele instituto.
8) O mesmo se dirá no tocante à invocação do instituto do “enriquecimento sem causa”, que visa obviar ao empobrecimento de alguém, que de outro modo ficaria prejudicado, mas nunca facultar-lhe um modo de o fazer quando expressamente uma norma do sistema jurídico o veda; seria uma contradição nos próprios termos do ordenamento jurídico dando com uma mão aquilo que tiraria com a outra.

3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em negar a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 16 de Março de 2011

Távora Vítor (Relator)
Sérgio Poças
Granja da Fonseca
______________________
1)- Cfr. artigos 341º e 361º do Código civil e 515º, 552º nº 1 e 655º nº 1 do Código de Processo Civil; na Doutrina cfr. por todos Antunes Varela e Outros “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora 1984, 522 ss. Na Jurisprudência cfr. Acs. do S.T.J. de 21-Out-1993
(P. 083335) in JSTJ00020840; e de 09-Maio-2006 (P. 06A989) SJ2006050 90009896.
2)- Cfr. Menezes Cordeiro “Código das Sociedades Comerciais” Anotado, Almedina, Coimbra, 2009, pags. 279. Duarte Rodrigues “A Administração das Sociedades Por Quotas e Anónimas” Organização e Estatuto dos Administradores, Petrony Lisboa 1990, pags. 226 ss. Coutinho de Abreu “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades” Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, Cadernos nº 5, Almedina, Coimbra pags. 85.
Cfr. Na jurisprudência Ac. deste S.T.J. (P. 1152/02) in Col. de Jur., 2002, 2, 88; 25-Nov-1997 in Col. de Jur., 1997, 3, 140; 23-10-2001 in SJ200110 230028757; de 15-03-2001 in dgsi.pt.
3)- Frisando este aspecto Cfr. “Código das Sociedades Comerciais em Comentário” Obra colectiva coordenação de Coutinho de Abreu Volume I, Almedina, Coimbra, 2010, pags. 906.
4)- Cfr. A. citado “Comentário ao Código das Sociedades Comerciais” “Sociedades por Quotas” III, Almedina, Coimbra 1991, pags. 125.
5)- Cfr. ainda lapidarmente Pedro Pais de Vasconcelos “Responsabilidade Civil dos Gestores das Sociedades Comerciais” in “Direito das Sociedades” em Revista, 2009, Ano I, Volume I. pags. 29 s e António Menezes Cordeiro “Das Sociedades em Especial” II, Almedina, Coimbra 2006 pags. 422 s.
6)- E isto quer o gerente seja sócio quer seja estranho à sociedade como aliás bem refere Raul Ventura in ob. e loc. cit., pags. 55 ss.