1. O registo da penhora não concorre, absoluta e directamente, com o registo da aquisição do imóvel penhorado ou, dito de outro modo, em relação à execução as aquisições que envolvam o prédio penhorado são “res inter alios” (coisa entre terceiros).
2. A penhora de um bem não importa a indisponibilidade jurídica dele por parte do executado; o que acontece é que, se o executado o fizer, essa alienação não produz efeitos em relação ao exequente, que continua a gozar da garantia resultante da penhora anteriormente materializada.
3. O comprador na venda voluntária e o comprador na venda executiva não são terceiros para efeitos de registo; é que a aquisição advinda da execução ao seu titular é atribuída ao comprador diretamente da lei e não por acto singular do executado, isto é, não se verifica uma disputa de direitos adquiridos de um mesmo autor comum.
A fundamentar o seu pedido alegam os autores:
São donos de um prédio urbano, que adquiriram através de venda por negociação particular, em processo de execução fiscal, e fizeram registar a seu favor.
Acontece que os RR. residem no prédio e recusam-se a entregá-lo aos AA., no mesmo prédio tendo efectuado obras vultuosas, à revelia dos mesmos AA.
O filho dos RR., EE, adquiriu o prédio em data posterior à do registo da penhora a favor da Fazenda Pública; sendo a venda efectuada pelos RR. ao filho, em data posterior à do registo da penhora, a mesma é ineficaz relativamente aos AA., violando essa transmissão o disposto no art.º 819.º C.Civil.
Contestaram os réus invocando em seu favor:
- O prédio tem como dono EE , que logrou registar definitivamente o seu direito em 8/2/07, ou seja, mesmo antes da a invocada compra por parte dos AA., em 15/10/07.
- As obras referenciadas têm sido executadas pelo legítimo dono do prédio, única pessoa que nele habita.
A final foi proferida sentença em que foram declarados os Autores como titulares do direito de propriedade do prédio urbano destinado à habitação, composto de casa com dois pavimentos, anexos e garagem, sito no lugar de ........, ........, Vª Nª de Gaia, inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o art.º n.º 4298 e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de V.ª N.ª de Gaia sob o n.º 0000 e condenados os RR. a reconhecer tal titularidade.
Os RR. foram absolvidos dos demais pedidos, fundamentalmente pelo facto de os AA. não terem logrado demonstrar a detenção, pelos RR., do imóvel em questão.
Não se conformando com esta decisão dela apelaram os réus.
A Relação do Porto não acolheu, porém, a sua pretensão e confirmou a sentença recorrida.
Novamente inconformados e apesar da verificação da dupla conforme, recorrem para este Supremo Tribunal os réus CC e mulher DD.
Esta pretendida revista excepcional foi admitida por Acórdão datado de 13.10.2011 e proferido pelo Colectivo deste Supremo Tribunal, constituído nos termos do estatuído no n.º 3 do art.º 721-A do C.P.Civil.
Os recorrentes CC e mulher DD apresentaram as seguintes conclusões:
A) A Sentença, aqui objecto de Recurso, julgou a acção parcialmente procedente e em consequência declarou os A.A. como titulares de direito de propriedade, incorrendo, s. m. o. na nulidade constante do artigo 668. ° n.° l, al. e), porquanto os A.A. não peticionaram que se declarasse a titularidade do direito de propriedade, mas apenas que os R.R. reconhecessem os A.A. como donos e legítimos proprietários, factos que, do ponto de vista de direito material e processual não podem deixar de ser apreciados, na esteira, por todos, do Acórdão do STJ de 06 de Fevereiro de 1992. in BMJ. 414.°, 413 ;
B) A Sentença recorrida considerou que "não lograram os A.A. demonstrar a detenção, por parte dos R.R., do imóvel em questão, nem a imputação da autoria das obras efectuadas aos mesmos", e assim, tendo absolvido os R.R., aqui Recorrentes, dos restantes pedidos, não poderia, sob pena de contradição entre os fundamentos e a decisão, condenar no reconhecimento da titularidade do direito de propriedade pelos A.A., porquanto o fundamento para tal pedido consistiu na alegação de que os R. R. invadiram e ocuparam abusivamente o prédio, bem como iniciaram obras no id. prédio, factos que não resultaram de forma nenhuma provados, determinando a nulidade, constante do artigo 668.° n.° l, al. c), do C.P.C., na esteira, por todos, do Acórdão do STJ. de 13 de Fevereiro de 1997. BMJ. 464. °. 525.
C) O TAF do Porto, considerou procedente a oposição apresentada pela aqui R. Recorrente, no âmbito do Processo de Execução Fiscal referido na douta sentença, tendo-se ordenado a consequente extinção da execução, como resulta da confrontação de fls..
D) Merece dissidência dos Recorrentes a interpretação dada pelo Exmo. Sr. Juiz "a quo", no que se refere à inoponibilidade da aquisição efectuada por parte do filho dos R.R., registada em 8 de Fevereiro de 2007, nos termos do artigo 829.º do C.C. e 6.º do C.R.P., porquanto, dada a extinção da execução que originou a penhora provisória, de 10 de Novembro de 2006, constante da Certidão de Registo Predial de fls., o referente registo provisório, obrigatoriamente caducaria, cfr. por todos, Ac. RP, de 04 de Maio de 1999, Relator: Afonso Correia, Processo: 9920587, in DGSI;
E) Em 06 de Novembro de 2007, data desde que se encontra registada a favor dos A.A., Recorridos a aquisição por venda judicial, não se encontrava registada qualquer renovação do registo provisório, pelo que a aquisição definitiva a favor do adquirente EE, filho dos Recorrentes, deverá retroagir os seus efeitos à data da apresentação, em 02 de Maio de 2006, do registo de aquisição provisória por natureza, cfr. n.° 1 e n.º 2, do artigo 6.° do C.R.P..
F) Sem o que, se mostrará violado o disposto nos artigos 92.º, n.º 2. al. b) e n.º 6, art.° 6.° e art.º 7.º, todos do Código do Registo Predial, bem como dos artigos 1316. ° e 819. ° do Código Civil, sendo lapidar, por todos, o que verte o Ac. RP de 25-06-2001, in www.dgsi.pt.
“I- O registo de aquisição, provisório por natureza, lavrado com base em contrato-promessa de compra e venda sem eficácia real, é aplicável a terceiros a partir da data em que foi efectuado. II - Enquanto tais efeitos se não extinguirem por caducidade ou cancelamento, o registo a favor de terceiro adquirente é com aquele incompatível (o que constitui fundamento de dúvidas a opor à sua feitura)."
G) No mesmo Acórdão "A Recorrente, em termos registais (artigos 819. ° e 622.º, n.º do C.C.), é titular inscrita do direito de propriedade incidente sobre a metade indivisa arrestada, desde 13/02/98, sendo, pois, a alienação que esteve na base da efectivação do respectivo registo eficaz perante a A., (em 22/04/98), do arresto, que só veio a ser decretado em 14/05/98, e objecto de registo provisório em 28/05/98". "Os Recorridos omitiram formulação do pedido de cancelamento do correspondente registo, que teria de deduzir, ao abrigo do disposto no artigo 8.º, n.º l do C.R.P., tudo a consequência a imprudência, nessa parte, (com extensão à correspondente declaração judicial efectuada pela f., nos termos do disposto no artigo 119. °, do C.R.P.), da pretensão da A. ", na esteira, por todos do Ac. RC de 14-12-2004 (C. XXIX, V-35);
H) O D.L n°. 533/99, de 11-12 veio alterar a redação da al. b), do n. ° 2, do artigo 92.º determinando que sejam efectuadas como provisórias por natureza, não só as inscrições dependentes de qualquer registo provisório, como as que com ele sejam incompatíveis (nota: a nova redacção aditou a expressão sublinhada);
I) Sobre o registo provisório de aquisição não prevalece o arresto, registado em data posterior à daquele registo (artigos 6. °, n.º 3, 47.º e 92.º, n. ° l, al. g)., e assim aquele registo de aquisição ao ser convertido em definitivo, tem a respectiva prioridade reportada à data da sua inscrição provisória (artigo 6. °, n.º 3 do C.R.P.) ", tal qual resulta, por todos, do Ac. RC de 02-03-2010, in www.dgsi.pt.
Termina pedindo que seja integralmente revogado o Acórdão Recorrido.
Os recorridos não contra-alegaram.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
As instâncias consideraram provados os factos seguintes:
- Encontra-se registada em nome dos AA., desde 6/11/2007, a aquisição, por venda judicial, do prédio urbano destinado a habitação, composto de casa com dois pavimentos, anexos e garagem, sito no lugar de ........, ........, Vª Nª de Gaia, inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o artº nº 4298 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vº Nª de Gaia sob o nº 0000(A).
- Tal venda foi efectuada por escritura pública celebrada em 15/10/07, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 0000000000000, que correu termos pelo 3.º Serviço de Finanças de V.ª N.ª de Gaia e no qual os RR. eram Executados, tendo o referido imóvel sido objecto prévio de penhora registada em 10/11/06 (B).
- Encontra-se registada em nome de EE, desde 8/2/07, a aquisição por compra do mesmo imóvel (C).
- Na sequência da realização desta escritura, os AA. deslocaram-se ao prédio em causa e interpelaram uma pessoa do sexo masculino não identificada para o entregar, o que este recusou efectuar (1º).
- Sem o consentimento dos AA., foram efectuadas as seguintes obras, no identificado prédio: retirada de portas e janelas; retirada dos caixilhos das portas e das janelas; retirada das portadas; reformulação da instalação eléctrica; levantamento do soalho; retirada das louças de casa de banho; reboco das paredes; preparação das paredes interiores e exteriores para receber nova pintura; instalação de tectos falsos; assentamento de tijolo e reboco do muro exterior (2º).
- Trabalhos esses que provocaram danos no imóvel, de extensão ainda desconhecida para os AA., impedidos que estão de aceder ao seu interior (3º).
São essencialmente estas as questões postas no recurso:
1. Saber se o acórdão recorrido enferma das nulidades previstas no artigo 668.º n.º l, al. e) e c), do C.P.Civil;
2. Se, nos termos do estatuído no artigo 829.º do C.Civil[1] e 6.º do C.R. Predial[2], à aquisição (por venda judicial) efectuada pelos autores do prédio reivindicado e registada em 6.11.2007, existe inoponibilidade da aquisição efectuada por parte do filho dos R.R., registada anteriormente (em 08.02.2007).
I. As causas de nulidade da sentença - ou acórdão - estão taxativamente enumeradas no artigo 668.º, do C.P.Civil.
É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento - n.º1, al. d), deste preceito legal.
Particularmente relacionado com este está o artigo 661.º, n.º 1, al. e), do mesmo diploma legal, que estabelece que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.
O pedido é o ponto de partida de toda a tramitação processual, posta ao serviço das pessoas para a resolução do conflito de interesses que trazem a juízo.
É porém certo que, em nome da segurança das partes, o Tribunal terá de atender aos limites que a própria parte estabelece à causa, ao fixar os contornos do seu próprio pedido (Nuno Sebastião; A Condenação Além do Pedido; pág. 10), ferindo de nulidade a sentença que não consagra este comando legal - art.º 668.º, n.1, al. e), do CPC.
Porém, devemos anotar que o que se proíbe neste normativo legal é que a sentença determine efeitos jurídicos que as partes não abordaram no desenvolvimento da lide, nem abordar questões que o autor ou réu omitiram nos articulados.
É também nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão - artigo 668.°, n.° l, alínea c), do C.P.Civil.
Opera-se este vício na sentença sempre que nela se manifeste falta de coerência na abordagem dos motivos e na resolução final da acção, dessa condução analítica se podendo inferir que a argumentação nela posta conduz a resultado diverso do expendido - esta nulidade verifica-se quando os fundamentos invocados pelo Julgador deveriam conduzir logicamente a resultado oposto ao expresso na sentença (Prof. Alberto dos Reis, Cód. Civil Anot., V, pág. 141; A.Varela, Manual, pág. 671 e Ac. do S.T.J. de 21.10.1988; B.M.J.; 380.º. pág. 444).
Argumentam os recorrentes no sentido de que, não tendo sido peticionado na acção que se declarasse a titularidade do direito de propriedade, mas tão só que os réus reconhecessem os autores como donos e legítimos proprietários, o acórdão da Relação excedeu-se no conhecimento do pedido formulado.
Não poderemos dar razão aos recorrentes.
Acompanhamos a Relação na decisão que sobre esta temática produziu ao pronunciar que, citando o Acórdão deste STJ datado de 26.4.95 (C.J.;I/155 e 160), os limites do petitório não dependem de sacralização de palavras e que aquilo que importa para o decisor é o sentido do pedido, mais que o seu literalismo.
Deste modo, tendo equiparado significado para a determinação do objectivo da presente acção as expressões “titulares do direito de propriedade” e “legítimos proprietários”, não se torna ilegítimo que se comute uma locução por outra no dispositivo da decisão, nem esta atitude faz perigar o resultado posto no cuidado que se tornou evidente em ordem à boa decisão da causa.
Tendo idêntica interpretação, para o comum dos juristas, ambos os conceitos normativos atrás enunciados, também não vemos indispensabilidade de termos de modificar os seus termos assim manifestados.
Prosseguindo a nossa análise, também asseveramos que o Acórdão recorrido, discorre, lógica e racionalmente, sobre a temática que as conclusões do recurso suscitam.
Não enferma, assim, o Acórdão da Relação das nulidades que os recorrentes lhe apontam.
II. No processo comum a nossa lei consagra a teoria da substanciação, (contraposto ao da individualização), segundo o qual não basta a indicação genérica do direito que se pretende fazer valer, mas antes é necessária a indicação especificada da factualidade constitutiva do direito.[3]
Como a acção de reivindicação é condenatória, para que o autor consiga plenamente o seu fim, é indispensável que ao lado do facto constitutivo do seu direito alegue o facto ilícito praticado pelo réu, isto é, um facto ofensivo do direito que o A. se arroga.
Na acção reinvindicatória não basta apontar o acto ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade. Tem de alegar que o seu direito foi violado, isto é, que o réu se apoderou indevidamente do prédio, e está na posse indevida dele.[4]
Bastará que o demandante descreva com cuidado - e prove - os factos que fundamentam o seu direito e isso chegará para que o Tribunal lhe conceda esse direito a que se arroga (como o pretor romano: "da mihi factum dabo tibi jus").
A presente acção é de reivindicação.
Através dela os autores pretendem, essencialmente, que os réus CC e mulher DD lhes restituam identificado prédio urbano que estes ocupam e se recusam a entregar, invocando em seu favor que são os donos de tal prédio e formulando também pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre ele, nos termos do disposto no art.º 1311.º do C.Civil.
Adiantam ainda que, tendo adquirido e prédio através de venda por negociação particular em processo de execução fiscal e o fazendo-o registar a seu favor, o filho dos réus (EE) comprou o prédio em data posterior à do registo da penhora a favor da Fazenda Pública e, sendo a venda efectuada pelos réus ao filho em data posterior à do registo da penhora, a mesma é ineficaz relativamente aos autores, por força do disposto no art.º 819.º C.Civil.
III. Como atrás dizemos, nas acções de reivindicação incumbe ao autor demonstrar que tem o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e que esse direito se encontra na posse ou detenção de outrem; e é tudo quanto basta para que a entrega judicial da coisa se faça ao reivindicante.
Só assim não acontecerá se o detentor da coisa demonstrar possuir direito real ou obrigacional que faça obstar ao exercício pleno do direito de propriedade, direito que consubstancia uma excepção peremptória (art.º 493.º, n.º 3, do C.P.Civil) e que o réu pode invocar no processo em seu proveito.
Os autores na presente acção pedem o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio urbano destinado a habitação, composto de casa com dois pavimentos, anexos e garagem, sito no lugar de ........, ........, Vª Nª de Gaia, inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o artº nº 4298 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vª Nª de Gaia sob o n.º 0000 e a condenação dos réus na restituição e entrega desse mesmo prédio que ocupam.
Os réus invocam em seu favor que o prédio que os autores identificam como seu, não é propriedade deles mas sim propriedade EE (seu filho), o qual se encontra registado definitivamente a seu favor desde 8/2/07, ou seja, mesmo antes da invocada compra por parte dos autores em 15/10/07.
IV. No que especificamente respeita às acções reais, a causa de pedir corresponde com o facto jurídico de que deriva o direito real, em conformidade com o disposto no n.º 4 do artº 498.º do Cód. Proc. Civil, que se entende ter acolhido, na matéria, a chamada “teoria da substanciação”.
Com base no supra mencionado normativo, a doutrina e jurisprudência nacionais têm entendido que as acções reais - maxime a acção de reivindicação - não se poderão fundar, exclusivamente, na invocação de um título de aquisição derivada, antes se exigindo a alegação da existência de uma forma de aquisição originária, como a usucapião, a ocupação ou a acessão.
Uma vez, porém, que a prova da aquisição originária é, muitas vezes, particularmente onerosa, senão mesmo até impossível - a designada prova diabólica na frase de Acúrcio - a lei estabeleceu a presunção legal do direito de propriedade fundada no registo predial - o art.º 7.º do Cód. Reg. Predial consagra a presunção de que o direito existe na esfera do titular inscrito.
Curiosamente, a presente acção apresenta-se com uma singular especificidade, qual seja a de que o imóvel reivindicado se encontra registado em favor dos autores desde 6/11/2007 (com fundamento na sua a aquisição por venda judicial) e em nome de EE (filho dos réus) desde 8/2/07 (a aquisição por compra do mesmo imóvel).
Então e por via disso, surge-nos esta pertinaz pergunta: afinal quem são os verdadeiros donos do prédio ao qual ambas as partes, exclusivamente, se arrogam ter o respectivo direito?
A resposta a esta interrogação ter-se-á de ir buscar ao que a lei civil disciplina relativamente ao conceito de "terceiros" para os efeitos do disposto no art.º 5.º do C.R.Predial.
V. Tem vindo a ser objecto de divergência jurisprudencial a questão de saber o que deve entender-se por "terceiros" para os efeitos do disposto no art.º 5.º do C.R.Predial, havendo a destacar duas correntes sobre esta problemática:
Um conceito amplo - terceiro é aquele que tem a seu favor um direito que não pode ser afectado pela produção dos efeitos de um acto que não no registo e que com ele seja incompatível;
Um conceito restrito - é terceiro apenas o adquirente de direito incompatível sobre a mesma coisa de um mesmo autor comum.
A eficácia da transmissão da titularidade do direito de propriedade verificada em consequência de um acto dele justificativo tem de ser aferida, não só no plano interno (entre alienante e tomador), mas também num plano exterior (em relação a terceiros), neste último caso havendo de se tomar em consideração os princípios que dimanam do registo predial ("prior in tempore, potior in jus").
Porque a aquisição do direito de propriedade sobre imóveis e a penhora estão sujeitos a registo - art.º 2.º, n.º 1, al. a) e m) do C. R. Predial - e os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo (art.º 5.º do C. R. Predial), segue-se que a eficácia do acto translativo do direito de propriedade atinente a bens imóveis, para atingir o plano externo (em relação a terceiros), só a partir do registo se concretizará pois que, enquanto tal não acontecer, a sua eficácia apenas produz os seus efeitos no plano interno (entre alienante e tomador).
Tomando posição pelo conceito amplo de terceiros "por só este ter em conta os fins do registo e a eficácia dos actos que devam ser registados, sendo tão digno de tutela aquele que adquire um direito com a intervenção do titular inscrito (compra e venda, troca, doação, etc.) como aquele a quem a lei permite obter um registo sobre o mesmo prédio sem essa intervenção (credor que regista uma penhora, hipoteca judicial, etc.)", assim decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão n.º 15/97, de 20.05.1997, publicado no D.R. n.º 152, de 04.07.1997, I Série - A, com vista a uniformizar jurisprudência:
"Terceiros, para os efeitos do registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico não registado ou registado posteriormente".
Foi, porém, de pouca dura a tutela dada pelo Supremo Tribunal de Justiça a esta corrente jurisprudencial que, por Acórdão n.º 03/99, de 10.07.199, destinado a uniformizar jurisprudência (in D.R. de 10.07.1999, I Série -A, n.º 259), revendo a doutrina do mencionado aresto de 20 de Maio de 1997, veio a consagrar o conceito restrito de terceiros para efeitos de registo predial: "terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”.
Afastada a ideia de que o Supremo Tribunal de Justiça pode criar normas jurídicas, válidas "erga omnes", como acontecia com os Assentos, o Acórdão do S.T.J. proferido com vista a uniformizar jurisprudência tem o sentido de, ligando todos os Tribunais - incluindo também o S.T.J.- aconselhar que seja acatada a orientação nele preconizada, deste modo se protegendo o cidadão contra todos os prejuízos que sempre lhe advirão da incerteza do direito.
Tendo como boa a doutrina expendida naquele Acórdão uniformizar jurisprudência (n.º 03/99, de 10.07.199; in D.R. de 10.07.1999, I Série -A, n.º 259)[5], agora normativamente assumida pelo legislador que, pelo Dec. Lei n.º533/99, de 11/12, veio interpretar autenticamente e de forma restritiva a redação do estatuído no n.º 4 do art.º 5.º do C.R.Predial - terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, exigindo-se a sua observância por imposição do disposto no n.º 1 do art.º 13.º do C.Civil, o que temos de averiguar é se os nossos adquirentes do mesmo prédio são terceiros para efeito de registo.
VI. O legislador caracterizou a penhora (artigo 822.º do C.P.Civil) como um direito real de garantia, tal qual a consignação de rendimentos (art.º 656.º C.C. e 879.º C.P.C.), o penhor (art.º 666.º a 678.º do C.C.) e a hipoteca (art.º 686 a 733.º C.C.), deste modo visando reforçar a obtenção do objectivo próprio de um direito de crédito e que se consegue, essencialmente, por duas formas: - pelo aspecto compulsório que envolve, incitando o devedor ao cumprimento e pela especial tutela que confere à posição do credor quando, havendo incumprimento, haja que recorrer aos esquemas da coacção jurídica, conferindo-lhe uma posição de privilégio, em caso de incumprimento (artigos 758.º e 759.º, do C.C.).[6]
A complexidade e a delicadeza que acompanham a constituição, a transferência e a extinção dos direitos reais, tornam necessárias medidas destinadas a dar-lhe publicidade, para que possam ser conhecidos ou cognoscíveis por todos aqueles que nisso estejam interessados.
Em termos gerais podemos distinguir a publicidade espontânea - a que resulta do mero funcionamento social do direito real, nos termos da qual os membros da sociedade tomam naturalmente conhecimento da situação jurídica em causa - da publicidade racionalizada, também designada de publicidade registal - a que deriva da intenção deliberada de dar a conhecer ao público determinada situação jurídica, sendo, normalmente, instituída ou imposta pelo Estado [7] - o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (art.º 1.º do C.R.P.).
Ambos estes modos de divulgação têm assentimento no enquadramento geral da publicidade dos direitos reais, anotando-se que é o direito registal que, por ser emanação de uma tarefa estatal que tem por objectivo fixar os contornos dos direitos incidentes sobre bens imóveis, melhor trata desta problemática jurídico-positiva.
A penhora incidente sobre bens imóveis só produz efeitos em relação a terceiros desde a data do registo (art.º 838.º, n.º 4, do C.P.C.); e enquanto não for junto ao processo a certidão comprovativa do seu registo definitivo (e em certos casos do seu registo provisório) a execução não pode ser movimentada (art.º 838.º, n.º 5 e 6 e art.º 864.º, n.º 1, do C.P.C.) - o registo é obrigatório, constituindo ónus do exequente; com efeito, não só é condição da eficácia do acto da penhora perante terceiros (art.º 838 - 4), nos termos gerais, como é também condição do prosseguimento do próprio processo de execução.[8]
Como se vê, a penhora referente a bens imóveis só se ultima quando o registo dela se concretiza; e, sendo assim, o exigido registo da penhora, constituindo um pressuposto legal para a sua efectiva existência, é constitutivo deste acto processual. E tanto assim é que, estando em causa penhora sujeita a registo, a data do respectivo registo vai ser determinante para a garantia dos créditos que ela satisfaz, graduando-se em primeiro lugar o crédito garantido por penhora registada anteriormente ("prior tempore, potior jure") - art.º 871.º, n.º 1, parte final, do C.P.C..
Neste contexto é que o legislador estatui que a penhora de bens imóveis se efectua por termo no processo (art.º 838°, n.º 3, do C.P.Civil) e a de bens móveis se concretiza através de auto (art.º 849°, do C.P.Civil).
As considerações que acabamos de expor servem para tomarmos nota de que são coisas diferentes estes adiante designados regimes jurídicos que o presente recurso envolve e que até agora vêm sendo tratados como se da mesma natureza se configurassem: - o registo da penhora incidente sobre o imóvel no processo de execução (a favor e para garantia do pagamento do crédito da Fazenda Pública) e o registo da posterior aquisição por compra deste mesmo prédio (feita no seio do processo executivo ou operada fora da execução).
O registo da penhora sobre o imóvel penhorado tem como essencial e único efeito jurídico que o credor/exequente, com este acto beneficiado, fique protegido em relação aos restantes credores, de modo que o produto da sua venda possa satisfazer o seu crédito com preferência em relação aos restantes e a contar do registo dessa mesma penhora.
Este privilégio creditório assim concedido ao exequente (Fazenda Pública) que fez penhorar e registar a penhora sobre o imóvel projectado para posteriormente ser vendido na execução, não tem outro significado e alcance do que o de atribuir ao exequente - se entretanto não for paga a quantia exequente e custas - a prerrogativa de poder exigir que o produto da sua efectiva alienação se destine ao pagamento do seu crédito reconhecido na execução.
Ora, se é assim, estando sempre assegurado este seu direito de garantia, mesmo após a sua venda fora da execução (…são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados - art.º 819.º do C. Civil), de mais nenhuma outra regalia se conta poder usufruir o exequente em relação ao prédio penhorado, sendo irrelevante quanto a ele tudo o que na execução exorbitar deste quadro jurídico-factual.
O registo da penhora não concorre, absoluta e directamente, com o registo da aquisição do imóvel penhorado ou, dito de outro modo, em relação à execução as aquisições que envolvam o prédio penhorado são “res inter alios” (coisa entre terceiros).
Queremos com isto dizer que o conteúdo do disposto no art.º 819.º do C. Civil - sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados - sistematicamente inserido na secção da realização coactiva da prestação, há-de ser interpretado no sentido de que a penhora de um bem não importa a indisponibilidade jurídica dele por parte do executado; o que acontece é que, se o executado o fizer, essa alienação não produz efeitos em relação ao exequente, que continua a gozar da garantia resultante da penhora anteriormente materializada - a penhora não retira ao executado a propriedade dos bens, a qual só cessará pelos futuros actos executivos, como decorre do próprio princípio da livre disposição jurídica do direito, apenas sob a ineficácia da disposição para com a execução; se quanto à disposição material dos bens o princípio é o de indisponibilidade absoluta, quanto à disposição jurídica rege o princípio oposto da livre disponibilidade do direito, apenas com a limitação da ineficácia dos respectivos actos para com a execução… (Acórdão do STJ de 2.11.2004; C.J/STJ, 2004, 3.º, pág. 100).
VII. Prosseguindo na análise da problemática suscitada no recurso e seguindo a difundida reflexão posta nos Acórdãos deste Supremo Tribunal datados de 20-10-2005 e 09-01-2007 (disponíveis em www.dgsi.pt) dizemos igualmente que “o comprador na venda voluntária e o comprador na venda executiva não são terceiros para efeitos de registo; o comprador na venda voluntária não levada a registo pode opor ao comprador na venda executiva registada o direito de propriedade por si anteriormente adquirido”.
É que a aquisição advinda da execução ao seu titular é atribuída ao comprador diretamente da lei e não por acto singular do executado, isto é, não se verifica uma disputa de direitos adquiridos de um mesmo autor comum.
A venda concretizada na execução provém de um distinto poder que ao Juiz a ordem jurídica lhe reconhece no contexto do poder judicial, ou seja, por determinação da lei e indubitavelmente fora da vontade do executado, que em nada contribui com a sua vontade para a venda (forçada) do bem; a venda materializada na execução provém de um acto jurisdicional realizado pelo Juiz e onde não se encontra razão para a considerar como conseguida em representação do executado.
Contrária a esta tese é a conceção defendida por alguns, entre eles Antunes Varela e Henrique Mesquita[9], no sentido de que na venda executiva o executado é substituído no acto da venda pelo Juiz enquanto órgão do Estado, gerando-se uma aquisição derivada em que o executado é o transmitente.
A aquisição do prédio urbano destinado a habitação, composto de casa com dois pavimentos, anexos e garagem, sito no lugar de ........, ........, Vª Nª de Gaia, inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o artº nº 4298 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vº Nª de Gaia sob o nº 0000 que os autores adquiriram por venda judicial, registaram na C.R.Predial em seu nome em 6/11/2007 e ora reivindicam, foi igualmente adquirido por compra por EE ainda antes do registo da penhora que precedeu a venda dele aos autores.
Anotemos que, tomando a descrição do acórdão recorrido, podemos depreender da certidão de registo predial junta aos autos estas relevantes circunstâncias jurídico-factuais, posto que os registos provisórios por natureza (de aquisição provisória e de penhora) não tinham caducado ou sido cancelados – artº 92, n.º3,5 e 6, do C.R.Predial:
- existe um registo de aquisição provisória a favor de EE, com data de 2/5/2006;
- existe um registo de penhora, em execução movida pela Fazenda Pública contra os RR. na presente acção, datado de 10/11/2006;
- existe um registo de aquisição, a favor de EE, datado de 8/2/2007;
- e, finalmente, em decorrência da penhora e do processo de execução fiscal supra referidos, existe registo da aquisição em venda judicial, a favor dos aqui Autores, datado de 6/11/2007.
Deste relevante apontamento podemos inferir que, quando o prédio foi efectivamente penhorado (em 10/11/2006) e posteriormente foi adquirido na execução pelos autores AA (15/10/07), já ele havia sido vendido a favor de EE, ou seja, antes de 2/5/2006 (data em que se operou o registo da sua aquisição provisória), o qual registou a seu favor em 8/2/2007.
Desta forma, tendo na devida conta que a compra do prédio realizada pelos autores através da escritura pública outorgada em 15/10/07 constitui uma aquisição a non dominus, isto é, porque objetivou a venda de um bem imóvel que já não pertencia ao executado, este acto configura uma alienação de bem alheio e, por isso, ineficaz em relação ao proprietário, havemos de concluir que os autores não comprovam que são os legítimos proprietários do imóvel que reivindicam e, por isso, terá de improceder o seu pedido, ex vi do disposto nos artigos 892.º do C. Civil (nemo dat quod non habet).
Anotemos que igualmente chegamos à mesma conclusão se considerarmos que em ambas as aquisições do prédio é o executado o transmitente do bem.
Fazendo funcionar o n.º 4 do art.º 5.º do C.R.Predial, neste enquadramento legal seria o EE a beneficiar da concretização da venda, posto que registou a sua aquisição em 8/2/2007, isto é, antes do autor (em 6/11/2007).
Concluindo:
1. Têm natureza jurídica diferente o registo da penhora incidente sobre o imóvel no processo de execução e o registo da sua posterior aquisição por compra deste mesmo prédio operado fora da execução.
2. O conteúdo do disposto no art.º 819.º do C. Civil, sistematicamente inserido na secção da realização coactiva da prestação, há-de ser interpretado no sentido de que a penhora de um bem não importa a indisponibilidade jurídica dele por parte do executado; o que acontece é que, se o executado o fizer, essa alienação não produz efeitos em relação ao exequente, que continua a gozar da garantia resultante da penhora anteriormente materializada.
3. O comprador na venda voluntária e o comprador na venda executiva não são terceiros para efeitos de registo; é que a aquisição advinda da execução ao seu titular é atribuída ao comprador diretamente da lei e não por acto singular do executado, isto é, não se verifica uma disputa de direitos adquiridos de um mesmo autor comum.
4. Tendo na devida conta que a compra do prédio realizada pelos autores através da escritura pública outorgada em 15/10/07 constitui uma aquisição a non dominus (havia sido vendida antes ao EE), havemos de concluir que os autores não comprovam que são os legítimos proprietários do imóvel que reivindicam e, por isso, terá de improceder o seu pedido, ex vi do disposto nos artigos 892.º do C. Civil (nemo dat quod non habet).
Pelo exposto, concede-se a revista e, em consequência, revogando-se o Acórdão recorrido, absolvem-se os réus do pedido.
Custas pelos recorridos.
Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Janeiro de 2012.
Ana Paula Boularot
[1] Artigo 819º (disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados)
- Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados (redacção dada pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março).
[2] Artigo 6º (prioridade do registo)
1 – O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes.
2 – (revogado)
3 – O registo convertido em definitivo conserva a prioridade que tinha como provisório.
4 – Em caso de recusa, o registo feito na sequência de recurso julgado procedente conserva a prioridade correspondente à apresentação do acto recusado (redacção pelo Decreto-Lei nº 122/2009, de 21 de Maio)
[3] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, 1981, I Vol., pág. 207/208; Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, II; pág. 847.
[4] Manuel Salvador in "Suplemento aos Elementos da Reivindicação, Livraria Petrony, 1962, pág. 25" e Prof. Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, III Vol., pág. 122 (a "posse abusiva ou indevida" enquanto facto ilícito é "condição" para a condenação pedida).
[5] Lê-se neste Acórdão: Terceiros, como referem Antunes Varela e Henrique Mesquita, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 127.o, p. 20, ‘são não só aqueles que adquiram do mesmo alienante direitos incompatíveis mas também aqueles cujos direitos, adquiridos ao abrigo da lei, tenham esse alienante como sujeito passivo, ainda que ele não haja intervindo nos actos jurídicos (penhora, arresto, hipoteca judicial, etc.) de que tais direitos resultam’. Este entendimento é também o defendido por Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103.º, p. 165, quando escreve: ‘Pode dizer-se que, se um prédio for comprado a determinado vendedor e for penhorado em execução contra este vendedor, o comprador e o penhorante são terceiros: o penhorante é terceiro em relação à aquisição feita pelo comprador, e este é terceiro em relação à penhora, pois os direitos do comprador e do penhorante são incompatíveis entre si e derivam do mesmo autor ´.
[6] A. Meneses Cordeiro; Direitos Reais; I volume; pág. 568.
[7] Menezes Cordeiro; Direitos Reais; II; pág. 364.
[8] Lebre de Freitas; A Acção Executiva; pág. 209.
[9] In RLJ; Ano 126.º, pág. 362/363.