I - A jurisprudência do STJ tem-se pronunciado, uniformemente, no sentido de que podem ocorrer outras circunstâncias, para além das mencionadas no n.º 2 do art. 132.º do CP, que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente no cometimento do crime de homicídio. E, por outro lado, apesar da descrição dos factos provados apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas deste preceito, não é só por isso que o crime de homicídio deva ter-se logo por qualificado.
II - Mostra-se ultrapassada uma concepção do crime ancorada num elemento puramente objectivo, correspondente à ilicitude, e outro subjectivo, integrador da culpa. A dogmática penal passou a distinguir, sempre no campo da ilicitude, entre um desvalor da acção e um desvalor do resultado. A ilicitude deixou de ser só a desaprovação pela ordem jurídica de uma situação criada com a lesão de um certo bem jurídico e passou a incluir, nessa desaprovação, também, a forma como tal situação surgiu, por obra do agente.
III - Caso as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do art. 132.º do CP fossem taxativas e de aplicação automática, estar-se-ia simplesmente perante uma qualificação do homicídio, atenta a ilicitude acrescida. Concretamente, por via do desvalor da acção, e não por via de um maior desvalor do resultado, já que, sendo o bem vida um valor absoluto e eminentemente pessoal (para a ordem de valores constitucional e portanto para o direito penal, não pode haver vidas humanas mais valiosas que outras), causar a morte de uma pessoa esgota, só por si, o desvalor do resultado.
IV - Como a estruturação do art. 132.º do CP recorreu a exemplos padrão, no seu n.º 2, meramente ilustrativos da cláusula geral de agravação do n.º 1, fica afastada a concepção de que a qualificação se deve a um acréscimo de ilicitude. Como o preenchimento dos exemplos padrão nem é sempre necessário (a qualificação pode derivar de um circunstancialismo equivalente, também merecedor de especial censurabilidade ou perversidade), nem é suficiente (para além do preenchimento de qualquer uma das alíneas do n.º 2, importa verificar, no caso, a especial censurabilidade ou perversidade do agente), a qualificação ocorre por via da culpa acrescida.
V - O modo do cometimento do crime, a motivação que a ele presidiu, a forma ou intensidade como foi executado, ou ainda as qualidades pessoais do agente ou da vítima, tornam-no mais grave. E mais grave porque a conduta do agente foi mais reprovável, tendo em conta a distância que separa o crime cometido daqueles outros em relação aos quais encontra eco “a convicção geral do que são motivos atendíveis ou a que é mais difícil resistir”, conforme escreveu Curado Neves, in “Indícios de culpa ou tipos de ilícitos? – Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, pág. 255.
VI - A especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido. Traduz também um modo próprio do agente estar em sociedade e, por tal via, um grau de perigosidade que pode merecer particular atenção.
VII - A razão da agravação da al. a) do n.º 2 do art. 132.º do CP é a de que, para o comum das pessoas, os laços afectivos estabelecidos por uma relação de maternidade são um factor específico de refreamento, que não existiria se a potencial vítima fosse outra qualquer pessoa. Este estado de coisas só se verá alterado perante um circunstancialismo que se traduza em motivo importante de atenuação da culpa, como, v.g., o filho que mata o pai que maltratava a mãe e que violava a irmã.
VIII - A circunstância de o arguido ser filho adoptivo, só por si, não atenua a sua culpa, nem tão pouco a perturbação em que agiu decorrente da vítima insistir para ele ter aproveitamento escolar e para se tornar mais responsável, nem ainda o afastamento afectivo entre ambos, têm peso suficiente para excluir a especial censurabilidade do seu comportamento.
IX - Para efeitos da al. i) do n.º 2 do art. 132.º do CP, meio insidioso não tem só a ver com o meio empregado, mas essencialmente com o modo e as circunstâncias com que foi usado. O desvalor acrescido da actuação pauta-se pela situação de especial vulnerabilidade em que se encontra a vítima, o que se deve ao facto de o agente ter actuado à traição, de surpresa, de modo que a vítima não podia prever.
X - O arguido actuou de madrugada, não estacionou o carro junto da casa, sabia que a sua mãe estaria presumivelmente a dormir sozinha em casa, sabia ainda que a sua mãe contava que ele estivesse noutra cidade, movimentou-se em casa descalço e, sem fazer ruído, atacou-a durante o sono, mostra-se assim preenchida a agravante qualificativa em questão.
XI - O arguido usou uma almofada com uma mão e com a outra vibrou golpes com insistência para obter o resultado pretendido, e porque era estudante de medicina procurou atingi-la nos sítios do corpo que mais eficazmente lhe podiam tirar a vida. O crime cometido teve repercussão na cidade e no país, foi alegadamente causado pela irritação provocada pela insistência da mãe para que o arguido se tornasse mais responsável, à data o arguido apresentava um quadro psicológico marcado pela perturbação emocional. Procurou ainda iludir as autoridades encenando o cometimento de um crime de roubo, para tanto dependurando uma corda na varanda e levando consigo vários objectos. Por tudo isto, não há motivos para alterar a pena de 19 anos de prisão aplicada no acórdão recorrido.
AA, solteiro, estudante, nascido em Vouzela a 15/11/1986, e residente em Coimbra antes de preso, foi julgado em processo comum e por tribunal do júri, na 2ª Secção da Vara Mista do Tribunal Judicial de Coimbra, tendo sido proferido acórdão a 21/12/2011, em que foi condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado p.e p. pelo art. 131° e 132°, n°s 1 e2, als. a) e i) do CP, na pena de 17 anos e 6 meses de prisão.
O M.º P.º interpôs recurso direto da decisão para o STJ, e o arguido para o Tribunal da Relação de Coimbra. Á luz do art. 414.º nº 8 do CPP, esta instância conheceu de ambos os recursos, e por acórdão de 9/5/2012 foi negado provimento ao recurso do arguido, e concedido parcial provimento ao recurso do M.º P.º, ficando o arguido condenado na pena de 19 anos de prisão, pela prática do mesmo crime por que havia sido condenado na 1ª instância.
É desta decisão que o arguido agora recorre para o STJ, a fim de ver alterada a qualificação jurídica do crime por si praticado e a medida da pena aplicada.
A - FACTOS
Consideraram-se provados os seguintes factos:
“I - O arguido AA é filho adotado da vítima BB.
O mesmo, estudante universitário da licenciatura em Medicina, residia com a mãe, vivendo a expensas maioritariamente desta.
Durante as férias de verão, o arguido habitualmente pernoitava num apartamento que a família possui na Figueira da Foz, local onde o arguido se encontrava, sozinho, na noite de 06 para 07 de setembro de 2010.
O arguido, desde que tinha ingressado no ensino superior, vinha tendo um aproveitamento escolar muito reduzido e a sua mãe insistia com este para a necessidade do mesmo se aplicar mais nos estudos, crescer e se tornar mais responsável.
Esta preocupação maternal pelo futuro do filho era entendida pelo arguido como implicância e ingerência da mãe na sua vida, sendo certo que o arguido vivia a expensas quase exclusivamente da família;
II - Na madrugada do dia 07 de setembro de 2010 o arguido deslocou-se da Figueira da Foz, onde se encontrava, em direção a Coimbra, utilizando para tal um veículo da família, viajando pela EN 111, tendo chegado a casa, na Urbanização.......a, nesta Cidade, por volta das 04h00 horas da madrugada do dia 07 de setembro de 2010.
Estacionou o veículo que conduzia, um Land Rover pertença da família em local próximo da casa materna, após se deslocando, a pé, até à entrada de casa, sita no Lote ..., ....... daquela Urbanização;
III - Ali chegado, abriu a porta principal com as chaves que possuía, entrando na casa.
Dentro de casa o arguido movimentou-se descalço e procurando não fazer barulho.
O arguido sabia que a sua mãe estava em casa sozinha, isso mesmo confirmando, após ali ter entrado, ao constatar que a mesma se encontrava no quarto da própria, deitada na respetiva cama e a dormir.
Pelo menos nesse momento, o arguido decidiu que era aquela a altura oportuna para resolver de vez a situação com a sua mãe, tendo decidido que a maneira de o concretizar era retirando-lhe a vida;
IV - Então, foi à cozinha e retirou de uma das gavetas uma faca com uma lâmina em metal afiado com cerca de 20 cm de comprimento e cabo em madeira escuro (apreendida e examinada nos autos), calçou umas luvas de látex que se encontravam em local não concretamente apurado e seguiu para o quarto da sua mãe.
Constatando que a sua mãe continuava na cama, o arguido aproximou-se silenciosamente dela e, com uma mão empunhou a supra referida faca com a parte da lâmina de metal afiada virada para a mãe e, na outra mão, agarrou numa almofada, aproximando-se desta maneira da cama onde a mãe dormia, do lado esquerdo de quem entra.
Em seguida, empunhando a referida faca na mão direita, passou a desferir repetidos e profundos golpes com a lâmina da faca na vítima BB, sua mãe, atingindo-a pelo corpo, procurando com especial incidência, atingi-la na zona vital procurada, ou seja, a zona do pescoço, cujos vasos principais seccionou, bem como no tórax, enquanto com a almofada na outra mão, evitava que a sua mãe se defendesse e que o sangue espirrasse e o sujasse.
A vítima ainda chegou a gritar e a debater-se, tendo o arguido pressionado a faca com mais força no momento que a atingia;
V - Depois de verificar que a sua mãe já não apresentava sinais vitais, para iludir as autoridades de investigação e evitar ser relacionado com os eventos supra mencionados, o arguido criou um cenário de roubo, abrindo algumas gavetas de várias dependências, de onde retirou artigos indiferenciados (bijutaria, caixa de relógio, etc) e atou um cordel que cuidou de ir buscar à garagem em momento não concretamente apurado, a uma viga do terraço, de forma a sugerir que alguém tivesse por ali entrado, escalando a parede traseira.
Em seguida, o arguido saiu pela porta da frente, por onde havia entrado, levando consigo, entre outros objetos, as luvas de látex, a faca que utilizou na sua atividade criminosa, a bolsa da sua mãe, em pele encarnada, com a documentação e o telemóvel dela, e deslocou-se a pé de regresso à viatura.
Junto desta, despiu a roupa que trajava (t-shirt e calças pretas e meias), com vestígios de sangue e vestiu outra que tinha guardado no carro.
Conduziu a viatura até à Figueira da Foz, mais uma vez utilizando a EN 111.
No caminho, parou junto a um caixote de lixo, onde deitou fora a roupa que vestia na ocasião em que praticou os eventos criminosos acima referidos.
O arguido chegou ao apartamento da família, na Figueira da Foz, já depois das 05:00 horas da manhã. Nesta altura deitou para o lixo alguns sacos com os objetos que trouxera de casa da sua mãe;
VI - Já de dia, quando se aprestava para regressar a Coimbra, depois de lhe ter sido comunicada a morte da sua mãe pelo seu vizinho CC e também pelo seu pai, o arguido desfez-se dos restantes objetos que ainda tinha consigo e que havia tirado de casa da mãe, voltando a atirar para os caixotes do lixo alguma bijutaria. Mais tarde, já na A 14, que foi a via que então utilizou na deslocação para Coimbra, após a portagem, deitou a carteira da sua mãe com a documentação e o telemóvel, para a berma.
No apartamento da Figueira da Foz, o arguido lavou a faca que utilizou nos eventos acima descritos e escondeu-a numa gaveta metálica do lava-loiças do pátio interior da referida habitação e a bolsa de senhora, de cor encarnada, guardou-a no guarda-fato do quarto onde dormia habitualmente.
A vítima seria encontrada, já sem vida, no local onde o arguido a deixou e acima mencionado, na manhã de 07 de setembro de 2010, pela empregada que ali entrou, como habitualmente, para iniciar mais um dia de trabalho de serviço doméstico e que chamou as autoridades;
VII - Com a atuação supra descrita do arguido, sofreu a infeliz vítima BB intensas dores, bem como as lesões examinadas e descritas no auto e relatório de autópsia constante de fls. 347 a 356 e cujo teor é aqui dado integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais (de entre as quais se destacam, na zona do pescoço, várias feridas cortantes, sendo uma corto-perfurante na região cervical lateral direita), lesões estas que foram causa adequada da sua morte, pois que, conforme resulta do supra referido relatório de autópsia, "a morte de BB foi devida às lesões traumáticas cervicais vasculares", lesões traumáticas estas que "constituem causa adequada de morte", foram produzidas por "instrumento de natureza corto-perfurante ou atuando como tal", apresentando ainda outras lesões traumáticas cortantes e contundentes, sendo que «do ponto de vista médico-legal este quadro indica uma etiologia homicida".
O arguido AA desferiu diversos golpes no pescoço da vítima, BB, com recurso a objeto corto perfurante na madrugada de 07.09.2010, na Urb......a, Lt ......, oimbra, causando-lhe a morte antecedida de intenso sofrimento decorrente dos inúmeros golpes desferidos pelo arguido e acima descritos.
O arguido, filho da vítima, ao agir como o descrito, queria e conseguiu atingi-la com uma faca, utilizando a parte da lâmina afiada, causando-lhe golpes em zonas vitais do corpo, querendo e conseguindo provocar-lhe lesões que determinaram a sua morte.
O arguido, estudante de medicina, com conhecimentos em anatomia, bem sabia quais as zonas e modo de as atingir para melhor retirar a vida a um ser humano;
VIII - O arguido decidiu retirar a vida à sua mãe pelo menos no momento que antecedeu a atuação que veio a ter lugar.
O arguido sabia que a vítima era sua mãe, querendo e conseguindo atingi-la da forma letal acima descrita, assim lhe retirando a vida, fins que representou e logrou alcançar.
Agiu num quadro de grande perturbação pessoal e emocional que então atravessava, sendo que um dos fatores causais de tal era o aborrecimento que a mãe lhe causava por a mesma estar preocupada com o seu futuro e o procurar orientar e aconselhar para adotar uma conduta mais responsável e adulta, o que o arguido entendia como uma ingerência na sua vida. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, nos termos supra explanados, bem sabendo que a sua conduta lhe estava vedada por lei;
IX - O arguido confessou parcialmente os factos, sendo que os mesmos ocorreram quando tinha 23 anos de idade, tendo ele presentemente 25 anos de idade, sendo solteiro e sem filhos;
X - O arguido é primário e não se lhe conhecia até aos factos ajuizados qualquer comportamento social violento, sendo considerado genericamente como pessoa correta e educada;
XI - O arguido foi adotado pela vítima e marido com apenas alguns dias de idade, passando a integrar uma família estruturada em termos económicos, sociais e educativos; teve uma infância e adolescência dentro da normalidade, obtendo excelentes notas na fase final dos estudos secundários, para além de manter uma gratificante prática regular de atividade desportiva de Futsal até à ocorrência dos factos ajuizados; encontrava-se desmotivado com a sua licenciatura em Medicina, sendo que em 6 anos de frequência universitária (iniciada em Lisboa e depois continuada em Coimbra, conseguindo equivalência a algumas cadeiras) ainda se encontra no 2o ano dessa licenciatura; a relação afetiva com a mãe nunca foi sentida pelo arguido como muito afetuosa; emocionalmente essa relação estava mais deteriorada desde que ocorrera o divórcio desta com o pai do arguido, tendo aquela dificuldade em aceitar a dita separação, o que gerava na própria um estado psicológico de alguma depressão que se refletia no relacionamento com o filho, o qual por sua vez procurava estar o menos possível com a mãe;
XII - O arguido evidencia uma personalidade com distanciamento afetivo e fraca tolerância à frustração, o que lhe determina vulnerabilidade em fatores stress ou de conflito, sendo que ao tempo dos factos ajuizados se encontrava envolvido sentimentalmente em 3 relações de namoro”.
B - RECURSO
As conclusões da motivação do recurso do arguido foram as seguintes:
“ a) O presente recurso visa única e exclusivamente a alteração da qualificação jurídica e a medida da pena aplicada ao ora recorrente, porquanto a razão da nossa discordância com o Douto Acórdão de que ora se recorre, foca-se essencialmente, na qualificação jurídica do crime e na medida da pena, que nós entendemos ser desadequada e desproporcional, pois, mesmo atendendo só à matéria de facto dada por provada, nunca poderia o arguido ser condenado na pena de 19 anos de prisão, como o foi.
b) Tendo em conta a matéria de facto dada por provada pelo Douto Acórdão proferido pelo Tribunal de primeira instância e confirmado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, dado que não foi alterada a matéria de facto mas tão só a dosimetria da pena, continua o arguido a entender, que o crime que cometeu não foi um crime de homicídio qualificado, mas sim um crime de homicídio simples, pelas razões que infra se descrevem;
c) Foi dada como provada a matéria de facto constante dos pontos I a XII, conf. melhor consta de Douto Acórdão condenatório proferido pela l.a Instância e fls. 14 a 18, da Douta Decisão proferida pelo Venerando tribunal da Relação.
d) Ora tanto O Tribunal de primeira Instância como o Venerando Tribunal da Relação consideraram que a conduta do arguido preencheu as qualificativas das als. a) e i) do n.° 2 do artigo 132.° do CP, porquanto o arguido terá agido de forma insidiosa, aproveitado que a sua mãe se encontrava a dormir, estando por isso impossibilitada de resistir, e que o mesmo se terá aproximado dela descalço sem fazer ruído agindo assim traiçoeiramente.
e) É certo que o arguido confessou que se descalçou quando entrou em casa, mas ao contrário do raciocínio que faz tanto a l.ª Instância e que vem a ser confirmada pelo Tribunal da Relação, dado que a matéria de facto foi impugnada devidamente, e tal se verifica que, o Douto Acórdão da Relação reconhece que o arguido se descalçou como faziam todos os que entravam naquela casa por imposição da vítima, e não para evitar fazer barulho.
f) Pelo que o simples facto de o arguido, fazer como no quotidiano, descalçar-se quando entrou em casa, e isto por imposição da vítima, não faz com que tal possa relevar para efeito da agravação, seja pela qualificação, seja nos termos do disposto no art.° 71.° n.° 2 do CP.
Bem como o facto de a vítima ser ascendente do arguido não pode só por si, fazer com que se encontre preenchida a qualificativa da al. a) do art.° 132.° n.° 2 do CP, pois é a própria Decisão condenatória que dá como provado que, o arguido agiu num quadro de grande perturbação pessoal e emocional que então atravessava; que a relação afetiva com a mãe nunca foi sentida pelo arguido como muito afetuosa; emocionalmente essa relação estava mais deteriorada desde que ocorrera o divórcio desta com o pai do arguido, tendo aquela dificuldade em aceitar a dita separação, o que gerava na própria um estado psicológico de alguma depressão que se refletia no relacionamento com o filho, o qual por sua vez procurava estar o menos possível com a mãe; que o arguido evidencia uma personalidade com distanciamento afetivo e fraca tolerância a frustração, o que lhe determina vulnerabilidade em fatores de stress ou de conflito; que o arguido confessou parcialmente os factos, sendo que os mesmos ocorreram quando tinha 23 anos de idade, tendo ele presentemente 25 anos de idade, sendo solteiro e sem filhos; que é primário e não se lhe conhecia até aos factos ajuizados qualquer comportamento social violento, sendo considerado genericamente como pessoa correta e educada; que sabia que a sua mãe estava em casa sozinha, isso mesmo confirmando, após ali ter entrado, ao constatar que a mesma se encontrava no quarto da própria, deitada na respetiva cama e a dormir; que pelo menos nesse momento, o arguido decidiu que era aquela a altura oportuna para resolver de vez a situação com a sua mãe, tendo decidido que a maneira de o concretizar era retirando-lhe a vida pelo que foi á cozinha e retirou de uma das gavetas uma faca com uma lâmina em metal afiado com cerca de 20 em de comprimento e cabo em madeira escuro (apreendida e examinada nos autos), calçou umas luvas de látex que se encontravam em local não concretamente apurado e seguiu para o quarto da sua mãe; que, constatando que a sua mãe continuava na cama, o arguido aproximou-se silenciosamente dela e, com uma mão empunhou a supra referida faca com a parte da lâmina de metal afiada virada para a mãe e, na outra mão, agarrou numa almofada, aproximando-se desta maneira da cama onde a mãe dormia, do lado esquerdo de quem entra e que empunhando a referida faca na mão direita, passou a desferir repetidos e profundos golpes com a lâmina da faca na vitima BB, sua mãe, atingindo-a pelo corpo, procurando com especial incidência, atingi-la na zona vital procurada, ou seja, a zona do pescoço, cujos vasos principais seccionou, bem como no tórax, enquanto com a almofada na outra mão, evitava que a sua mãe se defendesse e que o sangue espirrasse e o sujasse e por último que, a vítima ainda chegou a gritar e a debater-se, tendo o arguido pressionado a faca com mais força no momento que a atingia.
h) Sendo certo que a uma especial censurabilidade da conduta ou a uma especial perversidade do agente: O art. 132.° do CP constitui "um tipo de culpa e de medida da pena que não se aplica, ainda que o agente realize a circunstância qualificadora, sempre que o comportamento não revele censurabilidade agravada". Ao mesmo tempo que "não é de considerar uma culpa sem um suporte de aumentada ilicitude", também não se poderão retirar de uma eventual "ilicitude maior" (decorrente de "circunstâncias suscetíveis de revelar a especial censurabilidade") quaisquer efeitos (qualificativos), "a menos que a acompanhe um acréscimo de culpa".
i) Tanto mais que, a qualificação facultada pelo art. 132.° do CP não só exclui a "aplicação automática de circunstâncias indiciadoras de uma maior censurabilidade" (de tal modo que "quem preenche uma das alíneas do art. 132.° não entra automaticamente no âmbito da norma") como - exigindo a "aferição da qualificação por um critério de culpa" - leva implícito um "comando dirigido ao intérprete/aplicador para que utilize o crivo normativo indicado, ou seja, para que ajuíze se há mesmo uma culpa especial e só depois, em coerência com o resultado obtido, defira ou indefira a aplicação da norma, significando o indeferimento o regresso à figura do homicídio simples".
j) Quanto ao facto de o arguido ter «desferido o [seu] ataque totalmente de surpresa, sem qualquer aviso, com uma faca, atacando a vitima quando esta se encontrava a dormir e, por isso, indefesa e vulnerável, não se poderia deixar de ter em conta - conquanto possa conjeturar-se que a morte da vítima teria sido possível mesmo com a vítima acordada - que esta, nesse estado vigil, sempre teria alguma hipótese adicional de defesa, por mais remota que fosse, «pois é facto notório que uma pessoa adormecida está particularmente mais indefesa do que em estado vigil.
k) No entanto, não poderia deixar igualmente de se considerar que, no caso, não se provou que, «o arguido tenha propositadamente escolhido para matar a sua mãe uma altura em que esta dormia, para que desse modo não reagisse ou esboçasse qualquer defesa com vista a tornar mais fácil a obtenção dos seus intentos.
1) Além de que - repete-se - seria «indispensável determinar, com particular exigência e severidade» a verificação da «qualificação», sob pena de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra de homicídio doloso» (Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Editora, 1999,37).
m) Pois que, sendo a aplicação do art. 132.° "incumbência judicial", não bastará, para se afirmar a qualificação do homicídio, a "verificação no comportamento [do homicida] de circunstâncias das alíneas qualificadoras", tendo antes de se fazer "prova da maior censurabilidade de acordo com o princípio da culpa". Prova essa que, em nosso entender, se não fez aqui, pelo contrário, dá-se como provado que a vítima se debateu e gritou;
n) No artigo 132°, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves, que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida, pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquela circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.
o) Com referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada a constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade» Teresa Serra, in Homicídio Qualificado tipo de culpa e medida da pena, Almedina 1997, pág. 63 e 64.
p) Resulta daqui que a verificação das situações referidas nas várias alíneas do n° 2 do art° 132°, constituem uma presunção ilidível, ou indiciam a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade Teresa Serra ob. Citada pág. 67. Posto isto, vejamos se o crime cometido pelo arguido revela especial censurabilidade ou perversidade.
q) Qualquer que fosse a relação entre o arguido e a vítima, e independentemente das circunstâncias que rodearam o crime, e na lógica do pensamento que vimos desenvolvendo, o parentesco que os ligava integra aquela presunção, pois que integra automaticamente o exemplo padrão consignado na alínea a) do referido art°132º n° 2.
r) Esta agravante, que radica no maior desvalor da conduta daquele que atenta contra a vida de um familiar direto vencendo as contra motivações éticas relacionadas com os laços de parentesco, que normalmente se pautam por um elevado grau de afetividade, tem entre nós sofrido contestação como aliás é referido no acórdão recorrido, Conferir Comentário Conimbricense, pág. 30, Teresa Serra, ob. Citada pág. 74 e Ac. STJ de 26 de Fev. 2004, CJSTJ tomo I pág. 207, tem sido contestada pela doutrina, tendo mesmo sido proposta já a sua eliminação. De facto, como salienta Maia Gonçalves Código Penal Anotado 16° ed. pág. 470., depois de dar conta da controvérsia, na doutrina estrangeira e nacional, acerca da manutenção desta agravante: "Ao nível familiar, as pessoas atingem um estado de fixação nas outras, ocorrendo danos psicológicos, o que em muitos casos leva a que, entre pais e filhos, ocorra imputabilidade diminuída. Regra geral, estes casos tendem à atenuação e não à agravação, pelo que a agravação só se justifica quando exista uma especial inferioridade da vítima".
s) Na esteira do Prof. Eduardo Correia in Direito Criminal, 1995, vol. II, pág. 354...Se de facto, por um lado, aumenta a gravidade de ilícito, porque além do mal do crime se violam os deveres de respeito, amizade, subordinação ou disciplina, por outro lado, indicia uma maior capacidade criminosa pelo não respeito dos motivos inibitórios do crime que a tais relações devem andar ligados. (...) Deve porém, notar-se que as referidas relações não deixam de agravar a ilicitude, não só na medida em que provocam maior alarme, como na medida em que podem simplificar a realização do delito, o que lhe tira a natureza de próprias".
t) Para considerar preenchido este exemplo padrão, integrador da agravante modificativa resultante do parentesco deve em cada caso averiguar-se se no caso concreto as relações existentes correspondem á razão de ser da agravante.
u) No caso concreto, tendo o arguido agido num quadro de grande perturbação pessoal e emocional que atravessava e as consequências a nível da falta de afetividade e carinho devidas aos familiares, e que ficaram provadas, as relações mãe - filho apresentam-se deterioradas o que a nosso ver, tira a razão de ser à agravante a que nos estamos a referir, por esbater no filho os deveres de respeito amizade e carinho devidos à progenitora.
v) Por tudo o que foi dito, entende-se que atendendo às circunstâncias em que foi cometido o crime - e afigura-se-nos que só estas interessam para aquilatar do aumento da culpa revelador da especial censurabilidade ou perversidade ínsitos à integração no art° 132º- este não deve integrar o homicídio qualificado mas antes o crime de homicídio simples, p e p pelo art.° 131.° do CP, devendo por conseguinte ser alterada a medida da pena aplicada ao arguido e o arguido ser condenado numa pena nunca superior a 10 anos de prisão.
w) Sempre se dirá que mesmo que se verificassem as circunstâncias qualificativas, a pena aplicada ao arguido mostra-se desproporcional e desadequada por manifestamente excessiva.
x) As circunstâncias que serviram para a qualificação do crime não podem ser novamente consideradas na graduação da pena; são circunstâncias agravantes para o efeito da graduação da pena, dentro da moldura já de si especialmente agravada do crime, a surpresa com o que o arguido agiu, a violência da agressão, o facto da vitima ser sua mãe, e como atenuantes, o facto de não ter antecedentes criminais, de não lhe serem conhecidos até à altura dos factos qualquer comportamento social violento, e ser pessoa considerada genericamente como correta e educada, de ter cometido os factos num quadro de grande perturbação pessoal e emocional que então atravessava, e as consequências a nível da falta de afetividade e carinho devidas aos familiares, e que ficaram provadas, as relações mãe - filho apresentam-se deterioradas.
y) Mesmo considerando, que o arguido agiu de forma altamente censurável, estando esse acréscimo de censurabilidade já refletido na opção pelo tipo qualificado e tendo as circunstâncias desvaliosas em que o arguido atuou, quer as referidas ao desvalor da conduta, quer as referidas ao desvalor da atitude do agente, sido determinantes para a qualificação dos factos, não podem as mesmas ser novamente valoradas em sede de determinação concreta da pena, dentro dos critérios do art. 71.° do CP, sob pena de infração do princípio da proibição de dupla valoração.
z) Verifica-se o Tribunal violou o princípio da proibição da dupla valoração, quando considerou a intensidade do dolo depois de ter qualificado o crime, tendo em conta que tal elemento intelectual já tinha sido considerado para agravar o crime. Com efeito, quando se deu como verificada a especial censurabilidade ou perversidade do agente entendeu-se que a culpa devido às circunstâncias já analisadas, era de tal modo grave que levou a que o Tribunal classificasse o homicídio como qualificado com a consequente agravação da medida da pena, não podendo esta agora servir também para agravar a medida da pena aplicar nos termos do art.° 71.° do CP.
aa) A proibição do duplo aproveitamento ou da dupla valoração de elementos do tipo de crimes na determinação da medida concreta da pena está prevista no art.º 72/2 CP. Nestes termos é proibido aproveitar mais uma vez circunstâncias que levaram à formação da moldura penal, e que são pressupostos da sua aplicação, na fixação da medida da pena no caso individual.
bb) A fundamentação desta proibição é evidente: os elementos do tipo de crime foram já ponderados no âmbito da determinação da moldura penal, e deste modo, constituem já pressupostos da medida concreta da pena, que há de ser escolhida dentro dos limites daquela moldura, sem que os referidos elementos a possam voltar a influenciar;
cc) Mesmo em casos como o presente, em que se esteja perante mais do que uma qualificativa, há que ter em conta o princípio da proibição da dupla valoração da culpa, impedindo que esta atue como fator de ponderação da medida de pena, uma vez que já foi considerada na própria qualificação do crime.
dd) De acordo com o n.° 2 do artigo 71.° do Código Penal, na determinação concreta da pena, não devem ser tomadas em consideração as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime, ou seja, os factos que consubstanciam um crime de homicídio qualificado não podem ser novamente valorados na quantificação da culpa para efeitos da medida da pena, pois as circunstâncias que serviram para a qualificação do crime (de homicídio) não podem ser novamente consideradas na graduação da pena.
ee) A proibição tem uma natureza "logicamente inimpugnável", dizendo que "a proibição do duplo aproveitamento constitui uma verdade jurídico-penal banal e um princípio cuja violação é considerado um erro crasso".
ff) Sendo uma das finalidades das penas a tutela dos bens jurídicos - artigo 40.°, n.° 1 do Código Penal - definindo a necessidade desta proteção os limites daquelas, há que ter em atenção o bem jurídico tutelado nos tipos legais em causa.
gg) No caso presente, tanto a Decisão condenatória proferida pela l.º Instância, como a Douta Decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação, concluem que é elevadíssimo o grau de ilicitude do facto, atenta a gravidade das consequências da conduta do arguido, no que respeita à vítima sua mãe. O grau de culpa é muito acentuado, com elevada intensidade do dolo, na modalidade de direto.
hh) A atuação do arguido foi extremamente censurável, não se coibindo de atingir a vítima sua mãe, quando esta se encontrava deitada na sua na cama, a dormir, concluindo que são intensas as necessidades de prevenção geral. Sendo também certo que, a função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição.
ii) No que toca a prevenção especial tem de se ter em conta a personalidade do arguido. O facto deste ser jovem, contava apenas 23 anos à data da prática dos factos, no que toca a antecedentes criminais do recorrente, nada se regista, não havendo noticia que o mesmo tenha tido alguma vez durante a sua vida qualquer comportamento social violento e o facto de ter confessado parcialmente os factos e a colaboração com as autoridades policiais a partir do momento e que suspeitas fortes sobre si incidiram.
jj) Como refere Américo Taipa de Carvalho, a propósito de prevenção da reincidência, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 325, trata-se de dissuasão necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se autorressocializar, ou seja, de não reincidir. E no caso de infratores ocasionais, como o do ora recorrente, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.
kk) Teremos a considerar ainda as atenuantes já assinaladas, com relevo para a idade, ausência de personalidade violenta e de antecedentes criminais, o facto de ter atuado num quadro de forte perturbação pessoal e emocional, a degradação da relação de falta de afetividade que arguido e mãe mantinham, e demais vivência e as condições pessoais do arguido expressas quer nos factos dados como provados, quer na fundamentação, são elucidativas de que o arguido não apresenta propensão para o crime e de que se trata de uma pessoa bem inserida socialmente.
11) Por último, deverá ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, não se perdendo de vista a especificidade do caso sujeito.
mm) A este propósito, dir-se-á que a necessidade de adequação da pena às concretas circunstâncias do caso não dispensa a necessidade de observância das exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uniformização de critérios e a necessidade de atender, por razões de justiça relativa aos padrões geralmente adotados na jurisprudência.
nn) Nestas condições e tendo em conta todo o exposto, tendo sido respeitados os parâmetros legais, cremos que se justificará no caso intervenção corretiva desse Supremo Tribunal, no que toca à pena fixada pelo homicídio qualificado, que será de reduzir, devendo ser fixada em medida não superior a 14 anos de prisão, pois que, atentas as molduras penais abstratas a ter em conta, não afrontam os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas - artigo 18.°, n.° 2, da CRP -, nem as regras da experiência comum, antes são adequadas e proporcionais à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassam a medida da culpa do recorrente.
Nestes termos e sem prescindir do Douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser alterada a qualificação jurídica e o arguido ser condenado pelo crime de homicídio simples a uma pena não superior a 10 anos de prisão, ou caso assim não se entenda, ser a pena a aplicar ao arguido ser reduzida para catorze anos de prisão, como é de JUSTIÇA. “
O M.º P.º respondeu e concluiu:
“1 – Os factos provados na sentença demonstram à evidência a qualificativa do matricídio, bem como a insídia, já que, quanto a esta, o recorrente aproveita o facto da vítima se encontrar a dormir e o descalçar dos sapatos, hábito na casa, mas que usa, na altura, essencialmente, para não fazer barulho;
2 – Estas qualificativas não foram consideradas na medida da pena a aplicar não havendo dupla valoração;
3 – A decisão constante do acórdão recorrido é correta, estando os factos corretamente qualificados como homicídio qualificado e a pena bem doseada, tendo em conta o peso das agravantes relativamente às atenuantes que a situação comporta, não havendo violação de qualquer dispositivo legal pelo que, não merecendo censura, deve a sentença ser mantida e confirmada nos seus precisos temos”.
Foi formulado pedido de escusa por parte do primeiro relator a quem os presentes autos foram distribuídos, tendo o incidente sido atendido. Procedeu-se a nova distribuição.
O M.º P.º junto do STJ reviu-se na posição antes assumida pelo colega sedeado na Relação.
Colhidos os vistos os autos foram presentes à conferência.
C - APRECIAÇÃO
As questões a apreciar são a da qualificação jurídica do comportamento do arguido e a da medida da pena.
Vejamos então.
I - Qualificação do crime de homicídio
1. Começaremos por retomar, aqui, considerações que consideramos pertinentes a propósito do crime de homicídio qualificado, em geral, recordando a chamada técnica dos exemplos-padrão, utilizada pelo legislador no art. 132.º do CP, e o facto de estarem em causa, pelo menos para parte muito significativa da doutrina, no seu nº 2, circunstâncias atinentes à culpa do arguido e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente (assim Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, pag. 27, e para uma resenha da controvérsia, na doutrina, sobre se as circunstâncias em causa respeitam ao tipo de culpa ou ao tipo de ilícito, vide Teresa Quintela de Brito in “Direito Penal - Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, pag. 191 e seg.).
É possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas, se bem que valorativamente equivalentes, as quais revelem a falada especial censurabilidade ou perversidade. E, por outro lado, apesar da descrição dos factos considerados provados poder apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do nº 2 do artº 132º, não é só por isso que o crime de homicídio, cometido, deverá ter-se logo por qualificado. Interessa sim que ocorra uma “imagem global do facto agravada” (Figueiredo Dias ob.cit. pag. 26).
A jurisprudência do STJ tem-se pronunciado, uniformemente, neste sentido.
2. Esta posição não pode perder de vista o facto, de se mostrar ultrapassada uma conceção do crime ancorada num elemento puramente objetivo, correspondente à ilicitude, e outro subjetivo, integrador da culpa, tendo a dogmática penal passado a distinguir, sempre no campo da ilicitude, entre um desvalor da ação e um desvalor do resultado. A ilicitude deixou, pois, de ser só a desaprovação pela ordem jurídica, de uma situação criada com a lesão de certo bem jurídico, e passou a incluir, nessa desaprovação, também, a forma como tal situação surgiu, por obra do agente.
Ou seja, no desvalor da ação passou a incluir-se um juízo de desaprovação, em abstrato, resultante do modo como o crime foi cometido.
Para além da lesão ou da colocação em perigo do objeto da ação, o que integra o desvalor de resultado, a ilicitude compreende, ainda, no desvalor da ação, modalidades externas do comportamento do agente, bem como circunstâncias que radicam na individualidade da sua pessoa. Daí até que se tenha passado a falar também, a este propósito, de um desvalor da ação referido ao facto, ao mesmo tempo que de um desvalor da ação referido ao autor (cf. v.g. Jescheck in “Tratado de Derecho Penal ” vol. I, pag. 323). Só a partir destes dados poderá, a nosso ver, ser abordada a construção dogmática escolhida pelo legislador para o crime do artº 132º do C P.
É que, caso as circunstâncias enunciadas no seu nº 2 fossem taxativas e de aplicação automática, estar-se-ia simplesmente perante uma qualificação do homicídio, atenta a ilicitude acrescida. Concretamente, por via do desvalor da ação, e não por via de um maior desvalor do resultado, já que, sendo o bem vida um valor absoluto e eminentemente pessoal (para a ordem de valores constitucional e portanto para o direito penal, não pode haver vidas humanas em si mais valiosas que outras), causar a morte de uma pessoa esgota, só por si, o desvalor do resultado (e tendo em mente o disposto na al. l) do nº 2 do art. 132º do C P, o facto da vítima ocupar um cargo especial, traduzir-se-á no aumento do desvalor da ação).
Ora, como a estruturação do preceito recorreu a exemplos padrão, no seu nº 2, meramente ilustrativos da cláusula geral de agravação que está enunciada no nº 1, ficamos afastados da conceção, segundo a qual, a qualificação ficaria a dever-se a um acréscimo de ilicitude. Como se viu, o preenchimento dos exemplos padrão nem é sempre necessário, porque pode a qualificação derivar de um circunstancialismo equivalente, também merecedor de especial censurabilidade ou perversidade, nem é suficiente, porque para além do preenchimento de qualquer das alíneas do nº 2 do art. 132.º em foco, sempre importará verificar, no caso, a tal especial censurabilidade ou perversidade do agente. O que tudo nos confronta com uma qualificação por via da culpa acrescida.
Já noutro registo, e como nos diz Teresa Serra, “Sozinha, a cláusula geral é passível de críticas, em sede da função de garantia da lei penal, em virtude da sua grande indeterminação. Por seu turno, a enumeração exemplificativa do nº 2, tomada isoladamente, é suscetível de reparo, ou constituir uma violação à proibição da analogia em direito penal” (in “Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pag. 122”). Mas a salvaguarda da garantia ínsita no princípio da legalidade, e, por essa via, da constitucionalidade do preceito em foco, ver-se-á realizada, se “A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente [estiver] perfeitamente delimitada aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente ao Leitbild dos exemplos-padrão enunciados no nº 2” (idem pag. 123).
Num contexto desta preocupação garantística, os exemplos-padrão, mesmo que não factualmente verificados, têm ainda assim a função de referência, na valoração negativa de circunstâncias não especificamente previstas, mas que autorizam o homicídio qualificado atípico. O não preenchimento de qualquer das alíneas do referido nº 2, e o aproveitamento de outros elementos agravativos, será legítimo, por se situar num espaço de congruência com os exemplos padrão, justificando-se à mesma a especial desaprovação da conduta.
O modo do cometimento do crime, a motivação que a ele presidiu, a forma ou intensidade como foi executado, ou ainda as qualidades pessoais do agente ou da vítima, podem torná-lo mais grave. E mais grave porque a conduta daquele agente foi mais reprovável, tendo em conta a distância que separa o crime cometido daqueles outros, em relação aos quais se possa dizer que encontra eco “a convicção geral do que são motivos atendíveis ou a que é mais difícil resistir” (a expressão é de Curado Neves in “Indícios de culpa ou tipos de ilícitos?” – “Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, autores vários, pag. 255).
Por outras palavras, a especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido. Traduz também um modo próprio do agente estar em sociedade, e, por tal via, inclusivamente, uma perigosidade merecedora de particular atenção.
3. A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, “com efeito de indício” (expressão de Teresa Serra, in ob. cit. pag. 126), interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado. Ou seja, importa verificar a ausência, no caso, de circunstâncias que neutralizem, ou compensem em sentido inverso, o peso agravativo dos exemplo- padrão (ou circunstâncias equivalentes), e que, no limite, poderiam apontar, até, para o homicídio privilegiado do artº 133º do C P. No caso, justifica-se esta preocupação, face à importância dada por parte da defesa aos estados de ânimo do arguido e ao tipo de relação afetiva mantida com a mãe.
Ao direito penal interessam as emoções na medida em que se traduzam em atos externos. Daí que não seja ao direito penal que cabe censurar as emoções (e sentimentos) vividos, antes seja tarefa sua censurar a falta do controlo possível dessas emoções, quando desembocam no ato ilícito. E é pressuposto da culpa a existência de tal controlo, ainda que indireto e parcial, por parte do agente que não tenha sido declarado inimputável.
Tem sido apontada, como via de controlo das emoções, a revisão de crenças e juízos de valor inapropriados, o que implica a revisão dos fins e desejos que lhes estão associados. Na verdade, a emoção é irracional quando se não adequa aos planos de vida do agente, e é socialmente desadequada quando leva ao crime. Por outro lado, como forma de controlo da conduta propriamente dita, provocada pelas emoções, costuma indica-se a manipulação (alteração ou afastamento) dos contextos que se saiba propiciarem a ação criminosa.
Com D. González Lagier, diremos depois que, “As emoções não excluem uma eleição antes a possibilitam, mas quanto mais intensas são, mais reduzem o campo de atuação da nossa razão. A nossa razão não vive sem as emoções mas chega uma altura em que se basta a si própria. Se a emoção vai mais além a sua ajuda transforma-se em entorpecimento.” (in “Emociones Responsabilidad y Derecho” Marcial Pons, pag. 149).
E, já no domínio da valoração do comportamento, prossegue aquele autor: “de acordo com a tese clássica, própria da conceção mecanicista, as emoções especialmente intensas diminuem a responsabilidade porque reduzem o controle que temos das nossa ações, e portanto, a nossa culpa. Esta tese, porém, não pode ter em conta as novas figuras que agravam a responsabilidade pelas nossas ações já que motivadas por uma emoção inapropriada”. É referida então a postura, segundo a qual, “o efeito das emoções na responsabilidade penal tem que ver, não com a intensidade da emoção e sim com o seu conteúdo. O relevante é saber se as emoções expressam juízos de valor adequados ou não” (idem, pag. 152). Dir-se-á, se bem que o tipo privilegiado não esteja aqui em causa, que é este o sentido da exigência de que a emoção violenta seja “compreensível” para que opere a atenuante especial do artº 133º do CP.
Em consonância, diz-nos J. Curado Neves que “não é, ou pelo menos não é só, a intensidade da emoção associada, mas a sua compatibilidade com o “código de valores individual” que dita a sua [do agente] passagem à ação (in “A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais”, pag. 663).
Portanto importa ter em conta esse código de valores individual que emerge despoletado pela emoção.
4. Já é tempo de descermos ao caso em apreço, o que tem que passar, antes de mais nada, pela revisão sintética da sequência fáctica que a Relação veio a dar por provada.
O arguido estava a passar uns dias na casa de verão da família, na Figueira da Foz, quando, na madrugada de 7/9/2010, resolveu vir a Coimbra à casa onde morava habitualmente coma mãe. Utilizou a EN 111, tal como, aliás, no regresso, (sendo da experiência comum que, vindo por aí, nunca seria detetado por radares ou câmaras de vigilância da autoestrada). Deixou o carro próximo de casa e dirigiu-se a pé até à entrada desta. Eram 4 da manhã. Deslocou-se dentro de casa sem fazer barulho, sabendo que a mãe estava sozinha e a dormir. Na concretização do seu plano da ação, foi à cozinha e pegou na faca que iria usar, calçou umas luvas de látex e foi ao quarto da mãe, que aí estava, efetivamente, a dormir. Então esfaqueou-a repetidamente, ao mesmo tempo que na outra mão usava uma almofada para evitar que o sangue espirrasse e o sujasse, e para impedir que a mãe se defendesse.
Depois, procedeu a uma encenação de crime de roubo para iludir a investigação, e procurou desfazer-se de tudo quanto o pudesse relacionar com o crime, como vem descrito nos pontos V e VI da matéria de facto.
5. Vejamos agora se se concretizam circunstâncias que revelem a especial censurabilidade do comportamento do agente.
Vamos abordar em primeiro lugar a circunstância da al. a) do nº 2 do artº 132º do CP: o facto de o arguido ser descendente da vítima.
A razão da agravação é a de que, para o comum das pessoas, os laços afetivos estabelecidos por uma relação de maternidade (o arguido foi adotado quando tinha dias de idade – ponto XI dos factos), são um fator específico de refreamento, que não existiria se a potencial vítima fosse outra qualquer pessoa.
É evidente que, não funcionando nenhuma das qualificativas de modo automático, também esta derivará, não só do facto de o agente ter consciência da sua relação de parentesco com a vítima, como também de a forma da sua atuação se apresentar especialmente desvaliosa, estando em causa a mãe, e/ou de, por este modo, se revelarem características da personalidade também especialmente desvaliosas.
Na cultura em que vivemos, a maternidade cria relações pessoais que se pautam, na falta de uma ligação de amor, pelo menos pelos deveres fortes de respeito e solidariedade, e da parte do filho dependente, deveres de aceitação de alguma subordinação e de ditames ao nível da disciplina.
A comunidade encara este estado de coisas como natural e útil, certo que o mesmo só se verá alterado perante um circunstancialismo que se traduza em motivo importante de atenuação da culpa (exemplo de escola será o filho que mata o pai que maltrata a mãe e viola a irmã).
Mas não é manifestamente o caso.
Diremos a começar que a circunstância de o arguido ser filho adotivo e não filho biológico, só por si, não atenua a sua culpa. Em primeiro lugar, porque a convivência mãe-filho se processou desde que este foi adotado, quando só tinha dias de idade. Depois, porque a própria opção de adotar pressupõe a disponibilidade dos pais para atenderem a uma situação do adotante, aqui arguido, carecido de proteção, o que é de ter em apreço, inclusive por parte do arguido que disso beneficiou.
O recorrente tinha aproveitamento escolar reduzido e em 6 anos de curso não passara do 2º ano. A mãe insistia para que se aplicasse, crescesse e se tornasse mais responsável (pontos I e XI).
Esta atitude da mãe era entendida pelo arguido como implicância e ingerência na sua vida (ponto XI).
O arguido agiu debaixo de grande perturbação pessoal e emocional, com causas várias, entre as quais o aborrecimento que a mãe lhe causava. A atitude da mãe era encarada pelo arguido como ingerência na sua vida, certo que o recorrente vivia fundamentalmente à custa dos pais (ponto VIII).
Deu-se ainda por provado que entre mãe e filho não havia uma relação muito afetuosa, a qual se deteriorara até com o divórcio daquela. A vítima apresentava mesmo, a partir daí, sinais de depressão perturbadores da relação com o filho, que assim procurava afastar-se ainda mais da mãe (ponto VIII).
Manifestamente, nem a perturbação debaixo da qual o arguido agiu, nem as razões por este adiantadas para se afastar afetivamente da mãe, têm peso suficiente para excluir a especial censurabilidade do seu comportamento. Não tem pois razão o recorrente, designadamente quanto ao que consta das conclusões g), q), r), s), t), ou u) da sua motivação.
6. Aponta-se ainda no acórdão recorrido a circunstância qualificativa de o arguido ter atuado utilizando meio insidioso, circunstância da al. i) do nº 2 do artº 132º do CP.
Como bem se refere no acórdão recorrido o meio insidioso não tem a ver só com o meio empregado a sim essencialmente, com o modo e as circunstâncias com que foi usado.
“Dos ensinamentos da moderna doutrina, parece, em síntese, e na realidade, poder concluir-se que "meios insidiosos" são os que se empregam de forma enganosa ou fraudulenta, e cujo poder mortífero se encontra oculto, surpreendendo a vítima, tornando-se extremamente difícil ou impossível a defesa.” (cf. fls. 1263).
O desvalor acrescido da atuação pauta-se aqui pela situação de especial vulnerabilidade em que se encontra a vítima, situação que por outro lado se deve ao facto de o agente ter atuado à traição, de surpresa, de modo que a vítima não podia prever.
A hora que o arguido escolheu para atuar, 4 da manhã, sabendo que a sua mãe estaria presumivelmente a dormir e sozinha em casa. Sabia ainda que sua mãe contava que ele estivesse na Figueira da Foz. Não parou o carro em casa, mas próximo desta, movimentou-se em casa descalço e sem fazer ruído (não consta dos factos provados que houvesse o hábito de as pessoas se descalçarem ao entrarem), e atacou a mãe durante o sono, tudo isto basta para que se possa afirmar a agravante qualificativa em questão. Ao contrário do que pretende o recorrente, designadamente nas conclusões e), j) e k) da sua motivação.
II - Medida da pena
A moldura penal do crime do art. 132º do C P é de 12 a 25 anos. Passemos então à medida da pena a aplicar, retomando considerações já constantes doutras decisões nossas, sem que tenhamos motivo para alterar o ponto de vista expresso.
1. Dir-se-á, então, que o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, para escolha da pena concreta a aplicar, não pode deixar de se prender com o disposto no art. 40.º do CP, nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. E, em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa. Ao julgador não compete retribuir a culpa, o que não impede o legislador de agravar um ilícito típico por força de circunstâncias inerentes à culpa.
Do mesmo modo, a chamada “expiação” da culpa ficará remetida para a condição de uma simples consequência positiva, quando tiver lugar, mas não pode ser arvorada em finalidade primária da pena. Sabido que, por expiação, se entende a compreensão da ilicitude e a aceitação da pena que cumpre, pelo próprio arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade. Para alguns, até, expiação reconduz-se à ideia de “conversão moral” do delinquente.
1. 1. Quanto aos fins utilitários da pena, importa referir que, se o artº 40º do C.P. optou por cumular a defesa dos bens jurídicos com a reintegração do agente na sociedade, não podemos deixar de ver, nesta última, uma finalidade especial preventiva, em versão positiva, e, na dita defesa de bens jurídicos, um fim último que se há de socorrer do instrumento da prevenção geral.
É que, “a defesa de bens jurídicos” é, ela mesma, em geral, o desiderato de todo o sistema repressivo penal, globalmente considerado, e não um fim que se possa considerar privativo das penas. Mais, toda a política social de prevenção da criminalidade não visa senão a proteção de bens jurídicos. Daí que a expressão deva ser entendida, em sede de fins das penas, como uma referência às finalidades preventivas que se não confundam com a reinserção social do delinquente.
Procuremos fazer, sinteticamente, algumas precisões, desde logo quanto ao conteúdo da prevenção geral que se quer prosseguir com a pena.
- Não está excluído que essa prevenção geral se faça sentir na sua vertente negativa ou intimidatória, devidamente controlada pela medida da culpa assacável ao agente. No entanto, a finalidade mais importante da pena, como instrumento de controlo social ao serviço da defesa dos bens jurídico-penais, analisa-se na vertente positiva da prevenção geral. Não se dirige portanto, enquanto tal, ao delinquente, ou aos potenciais delinquentes, mas sim ao conjunto dos cidadãos.
- No que foi, a seu tempo, o dizer de Günther Jakobs, encara-se a prevenção geral como processo de “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida”, como “modelo de orientação para os contactos sociais”, ou ainda como “réplica perante a infração da norma, executada à custa do seu infrator” (In “Derecho Penal. Parte General, Madrid, Marcial Pons, pág. 8 e segs.). Aqui se desenham, já, as vertentes que podem assinalar-se à própria prevenção geral positiva: um efeito de confiança, outro pedagógico e ainda um efeito de revivescência do próprio ordenamento jurídico.
- O efeito de confiança efetiva-se quando os cidadãos verificam que o direito se cumpre e por essa via se sentem mais seguros. É um efeito de satisfação das expectativas depositadas na seriedade da advertência, ínsita na previsão normativa penal. O efeito pedagógico retira-se da criação ou do reforço da autocensura individual, daqueles que têm que refrear os seus impulsos para cometer crimes e não os cometem. Os quais experimentam, mais ou menos conscientemente, uma satisfação dupla: com o sofrimento do criminoso que tem que cumprir pena por ter cometido o crime, e com o facto de o próprio ter resistido ao crime, subtraindo-se a qualquer pena. Do ponto de vista lógico, também a norma jurídica, enquanto tal, para se afirmar como obrigatória, necessita de atribuir consequências que se vejam efetivadas, para o caso de não ser observada.
- Sendo junto da comunidade que se pretende fazer sentir o efeito da prevenção geral positiva, a auscultação das expectativas comunitárias, ou do sentimento jurídico coletivo, torna-se ponto de passagem obrigatório quando o julgador é chamado a selecionar medidas de pena. Nesta tarefa, para além de falta de dados empíricos, em geral, não pode olvidar-se que a opinião pública reage muitas vezes de modo exclusivamente emocional, é flutuante, tende a procurar encontrar bodes expiatórios, ou então, deixa-se conduzir pela comunicação social de modo acrítico.
Também se não podem escamotear as dificuldades que se deparam ao juiz para decifrar o sentimento jurídico coletivo, numa sociedade plural orientada por valorações sociais tantas vezes contraditórias (não é o caso dos autos). Sociedade que pode confinar-se à comunidade local, ou a todo o país, se a comunicação social se fez eco do crime. E, tantas vezes, o julgador tem perante si um crime só conhecido de um círculo muito restrito de pessoas, ou que causou um impacto que não vê manifestar-se.
- Daí que procure recolher, para uso próprio, apenas o sentimento comunitário que, a seu ver, se justifique que deva ser atendido. Isto por um lado. Por outro, poderá ser obrigado a ter em conta expectativas comunitárias, que ele julgador configura que provavelmente viriam a ser desencadeadas, caso o crime tivesse sido do domínio público, nos casos em que o não foi.
1. 2. Quanto à prevenção especial, sabe-se como pode ela operar através da “neutralização-afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida, e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa (Vide, a propósito, v.g. Roxin in “Derecho Penal-Parte Especial”, Tomo I, Madrid, Civitas, 1997, pág.86). Modificação que se não pode impor, obviamente, mas que se pode e deve proporcionar. Vemos no desiderato legal da “reintegração do agente na sociedade” a vertente positiva da prevenção especial, sem se olvidar a utilidade dos efeitos negativos do afastamento, em casos muito contados, tal como, ainda, da intimidação ao nível individual.
Por isso é que a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de finalidades garantísticas, e só do interesse do arguido.
1. 3. Quando, pois, o artº 71º do C. P. nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele artº 40º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, (Cfr. “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, pags. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar, por um lado, excluirá que a expressão “em função da culpa do agente” possa ser vista, como uma recuperação de propósitos retributivos enquanto tais. Por outro lado, reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica:
A partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela dos bens jurídicos com atenção às expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cfr. Idem pág. 229).
Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão atuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A prevenção geral negativa ou intimidatória surgirá como uma consequência de todo este procedimento.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir.
O nº 2 do artº 71º do C. P. manda atender, na determinação concreta da pena, “ a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime.
2. O grau de ilicitude da atuação do recorrente é-nos revelado desde logo pela moldura penal abstrata prevista para a prática de um crime de homicídio qualificado. Pretender tirar a vida a alguém é querer atingir o bem jurídico mais valioso do nosso sistema penal, em congruência com a hierarquia de valores plasmada na Constituição. Provoca uma compreensível apreensão e um justificado sentimento de rejeição, por parte da população, pelo que, em termos de prevenção geral positiva, se fazem sentir exigências muito importantes.
No caso concreto, a repercussão do crime cometido, na cidade de Coimbra e no país, foi um facto. Por isso que a sub moldura do caso se deva afastar, sensivelmente, no seu limite inferior, do limite mínimo da moldura legal. Mas o limite colocado pelo grau de culpa (censura), que o arguido deve suportar, deve situar-se a um nível elevado. O comportamento do recorrente revela uma intensidade dolosa grande, dentro da modalidade de dolo direto, e cifrada sobretudo na atuação letal: usou uma almofada com uma mão, e com a outra vibrava golpes com insistência, para obter o resultado pretendido, sabido que, estudante de medicina como era, escolheu os sítios do corpo da mãe que, atingidos, mais eficazmente lhe podiam tirar a vida (ponto VII).
Em matéria de prevenção especial os dados disponíveis também reclamam algumas exigências. Na verdade, sem se colocar a questão da sua imputabilidade, o arguido apresentava à data do crime um quadro psicológico marcado pela perturbação emocional. Cresceu num ambiente familiar que lhe proporcionou educação e boas condições materiais em geral, mas também veio a adquirir uma personalidade com distanciamento afetivo e fraca tolerância à frustração (ponto XII).
Como circunstâncias gerais agravativas não podemos esquecer os motivos que originaram o crime - alegadamente a irritação provocada pela insistência da mãe relativamente ao arguido “se aplicar mais nos estudos, crescer e se tornar mais responsável”. Também o comportamento do recorrente posterior ao crime, de encenação de um roubo, com relevo para a corda que dependurou da varanda, bem como a demais dissimulação da sua atuação, têm peso agravativo.
Quanto às atenuantes, dir-se-á que tinha 23 anos e estava bem inserido socialmente. Confessou parcialmente os factos e colaborou com as autoridades, mas só a partir do momento em que a investigação fez recair todas as suspeitas sobre si. Não tinha passado criminal, o que pouco releva, porque por um lado essa é a exigência que se faz a todos os membros da sociedade, e por outro o recorrente era jovem.
Tudo visto, entende-se não haver motivos para alterar a pena aplicada no acórdão recorrido.
D - DELIBERAÇÃO
Pelo exposto se decide no S T J e em conferência negar provimento ao recurso mantendo-se o decidido no acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça de 5 UC.
Lisboa, 18 de Outubro de 2012
Souto de Moura (Relator)
Isabel Pais Martins