I - Os certificados de aforro são títulos de dívida pública, nominativos e amortizáveis, destinados à captação da poupança familiar, transmissíveis por morte do respectivo titular.
II - Celebrado um contrato de subscrição de certificados de aforro, entre um particular e o Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público, I.P., o resgate daqueles certificados só pode ser efectuado pelo titular, por um seu mandatário com poderes especiais para o efeito ou ainda pelo movimentador registado para essa subscrição.
III - A responsabilidade decorrente da violação de um contrato de subscrição de certificados de aforro, designadamente quando seja invocado o resgate indevido de certificados, enquadra-se numa situação típica de responsabilidade contratual, incumbindo ao particular a prova do facto ilícito e ao IGCP alijar a presunção de culpa que sobre ele recairá, caso se prove a ocorrência de facto ilícito – cf. arts. 342.º, n.º 2, e 799.º, n.º 1, do CC.
IV - Só a partir de 31-07-2007, data da entrada em vigor do regime jurídico consagrado pelo DL n.º 273/2007, de 30-07, é que o IGCP passou a ter, entre outras, as funções de “prestar serviços bancários” e “estabelecer os montantes a cobrar aos interessados pela prestação de serviços conexos com a emissão, subscrição, transmissão e reembolso de valores representativos de dívida pública, bem como pela prestação de serviços bancários” (cf. arts. 5.º, n.º 1, al. g), 6.º, n.º 1, al. e), e 11.º, al. i), respectivamente), sendo-lhe aplicáveis, a partir dessa data, os princípios que regem a segurança e a prudência bancárias, não podendo essa disciplina jurídica ser aplicada a factos ocorridos em data anterior à vigência daquele diploma.
V - Se o autor não conseguiu provar que o resgate dos certificados de aforro, de que era titular, não foi efectuado por si, mas por um terceiro, tendo-se provado, tão só, que o réu IGCP procedeu à emissão de dois cheques à ordem do autor, com cláusula “não à ordem” – titulando o valor dos certificados de aforro –, a quem lhe apresentou dois documentos intitulados “resgate”, assinados na presença de funcionários daquele réu, mediante a exibição de uma fotocópia (certificada) do bilhete de identidade do autor, não se pode considerar que ocorra qualquer facto ilícito.
VI - Mesmo que se provasse a ocorrência de facto ilícito, a mera utilização, por parte de uma pessoa, de uma cópia certificada de um documento de identificação – legalmente admissível – não tem de ser necessariamente considerada como um factor ou motivo de suspeição, nem pode conduzir, por si só, à conclusão de que existiu negligência ou violação de deveres de cuidado por parte dos funcionários do IGCP, ainda para mais se as assinaturas constantes daquele documento e as apostas nos documentos de resgate, feitas na presença dos funcionários deste réu, não apresentavam dissemelhanças constatáveis a olho nu, que permitissem duvidar que não tivessem sido escritas pelo próprio punho do autor.
VII - A abertura de uma conta bancária não exige que se exiba o respectivo documento original de identificação, equiparando a lei os documentos autenticados aos respectivos originais.
VIII - Se, em concreto, se provou que, para efeitos da abertura da conta, foi preenchida e entregue ao banco 2.º réu a ficha de assinaturas, rubricada na presença dos seus funcionários, tendo a assinatura sido conferida pela cópia certificada do bilhete de identidade do próprio autor, não estando provado que aquela conta não tivesse sido aberta pelo autor, nem se tendo provado que foi um terceiro, que não o autor, quem levantou, do balcão do banco, a quantia correspondente àquela conta, não se demonstra que tenha ocorrido a prática de qualquer facto ilícito ou a violação grosseira dos deveres de diligência do banco, apreciados à luz das regras da experiência comum e usos bancários.
Revista nº 1765/06.1TVLSB.L2.S1[1]
I – RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., nº …, ….º …, intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra o Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público, I.P., com sede na Avª. da República, nº 57, 6.º, Lisboa e a Caixa Geral de Depósitos, S.A., com sede na Avª. João XXI, nº 63, Lisboa, pedindo que sejam condenados, solidariamente, a pagar-lhe a quantia de 111.709,00€, acrescida dos juros de mora que se vencerem a partir da citação e até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que pretende efectivar a responsabilidade contratual do 1.° réu, IGCP, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu, em virtude do incumprimento do contrato de subscrição de certificados de aforro celebrado entre ambos, por este réu ter permitido, negligentemente, o resgate ilícito, por terceiros, de tais certificados que eram da titularidade do autor, não verificando a assinatura deste, nem a certificação do seu bilhete de identidade, que eram falsas, sendo certo que o 1.º réu só podia, legalmente, promover o resgate e entregar o respectivo valor ao autor, seu titular.
Já quanto à 2.ª ré, CGD, o autor pretende efectivar a sua responsabilidade extracontratual, pelos mesmos danos, por ter permitido, negligentemente, a abertura, por terceiros e de forma fraudulenta, de uma conta bancária em nome do autor, na qual se procedeu ao depósito e ao levantamento dos cheques emitidos pelo 1.° réu para pagamento do resgate mencionado.
Regularmente citados, contestaram ambos os réus.
O 1.° impugnou a factualidade alegada e concluiu pedindo a improcedência da acção, já que os seus funcionários procederam com a diligência necessária e deram cumprimento a todos os deveres a que o IGCP estava obrigado.
A CGD impugnou igualmente a matéria aduzida pelo autor por entender que observou todas as normas e princípios a que estava adstrita pelos usos bancários, argumentando que não existiu da parte dos seus funcionários qualquer comportamento que possa ser conotado com falta de zelo ou negligência geradora de qualquer tipo de responsabilidade.
O autor replicou, mantendo a versão expressa em sede de petição inicial.
Proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e controvertida, realizou-se prova pericial (cf. relatório inserto a fls. 477 a 483) e efectuou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus dos pedidos (fls. 629 a 639).
Inconformado, apelou o autor, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão datado de 23/11/11, decidido anular a decisão de facto quanto às respostas aos arts. 5.º, 10.°, 14.° e 17.° da base instrutória e, consequentemente, a sentença recorrida, ordenando a repetição do julgamento quanto a esses pontos da base instrutória (fls. 727 a 752).
Repetiu-se o julgamento, nos termos determinados, respondendo-se aos citados arts. n°s 5, 10, 14 e 17 da matéria de facto. Seguidamente foi proferida nova sentença, tendo o tribunal de 1.ª Instância decidido nos mesmos termos, julgando a acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolvendo os réus dos pedidos contra si formulados (fls. 820 a 831).
O autor apelou de novo, tendo a Relação de Lisboa, por acórdão de 06/12/12, por unanimidade, julgado improcedente a apelação e confirmado a sentença, com a consequente absolvição dos réus dos pedidos (fls. 945 a 977).
Mantendo-se irresignado, o autor interpôs, agora, recurso de revista, para este Supremo Tribunal, concluindo, assim, as suas alegações (fls. 1033 a 1040):
1. Com a presente Revista pretende o ora Recorrente a revogação da decisão recorrida, atenta a errónea aplicação do Direito à factualidade vertida nos autos, em violação dos institutos jurídico-civis da responsabilidade civil contratual e extracontratual, o que motivará a condenação das ora Recorridas no pedido formulado;
2. Ficou demonstrado que o ora Recorrente era titular de contas de certificado de aforro abertas junto do Instituto de Gestão da Tesouraria e Crédito Público, I.P.;
3. Entre o ora Recorrente e o Primeiro Recorrido foi celebrado um contrato específico de subscrição de certificados de aforro, sujeito a um regime legal próprio, constante do Decreto-Lei n°. 172-B/86;
4. A existência de um contrato com um regime contratual próprio desenhado na lei não importa a inaplicabilidade das regras gerais da responsabilidade contratual previstas no Código Civil, se e quando haja um incumprimento do mesmo;
5. Mesmo face a um contrato legalmente tipificado e com um regime próprio toda a doutrina e regime geral do cumprimento e não cumprimento das obrigações tem plena susceptibilidade de aplicação;
6. As regras da responsabilidade contratual assentam nos comandos gerais do artigo 483.° do Código Civil e que são próprias da responsabilidade civil extracontratual;
7. A grande diferença entre ambos os tipos de responsabilidade assenta na matéria relativa ao ónus da prova da culpa no (in)cumprimento das obrigações, conforme resulta do artigo 799.°, n°. 1, quando em contraposição com o disposto no artigo 487.°, n°. 1, ambos do Código Civil;
8. Demonstrada a existência de uma relação contratual, resultou invertido o ónus da prova no cumprimento das obrigações emergentes de tal relação jurídica, ficando assim inquinada, por erro na aplicação do Direito, a decisão recorrida que considerou que o ónus da prova no incumprimento contratual cabia ao ora Recorrente;
9. Sem prejuízo da presunção de culpa incidente sobre o Primeiro Recorrido, o ora Recorrente fez mais do que aquilo a que estava obrigado, visto ter demonstrando a culpa concreta do Primeiro Recorrido no incumprimento das suas obrigações;
10. O Tribunal recorrido estava munido dos elementos necessários a uma correcta aplicação jurídica do direito aos factos em crise nos presentes autos;
11. Celebrado o contrato de subscrição de certificados de aforro ficou o Primeiro Recorrido obrigado ao cumprimento das obrigações próprias do regime legal que regula este tipo contratual, e, em particular, ao cumprimento da obrigação de apenas aceitar uma ordem de resgate dos fundos por parte de quem demonstrasse ser o efectivo titular da conta;
12. Ao Primeiro Recorrido cabia demonstrar o uso da diligência e zelo necessários e próprios de uma instituição com a natureza do ora Primeiro Recorrido no cumprimento das suas obrigações;
13. Presidem à relação em crise nos presentes autos princípios fundamentais de segurança, certeza e prudência jurídicas, estes impostos como forma de protecção da parte mais fraca;
14. Semelhantes desígnios têm que ser preservados com maior acuidade por uma Instituição do Estado Português como é o Primeiro Recorrido;
15. Ao Primeiro Recorrido são aplicáveis os princípios básicos da segurança e prudência bancárias, ficando este obrigado à sua estrita observância, com os contornos que lhes são próprios, dado ser este um sector especialmente dominado pelo valor da confiança;
16. Tal circunstância decorre do Preâmbulo do diploma que criou o ora Primeiro Recorrido, que determina a assumpção de uma natureza próxima das Instituições financeiras;
17. O contrato de subscrição de certificados de aforro tem uma natureza análoga à figura do contrato de depósito bancário, pelo que o Primeiro Recorrido ficou investido na obrigação de guarda e conservação dos fundos junto de si depositados;
18. Tal facto determina que o Primeiro Recorrido só se desoneraria das suas obrigações para com o ora Recorrente, houvesse cumprido perante ele ou perante pessoa devidamente autorizada, como é próprio do regime jurídico que regula este contrato;
19. Aquela obrigação foi totalmente atropelada pelo Primeiro Recorrido, que aceitou, como documento de identificação válido, uma fotocópia certificada de bilhete de identidade, quando a lei exige a apresentação de um documento autêntico para efeitos do disposto no artigo 363.° do Código Civil, não substituível por documento com força probatória inferior;
20. Considerado o círculo especial de relação e actuação do agente, o Primeiro Recorrido muito mais cuidado teria que ter na conferência da identidade de quem se apresenta como aforrista e movimentador;
21. Resultando provado que a identificação do titular da conta assentou na conferência de fotocópia autenticada do bilhete de identidade do ora Recorrente, ficou demonstrado o incumprimento do Primeiro Recorrido das suas obrigações legais e contratuais;
22. O referido incumprimento consubstancia um verdadeiro e facto ilícito grosseiramente negligente susceptível de indemnização;
23. Destarte, violaram-se os padrões de exigência impostos ao bom pai de família, enquanto homem médio do circuito de actuação do ora Primeiro Recorrido, atentas as exigências que a este tipo de instituições são impostas e que derivam do seu próprio estatuto, cabendo assim ao Primeiro Recorrido elidir a presunção de culpa que sobre si recai enquanto depositário (bancário) de certificados de aforro;
24. Vai, pois sancionando o entendimento da Relação de Lisboa, quando impõe ao ora Recorrente o ónus da prova da culpa do lesante;
25. Além do mais, o quadro legal que circunda a relação jurídica estabelecida constitui um campo normativo destinado à protecção de direitos de terceiro;
26. O Primeiro Recorrido é uma instituição profissional no âmbito da sua área de actuação, o que impõe o cumprimento de regras e princípios profissionais em si mesmo considerados;
27. As regras e princípios profissionais são geradores de confiança enquanto valor máximo tutelado pelo direito, devendo observar-se estritamente o normativo vertido nos artigos 73.° e seguintes do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras que se destinam à protecção de interesses alheios nos termos e para os efeitos do artigo 483.°, n°. 1 do Código Civil;
28. Todos os restantes pressupostos da responsabilidade civil estão preenchidos, visto a relação material controvertida assentar no campo da aplicação da doutrina do valor efectivo do negócio jurídico com relevo no tráfego jurídico-económico;
29. Aquela impõe maiores exigências de cuidado por parte do interveniente profissional no tráfego jurídico-económico atenta a criação de um grau de confiança tutelável de per si;
30. A quebra de confiança reside, in casu, no não cumprimento das obrigações de zelo e diligência impostas ao Primeiro Recorrido;
31. Em qualquer circunstância, não pode o ora Recorrente ser carregado com o ónus da prova da culpa do Primeiro Recorrido, sob pena de se desconsiderar o valor da boa fé enquanto princípio do Direito destinado a manter o equilíbrio das partes;
32. O Primeiro Recorrido tinha a possibilidade de se escudar em critérios técnicos próprios da sua profissionalidade, pelo que a sua culpa há-de ser presumida, caso se considere estar no domínio da responsabilidade aquiliana;
33. Impor ao Primeiro Recorrido este ónus consubstancia um custo da sua própria profissionalidade, visto que aquele estava em posição privilegiada para afastar a presunção de culpa sobre si incidente, sopesadas as características da sua profissionalidade na actuação no mercado;
34. Exigir do ora Recorrente prova do contrário representa uma verdadeira diabólica probatio o que não se compagina com os padrões gerais da boa-fé;
35. O cumprimento obrigacional pelo devedor está submetido a princípios gerais, cuja ausência leva a questionar a regularidade daquele, cabendo assim ao lesante justificar o porquê de semelhante ausência procedimental;
36. Ao lesado cabe apenas demonstrar a ausência do comportamento procedimental, caso em que ao lesante cabe demonstrar que agiu licitamente, presumindo-se assim a culpa na ausência;
37. Também a conduta da Segunda Recorrida é manifestamente ilícita e sancionável sob o prisma da responsabilidade civil extracontratual, porquanto ter permitido a abertura de conta, depósito de cheques "não à ordem" e respectivo desconto em clara violação de princípios bancários transversais à relação jurídica bancária e às directrizes do Banco de Portugal, pondo em crise a segurança própria do sistema bancário
38. O sector bancário assenta no rigor proporcionado por um apertado sistema de controlo e de supervisão dos bancos que visa dar suficientes garantias aos particulares de que a realização de outras operações bancárias só é feita dentro do condicionalismo expressa ou tacitamente acordado;
39. Semelhantes princípios têm maior relevo quando a relação bancária assenta na emissão, depósito e movimentação de cheques não à ordem, dado que esta cláusula implica a impossibilidade de circulação do mesmo por endosso;
40. No caso em crise nos presentes autos o procedimento de abertura de conta que permitiu a posterior movimentação dos cheques sacados pelo Primeiro Recorrido está absolutamente inquinado por um conjunto de factos ilícitos que põem em crise o valor máximo da confiança numa relação jurídica bancária, o que acarreta o dever de indemnizar;
41. No procedimento de abertura de conta bancária em questão foram violados os requisitos legais e cumulativos relativos a semelhante operação, ao permitir-se a abertura da mesma com base num documento de identificação sem força para o efeito;
42. No acto de abertura de conta não resulta dispensada a apresentação de documento autêntico, não resultando esta irregularidade sanada pela apresentação de um documento pretensamente certificado;
43. Permitir a abertura de conta com base num documento com força probatória inferior ao legalmente exigido põe em crise os normativos do Banco de Portugal relativos a essa matéria, visto ser aqui que os princípios de prudência, certeza e segurança bancárias ganham maior intensidade, em virtude da segurança e confiança inerentes;
44. Além do mais, ainda que o Aviso do Banco de Portugal n°. 11/2005 não vigorasse à data da prática dos factos, este não pode deixar de chamar-se à colação no que aos requisitos de abertura de conta concerne, dado que este plasma no ordenamento jurídico exigências de segurança e confiança de há muito exigidas na prática bancária;
45. Decorre assim que a Segunda Recorrida incumpriu com as obrigações de zelo, prudência, diligência e segurança que são inerentes ao seu estatuto de instituição bancária com regulação própria, o que determina o seu sancionamento pela via indemnizatória;
46. O comportamento da Segunda Recorrida não é pois compaginável com os desígnios da correcta praxis bancária devendo por isto esta ser condenada no pagamento da indemnização peticionada nos autos;
47. No entanto, crê-se mesmo que, independentemente de se ter demonstrado a existência de culpa por parte da Segunda Recorrida, não o tinha sequer que fazer, pois toda a doutrina a propósito da presunção de culpa no âmbito da responsabilidade civil nos termos supra apontados tem plena aplicação;
48. A Caixa Geral dos Depósitos ora Segunda Recorrida é a maior instituição de crédito existente em Portugal, pelo que tem que assumir os custos próprios da sua profissionalidade, competindo-lhe assim demonstrar o cumprimento de todos os princípios bancários;
49. Exigir do ora Recorrente a prova do incumprimento das obrigações bancárias por parte da Segunda Recorrida é exigir novamente deste uma verdadeira diabólica probatio atentatória dos princípios básicos da boa-fé, visto que os princípios e normas bancárias violadas constituem normas que se destinam à protecção de interesses alheios (cfr. artigo 483.°, n°. 1 do Código Civil);
50. Ficou demonstrado o juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente;
51. Ou seja, o mesmo é dizer que, relativamente a qualquer dos recorridos, demonstrou o ora Recorrente e logrou preencher, por inteiro, os legais pressupostos da responsabilidade civil: contratual e extra contratual;
52. Desta sorte, violou o Acórdão recorrido as regras da responsabilidade contratual e extracontratual no que ao ónus da prova concerne - cfr. arts. 799° n°. 1 e 483.° e seguintes do Código Civil -, estando, por isso, devidamente demonstrados os factos ilícitos perpetrados pelas duas entidades ora recorridas,
Os réus contra-alegaram (1.º réu de fls. 1069 a 1089 e 2.ª ré de fls. 1061 a 1065), pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
São as seguintes as questões suscitadas que importa apreciar e decidir:
a) Se há responsabilidade contratual do 1.º réu, IGCP, I.P.;
b) Se há responsabilidade extracontratual da 2.ª ré, CGD, S.A..
DE FACTO
A matéria de facto que vem provada é a seguinte:
I. O Autor é titular da conta aforro n.º ..., à qual estavam afectos 12.000 unidades de certificados de aforro série B, que foram subscritos (subscrição …) pelo Autor em 07-06-1989 junto do 1.º R (al. A) dos factos assentes).
II. Em 26-10-2004, foi efectuado pelo 1.° R. o pagamento do valor dos certificados de aforro aludidos em A), tendo para o efeito sido apresentados junto do mesmo os documentos cujas cópias se encontram juntas a fls. 25, intitulados “Resgate”, constando do primeiro:
“(...)
N.º Certificado …
Unidades 6377
Valor Unitário 8,89245
Valor do Resgate 56.707,15
(...)
Total: 56.707,15 EUR
Natureza do Requerente: Titular
Nome: AA
BI n.° …
Valor da Liquidação: 56.707,15 EUR
Cheque n.º …(...)"(al. B) dos factos assentes).
III. Do segundo documento cuja cópia ali se encontra junta consta:
“N.° Certificado …
Unidades 5623
Valor Unitário 8,89245
Valor do Resgate 50.002,25
(...)
Total: 50.002,25 EUR
Natureza do Requerente: Titular
Nome: AA
BI n.° ...
Valor da Liquidação: 50.002,25 EUR
Cheque n.° ... (...)” (al. C) dos factos assentes).
IV. Dos documentos aludidos em B) e C) consta a seguir aos dizeres "Assinatura do Requerente" uma assinatura onde se pode ler "AA" (al. D) dos factos assentes).
V. O pagamento do valor dos certificados de aforro pelo 1.º R. foi feito através da emissão de dois cheques sacados sobre a Caixa Geral de Depósitos, no valor, respectivamente, de € 56.707,15 e € 50.002,25, cheques esse cujas cópias constam de fls. 38 e 39 (al. E) dos factos assentes).
VI. Consta de tais cheques: "(...) à ordem de AA (...)", constando ainda dos mesmos a inscrição "Não à ordem " (al. F) dos factos assentes).
VII. Os cheques aludidos em E) foram depositados na conta n° ..., domiciliada junto da CG D e da qual consta como titular o A. (al. G) dos factos assentes).
VIII. No verso de tais cheques foi aposta uma assinatura onde se pode ler “AA”, no primeiro, e “AA”, no segundo (al. H) dos factos assentes).
IX. No momento referido em B), foi apresentada perante o 1.° R. uma fotocópia do B.I. do Autor, certificada por uma advogada de nome BB (al. I) dos factos assentes).
X. As assinaturas apostas nos documentos referidos em B) e C) foram feitas na presença de funcionários do 1.º Réu (al. J) dos factos assentes).
XI. Em 10-01-2006, o Autor dirigiu-se ao balcão de atendimento ao público do 1.° R., sito na Praça do Comércio de Lisboa, com o objectivo de proceder ao resgate das unidades de aforro aludidas em A) (resp. ao n.° 1 da BI).
XII. Nessa altura foi informado que todas as unidades tinham sido resgatadas e que a sua conta aforro se encontrava com saldo zero (resp. ao n.° 2 da BI).
XIII. Os funcionários do 1.° R. informaram o A. que o resgate já tinha sido efectuado em 26-10-2004 (resp. ao n.° 3 da BI).
XIV. Foi, ainda, dito ao A. que, aquando do resgate efectuado em 26-10-2004, foi exibida uma fotocópia do bilhete de identidade do titular da conta, certificada por uma advogada (resp. ao n.° 4 da BI).
XV. "BB" não consta como advogada nem como advogada estagiária nas bases de dados do Conselho Geral e de todos os Conselhos Distritais da Ordem dos Advogados (resp. ao n.° 8 da BI).
XVI. Para efeitos da abertura da conta aludida em G) foi preenchido e entregue à 2.ª R., no dia 27-10-04, o documento que se encontra junto a fls. 96 – ficha de assinaturas (resp. ao n.° 13 da BI).
XVII. Foi ainda preenchido e entregue à 2.ª R. o documento cuja cópia consta de fls. 40 (resp. ao n.° 16 da BI).
XVIII. A identificação do titular para abertura da conta foi feita com base na cópia certificada do Bilhete de Identidade junta de fls. 41 a 43 (resp. ao n.° 19 da BI).
XIX. A cópia do Bilhete de Identidade aludida no n.° 8 não corresponde ao Bilhete de Identidade que o A. tinha na altura (resp. ao n.° 21 da BI).
XX. As assinaturas constantes dos documentos aludidos em B) e C) foram conferidas por semelhança com a fotocópia do bilhete de identidade referida no n.° 4 (resp. ao n.° 33 da BI).
XXI. O documento referido no n.° 6 foi assinado na presença dos funcionários da 2.ª R. (resp. ao n.° 34 da BI).
XXII. Tendo tal assinatura sido conferida pela cópia do Bilhete de Identidade aludida no n.° 8 (resp. ao n.° 35 da BI).
XXIII. Aquando da abertura da conta foi apresentado aos funcionários da 2.ª R. o original do cartão de contribuinte cuja cópia consta de fls. 44 (resp. ao n.° 37 da BI).
XXIV. Conforme estipulado entre as partes, o Autor recebia trimestralmente um extracto da sua conta aforro n.° ... (resp. ao n.° 39 da BI).
XXV. Após a data em que a conta ficou saldada, tal extracto deixou de lhe ser remetido (resp. ao n.° 40 da BI).
DE DIREITO
A) Se há responsabilidade contratual do 1.º réu, IGCP, I.P.
O recorrente insiste em amparar que na situação sub judicio ocorre responsabilidade contratual do 1.º réu, criticando vigorosamente o acórdão recorrido, porquanto, afirma, “demonstrada a existência de uma relação contratual, resultou invertido o ónus da prova no cumprimento das obrigações emergentes de tal relação jurídica, ficando assim inquinada, por erro na aplicação do Direito, a decisão recorrida que considerou que o ónus da prova no incumprimento contratual cabia ao ora Recorrente” (conclusão 8.ª).
Particulariza o recorrente que “celebrado o contrato de subscrição de certificados ficou o Primeiro Recorrido obrigado ao cumprimento das obrigações próprias do regime legal que regula este tipo contratual, e, em particular, ao cumprimento da obrigação de apenas aceitar uma ordem de resgate dos fundos por parte de quem demonstrasse ser o efectivo titular da conta”, sendo certo que “aquela obrigação foi totalmente atropelada pelo Primeiro Recorrido, que aceitou, como documento de identificação válido, uma fotocópia certificada de bilhete de identidade, quando a lei exige a apresentação de um documento autêntico para efeitos do disposto no artigo 363.º do Código Civil, não substituível por documento com força probatória inferior” (conclusões 11.ª e 19.ª).
Por outro lado, aduz o recorrente que “o Primeiro Recorrido é uma instituição profissional no âmbito da sua área de actuação, o que impõe o cumprimento de regras e princípios profissionais em si mesmo considerados”, “(…) geradores de confiança enquanto valor máximo tutelado pelo direito, devendo observar-se estritamente o normativo vertido nos artigos 73.º e seguintes do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras que se destinam à protecção de interesses alheios nos termos e para os efeitos do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil” (conclusões 26.ª e 27.ª).
Antecipando a solução deste acórdão, desde já se indica que não assiste qualquer razão ao autor/recorrente, e que, inclusive, a decisão certeira e bem fundamentada do acórdão recorrido, poderia legitimar que nos cingíssemos a remeter para a sua fundamentação ex vi do art. 713.º, n.º 5, aqui aplicável por via do art. 726.º, ambos do CPC, sendo certo, porém, que, como se revelará, há um aspecto de enquadramento jurídico em que dela dissentimos.
Todavia, atendendo à especificidade da matéria, com tratamento jurisprudencial exíguo neste Supremo Tribunal, julgamos por bem desenvolver algumas explanações necessárias e complementares ao que já consta da decisão sindicada.
Pois bem. Está adquirido nos autos, sem que exista qualquer divergência das partes ou das instâncias a tal respeito, que foi celebrado entre o autor, ora recorrente, e o 1.º réu um contrato específico de subscrição de certificados de aforro.
Os certificados de aforro consistem num instrumento financeiro, instituído pelo art. 14.º do DL n.º 43453, de 30/12/1960, integrando, nos termos desse preceito, “títulos da dívida pública nominativos e amortizáveis (…) destinados a conceder uma aplicação remuneradora aos pequenos capitais” – cf., também, o art. 15.º, al. g), do citado diploma.
O produto de poupança em análise foi regulado inicialmente pelo Decreto n.º 43454, de 30/12/1960[3], e posteriormente revisto pelo DL n.º 172-B/86, de 30/06, constando o regime jurídico vigente do DL n.º 122/2002, de 04/05 – sem prejuízo da aplicação dos anteriores diplomas quanto à normação específica das séries de certificados ao abrigo dos quais elas foram emitidas.
Os certificados de aforro têm vindo a ser emitidos por séries, tendo a série aqui em apreço, denominada “série B”, sido autorizada pelo DL n.º 172-B/86, cuja subscrição foi terminada/fechada pela Portaria n.º 73-A/2008, de 23/01[4]. Este diploma, publicado ao abrigo do art. 4.º do DL n.º 122/2002, procedeu à criação de uma nova série, denominada “série C”, com as características constantes de ficha técnica anexa àquela Portaria, entretanto alterada pela Portaria n.º 230-A/2009, de 27/02.
A noção e características essenciais destes instrumentos financeiros, que consubstanciam uma das formas que pode assumir a dívida pública directa do Estado – cf. art. 11.º da Lei n.º 7/98, de 03/02 (que regula o regime geral de emissão e gestão da dívida pública directa do Estado) –, constam, presentemente, do art. 2.º do DL n.º 122/2002, que mantém a noção e as características essenciais que já constavam dos diplomas que o precederam – Decreto n.º 43454 e DL n.º 172-B/86.[5]
Destarte, segundo a definição legal vigente: “1. Os certificados de aforro são valores escriturais nominativos, reembolsáveis, representativos de dívida da República Portuguesa, denominados em moeda com curso legal em Portugal e destinados à captação da poupança familiar. 2. Os certificados de aforro só podem ser subscritos a favor de pessoas singulares. 3. Os certificados de aforro só são transmissíveis por morte do titular”.
Trata-se, pois, de títulos nominativos, amortizáveis, só transmissíveis por morte e “assentados” – cf. arts. 10.º do Decreto n.º 43454, e 3.º, n.º 1, do DL n.º 172-B/86 – exclusivamente a favor de pessoas singulares, inscritos, conforme dispõe o art. 3.º, n.º 1, do DL n.º 122/2002, em contas abertas junto do Instituto de Gestão do Crédito Público (IGCP)[6] ou junto de instituições financeiras devidamente autorizadas por esta entidade, em nome dos respectivos titulares.
A subscrição, datas de subscrição, saldos e demais elementos reveladores da situação jurídica dos certificados de aforro são comprovados por extractos de conta e de registo, emitidos pelo IGCP – art. 3.º, n.º 2, daquele diploma.
No exercício do acompanhamento das operações de dívida pública directa e da execução de todo processamento dos certificados de aforro – atribuição que lhe está conferida pelo art. 5.º, n.º 1, al. f), dos seus Estatutos, aprovados pelo DL n.º 160/96 (cf. as alterações sucessivas referidas na nota 6) –, o IGCP, em conformidade com o disposto no art. 10.º, n.º 1, al. a), do DL. n.º 122/2002, estabelecerá por instruções, a publicar na 2.ª série do Diário da República, os procedimentos relativos à abertura e movimentação das contas de aforro.
Em síntese, os certificados de aforro configuram uma das formas tradicionais de empréstimos públicos, apresentando-se como “títulos vencíveis a médio prazo, destinados em princípio à captação de pequenas poupanças e fortemente pessoalizados”[7], apresentando a vantagem, sobre outras aplicações financeiras a prazo, de não ter quaisquer custos de subscrição ou de resgate, nem custos de manutenção da carteira de certificados.
Considerando a data da subscrição dos certificados de aforro em discussão neste processo e o regime jurídico destes instrumentos de dívida constante do já citado DL n.º 172-B/86, releva mencionar, como o fez o acórdão recorrido, o respectivo art. 6.º, n.º 1, que contempla a seguinte disciplina:
“Devem constar do certificado de aforro o nome, a data de nascimento, o número do documento oficial de identidade e o número de aforrista, bem como o número do certificado, a data da sua emissão, a quantidade de unidades representadas, o valor global de aquisição e, se for caso disso, o nome de quem o poderá movimentar”.
Importa ter presente, concomitantemente, a instrução n.º 3/2004, concernente aos procedimentos relativos à abertura e movimentação das contas de certificados de aforro e à transmissão de certificados de aforro, que vigorava aquando do resgaste dos certificados de aforro pertencentes ao autor/recorrente.
Segundo esses procedimentos, a subscrição de certificados de aforro pressupõe a existência de uma conta aberta no IGCP, designada por conta aforro, em nome da pessoa que fica titular dos certificados, podendo a abertura da conta ser requerida pelo próprio titular ou por um terceiro. Nesse acto de abertura deve ser feita a apresentação do bilhete de identidade e do cartão de contribuinte do titular, ficando fotocópias desses documentos anexadas ao impresso de abertura de conta – cf. ponto 1.º, als. a), b) e c).
Por seu turno, o resgate de certificados pode ser efectuado pelo titular, por um seu mandatário com poderes especiais para o efeito ou ainda pelo movimentador registado para essa subscrição – cf. ponto 7.º, al. b).
No caso analisado, como não foi indicado no acto de subscrição qualquer movimentador para além do próprio autor, o resgate dos certificados de aforro só podia ser efectuado pelo próprio titular ou por mandatário com poderes especiais para esse fim.
Para tanto importa analisar, evidentemente, de que tipo de responsabilidade se cura e as questões de ónus da prova que o mesmo envolve.
Como é sabido, distingue-se, dentro da responsabilidade civil, entre responsabilidade civil delitual ou extracontratual e responsabilidade obrigacional ou contratual: na primeira está em causa a violação de deveres genéricos de respeito, de normas gerais destinadas à protecção de outrem ou da prática de actos delituais específicos; já a responsabilidade contratual resulta do incumprimento das obrigações. A distinção entre estas duas categorias de responsabilidade encontra-se reflectida no Código Civil, que trata separadamente cada uma delas nos arts. 483.º e segs. e 798.º e segs., tendo contudo sujeitado a obrigação de indemnização delas resultante a um regime unitário (cf. arts. 562.º e segs.)[8]
A distinção assinalada e a opção por uma das referidas categorias de responsabilidade civil não é irrelevante, existindo importantes dissemelhanças entre os dois regimes, designadamente, no tocante ao ónus da prova do cumprimento da obrigação - cf. art. 799.º, n.º 1 -, e aos prazos de prescrição - cf. arts. 309.º e 498.º.[9]
In casu, é insofismável que nos deparamos com uma situação teoricamente enquadrável no âmago da responsabilidade contratual, genericamente prevista no art. 798.º, onde se preceitua que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.
Conforme salienta Menezes Leitão, “[d]esta norma resulta uma clara equiparação dos pressupostos da responsabilidade obrigacional aos pressupostos da responsabilidade civil delitual, uma vez que também aqui se estabelece uma referência a um facto voluntário do devedor (“o devedor que”), cuja ilicitude resulta do não cumprimento da obrigação (“falta (…) ao cumprimento da obrigação”), exigindo-se da mesma forma a culpa (“culposamente”), o dano (“torna-se responsável pelos prejuízos”) e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (“que causa ao credor”)”, sendo certo, outrossim, que “[p]or outro lado, parece-nos que no art. 798.º existe igualmente uma clara distinção entre a ilicitude (o incumprimento da obrigação) e a culpa (a censurabilidade ao devedor desse incumprimento), a qual não é diferente da contraposição entre a violação do direito subjectivo e a culpa no art. 483.º”.[10]
Analisando o art. 483.º, cujo regime é transponível, como se vê, com as devidas adaptações, para a área da responsabilidade contratual, dispõe o mesmo, como princípio geral na área da responsabilidade civil, que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Reduzindo todos estes requisitos à terminologia corrente na doutrina, dir-se-á que a responsabilidade pressupõe, nesta zona: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante (culpa); d) o dano; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Para que o facto ilícito seja gerador de responsabilidade é necessário que o agente tenha actuado com culpa, no sentido de que a sua conduta seja merecedora de reprovação ou censura do direito, o que sucederá quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo: a ilicitude e a culpa são elementos distintos; aquela, virada para a conduta objectivamente considerada, enquanto negação de valores tutelados pelo direito; esta, visando sobretudo o lado subjectivo do facto jurídico. Por último é mister que o dano se apresente como uma consequência necessária do facto ilícito praticado; que o primeiro surja como consequência deste último.
A culpa lato sensu é susceptível de abranger o dolo, e a culpa stricto sensu ou mera negligência que se traduz, grosso modo, na omissão pelo agente da diligência ou do cuidado que lhe era exigível, envolvendo, por seu turno, as vertentes consciente e inconsciente. No primeiro caso, o agente prevê a realização do facto ilícito como possível mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua inverificação; no segundo, o agente, embora o pudesse ou devesse prever, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não o previu.
Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, perante as circunstâncias de cada caso (art. 487.º, n.º 2), o critério legal de apreciação da culpa tem em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do evento em causa, por referência a uma pessoa normal.
Pela conjugação dos arts. 799.º, n.º 2, e 487.º, n.º 2, resulta que a bitola veiculada pela lei é a do bom pai de família (bonus pater familiae), ou seja, a diligência que um homem normal teria em face do condicionalismo próprio do caso concreto; naturalmente que quanto maior for o valor do bem que a conduta visa produzir ou salvaguardar, mais forte será o imperativo de cautela que recai sobre o devedor.[11]
Indo ao ajuizado, o acórdão recorrido considerou que o IGCP, I.P., tem, entre outras funções, a de “prestar serviços bancários” (cf. arts. 5.º, n.º 1, al. g), e 6.º, n.º 1, al. e)) e “estabelecer os montantes a cobrar aos interessados pela prestação de serviços conexos com a emissão, subscrição, transmissão e reembolso de valores representativos de dívida pública, bem como pela prestação de serviços bancários” (cf. art. 11.º, al. i), do DL n.º 273/2007), dissertando que, ao exercer a sua actividade de resgate dos certificados de aforro – através da qual o IGCP entrega ao autor nominativo dos referidos certificados o valor em dinheiro correspondente aos certificados adquiridos, com os juros entretanto vencidos –, o 1.º réu “desenvolve uma actividade que, nesta parte, apresenta similitudes com a exercida pelos serviços de qualquer Banco, tanto assim que a própria lei a designa, expressis et apertis verbis, como constituindo uma «prestação de serviços bancários». Assim sendo, temos para nós que lhe são aplicáveis os princípios que regem a segurança e a prudência bancárias” (cf. pág. 20, fls. 964).
Salvo o devido respeito, neste ponto, não podemos acompanhar, de todo, o acórdão recorrido, porquanto, contrariamente ao que ali se consignou, à data da prática dos factos aqui relevantes – 26/10/2004 – ainda não vigorava a disciplina daquele diploma legal, apresentando o IGCP uma configuração jurídica diversa daquela que é mencionada no aresto recorrido, cuja disciplina apenas entrou em vigor em 31/07/2007, ex vi do art. 10.º do citado DL n.º 273/2007.
Ou seja, só a partir desta última data é que o legislador passou a tratar a actividade do IGCP, I.P., também, expressis e apertis verbis, como de “prestação de serviços bancários”, não se podendo fazer idêntica equiparação de regimes no momento em que ocorreram os factos que aqui assumem relevo.
Escoltando-nos no que se exarou no Acórdão deste STJ, de 13/11/2007[12], a haver responsabilidade civil do 1.º réu a mesma tem de ser encontrada neste preciso percurso: na apresentação dos requerimentos de resgate e na passagem dos cheques. E esses factos, repete-se, deram-se em período temporal anterior à da vigência do diploma que o acórdão recorrido refere para sustentar a sua opção (sendo certo, ademais, que a acção foi instaurada, inclusive, antes daquele diploma ser aprovado…).
Na verdade, naquela data – repete-se, 26/10/2004 – a actividade do IGCP não era equiparada à das entidades bancárias, cingindo-se a “intervir no mercado da dívida pública, designadamente, comprando e ou vendendo títulos, à vista ou a prazo, por conta do Estado ou de fundos sob a sua gestão (…)” (cf. art. 56.º, n.º 1, al. h), dos Estatutos do IGCP, na redacção introduzida pelo DL n.º 455/99, de 05/11), pelo que a densificação da responsabilidade bancária, a respeito da qual o acórdão recorrido tece considerandos – citando abundante jurisprudência e doutrina, com a qual se concorda em tese (cf. págs. 20/23, fls. 964-967) – não pode por nós ser acolhida, para ser transposta tout court para o caso em apreço.
Desta forma e no âmbito da responsabilidade contratual em apreço neste processo, ter-se-á de sopesar, com especial ênfase, a responsabilidade contratual do IGCP, densificando o critério geral do bom pai de família que deverá ser, in casu, o critério de um bom profissional da categoria e especialidade do devedor à data da prática do facto, tendo presentes os quadros da responsabilidade contratual geral.[13]
Como se verá, todavia, os resultados a que chegamos não se afastam da solução que, a final, foi acolhida pela Relação de Lisboa.
Conforme explica Rita Lynce de Faria: “No direito português o ónus da prova é, assim, não um ónus subjectivo, mas um verdadeiro ónus objectivo, traduzindo-se, portanto, para a parte a quem compete, na necessidade de sofrer as consequências da falta de prova do facto visado, caso os autos não contenham a prova bastante desse facto (trazida ou não pela parte). (…) O ónus da prova encontra-se, deste modo, directamente associado a um risco processual: o risco de, sendo insuficiente a prova produzida, a parte ver desatendida a sua pretensão. Perguntar quem suporta o ónus da prova corresponde, assim, em saber quem suporta o risco processual. É, de resto, o que resulta do art. 516.º do Código de Processo Civil, único artigo respeitante ao ónus da prova que, inexplicavelmente, permanece neste código”[15].
Neste âmbito, da responsabilidade contratual, ao contrário do que ocorre com a responsabilidade extracontratual, compete ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua. E isto é assim, apesar da regra geral do art. 342.º, n.º 1, porque a lei estabelece uma presunção de culpa neste tipo de responsabilidade (art. 799.º, n.º 1). Bastará ao credor provar que a obrigação não foi cumprida ou que foi cumprida defeituosamente (facto ilícito), não tendo, porém, de provar a culpa do devedor, já que é a este que pertence o ónus de provar que esse não cumprimento ou cumprimento defeituoso não emergiu de uma conduta culposa da sua parte. O ónus da prova da ausência de culpa, pertence, pois, no domínio da responsabilidade contratual, ao devedor[16].
Destarte, uma vez provados os restantes elementos da responsabilidade civil (base da presunção de culpa), presume-se que o devedor actuou com culpa, cabendo-lhe, ao devedor, provar o contrário.
A culpa do devedor, nesta sede, é apreciada nos termos gerais da responsabilidade civil – cf. art. 799.º, n.º 2 –, vigorando para a responsabilidade contratual, tanto os critérios de fixação da imputabilidade estabelecidos no art. 498.º, como o princípio basilar de que a culpa do devedor se mede em abstracto, tendo como padrão a diligência típica de um bom pai de família, e não em concreto, de acordo com a diligência habitual do obrigado.[17]
Resumindo, o ónus da prova do facto ilícito, na situação apreciada, incumbia ao autor/recorrente, nos termos do art. 342.º, n.º 1, ao passo que o ónus da prova da ausência de culpa competia ao devedor, que alegadamente teria incumprido as suas obrigações: isso era decisivo para o sucesso da demanda, pois só há que apreciar se ocorreu culpa, perante a constatação prévia da verificação de um facto ilícito.
E aqui reside o ponto crucial que dirime todo o litígio: o autor/recorrente, contrariamente às longas alegações e conclusões que tece, não conseguiu provar, de modo algum, que o resgate dos certificados de aforro não foi feito por si, mas por um terceiro, tendo-se provado, tão só, que o 1.º réu procedeu à emissão de dois cheques à ordem do autor, com cláusula “não à ordem”, titulando o valor dos certificados de aforro a quem lhe apresentou os dois documentos intitulados “resgate”, assinados na presença de funcionários do 1.º réu, mediante a exibição de uma fotocópia (certificada) do bilhete de identidade do autor.
Tal como decidiu o acórdão recorrido, nada se provou nos autos que permita assacar qualquer responsabilidade contratual ao 1.º réu, ao contrário do que pretende o autor/recorrente, sendo a matéria de facto insindicável pelo STJ. Na realidade, o recorrente parte de uma premissa que não se apurou, estando o STJ cingido a apreciar juridicamente o acervo factual que está dado por provado e apenas lhe competindo zelar pela correcta aplicação do direito (art. 729.º, n.º 1, do CPC), mas não censurar aquele julgamento de facto (o que apenas lhe seria permitido nos limites legais delimitados pelo art. 722.º, n.º 2, do CPC, que se reporta às situações fronteira de violação das regras de direito probatório material/prova vinculada).
Com efeito, frisa-se, não resulta da matéria julgada provada que os valores dos certificados de aforro tenham sido entregues a uma terceira pessoa, caindo pela base toda a argumentação deduzida pelo autor/recorrente que se baseia, igualmente, na violação da Instrução n.º 3/2004 – que estabelece que o resgate dos títulos apenas poderia ser efectuado pelo seu titular, por um procurador com poderes especiais ou por um movimentador registado para esse fim.
Ou seja, ao não ter logrado demonstrar que foi uma terceira pessoa quem resgatou os títulos, o autor/recorrente não foi capaz de provar que o 1.º réu/recorrido, IGCP, cometeu qualquer facto ilícito.
Permitimo-nos, ademais, recapitular o que a este respeito se exarou na decisão em análise, à qual aderimos incondicionalmente: “(…) não resultou provado que o valor pago com o resgate dos certificados de aforro tenha sido entregue a uma terceira pessoa, que não o Autor. Tal como não se provou que aquele que apôs a assinatura nos 2 documentos intitulados “resgate”, na presença dos funcionários do 1.º Réu, tenha sido pessoa diferente do próprio Autor ou que não tenha sido este mesmo a fazê-lo”.
Por outro lado, mesmo que se demonstrasse a ocorrência de facto ilícito, não se antolha que tenha ocorrido uma actuação culposa, por banda do 1.º réu, estando assim alijada a presunção de culpa que sobre ele recairia. A mera utilização, por parte de uma pessoa, de uma cópia certificada de um documento de identificação não tem que ser necessariamente encarada como um factor ou motivo de suspeição, nem pode conduzir, só de per si, à conclusão de que existiu negligência ou violação dos deveres de cuidado por parte dos funcionários do 1.º réu.
Tanto mais que, conforme se salientou na decisão recorrida, as assinaturas não são flagrantemente distintas, quando comparadas entre aquela que foi feita à frente dos funcionários e a que consta do documento de identificação, nada fazendo, por isso, prever, à vista desarmada, que não sejam iguais ou que tenham sido falsificadas, dadas as similitudes que apresentam entre si. Basta atentar que os próprios peritos no exame à escrita e no relatório pericial junto aos autos, a fls. 476 a 490, nem sequer conseguiram demonstrar a 100% ou com uma probabilidade inquestionável, que as assinaturas efectuadas no acto do resgate por aquele que se apresentou como sendo o autor, e com a identificação deste, fossem falsas, ou seja, não tivessem sido escritas pelo seu próprio punho, mas sim provenientes de um terceiro. E se tal não foi possível a técnicos especialistas, muito menos poderia ser exigido aos funcionários do 1.º réu a olho nu.
De resto, não faz sentido afirmar, salvo o devido respeito, que apenas era possível a exibição do original do bilhete de identidade para lograr obter o resgate dos certificados, quando a própria lei confere aos advogados, nos termos do DL n.º 28/2000, de 13/03, permissão legal para efectuar a certificação da conformidade de fotocópias com os documentos originais, passando essa fotocópia a ter o valor probatório dos respectivos originais (cf. art. 1.º, n.º 5, do referido diploma), sendo certo que não era exigível, em termos de prudência e rigor, aos funcionários do 1.º réu realizar diligências adicionais perante a exibição daquele documento, mormente indagar junto da Ordem dos Advogados pela eventual inscrição da “advogada” que certificou tal documento.
Acresce, aliás, que o 1.º réu, através dos seus funcionários, efectuou o pagamento da quantia correspondente ao resgate dos certificados de aforro mediante a emissão de dois cheques emitidos à ordem do autor/recorrente, tendo feito exarar nos mesmos a designação de “não à ordem”, acautelando, dessa forma, o pagamento e o posterior levantamento de tal quantia, agindo de forma diligente e zelosa na emissão e entrega de tais cheques.
O pagamento dos resgates foi feito através de um meio que deveria assegurar que apenas o titular dos certificados poderia recebê-lo, porquanto o regime jurídico dos cheques “não à ordem”, em especial o art. 14.º da LUCH, estabelece que os mesmos apenas podem ser pagos ao respectivo beneficiário, só podendo ser transmitidos pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária.
Reforçando ainda mais o já referido:
- Não se provou que tivesse sido uma terceira pessoa que não o autor a efectuar o resgate dos certificados de aforro - não provada nesta parte a resposta ao art. 3.º da base instrutória;
- No art. 4.º da base instrutória, em que se faz outra vez referência à existência de uma terceira pessoa, a resposta surge também de novo como não provada nessa parte;
- Não se provou que as assinaturas não tivessem sido efectuadas pelo punho do autor - respostas negativas aos arts. 5.º, 10.°, 14.° e 17.° da base instrutória;
- Não se provou que aquando do resgate dos certificados de aforro o 1.º réu não tivesse verificado a assinatura do autor — resposta negativa ao art. 9.º da base instrutória;
- Não se provou que o autor se deslocou várias vezes ao balcão do 1.º réu com vista a apurar como tinha sido efectuado o resgate - resposta negativa ao art. 31.º da base instrutória.
Isto dito, temos pois que o 1.º réu, através dos seus funcionários, usou da diligência profissional que lhe era exigível ao efectuar as operações de resgate dos certificados de aforro, não lhe podendo ser assacada qualquer culpa.[18]
Para finalizar esta parte do recurso, atinente ao 1.º réu, igualmente nada se apurou quanto à existência de qualquer dano de natureza patrimonial ou moral sofrido pelo autor, bem como se desconhece se este usufruiu do valor correspondente aos certificados de aforro resgatados – respostas negativas aos arts. 28.º, 29.º, 30.º e 38.º da base instrutória. Por conseguinte, não se tendo provado qualquer dano, dos alegados pelo autor/recorrente, nem o nexo de causalidade entre o alegado facto ilícito e os eventuais danos daí decorrentes, não se verificam os pressupostos legais da responsabilidade civil contratual, nem pode ser arbitrada ao autor qualquer indemnização a esse título para ressarcimento de hipotéticos prejuízos.
B) Se há responsabilidade extracontratual da 2.ª ré, CGD, S.A.
Também relativamente à 2.ª ré, o autor/recorrente pugna que a sua conduta “(…) é manifestamente ilícita e sancionável sob o prisma da responsabilidade civil extracontratual, porquanto ter permitido a abertura de conta, depósito de cheques “não à ordem” e respectivo desconto em clara violação de princípios bancários transversais à relação jurídica bancária e ás directrizes do Banco de Portugal, pondo em crise a segurança própria do sistema bancário” (conclusão 37.ª), especificando que “no caso em crise nos autos o procedimento de abertura de conta que permitiu a posterior movimentação dos cheques sacados pelo Primeiro Recorrido está absolutamente inquinado por um conjunto de factos ilícitos que põem em crise o valor máximo da confiança numa relação jurídica bancária, o que acarreta o dever de indemnizar” (conclusão 40.ª).
Já abordámos em momento anterior deste acórdão os vários pressupostos da responsabilidade civil extrancontratual, cumprindo recordar que para que surja a obrigação de indemnizar é fundamental que exista um facto ilícito, um nexo de imputação subjectiva, se produzam danos e que exista um nexo de causalidade entre o facto e o resultado danoso (cf. o art. 483.º).
Por outro lado, tratando-se a 2.ª ré, CGD, de uma instituição bancária, impõe-se acentuar, como o fez o acórdão recorrido, que um dos aspectos distintivos e fundamentais do sistema bancário é a segurança que rodeia a sua actividade, oferecendo aos interessados a guarda dos valores confiados pelos clientes. Essa segurança não pode ser dissociada do rigor proporcionado por um sistema de apertado controlo e de supervisão dos Bancos, que permite dar suficientes garantias aos particulares de que a mobilização dos fundos ou a realização de outras operações que movimentem quaisquer quantias depositadas apenas são realizadas dentro do condicionalismo expressa ou tacitamente acordado.
Estes princípios encontram-se acolhidos, designadamente, nos arts. 73.° e 74.° do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31/12, alterado pelos DL’s n.º 246/95, de 14/09, 232/96, de 05/12, 222/99, de 22/06, 250/2000, de 13/10, e 285/2001, de 03/11, e republicado pelo DL n° 201/2002, de 26/09 (aqui aplicável) –, onde se prevê que as instituições bancárias “devem assegurar aos clientes, em todas as actividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, dotando a sua organização empresarial com os meios materiais e humanos necessários para realizar condições apropriadas de qualidade e eficiência” e que “nas relações com os clientes, os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados”.
Como se escreveu no Acórdão do STJ de 08/05/2012[19], concretamente a respeito da responsabilidade bancária pela movimentação de cheques: “a celebração da convenção de cheque, cuja necessidade se explica pelos riscos que estão ligados à circulação do título e à execução da prestação, cujo cumprimento é muitas vezes exigido por um terceiro desconhecido do banco, e ao qual andam associados perigos de falsidade das assinaturas, perda do cheque, e as consequentes contestações por parte do portador e do detentor, tem também como fundamento a confiança recíproca das partes (banco e titular da provisão).[20] Essa relação de confiança leva a que o cliente sinta que após emitir o cheque o banco depositário do seu dinheiro acautela os seus interesses, nomeadamente face a vicissitudes ilícitas que sobre ele possam vir a recair, sendo diligente nos pagamentos à custa da sua conta”.
Ora, são aqueles deveres que, in casu, não se vislumbram violados perante os factos demonstrados, o que é suficiente para conduzir, também nesta parte, à improcedência da Revista quanto à 2.ª ré CGD.
A este respeito importa recordar que:
- Não se provou que a conta aberta na 2.ª ré CGD não tivesse sido aberta pelo autor - resposta ao art. 12.° da base instrutória;
- Não se provou que os funcionários da 2.ª ré CGD soubessem que não era o próprio autor que se encontrava a proceder à abertura da conta - resposta negativa ao art. 22.° da base instrutória;
- Não se provou nada da matéria que integra os arts. 23.° a 30.° da base instrutória;
- Não se provou que as assinaturas não tivessem sido feitas na presença dos funcionários da 2.ª ré, ou conferidas por semelhança - resposta negativa ao art. 25.° da base instrutória;
- Não se provou que o autor não teve acesso a qualquer quantia relativa ao depósito dos cheques aqui em causa;
- Não se provou que foi alguém, um terceiro, que não o autor, que levantou do balcão da 2.ª ré CGD a quantia correspondente à conta aqui em causa, no montante de 25 000€ - resposta negativa ao art. 38.° da base instrutória.
Provou-se, pelo contrário, que a assinatura atribuída ao autor – colocada na ficha de assinaturas para abertura da conta na CGD – foi feita na presença do funcionário da 2.ª ré e que a mesma foi conferida pela cópia certificada do BI, tendo ainda sido exibido o original do cartão de contribuinte do autor (cf. factos provados e inseridos nos arts. 33.° a 35.° e 37.° da Base Instrutória), não se vislumbrando que a exibição de cópia certificada do documento de identificação inquine a validade formal aquela operação.
Com efeito, nada na lei, nem nos normativos emanados do Banco de Portugal, requer que para efeitos de abertura de uma conta bancária se exija sempre o respectivo documento original, sendo certo que, como antes se disse, a lei equipara os documentos autenticados aos respectivos originais (cf. o já citado DL n.º 28/2000).
A fragilidade probatória é, uma vez mais, categórica, sendo os factos provados insuficientes para a procedência da presente acção, porquanto não se provou que tenha ocorrido, por banda da 2.ª ré, a prática de qualquer facto ilícito ou a violação grosseira dos seus deveres de diligência, apreciados à luz das regras da experiência comum e usos bancários, não estando demonstrado, desde logo, que a conta foi aberta por um terceiro.
Pelo contrário, o que está dado por provado, repete-se, é que para efeitos de abertura da conta foi preenchido e entregue à 2.ª ré, no dia 27/10/2004, o documento que se encontra junto a fls. 96, ficha de assinaturas (resposta ao art. 13.º da base instrutória), o qual foi assinado na presença dos funcionários da CGD (resposta ao art. 34.º da base instrutória), tendo tal assinatura sido conferida pela cópia certificada do bilhete de identidade (resposta ao art. 35.º da base instrutória).
Escudando-nos nas considerações do acórdão recorrido, que sufragamos: “(…) tendo os funcionários da CGD alguém que, na sua presença se identifica através da fotografia constante do Bilhete de Identidade, exibido pelo próprio, ainda que por fotocópia certificada, que é portador dos demais elementos de identificação dele próprio, Autor, como seja o cartão de contribuinte, e que apõe a sua assinatura, à frente do funcionário e nos documentos indispensáveis para se proceder à abertura da conta, assinatura essa que é semelhante à que consta do referido BI, não se pode exigir mais desse mesmo funcionário. (…) Tão pouco lhe pode ser assacada a falta de profissionalismo ou de zelo, ou concluir-se no sentido de que actuou negligentemente, de forma descuidada. (…) Da descrição dos factos provados não se extrai a previsibilidade para qualquer funcionário médio de que algo de irregular poderia estar a acontecer, tal como não decorre desse encadear fáctico a probabilidade de indícios fraudulentos para quem está no exercício da sua função ao serviço do Banco, não sendo, por isso, exigível outro comportamento da parte dos funcionários da 2.ª Ré que, nestas circunstâncias, não podiam prever qualquer situação fraudulenta” (cf. pág. 30, fls. 974).
Por fim reitera-se, como antes se desenvolveu, não se provaram quaisquer danos, o que sempre implicaria a improcedência da acção, como bem ajuizaram as instâncias, mormente o acórdão recorrido.
Conclui-se assim, como se impõe, pela total improcedência das conclusões de recurso apresentado pelo autor/recorrente, quer no que tange ao 1.º réu, IGCP, quer no que respeita à 2.ª ré, CGD, porquanto o mesmo não logrou provar os factos constitutivos do direito por si arrogado, designadamente a verificação de qualquer facto ilícito, nos termos do art. 342.º, n.º 1.
- Os certificados de aforro são títulos de dívida pública, nominativos e amortizáveis, destinados à captação da poupança familiar, transmissíveis por morte do respectivo titular.
- Celebrado um contrato de subscrição de certificados de aforro, entre um particular e o IGCP, I.P., o resgate daqueles certificados só pode ser efectuado pelo titular, por um seu mandatário com poderes especiais para o efeito ou ainda pelo movimentador registado para essa subscrição.
- A responsabilidade decorrente da violação de um contrato de subscrição de certificados de aforro, designadamente quando seja invocado o resgate indevido de certificados, enquadra-se numa situação típica de responsabilidade contratual, incumbindo ao particular a prova do facto ilícito e ao IGCP alijar a presunção de culpa que sobre ele recairá, caso se prove a ocorrência de facto ilícito – cf. arts. 342.º, n.º 2, e 799.º, n.º 1, do CC.
- Só a partir de 31/07/2007, data da entrada em vigor do regime jurídico consagrado pelo DL nº 273/2007 de 30/07, é que o IGCP passou a ter, entre outras, as funções de “prestar serviços bancários” e “estabelecer os montantes a cobrar aos interessados pela prestação de serviços conexos com a emissão, subscrição, transmissão e reembolso de valores representativos de dívida pública, bem como pela prestação de serviços bancários” (cfr. arts. 5.º, nº 1, al. g), 6.º, nº 1, al. e), e 11.º, al. i), respectivamente), sendo-lhe aplicáveis, a partir dessa data, os princípios que regem a segurança e a prudência bancárias, não podendo essa disciplina jurídica ser aplicada a factos ocorridos em data anterior à vigência daquele diploma.
- Se o autor não conseguiu provar que o resgate dos certificados de aforro, de que era titular, não foi efectuado por si, mas por um terceiro, tendo-se provado, tão só, que o 1.º réu/IGCP procedeu à emissão de dois cheques à ordem do autor, com cláusula “não à ordem” – titulando o valor dos certificados de aforro –, a quem lhe apresentou dois documentos intitulados “resgate”, assinados na presença de funcionários daquele réu, mediante a exibição de uma fotocópia (certificada) do bilhete de identidade do autor, não se pode considerar que ocorra qualquer facto ilícito.
- Mesmo que se provasse a ocorrência de facto ilícito, a mera utilização, por parte de uma pessoa, de uma cópia certificada de um documento de identificação – legalmente admissível – não tem de ser necessariamente considerada como um factor ou motivo de suspeição, nem pode conduzir, por si só, à conclusão de que existiu negligência ou violação de deveres de cuidado por parte dos funcionários do IGCP, ainda para mais se as assinaturas constantes daquele documento e as apostas nos documentos de resgate, feitas na presença dos funcionários do 1.º réu, não apresentavam dissemelhanças constatáveis a olho nu, que permitissem duvidar que não tivessem sido escritas pelo próprio punho do autor.
- A abertura de uma conta bancária não exige que se exiba o respectivo documento original de identificação, equiparando a lei os documentos autenticados aos respectivos originais.
- Se, em concreto, se provou que, para efeitos da abertura da conta, foi preenchida e entregue à 2.ª ré/CGD a ficha de assinaturas, rubricada na presença dos seus funcionários, tendo a assinatura sido conferida pela cópia certificada do bilhete de identidade do próprio autor, não estando provado que aquela conta não tivesse sido aberta pelo autor, nem se tendo provado que foi um terceiro, que não o autor, quem levantou, do balcão da CGD, a quantia correspondente àquela conta, não se demonstra que tenha ocorrido a prática de qualquer facto ilícito ou a violação grosseira dos deveres de diligência da CGD, apreciados à luz das regras da experiência comum e usos bancários.
Custas do recurso pelo recorrente.
Lisboa, 11 de Julho de 2013
Gregório Silva Jesus (Relator)
Martins de Sousa
Gabriel Catarino
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[1] Relator: Gregório Silva Jesus — Adjuntos: Conselheiros Martins de Sousa e Gabriel Catarino.
[2] No regime anterior ao introduzido pelo Dec. Lei nº 303/07, de 24/08, atenta a data de instauração da acção em 15/03/06 (cfr. arts. 11º e 12º do referido diploma).
[3] Cf. art. 10.º: “ Os certificados de aforro criados pelo artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 43453, desta data, serão nominativos, amortizáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a favor de pessoas singulares”.
[4] Segundo o preâmbulo desta Portaria: “As características dos certificados de aforro da série B, criada pelo Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, actualmente em emissão, revelam-se desajustadas face às alterações entretanto verificadas na forma de funcionamento dos mercados financeiros, mecanismos de formação das taxas de juro e tecnologias de relacionamento entre as instituições financeiras e os seus clientes. Justifica-se, assim, que se evolua, progressivamente, para a oferta de novos produtos de captação da poupança das famílias adaptados a estas novas condições e enquadrados nos objectivos definidos para a gestão da dívida pública”.
Há que atender, outrossim, à Portaria n.º 268-C/2012, de 31/08, que alterou alguns dos aspectos dos certificados de aforro da “Série B”.
[5] De acordo com o sítio da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, “os certificados de aforro são instrumentos de dívida criados com o objectivo de captar a poupança das famílias. Têm como característica principal o serem distribuídos a retalho, isto é, serem colocados directamente juntos dos aforradores e terem montantes mínimos de subscrição reduzidos. Os certificados de aforro só podem ser emitidos a favor de particulares e não são transmissíveis excepto em caso de falecimento do titular” – http://www.igcp.pt/gca/?id=63.
[6] Os estatutos do IGCP foram aprovados pelo DL n.º 160/96, de 04/09, sucessivamente alterado pelos DL n.º 28/98, de 11/02, DL n.º 2/99, de 04/01, DL n.º 455/99, de 05/11, DL n.º 86/2007, de 29/03, Decreto Regulamentar n.º 21/2007, de 29/03, e DL n.º 273/2007, de 30/07. Após este diploma, o IGCP passou a designar-se por Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público, I.P., mantendo, porém, a anterior sigla (IGCP). Com a publicação do DL n.º 200/2012, de 27/08, o IGCP, I.P., foi transformado em Entidade Pública Empresarial (EPE), a partir de 01/09/2012, e passou a designar-se de Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública – IGCP, E.P.E. (Esta entidade tem por missão a gestão integrada da tesouraria, o financiamento e a dívida pública directa do Estado, coordenar o financiamento dos fundos e serviços autónomos, consultoria a entidades do sector público administrativo e a função de leiloeiro no mercado de emissão de gases com efeito estufa).
[7] Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Volume II, 4.ª edição (9.ª reimpressão), 2002, pág. 99.
[8] Serão do Código Civil todas as disposições legais que se indicarem neste acórdão, desde que desacompanhadas de referência em contrário.
[9] Acompanhando Menezes Leitão: “A diferença (…) entre a responsabilidade delitual e a responsabilidade obrigacional é que, enquanto a responsabilidade delitual surge como consequência da violação de direitos absolutos, que aparecem assim desligados de qualquer relação inter-subjectiva previamente existente entre lesante e lesado, a responsabilidade obrigacional pressupõe a existência de uma relação inter-subjectiva, que primariamente atribuía ao lesado um direito às prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa relação específica”, in Direito das Obrigações, vol. I, 4.ª ed., pág. 270.
[10] Op. cit, págs. 329/330.
[11] Se só uma pessoa particularmente displicente teria tal conduta, estamos perante a categoria da culpa grave ou negligência grosseira.
[12] Proc. n.º 07A3106, desta 1.ª Secção, em que também se analisava uma situação de responsabilidade civil decorrente de resgate de certificados de aforro (embora diversa da que aqui se debate). Este aresto está publicado na íntegra no ITIJ, estando acessíveis neste sítio todos os acórdãos que se citarem nesta decisão.
[13] Do art. 406.º do CC emerge que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, só podendo modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos legalmente admitidos, emanando do n.º 1 do art. 762.º que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado. Diz-nos o n.º 2 daquele preceito legal que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.
[14] Em matéria de ónus de alegação, também chamado da afirmação ou da dedução, vigora o princípio do dispositivo segundo o qual é às partes que incumbe alegar e provar os factos essenciais e os complementares susceptíveis de formar no juiz um determinado grau de convicção necessário para proferir a decisão, não podendo o juiz, por regra, tomar em consideração os factos que não tenham sido alegados e produzidos pelas partes (art. 264.º do CPC).
[15] A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português, 2001, pág. 12.
[16] Cf., entre muitos outros, o Acórdão do STJ de 28/09/2010, desta 1.ª Secção, Proc. n.º 171/2002.S1.
[17] Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. II, 7.ª ed., pág. 100.
[18] Concorda-se, ademais, com as considerações a este propósito tecidas nas alegações de recurso do 1.º réu/recorrido (ponto 43): “A existência de pontuais situações patológicas não demonstra incúria nem impõe a prossecução de esforços anormais na procura de uma perfeição inalcançável que inevitavelmente sacrificaria a eficácia necessária ao normal comércio jurídico. Em casos pontuais é tentador clamar por níveis irrealistas de exigência, mas não pode perder-se de vista que a apreciação da culpa tem de ater-se ao padrão de conduta do homem médio inserido no meio social, profissional e cultural do agente”.
[19] Proc. n.º 96/1999. G1.S1, 1.ª Secção, desta mesma conferência e relator.
[20] Cf. Ferrer Correia e António Caeiro, Recusa do pagamento de cheque pelo Banco sacado; responsabilidade do Banco face ao portador, na Revista de Direito e Economia, n.º 2, 1978, pág. 458.