INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CASO JULGADO
EFEITO PRECLUSIVO
QUESTÕES APRECIADAS EM PROCESSO DE ADESÃO
Sumário


1. A nulidade principal de ineptidão da petição inicial implica a inexistência ou ininteligibilidade de elementos essenciais para a definição do objecto do processo ( formulação inteligível do pedido e invocação de um núcleo fáctico essencial da causa de pedir) – não podendo, na aplicação prática do instituto, confundir-se tal inexistência, inidoneidade ou ininteligibilidade do objecto da causa com a simples inconsistência ou inconcludência da fundamentação jurídico normativa da acção proposta, determinante, quando muito, da improcedência desta.

2. Considerando expressamente a sentença penal excluída dos poderes cognitivos do tribunal - face à decretada absolvição do arguido e à vigência do Assento 7/99 – a matéria da eventual subsunção da causa de pedir e da pretensão indemnizatória formulada no processo de adesão à figura ou instituto da responsabilidade civil contratual – rejeitando, por isso, exercer os seus poderes cognitivos quanto a este tema, limitando-se a julgar improcedente o pedido apenas e na medida em que ele se mostrasse estruturado na efectivação da responsabilidade aquiliana do arguido - não pode ficar precludida ao lesado a possibilidade de – embora com base nos mesmos factos essenciais e pedindo a mesma quantia pecuniária – vir suscitar ulteriormente, em acção civil autónoma, a apreciação jurisdicional da matéria que o tribunal criminal considerou excluída do domínio dos seus poderes de cognição.

Texto Integral




P.1202/11.0TBBRG.G1.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            1. AA intentou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB e mulher, CC, pedindo que os réus sejam condenados:

            . a pagar-lhe a quantia de €52.373,78., actualizada em função das flutuações do valor da moeda, “por forma a repor ao Autor a situação patrimonial que teria se não existissem os invocados danos”;

. subsidiariamente, caso não se entenda ser devida a actualização monetária peticionada, que àquele quantia “sejam acrescidos juros à taxa legal” desde a data de entrega dos cheques até efectivo e integral pagamento;

. a pagar-lhe a quantia de €5.000,00. de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

Para tal, alega que, em síntese, que depois de estabelecer contacto com o réu marido, por estar à procura de lotes de terreno para construção de uma casa, veio a negociar com ele a aquisição de um lote de terreno, tendo acordado o preço de venda e as condições de pagamento, assumindo-se e agindo aquele como dono desse lote. Concluídas as negociações, a 5 de Julho de 2004, foi assinado o contrato denominado de “contrato de promessa de cedência de posição contratual”, tendo a sociedade “DD, Lda.”, da qual o réu é sócio gerente, outorgado como  primeira outorgante.

Aceitou celebrar o contrato nos termos descritos porque o réu lhe afirmou que era a sua sociedade quem detinha formalmente os poderes de venda do imóvel.

A 31 de Agosto de 2004, o autor e o réu acordaram na troca daquele lote n.º 41

pelo lote n.º 42, elaborando e assinando um novo contrato em tudo idêntico ao primeiro.

Entregou ao R. dois cheques de dez mil euros relativamente ao 1º contrato, valores que transitaram e integraram o sinal do segundo contrato, por acordo das partes; e, relativamente ao segundo contrato, entregou ainda ao réu mais três cheques de €25.000,00, €5.373,78 e de €2.000,00, valores que o R., e não a sociedade de que é sócio, fez integrar no seu património.

Porém, nem o réu, nem a sociedade de que é gerente, eram proprietários do lote  prometido vender, nem tão pouco dispunham de poderes ou posição que lhes permitissem transmitir esse lote ao autor. Além do correspondente dano patrimonial por

se encontrar desapossado das quantias entregues ao réu, sofreu também angústia, ansiedade e muitos incómodos.

O Réu contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação.  Por excepção, invocou a existência de caso julgado, em face da decisão proferida no processo comum colectivo n.º 2048/06.2TABRG da Vara Mista de Braga, onde foi absolvido do pedido de indemnização cível aí enxertado pelo aqui autor com base em responsabilidade civil extracontratual ou por factos ilícitos; e a ilegitimidade do autor para, por si só, estar em juízo, desacompanhado de sua mulher, que foi quem assinou três dos cheques e que os entregou à aludida sociedade, tendo igualmente subscrito os contratos promessa.

            Foi proferido despacho saneador onde se decidiu:

. julgar verificada a excepção de caso julgado, atentos os pedidos e a causa de pedir apresentados nesta acção e no âmbito do pedido cível deduzido no processo comum colectivo n.º 2048/06.2TABRG, aqui com base na responsabilidade civil pré-contratual, mas com a alegação da prática dos mesmos factos ilícitos;

. considerar inepta a petição inicial no que respeita à demais matéria alegada, desde logo quanto à imputação ao réu, em nome individual, de actos violadores das regras da boa-fé negocial, e quanto à ré mulher, por ausência de imputação de quaisquer factos ou de quaisquer circunstâncias que permitam justificar a sua demanda, inexistindo quanto a ela causa de pedir.

            O A. apelou de tal decisão, tendo a Relação concedido parcial provimento ao recurso, revogando o decidido na medida em que julgara procedente a excepção de caso julgado e absolvera o R. da instância por ineptidão da petição inicial – começando por fixar o seguinte quadro factual relevante:

           

            . Correu termos na Vara de Competência Mista de Braga uns autos de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo com o nº 2048/06.2TABRG em que foi arguido o ora apelado, BB.

            . Nos referidos autos o ora apelante deduziu pedido cível contra o referido BB nos termos de fls 142 a 144, alegando, designadamente o seguinte:

            1º

            Dão-se aqui como reproduzidos todos os factos constantes da douta Acusação Pública.

            2º

            Designadamente que entre o dia 3 de Julho  o dia 3 de Setembro de 2004 fizeram entregas ao Requerido de diversas quantias que totalizaram 52.373,78 euros (…)

            3º

            Esse dinheiro foi entregue para aquisição dum lote de terreno que, posteriormente, se veio a verificar não pertencer nem nunca ter pertencido ao Arguido.

            4º

            Denunciada a burla o Arguido não tomou a iniciativa de devolver o dinheiro aos Requerentes,

            5º

            E, no entanto estava o Arguido obrigado a devolver a quantia em causa desde, pelo menos, à data em que recebeu dos Ofendidos a última prestação.

            6º

            Tal quantia vence juros à taxa legal, desde Setembro de 2004 até integral ressarcimento, somando nesta data os já vencidos a quantia de 8.652,00.

            7º

            Além disso a atitude inqualificável do arguido tem vindo, ao longo destes quatro anos, a provocar aos requerentes inúmeros incómodos, preocupações e dificuldades de vária ordem.

            8º

            Todos os dias dos requerentes sofrem a imensa preocupação de estarem desapossados daquela enorme quantia,

                        9º

            Sofrem a angústia de não saberem quando e como irão ser ressarcidos,

            10º

            Sendo certo que têm compromissos assumidos que nunca poderão cumprir se o arguido não lhes devolver o dinheiro que indevidamente retém.

            11º

Por todas essas razões devem os requerentes ser ressarcidos pelos intensos danos não patrimoniais que têm vindo a sofrer com a atitude ilegítima do arguido cujo montante não deverá ser fixado em valor inferior a 5.000,00 euros.

            Nestes termos deve o presente pedido cível ser julgado provado e procedente e por via dele o arguido ser condenado a pagar aos requerentes a quantia de 57.373,78, acrescida de juros à taxa legal sobre a quantia de 52.373,78 desde Setembro de 2004 até integral ressarcimento, somando já os vencidos a quantia de 8.652,00.”

            .Por acórdão de 11 de Dezembro de 2009 foi julgada improcedente a acusação e o arguido absolvido da pratica do crime de burla qualificado p.ep. pelos artºs 217º nº 1 e 218º nºs 1 e 2 alínea a), ambos do Código Penal e foi julgado improcedente o pedido cível.

            .Lê-se no acórdão penal o seguinte:

            “Conforme resulta do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ 7/99, de 17/06/99 (DR I série, de 3/08/99), se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artº 377º nº 1 do CPP, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em acção cível se o pedido se fundar em responsabilidade contratual.

            Decorre daqui que o tribunal se vê impedido de apreciar o pedido deduzido à face da responsabilidade contratual, ou seja, apenas pode o tribunal apreciar a matéria concernente à acção cível enxertada à face da responsabilidade extracontratual ou aquiliana – a responsabilidade civil emergente de factos ilícitos (e, em certos casos,a responsabilidade emergente de factos lícitos).

            Ora, apreciando o pedido de indemnização à luz da responsabilidade civil extracontratual (artº 483º e seguintes do Código Civil), fácil é concluir pela sua improcedência. A solução da questão não passa pelo instituto da responsabilidade civil extracontratual, mas antes pela responsabilidade civil contratual (existiu um incumprimento contratual e, em caso destes, a obrigação regula-se pelo regime jurídico do contrato celebrado e incumprido – apreciação essa que só pode ser feita em competente acção civil, arredada que está do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal).”

            3. Passando, de seguida, a abordar a questão da ineptidão da petição inicial, considerou o acórdão recorrido:

Na parte final da petição inicial, na alínea a) o A. pede a condenação dos RR. a pagarem-lhe a quantia de 52.373,78 actualizada em função das flutuações do valor da moeda, por forma a repor ao A. a situação patrimonial que teria se não existissem os invocados danos.

Interpretando este pedido em conjugação com os fundamentos da acção invocados na petição inicial alegado na petição inicial, conclui-se que o pedido, nos termos em que se encontra formulado e segundo um entendimento não rígido do que se deve entender por falta de pedido, na esteira do defendido no acórdão citado do TRL,   permite a condenação do RR. por qualquer dos fundamentos da acção invocados.

Vejamos:

. no caso de se entender que o R. incorreu em responsabilidade pré-contratual, uma das consequências jurídicas possíveis é a indemnização por violação do interesse contratual negativo - reposição da situação do lesado no estado em que se encontraria se não tivesse celebrado o contrato - que no caso corresponde, no mínimo, ao montante entregue pelo A. ao R. de 52.378,78 e que o A. pede que o RR. sejam condenados a pagar-lhe;

. no caso de se considerar o contrato nulo, a consequência jurídica é a restituição do prestado (nº1 do artº 289º do CC), o que se reconduz ao pagamento da quantia entregue de 52.373,78 Eur;

. no caso  de  se considerar que ocorreu enriquecimento sem causa do R., a consequência é a restituição daquilo com que o enriquecido injustamente se locupletou (artº 473º do CC), pelo que também constitui decorrência lógica da causa de pedir invocada, a condenação do R. no pagamento da quantia de 52.373,78.

                É certo que a petição inicial é algo confusa e que, de acordo com a boa técnica jurídica, o A. deveria ter formulado um pedido principal e um pedido subsidiário, relativamente à condenação na restituição do indevido com base no enriquecimento sem causa, uma vez que manifestou a vontade de deduzir essa pretensão subsidiariamente (cfr. artº 147º da p.i.)[1].

                Mas, embora o A. não tenha formulado o pedido nos termos mais correctos, ao pedir a condenação do R. a pagar-lhe determinada quantia, esse pedido permite a condenação no pagamento de uma indemnização por responsabilidade pré-contratual, na  restituição do montante com que o R. injustamente se locupletou ou na restituição do prestado, pois que toda a consequência jurídica do que o A. alegou se reconduz ao pagamento de uma determinada quantia ao A. e sendo certo que apenas a final, seja qual for o fundamento, e logrando o A. provar os factos em que assenta a sua pretensão e os mesmos sejam suficientes para a procedência do seu pedido, apenas poderá ser ressarcido por uma só vez do montante peticionado.

Relativamente à R. mulher, tal como refere a Mma Juíza a quo, o A. não invocou quaisquer factos para fundamentar a responsabilidade da R. mulher. Analisando a p.i. a mesma é completamente omissa quanto à R. mulher.

O apelante entende que  invocou factos que permitem qualificar o R. como comerciante , pelo que há lugar à responsabilização da R., por força do disposto na al b) do artº 1692º e al d) do nº 1 do artº 1691º do CC.

Na petição inicial o A. nada referiu a propósito da presença da R. na lide.

Diz a apelante que alegou factos que permitem qualificar o R. como comerciante. Mas sem razão. Os factos alegados permitem qualificar como comerciante a sociedade DD …, Lda. Como o próprio A. refere o R. dedica-se ao comércio através da sociedade DD, Lda (artº 2º da p.i.). Não foram alegados factos que permitam concluir que o réu enquanto pessoa singular se dedica à prática de actos de comércio.

Não foram alegados factos relativamente à R. mulher, não havendo causa de pedir que fundamente o pedido da sua condenação.

Assim, mantém-se a decisão recorrida na parte em que julga a petição inepta relativamente à R. mulher, devendo ser absolvida da instância.

4. Debruçando-se seguidamente sobre a verificação da excepção de caso julgado, considerou a Relação no acórdão que proferiu:

Dúvidas não há que o A. nesta acção e no pedido cível deduzido na acção penal é o mesmo, assim como o R., BB. A R. mulher não foi parte no pedido cível deduzido na acção penal, pelo que, quanto a ela, não se colocaria a questão de ofensa de caso julgado, caso fosse de a manter na instância, o que não ocorre.

Onde se podem suscitar dúvidas é sobre a identidade de causas de pedir.

Como se escreveu no Ac. do TRL de 01.06.2010[2] que pela sua clareza se passa a citar “a causa de pedir desdobra-se, analiticamente em duas vertentes a) uma factualidade alegada, que constitui o respectivo substrato factual, também designada pela doutrina por causa de pedir remota; uma vertente normativa significante na perspectiva do pedido formulado, designada por causa de pedir próxima, não necessariamente adstrita à qualificação dada pelo autor, mas delineada no quadro das soluções de direito plausíveis em função do pedido formulado, aliás nos latos termos permitidos ao tribunal, em sede de enquadramento jurídico, ao abrigo do preceituado na 1ª parte do artº 664º do CPC; é o que alguma doutrina designa por princípio da causa de pedir aberta”.

O A. fundamenta o pedido de indemnização cível formulado na acção penal não só nos factos que alega nos artºs 2 a 11º do seu requerimento onde deduz o pedido cível, mas também nos factos constantes da acusação.

Se atentarmos nos factos constantes do acórdão penal dados como provados e não provados, verifica-se que nessa acção foi invocada a celebração de um contrato promessa no dia 31 de Agosto de 2004, através do qual o BB celebrou com AA e EE, mulher deste, um contrato promessa de cedência de posição contratual do lote 42 mediante o pagamento da quantia de 57.361,76 e que o negócio definitivo não chegou a ser realizado porque o lote 42, desde Janeiro de 2004, que pertencia a FF e GG, tendo sido mediante a encenação e falso convencimento de que o R. era proprietário do lote pretendido pelo ora A. e utilizando todo o tipo de estratagemas intelectualmente pensados que credibilizavam o seu discurso, que o A. e mulher foram determinados praticar os actos que lhe causaram prejuízo.

O acórdão penal apenas decidiu que o arguido, ora R./apelado não incorreu em responsabilidade extracontratual e entendeu que a responsabilidade que estava em causa era a responsabilidade civil contratual, estando-lhe vedado pronunciar-se, devendo essa apreciação ser feita em acção cível a instaurar.

O A. veio então propor nova acção, invocando parte dos factos alegados no pedido cível e completando-os, estruturando a acção com base na responsabilidade pré - contratual, ou se assim não se entendesse no instituto do enriquecimento sem causa e invocando ainda a nulidade do contrato promessa por constituir promessa de venda de bens alheios.

No pedido de indemnização baseado na prática do crime de burla, crime cuja prática era imputada ao ora R.,  têm que ser alegados factos que provados preencham a previsão do nº 1 do artº 217º do CP: obter o arguido por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou um enriquecimento ilegítimo, determinando outra pessoa à pratica de actos que lhe causem ou a terceiro prejuízo patrimonial.

Por isso se alegou “que mediante a encenação e falso convencimento de que era proprietário do lote pretendido pelos denunciantes, ou no mínimo, tinha com o seu proprietário um contrato de promessa de compra e venda que lhe criava tal expectativa, e utilizando ainda todo o tipo de estratagemas intelectualmente pensados que credibilizavam a sua presença e discurso como homem ligado ao mundo do imobiliário e construção civil, determinando os denunciantes AA e mulher, a praticar actos de que lhes adveio um prejuízo patrimonial”, que “o arguido colocou  no lote a placa com os seus contactos com o intuito de ludibriar terceiros” e “que o arguido se propôs vender o lote de terreno na qualidade de seu proprietário”.

Há efectivamente alguma correspondência entre os factos alegados no artº 2º, 3º, 4º,5º, 6º (embora na acção cível o A. se refira aos  lotes 41 e 42  e na acção penal apenas ao lote 42) ,7º,  14º, 15º, 21º, 22º, 23º,43º, 44º, 56º 1ª parte, 59º,72º, da petição inicial com os factos constantes da sentença  (provados e não provados) e que constavam da acusação e da pronúncia e do pedido de indemnização cível.

Na acção cível o A. invocou o mesmo contrato, mas alegou também os factos que antecederam a realização do contrato promessa relativo ao lote 42, alegando que primeiramente foi outorgado um contrato promessa tendo como objecto o lote 41 e que depois, esse lote foi substituído pelo 42 de que o A. gostou mais e todo um modo de actuação enganoso por parte do R. marido, em violação dos deveres de informação a que estava adstrito, que determinaram que outorgasse o contrato, fazendo-o de um modo mais completo relativamente à acção anterior. Nesta acção alegou ainda que a importância entregue não ingressou no património da sociedade R. outorgante do contrato mas do R. marido que o utilizou para aumentar o seu valor ou pagar dívidas pessoais, para concluir pela levantamento da personalidade jurídica da sociedade da qual o R. é sócio-gerente.

A questão da identidade de causa de pedir, quando o acervo de factos integram a previsão de normas constitutivas diversas, ainda mais tratando-se de um lado de responsabilidade penal e do outro responsabilidade exclusivamente cível, não é isenta de dificuldades e pode conduzir a diversas interpretações.

Entendemos que na acção penal onde foi deduzido o pedido cível a causa de pedir radica no facto ilícito criminal, a causa de pedir são os factos que constituem  também pressuposto da responsabilidade criminal, enquanto que, na  acção cível agora instaurada pelo A., a causa de pedir não radica nesse ilícito, assentando, no conjunto de factos exigidos pela lei para que ocorra uma situação de responsabilidade pré-contratual, nulidade do contrato ou de enriquecimento ilegítimo, pelo que não se verifica excepção de caso julgado[3].

            5. Inconformado com este sentido decisório, interpôs o R. a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões.

VOSSAS EXCELÊNCIAS, OS SENHORES JUÍZES CONSELHEIROS, por douto acórdão, julgando que-'

1. Ao julgar não verificada a exceção de ineptidão da petição inicial,  o TRG incorreu  em erro de julgamento  e  violou o disposto no artigo 193.º do CPC.

2.         Ao julgar não verificada a exceção do caso julgado,  o TRG proferiu:

2.1 - Uma decisão contrária ao decidido pelo Tribunal Colectivo daquela Vara de Competência Mista de Braga, naquele acórdão do dia 11 de Dezembro de 2009, no âmbito do Processo Comum Colectivo n.s 2048/06.2TABRG. No referido acórdão, transitado em julgado, decidiu-se que a solução das questões civis passa pela responsabilidade civil contratual, pois "existiu um incumprimento contratual e,  em caso destes, a obrigação regula-se pelo regime jurídico do contrato celebrado e incumprido".

Tal decisão vincula o autor e o TRG, não podendo este tribunal julgar em contradição com o ali decidido.

2.2       - Incorreu em erro de julgamento. Com efeito, no PIC e na presente ação verifica-se serem os mesmos os sujeitos processuais, serem idênticas as causas de pedir e serem os mesmos os pedidos.

As causas de pedir alegadas no PIC e na presente ação são idênticas, pois procedem do mesmo facto jurídico. 0 facto jurídico de onde, eventualmente, emerge a obrigação de restituir ou de indemnizar é o negócio ou contrato celebrado entre o autor, a sua mulher e a sociedade "BB, … Limitada".

2.3       - Incorreu ainda na violação do art. 8.º/ do Cód. Civil e na violação dos artigos 497.º e 498.º do CPC.

3.         Não pode o autor alegar que o contrato-promessa, cuja cópia está junta aos autos, é um contrato nulo, justificando o autor o recurso a factos relativos á responsabilidade pré-contratual por entender que tal contrato-promessa padece dessa nulidade, quando tal contrato-promessa foi celebrado entre o autor, a sua mulher e a sociedade "DD, Lda." e quando o autor depois não demanda a referida sociedade e nem pede ao tribunal que declare essa nulidade.

4.         Não pode também o autor alegar ser nulo tal contrato-promessa   onde   a   sua  mulher  intervêm  como   contraente   e outorgante, não intervindo depois a mulher do autor nos autos a peticionar essa nulidade e a fazer o respetivo pedido.

5.         Se na relação material controvertida, se no contrato intervêm diversas pessoas e exigindo a lei a intervenção necessária de todas as pessoas da relação controvertida, estão todas têm que intervir na ação, não podendo a ação prosseguir por falta daquela sociedade e por falta da mulher do autor, nos termos do art. 28.º/1 e 2 do CPC.

6.         A falta dessas pessoas importa a ilegitimidade do réu e a ilegitimidade do autor, sendo essas ilegitimidades do conhecimento oficioso do tribunal, nos termos dos artigos 494.º e 495.º do CPC.

7.         Não tendo o TRG, no seu acórdão, conhecido de tais ilegitimidades, incorreu na violação dos artigos 493.º, 494.º e 495.º do CPC.

E concedendo a revista, revogando o douto acórdão recorrido,

FARÃO JUSTIÇA.

   O A., na qualidade de recorrido, contra alegou, pugnando pela manutenção do decidido no acórdão proferido pela Relação.

            6. Importa, pois, começar por verificar se merece censura o decidido pela Relação no acórdão recorrido, na parte em que entendeu que se não verificava, quanto ao R., o vício de ineptidão da petição inicial.

   Esta nulidade principal – implicando, em última análise, a inexistência ou ininteligibilidade de elementos essenciais para a definição do objecto do processo ( formulação inteligível do pedido e invocação de um núcleo essencial da factualidade integradora da causa de pedir) – não pode ser banalizada na sua aplicação prática, levando, nomeadamente, a confundir tal inexistência, inidoneidade ou ininteligibilidade do objecto da causa com a simples inconsistência ou inconcludência da fundamentação jurídico normativa da acção proposta: na verdade, a verificar-se este último vício, o seu efeito não deverá ser a nulidade de todo o processo, cominada no art. 193º do CPC, mas antes, mais singelamente, a improcedência da acção, se, porventura, a dita insuficiência ou inconcludência jurídica do modo como se estruturou a acção não for suprível e suprida através do eventual exercício dos poderes oficiosos do juiz quanto à qualificação e ao enquadramento jurídico-normativo do pedido e da causa de pedir.

   Ora, no caso dos autos, não parece efectivamente que possam ter-se por verificadas as situações tipificadas no referido preceito legal, determinantes de uma inidoneidade ou ininteligibilidade de elementos essenciais à definição do objecto processual: na realidade, o A. caracteriza, em termos bastantes, a factualidade que integra o núcleo essencial da causa petendi, esclarecendo ainda, de forma minimamente consistente e inteligível, quais as vias jurídicas através das quais pretende efectivar o seu direito ao pagamento das quantias pecuniárias a que se julga com direito ( nulidade do contrato promessa celebrado, responsabilidade pré contratual do R., desconsideração da personalidade jurídica da sociedade que formalmente surge com parte no contrato e restituição fundada subsidiariamente em enriquecimento sem causa).

   É certo, que, na parte conclusiva do petitório, não formula discriminadamente os pedidos em função destas várias vias jurídicas , alternativas ou subsidiárias, limitando-se a peticionar o pagamento das quantias de que se considera espoliado: porém, interpretando adequadamente tal petitório, articuladamente com a fundamentação da acção, não parece haver dúvidas sobre os fundamentos jurídicos em que se estriba tal pedido de pagamento, já que se invocam, de modo claro e integrado , os vários pressupostos da responsabilidade pré contratual imputada ao R., por ter sido ele próprio a ter intervenção decisiva na formação e conclusão do contrato promessa, sendo-lhe imputada a violação dos princípios da boa fé.

    Por outro lado – e como decorre da natureza essencial da figura –a pretendida restituição das referidas quantias pecuniárias, a título de enriquecimento sem causa, é apresentada como subsidiária, sendo deduzida para o caso de se vir a entender que não procede a responsabilidade pré contratual prioritariamente imputada ao R. – pelo que a não referenciação explícita desta via jurídica como subsidiária, na parte conclusiva com que se encerrou a petição, não deve, numa interpretação razoável e adequada da globalidade desta peça processual, gerar o vício de ineptidão.

   Ora, neste circunstancialismo peculiar, saber se se verificam ou não os pressupostos da responsabilidade pré contratual, bem como os da figura do enriquecimento sem causa, invocada subsidiariamente para o caso de improceder tal responsabilidade, decorrente da alegada violação pelo R. dos deveres da boa fé – e, bem assim, se será procedente a arguição de nulidade do contrato promessa, decorrente de este ter como objecto bens que comprovadamente pertenciam a terceiros, (estando em causa a mera assunção de uma obrigação de contratar e não manifestamente um negócio translativo da propriedade ) – tem que ver com o julgamento de mérito, isto é, com a procedência ou improcedência das pretensões formuladas, e não com o vício basilar de ineptidão da petição inicial.

   Censuram ainda os recorrentes o acórdão recorrido por ter admitido o prosseguimento da acção, quanto ao pedido de declaração de nulidade, na ausência na lide a mulher do A., outorgante no contrato cuja nulidade se pretende ver reconhecida: ora, para além de não ser líquido se o cônjuge do A. se pode considerar outorgante naquele contrato ( cfr. a sentença proferida, a fls. 170) , cabe realçar que não se mostra formulado um pedido de reconhecimento da nulidade, sendo esta arguida como mero fundamento da tese expendida na petição – e não como objecto de um pedido explicitamente formulado, como tal susceptível de formar caso julgado material no confronto de todos os interessados ou intervenientes no negócio.

   Por outro lado, a circunstância de não ser demandada a sociedade, formalmente interveniente no negócio encontra justificação na invocação de fundamentos específicos e peculiares do caso que legitimariam a desconsideração da personalidade colectiva – pelo que naturalmente tudo se resume a saber, em termos de mérito da causa, se tal desconsideração tem ou não fundamento material bastante.

         7. Resta analisar a questão da verificação da excepção dilatória de caso julgado.

    Quanto a este ponto, não pode deixar de se realçar que a problemática da definição da identidade objectiva das acções que subjaz a este tema se coloca a propósito de um caso concreto em que estão em confronto uma sentença proferida em processo de adesão e uma decisão proferida numa normal acção cível, intentada posteriormente à dirimição do pedido indemnizatório enxertado no processo penal.

   Na verdade, nesta peculiar situação, tem de se ter na devida conta que vigoram determinados limites aos poderes cognitivos e de convolação ou requalificação jurídica da pretensão material formulada pelo lesado no enxerto cível – decorrentes de, no caso em apreciação, o arguido ter sido absolvido penalmente e, portanto, conforme o estabelecido em jurisprudência uniformizada,  (Assento n.º 7/99)
Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.

   Cumpre realçar que esta peculiar situação não se verificaria, com toda a probabilidade, se estivessem em causa duas normais acções cíveis, sucessivamente intentadas entre as mesmas partes: na realidade, entendemos que - apesar de o A., na primeira acção intentada, não ter, porventura, invocado e qualificado juridicamente a sua pretensão indemnizatória no campo da responsabilidade contratual, nada impediria o tribunal – se os factos alegados fossem suficientes a qualificação jurídica adequada e se o efeito prático-jurídico pretendido alcançar pelo demandante fosse equiparável, independentemente da exacta coloração ou configuração jurídica da pretensão formulada – de convolar para outro possível enquadramento normativo da pretensão, outorgando ao A. a pretendida indemnização por diversa via jurídica – estabelecendo-se consequentemente o efeito preclusivo inerente ao caso julgado em função dos poderes cognitivos de que dispunha o tribunal no momento da sentença; e, nesta óptica, não seria efectivamente possível propor uma nova acção de efectivação da responsabilidade civil, fundada precisamente nos mesmos factos essenciais e visando obter o ressarcimento dos mesmos danos, apenas se alterando ou inovando quanto à exacta via jurídica através da qual se pretendia obter o ressarcimento.

   As coisas não se passam, porém, do mesmo modo quando o primeiro pedido indemnizatório haja sido formulado em processo de adesão, atentos os limites aos poderes de convolação ou requalificação jurídica da pretensão que impendem sobre o juiz penal, nos casos de absolvição do arguido.

    Saliente-se que, no caso ora em apreciação, o lesado, ao formular o pedido de indemnização em processo de adesão, omite a invocação de razões de direito, limitando-se a peticionar a condenação dos demandados em determinada quantia pecuniária, sem explicitar qual a via jurídica subjacente a tal pretensão – tendo a sentença considerado que – perante a absolvição do arguido quanto à matéria penal – lhe estava vedado proceder a eventual subsunção dos factos articulados e do pedido formulado ao instituto da responsabilidade contratual, - limitando-se, por isso, a julgar improcedente o pedido, enquanto estruturado na responsabilidade civil aquiliana, prevista e regulada nos arts. 483º e segs. do CC.

   Considerou, pois, expressamente a sentença penal excluída dos poderes cognitivos do tribunal - face à decretada absolvição do arguido – a matéria da eventual subsunção da causa de pedir e da pretensão formulada no processo de adesão à figura ou instituto da responsabilidade civil obrigacional – rejeitando, por isso, exercer os seus poderes cognitivos quanto a este tema, limitando-se a julgar improcedente o pedido apenas e na medida em que ele se mostrasse estruturado na efectivação da responsabilidade aquiliana do arguido.

   Ora, neste peculiar circunstancialismo, temos como seguro que não pode ficar precludida ao lesado a possibilidade de – embora com base nos mesmos factos essenciais e pedindo a mesma quantia pecuniária – vir suscitar ulteriormente a apreciação jurisdicional da matéria que o tribunal criminal considerou excluída do domínio dos seus poderes de cognição, recusando-se ( em obediência à doutrina do referido Assento) a enquadrar normativamente o litígio, tal como aparecia delineado no processo de adesão, no âmbito da figura da responsabilidade contratual ( e muito menos, como é óbvio,  no instituto do enriquecimento sem causa).

   Ou seja: considerando o tribunal criminal expressamente excluída do âmbito dos seus poderes cognitivos a eventual convolação da pretensão material formulada pelo lesado - com base em responsabilidade aquiliana do arguido - para outros institutos jurídicos que permitissem alcançar o mesmo efeito prático-jurídico ( nomeadamente a responsabilidade contratual), é manifesto que, sob pena de se negar ao lesado o acesso à justiça para efectivação do seu direito ao ressarcimento, não pode deixar de se lhe reconhecer a possibilidade de obter, em ulterior acção cível,  pronúncia jurisdicional precisamente sobre a matéria que o tribunal criminal teve por excluída do domínio dos seus poderes cognitivos.


   Na verdade, embora o âmbito do caso julgado abranja, em princípio, não apenas as questões efectiva e explicitamente abordadas e decididas pelo juiz, mas todas aquelas que se deviam considerar compreendidas nos seus poderes de cognição, há que ressalvar a hipótese de o julgador os ter expressamente limitado, ao excluir explicitamente certo tema ou questão do âmbito dos seus poderes cognitivos, tal como os entende e configura ; como refere Castro Mendes ( Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil., 297) erguida pela decisão uma afirmação jurídica à categoria de res judicata, ficam reflexamente excluídas as restantes afirmações que tanto o juiz como a lei reconhecem como alternativas possíveis de solução; devendo, onde não haja declaração expressa do juiz, entender-se que o âmbito das alternativas que ele próprio reconhece como possíveis coincide com a que é demarcada pela lei.

   E, nesta perspectiva, que se tem por correcta e adequada, não estava vedado ao lesado intentar ulterior acção cível que – embora moldada pelos mesmos factos essenciais, visasse obter um específico efeito jurídico (situado, no caso, no domínio da responsabilidade contratual e, subsidiariamente, do enriquecimento sem causa) que o tribunal criminal considerara explicitamente excluído do âmbito dos seus poderes cognitivos no momento da sentença, de modo a operar uma eventual convolação da via jurídica através da qual o ressarcimento dos danos sofridos seria possível.

   Ora, no caso sub juditio, face ao teor da sentença, devidamente interpretada, é manifesto que o tribunal criminal considerou excluído dos seus poderes de cognição tudo aquilo que excedesse o estrito plano da responsabilidade aquiliana – ou seja, afastou cabalmente dos seus poderes de cognição, quer a típica responsabilidade obrigacional, emergente do incumprimento das obrigações contratualmente assumidas, quer a responsabilidade pré-contratual, decorrente da invocada nulidade do contrato e, em geral, da violação dos deveres acessórios de boa fé nos preliminares do contrato: e tanto basta para considerar que este tema da responsabilidade pré contratual – independentemente da sua correcta qualificação no plano dogmático e consequente enquadramento jurídico nos institutos da responsabilidade civil – não ficou precludido com a emissão da sentença absolutória no processo de adesão, expressamente reportada ao estrito plano da apreciação da responsabilidade aquiliana do demandado.

         8. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, nega-se provimento à revista, confirmando o decidido no acórdão recorrido e tendo, consequentemente, por inverificadas as excepções dilatórias de ineptidão da petição inicial e de caso julgado.

   Custas pelo recorrente.

Lisboa, 26 de Setembro de 2013

Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor

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[1] Onde alegou que “caso não se entenda responsabilizar o réu no âmbito da responsabilidade pré-contratual, por todos os danos, sempre se deverá entender que mesmo deve ser responsabilizado por enriquecimento sem causa, desconsiderando-se para esse efeito a personalidade jurídica da sociedade do réu.”

[2] Já citado a propósito da interpretação do pedido.
[3] Conforme se defendeu no Ac. do TRG de 21.02.2008, proferido no proc. 2635/07, em que a arguida foi  acusada da prática de um crime previsto e punido pelas disposições combinadas dos artºs 13º, 15º e artº 282º nº 2 nº2, com referência ao nº1,al. a) e b) do C. Penal, e foi deduzido pedido de indemização cível na acção penal pelas lesadas, tendo sido proferida sentença absolutória da infracção penal e do pedido cível e na acção cível deduzida posteriormente, foram reproduzidos partes da acusação, constituindo os restantes artigos uma cópia quase exacta  e configurado o caso como venda de bem defeituoso.