CORRECÇÃO DA DECISÃO
ERRO DE JULGAMENTO
FALSIDADE
IDENTIDADE DO ARGUIDO
RECTIFICAÇÃO
RECURSO DE REVISÃO
Sumário

I - A jurisprudência diverge sobre o modo de resolver os casos em que o arguido, condenado em processo penal, usou identificação falsa: uns consideram que o recurso de revisão é o meio processual adequado, enquanto outros entendem que a questão deve ser resolvida no âmbito do próprio processo pela via da correcção da sentença.
II - Deve seguir-se a via da correcção da sentença (art. 380.º, n.º 1, do CPP) quando o que se pretende é apenas e tão só a rectificação da identidade do arguido presente em julgamento, ou seja, quando a instrução do processo foi efectivamente dirigida contra o verdadeiro arguido e este foi, de facto, a pessoa julgada.
III -Impõe-se a via do recurso de revisão (se verificados os seus pressupostos) quando se pretende desonerar da condenação a pessoa efectivamente julgada, ou seja, quando ocorreu a condenação de alguém que foi submetido a julgamento, sem nele ter intervindo, porque o verdadeiro autor dos factos declinou falsamente a sua identidade.

Texto Integral

           

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

            1. Relatório

            1.1. Por sentença de 8 de Agosto de 2011, transitada em julgado no dia 25 de Fevereiro do ano corrente, proferida no processo em epígrafe, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, foi AA, nascido em Cabo Verde, no dia 13 de Fevereiro de 1975, filho de BB e de CC e residente, à data dos factos, no Caminho da A… de C…, nº xx, F… de B…, em Ponta Delgada, condenado, como autor material de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nº 1, do DL nº 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 6 (seis) meses de prisão, a cumprir por dias livres, equivalente a 36 (trinta e seis) períodos sucessivos, correspondentes a outros tantos fins de semana, entre as 9 horas de sábado e as 21 horas de Domingo.

            1.2. Dessa decisão vem o Ministério Público interpor recurso extraordinário de revisão, ao abrigo dos arts. 449°, nº 1, alínea d), 450°, nº 1, alínea a) e 451°, nºs 1 e 2, do CPP, com os fundamentos seguintes (transcrição das conclusões que encerram a motivação):

            «1. No processo n.° 367/11.5PTPDL do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada o                arguido  AA, …, foi julgado na ausência e condenado pela prática no dia 07 de Agosto de 2011, pelas  elas 13:15 horas, na Rua do Torreão, na Fajã de Baixo, em Ponta Delgada, ao conduzir o ciclomotor, marca: YAMAHA, com matrícula xx - xx - xx, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p., pelo artigo 3º nº 1 do DL n.° 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de 6 (seis) meses de prisão, a cumprir por dias livres, equivalente a 36 (trinta e seis) períodos sucessivos, correspondentes a outros tantos fins de semana, entre as 9 horas de sábado e as 21 horas de Domingo.

                2. A sentença proferida no âmbito do processo n.° 367/11.5PTPDL transitou em julgado a 25 de Fevereiro de   2013.

                3. Após ter sido notificado pessoalmente daquela condenação, o arguido informou os autos que só nessa      altura teve conhecimento que tinha sido julgado e condenado pela prática de tal crime, tendo-se apurado    junto da Direção Geral dos Serviços Prisionais, que AA, nascido em 13 de Fevereiro de          1975, em Cabo Verde, filho de BB e de CC, esteve privado da      liberdade entre 13 de Fevereiro de 2011 e 24 de Agosto de 2011 no EP de Silves, apenas se tendo ausentado nos dias 06 de Julho de 2011, 22 de Julho de 2011, 23 e 24 de Agosto de 2011 para comparecer em diligências processuais.

                4. A descoberta que o arguido se encontrava privado da liberdade no E. P. de Silves na data em que lhe são   imputados os factos porque foi condenado no Processo n.° 367/11.5PTPDL é inconciliável com os factos            considerados provados na sentença proferida neste processo e da sua oposição resultam sérias e fortes     dúvidas sobre a justeza da condenação de AA, devendo ser autorizada a revisão da sentença e determinada a absolvição do arguido».

            1.3. Instruídos os autos com as pertinentes peças processuais, o Senhor Juiz proferiu despacho, nos termos do artº 454º do CPP (fls. 88) em que disse:

«… compulsados os autos, verifico que o arguido foi condenado por ter conduzido um ciclomotor no dia 7 de Agosto de 2011 (…).

Efectuadas as necessárias diligências tendentes à identificação do arguido, apurou-se, junto da Direcção Geral dos Serviços Prisionais, que o mesmo esteve privado de liberdade entre 13 de Fevereiro de 2011 e 24 de Agosto de 2011, no E.P. de Silves, apenas se tendo ausentado, para comparecer a diligências processuais, nos dias 6 de Julho de 2011, 22 de Julho de 2011, 23 e 24 de Agosto de 2011 (cfr. fls. 87).

Assim, e sem necessidade de maiores considerandos, afigura-se-nos que o presente pedido de revisão tem sustentação para merecer acolhimento pelo Alto Supremo Tribunal de Justiça, pois o arguido encontrava-se preso no Estabelecimento Prisional de Silves na data dos factos dados como provados no processo sumário nº 367/11.5PTPDL, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada».

            1.4. Recebido o processo no Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 93 e segs. em que conclui que «o presente recurso de revisão não é admissível [devendo, antes] na 1.ª instância, ao abrigo do disposto no artigo 380.º do CPP, proceder‑se à correcção, que no caso concreto se imponha ― nomeadamente, cancelamento na sentença dos referidos elementos de identificação, por não pertencentes ao arguido ― procedendo‑se às comunicações necessárias e dando‑se também conhecimento da referida correcção ao recluso AA».

            Para tanto, depois de recordar as diligências tendentes à notificação da sentença condenatória ao Arguido, alegou (as notas de rodapé estão inseridas no texto que iremos transcrever):

«Em face da manifesta situação de usurpação de identidade, o Magistrado do Ministério Público, em exercício de funções junto do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, veio interpor o presente recurso de revisão, ao abrigo das normas dos artigos 449.º, n.º 1, alínea d), 450.º, n.º 1, alínea a), e 451.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPP.

II

1.

Dispõe o art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP:

Salvo o devido respeito, no caso dos autos não se suscitam graves dúvidas sobre a justiça da condenação do arguido.

Na verdade, dos autos não resulta que tenha sido condenada, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal pessoa diversa da que cometeu a infracção.

Efectivamente, dúvidas não existem de que quem foi detido, na se­quência de um acidente de viação, foi a pessoa que, em 7 de Agosto de 2011, pelas 13h15, conduzindo o ciclomotor de matrícula xx‑xx‑xx, circulava na Rua do Torreão, Fajã de Baixo, Ponta Delgada.

Tão pouco existem dúvidas de que foi essa pessoa concreta que na altura foi constituída arguido.

E foi essa pessoa física concretaenquanto arguido no processo — que foi notificada nos termos e para os efeitos do artigo 385.º, n.º 2, do CPP.

Dúvidas igualmente não existem de que os factos integradores do crime de condução de veículo sem habilitação legal foram também imputados àquela pessoa física concreta detida e constituída então arguido no processo.

E só os arguidos podem ser julgados e condenados e não aqueles cujos elementos de identificação, ou parte deles, tenham sido usurpados pelos arguidos, ao falsamente declararem os seus elementos de identificação.

2.

Mas afinal o que se poderia alcançar com o presente recurso de revisão?

—               Demonstrar que os factos integradores do crime de condução de veículo sem habilitação legal não tinham ocorrido, pelo que a condenação daquele arguido era injusta?

Não.

—               Provar que o referido arguido os não cometera, pelo que a sua condenação era injusta?

Não.

—               Demonstrar que, apesar de o arguido ser o autor dos factos, existem novos factos susceptíveis de integrarem causa de justificação da ilicitude ou causas de exclusão da culpa, pelo que a condenação do arguido é injusta?

Não.

—               Provar que os meios de prova de que o Tribunal se serviu para formular o seu juízo condenatório em relação à pessoa física do arguido foram condicionados pela falsidade dos elementos de identificação forneci­dos por aquele, pelo que a condenação do arguido é injusta?

Também não.

3.

Da prova de que a pessoa detida, em 7 de Agosto de 2011, e logo constituída arguido, forneceu elementos de identificação que não lhe cor­respondiam não pode decorrer que se suscitem dúvidas sobre a justiça da sua condenação, uma vez que se provaram os factos que à mesma lhe eram imputados, integradores do aludido crime de condução de veículo sem habilitação legal [1].

Há pois que concluir que os autos não nos fornecem elementos que suscitem dúvidas sobre a justiça da condenação do referido arguido.

4.

Entendimento diverso ― que, salvo o devido respeito, entendemos não merecedor de acolhimento ― no sentido de que casos como o presente devem ser objecto de recurso de revisão, parte do pressuposto de que arguido no processo não é a pessoa concreta, física, detida e constituída como tal, mas antes a pessoa a que pertencem os elementos de identificação, ou parte deles, falsamente fornecidos pela pessoa detida e constituída como arguido.

Como lucidamente se afirmou no parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria‑Geral da República [2], várias vezes citado por Maia Gonçal­ves [3], de que nos permitimos transcrever parte:

«É preciso nunca perder de vista que a instrução do processo foi efectivamente dirigida contra o verdadeiro arguido e que este é, de facto, parte no processo. Quer dizer: muito embora a identidade (falsa) corresponda precisamente a uma outra pessoa, quem é parte no processo é o arguido.

(...)

De facto, recordando o que já dissemos, o julgamento refere‑se efectivamente ao verdadeiro arguido — não à pessoa cuja identidade foi usada por ele. Isto é, embora com um nome diferente, quem o tribunal julgou foi o arguido. Quer dizer: quem sofreu a condenação foi a pessoa física do arguido — nunca o titular do nome por ele usado.»

5.

Deverá o Supremo Tribunal de Justiça, em casos de fundada suspeita de usurpação de identidade, determinar o reenvio do processo, nos termos do artigo 457.º, n.º 1, do CPP, para que se proceda a novo julgamento?

Na afirmativa terá então, ao que julgamos, de legitimamente surgir a pergunta:

Mas, novo julgamento de quem?

5.1

Da pessoa cujos elementos de identificação constam como pertencentes a um dado arguido?

Mas se assim for, tal implicaria, ao abrigo da norma do artigo 460.º do Código de Processo Penal, a sujeição a julgamento — necessariamente diminuidora e humilhante — de pessoa relativamente à qual tudo apontaria no sentido de nada ter a ver com os factos praticados pelo usurpador de identidade.

Sujeitar a julgamento uma dada pessoa, quando haja forte indícios de que o arguido tenha feito seus a totalidade, ou parte, dos elementos de identificação dessa pessoa, não será, certamente, a função da Justiça.

E tal não é seguramente o pretendido pela lei, que antes o veda.

Efectivamente, a lei é clara quando determina que o Ministério Público só deve acusar, para sujeição a julgamento, se tiver recolhido «indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente» [4].

(Sublinhados nossos)

No mesmo sentido, o Juiz de instrução só deve pronunciar se «tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança» [5] e, não tendo havido instrução, deve o Juiz de julgamento «rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada» [6].

(Sublinhados nossos)

Por isso mesmo, só deve ser sujeito a audiência de julgamento a pessoa, constituída arguida, relativamente à qual existam indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação a esta — enquanto arguida — de uma pena ou de uma medida de segurança.

Parece assim de concluir pela impossibilidade de sujeição a uma audiência de julgamento, nos termos do artigo 460.º do CPP, de pessoa cujos elementos de identificação, constam, em sentença, como pertencentes a um dado arguido.

5.2

Novo julgamento do arguido, do usurpador de identidade?

Mas, se assim for, quer se prove, quer não se prove, a usurpação de identidade, a decisão que vier a ser tomada, após o novo julgamento da pessoa constituída arguido, será sempre condenatória, o que, manifestamente, está em frontal oposição com o sentido e razão de ser do novo julgamento previsto pelo regime do recurso extraordinário de revisão.

6.

Acresce que, como é sabido, o trânsito em julgado da sentença é requisito formal da admissibilidade do recurso de revisão.

Ora, parece‑nos que em bom rigor não pode falar‑se em trânsito em julgado da decisão quando esta  não tiver sido, como no caso dos autos,  notificada ao arguido, mas apenas à pessoa cujos elementos de identificação constam, na decisão, como pertencentes a um dado arguido.

7.

Por tudo o que acima deixámos exposto, terão de surgir, necessariamente, as seguintes perguntas:

‑                 Deverá o Ministério Público interpor recurso de revisão?

‑                 Não sendo efectivamente arguido no processo a pessoa cujos elementos de identificação foram usurpados, nem tendo sequer legitimidade para, atenta a norma do artigo 450.º, n.º 1, do CPP, interpor recurso extraordinário de revisão, como pode aquela pessoa insurgir‑se relativamente ao facto de, num processo crime, os seus elementos de identificação constarem como pertencentes a um dado arguido?

Por outras palavras:

Em casos de usurpação de identidade, qual o meio de reacção?

A questão não é nova, sendo de há muito discutida. Mostram‑no a jurisprudência, de há várias décadas, variada e de sentido oposto [7].

Na vigência do Código de Processo Penal de 1929, a questão foi resolvida com as alterações introduzidas pelo Dec.‑Lei n.º185/72, de 31/05. Como se refere no respectivo preâmbulo, «resolve‑se uma dúvida resultante da condenação de um réu insuficiente ou inexactamente identificado nos autos».

Passou, então, a dispor o § único do artigo 626.º:

Quando seja certa a pessoa que foi réu no processo, mas insuficiente ou inexacta a sua identidade, proceder‑se‑á à rectificação desta nos autos, depois de realizadas as diligências necessárias.

Concordamos com o Senhor Juiz Conselheiro Dr. Maia Gonçalves, de saudosa memória, quando refere que, apesar de no actual código não existir disposição correspondente, a orientação que veio a obter consagração legal continua a impor‑se [8].

Dirigindo‑se o processo penal contra uma determinada pessoa física concreta — o arguido —, sendo o nome somente um meio de identificação daquela, a prova da falsa identidade fornecida, por não implicar dúvidas sobre a identidade física do condenado, apenas justificará a correcção dos elementos de identificação, mediante processo expedito e não por apelo ao recurso de revisão, pois que não está em causa a justiça da condenação do arguido».

2. Tudo visto, cumpre decidir

2.1. O recurso extraordinário de revisão, com a dignidade constitucional que lhe é conferida pelo nº 6 do artº 29º da Lei Fundamental, é o meio processual especialmente vocacionado para reagir contra clamorosos e intoleráveis erros judiciários ou casos de flagrante injustiça. A estabilidade da decisão judicial transitada em julgado e a paz que isso possa trazer aos cidadãos, associadas à necessidade de evitar o perigo de decisões contraditórias, não podem colidir com a noção de justiça, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, sob pena de sermos postos face «a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos, têm de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser só, no fundo, a força da tirania» (Figueiredo Dias, “Direito Processual Pena”, I, 44).

Em consonância com esse objectivo, o nº 1 do artº 449º do CPP estabeleceu taxativamente os fundamentos deste recurso, entre os quais prevê, na alínea d), expressamente convocada pelo Senhor Procurador-adjunto, o de «se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação». Com uma limitação, no entanto, estabelecida pelo nº 3 do mesmo artigo: com fundamento nesta alínea d) não é admissível a revisão «com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada».

            2.2. A situação desenhada na motivação, confirmada pelas peças processuais juntas e pela informação prestada pelo Senhor Juiz do processo é, em síntese, a seguinte:

- do processo em epigrafe consta, está registado, como arguido, como tendo sido julgado na ausência e como tendo sido condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação, o cidadão de nome AA, com os sinais de identificação já referidos.

- no decurso das diligências para notificação da sentença condenatória, veio este cidadão alegar, no essencial, que não podia ter sido ele o autor da infracção porque, nessa data, estava preso – circunstância que foi confirmada pelos Serviços Prisionais.

2.3. O Excelentíssimo Recorrente considera preenchida, como vimos, a hipótese da alínea d) do nº 1 do artº 449º.

O Senhor Juiz do processo, como também vimos, pronunciou-se no mesmo sentido.

 Já a Senhora Procuradora-geral Adjunta questiona, nos termos que referimos, a propriedade do meio processual utilizado. Em síntese, porque «dirigindo‑se o processo penal contra uma determinada pessoa física concreta — o arguido —, sendo o nome somente um meio de identificação daquela, a prova da falsa identidade fornecida, por não implicar dúvidas sobre a identidade física do condenado, apenas justificará a correcção dos elementos de identificação, mediante processo expedito e não por apelo ao recurso de revisão, pois que não está em causa a justiça da condenação do arguido». Isto é, se bem concluímos, o caso sub judice pode/deve ser resolvido por via da correcção da sentença, relativamente à identificação do Arguido, nos termos do artº 380º do CPP.

Pois bem.

2.4. Um esclarecimento prévio que, nem por ser óbvio, não deixa de se nos afigurar pertinente: o de que ao Supremo Tribunal de Justiça cabe apenas, nesta fase e no âmbito deste procedimento, autorizar ou negar a revisão, em função dos fundamentos e dos meios de prova apresentados pelo recorrente ou das declarações eventualmente prestadas ao abrigo do artº 453º, nº 1, do CPP; é, pois, ao tribunal da 1ª Instância, para onde for reenviado o processo, caso seja autorizada a revisão, que compete o novo julgamento de mérito, julgamento esse que tem como pressuposto o juízo definitivo sobre o valor desses meios de prova para demonstrar a veracidade dos novos factos alegados. O juízo do Supremo Tribunal de Justiça sobre essa matéria, com vista a autorizar ou a negar a revisão, é, assim, um juízo formal, meramente indiciário.

Daí que, no nosso caso, mesmo que venha a ser autorizada a revisão requerida, essa decisão não signifique que ocorreu efectivamente uma situação de usurpação de identidade. É isso realmente o que vem alegado, é isso, sem dúvida o que indiciariamente demonstram os meios de prova oferecidos, mas é isso, também, que só mais tarde irá ser eventualmente julgado na 1ª Instâcia. Ou seja, sendo autorizada a revisão, a primeira e principal tarefa do novo julgamento consistirá em apurar se o AA é o autor dos factos julgados provados na sentença revidenda, em cuja condenação foram tidos em consideração, além do mais, os seus antecedentes criminais, ou se é alheio à sua prática, tendo o seu verdadeiro autor declinado abusivamente, no momento da autuação, os seus (do AA) elementos de identificação.

A situação pessoal do indivíduo que, na lógica da motivação, terá praticado os factos, essa é estranha à acusação deduzida, ao julgamento subsequente e à sentença revidenda e, justamente por isso, também é estranha ao recurso agora interposto. O que está agora em causa é a justiça da condenação do AA.

Posto isto, vejamos então os argumentos em confronto.

2.5. Como a Senhora Procuradora-geral Adjunta, também entendemos que a situação desenhada nos autos e que se pretende comprovar em sede de novo julgamento, é a de que o infractor terá sido – e a forma verbal “terá” tem em conta precisamente aquele esclarecimento prévio – o individuo que foi autuado pela PSP nas circunstâncias referidas no “Auto de Notícia por Detenção”; e que foi ele quem, nessa ocasião, foi constituído arguido, quem prestou o TIR, quem foi notificado para comparecer para ser julgado em processo sumário, com a advertência de que o julgamento se faria mesmo que não comparecesse. Só que, então, de acordo com os elementos agora disponíveis, terá declinado identificação que não é a sua, mas a do AA.

Por causa desta sua atitude, de eventual usurpação de identidade alheia, e também porque o julgamento se realizou na ausência do Arguido, é que os factos julgados provados e a condenação decretada foram imputados ao AA que, assim, ficou a constar no processo como arguido e, consequentemente, como sujeito da condenação nele decretada.

Aliás, reza o nº 1 do artº 57º do CPP que assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal.

No nosso caso, a acusação foi deduzida efectivamente contra a pessoa do AA, como se vê de fls. 18 vº, depois da informação da não comparência do notificado, de obtida informação do IMTT e de requisitado o seu (do AA, insistimos) certificado de registo criminal.

A acusação foi remetida para julgamento que foi realizado sem a presença do Arguido.

E, na decisão condenatória, o Tribunal de julgamento teve em consideração os antecedentes criminais do AA e não os de qualquer outro cidadão (cfr. a fundamentação da sentença, designadamente fls. 24 e segs.).

Deste modo, não cremos que se possa afirmar que o indivíduo autuado pela PSP foi a pessoa que figura como arguido na fase da acusação e do julgamento. Na nossa perspectiva, a situação apresenta-se, indiciariamente, não como o caso de julgamento de pessoa errada ou incorrectamente identificada mas, antes, como de pessoa a quem, por usurpação da sua identidade, foram indevidamente imputados factos criminosos.

 2.6. Quanto à verificação do requisito do trânsito em julgado da sentença revidenda:

Nos termos do nº 1 do artº 449º do CPP, pressuposto do recurso extraordinário de revisão é efectivamente o de que a sentença revidenda tenha transitado em julgado.

O Excelentíssimo Recorrente alegou que a sentença revidenda transitou em julgado no dia 25 de Fevereiro do ano em curso, o que, de resto, é confirmado pela certidão de fls. 76.

A Senhora Procuradora-geral Adjunta é de parecer, como antes anotamos, que «em bom rigor não pode falar-se em trânsito em julgado da decisão, quando esta não tiver sido, como no caso dos autos, notificada ao arguido, mas apenas à pessoa cujos elementos de identificação constam, na decisão, como pertencentes a um dado arguido».

Salvo o devido respeito, discordamos deste argumento e da respectiva conclusão.  

Se é certo que a questão de saber se uma decisão judicial transitou ou não em julgado constitui questão de direito que o tribunal deve resolver, independentemente ou mesmo contra o que tiver sido eventualmente certificado por oficial de justiça, a verdade é que, em nosso entender, aqui não se podem suscitar dúvidas sobre esse ponto.

Com efeito, nos termos do artº 677º do CPC1961 (artº 628º do Código actual), a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação.

Por sua vez, estipula o artº 401º do CPP que têm legitimidade para recorrer da decisão proferida em processo penal o Ministério Público, o arguido, o assistente, as partes civis e aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão.

            Tal como o presente recurso vem configurado, o que se pretende é rever a sentença enquanto condenatória do cidadão AA que, como já referimos, não é alheia às suas condições pessoais.

O individuo que alegadamente praticou os factos é, também já o dissemos, estranho àquela sentença e ao presente recurso.      

Nesta perspectiva, o que tem de se apurar, em função, repete-se, dos próprios termos do recurso e do pedido nele deduzido (cfr. o artº 26º, nº 3, do CPC1961, correspondente ao artº 30º, nº 3, do Código actual), com vista a conferir se aquele pressuposto está ou não presente no caso concreto, é se a sentença revidenda transitou ou não em julgado relativamente à única pessoa que nela figura como arguido que é justamente a pessoa cuja condenação se pretende rever.

Ora, o recurso ordinário em processo penal é interposto no prazo de 20 dias, a contar de um dos eventos enumerados nas diversas alíneas do nº 1 do artº 411º do CPP, na redacção vigente à data em que foi proferida a decisão.

No caso concreto, nem o Ministério Público nem o aludido AA interpuseram recurso ordinário da sentença.

Assim, não visando a sentença condenatória outro arguido nem encontrando no processo outras pessoas com legitimidade e/ou interesse em recorrer, concluímos que essa sentença transitou em julgado em relação a todos os sujeitos nele formalmente envolvidos (mesmo dando de barato que em processo sumário, quando o arguido é julgado na ausência, tendo sido advertido de que o julgamento assim se faria, como aqui aconteceu, o prazo para o recurso da sentença condenatória se conta da sua notificação pessoal e não do seu depósito – orientação jurisprudencial que não é pacífica, como se vê, por exemplo, do decidido no Acórdão de 17.10.07, Pº 238/06.7).

2.7. Quanto à admissibilidade do meio processual:

Nos seus “Código de Processo Penal, Anotado”, edição de 1972, pág. 716 e 17ª edição, de 2009, pág. 1092, Maia Gonçalves referia que, no domínio do CPP de 1929, a jurisprudência divergia sobre o modo de resolver os casos em que o arguido, condenado em processo penal, havia usado identificação falsa: tanto considerava que o recurso de revisão era o meio processual adequado, como entendia, na esteira do Parecer da PGR, de 10.11.49, BMJ, 18,144, que a questão devia ser resolvida no âmbito do próprio processo, através do incidente a que aludia o artº 626º   

O § único do artº 626º, introduzido pelo DL 185/72, de 31 de Maio, veio pôr termo a essa divergência jurisprudencial, adoptando a segunda daquelas orientações.

O Código actual não contém disposição expressa idêntica.

Maia Gonçalves entendia, no entanto, que aquela orientação continuava a impor-se, sublinhando que foi mesmo seguida uniformemente enquanto exerceu funções no Supremo Tribunal de Justiça, quer como magistrado do Ministério Público, quer como Juiz.

E, realmente, são vários os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que têm seguido essa orientação, como, por exemplo, os de 30.04.09, Pº 243/06.3SILSB-A.S1, de 11.05.06, Pº 1171/06 e de 24.02.05, Pº 654/05, todos da 5ª Secção.  

Era do seguinte teor o § único do artº 626º do CPP de 1929: «Quando seja certa a pessoa que foi réu no processo, mas insuficiente ou inexacta a sua identificação, proceder-se-á à rectificação desta nos autos, depois de realizadas as diligências necessárias».

Por outro lado, relativamente aos requisitos da sentença, o Código actual, no seu artº 374º, nº 1, alínea a), em vez de, como antes, exigir a identificação do arguido (nome, idade, profissão, naturalidade e residência – arts. 450º, nº 1º e 452º, do CPP29), basta-se com «as indicações tendentes à sua identificação».

Compreende-se, pois, que a correcção desses elementos se deva fazer por via do expediente previsto no artº 380º nº 1, como nele, aliás, está previsto.

Ponto é que, como antes se dizia, «seja certa a pessoa que foi [arguida] no processo», o que seguramente acontecerá naquelas hipóteses em que a pessoa presente no julgamento foi efectivamente o autor dos factos, foi o verdadeiro arguido, embora usando identificação falsa, como parece ser o caso julgado naquele Ac. de 30.04.2009, Pº nº 243/06.3SILSB-A.S1.

Dito de uma forma, talvez mais abrangente, nada parece opor-se à via da correcção quando o que se pretende é apenas e tão só a rectificação da identidade do arguido presente em julgamento, não se pondo em causa a autoria material dos factos ou o conteúdo do julgamento e os concretos fundamentos da condenação. Ou, servindo-nos do trecho daquele Parecer da PGR transcrito pela Senhora Procuradora-geral Adjunta, quando a instrução do processo foi efectivamente dirigida contra o verdadeiro arguido e este foi, de facto, parte no processo, isto é, foi, de facto, a pessoa julgada.

Mas não é este, decididamente, o nosso caso.

O que aqui está em causa é, alegadamente, a condenação de alguém – alguém, insistimos, cujos dados pessoais foram relevantes para a condenação decretada – que foi submetido a julgamento, sem nele ter intervindo, porque o verdadeiro autor dos factos declinou falsamente a sua identificação. Nestes casos entendemos que não poderá ser adoptada essa via, impondo-se então o recurso de revisão (se verificados os respectivos pressupostos, está bom de ver) quando se pretende desonerar da condenação pessoa efectivamente julgada.

Não se trata, naturalmente, de proceder a novo julgamento do “usurpador de identidade” que, na economia deste processo, se desconhece quem seja. Mas sim, de acordo com o pedido, de reabilitar o AA, absolvendo-o dos crimes por que está condenado.   

A simples correcção da sentença nos termos advogados pela Senhora Procuradora-geral Adjunta além de não dar completa satisfação aos legítimos interesses do AA, como veremos, revela-se, salvo o devido respeito, desajustada.

Em conformidade com o artº 380º do CPP, a simples correcção não pode implicar «modificação essencial» do decidido, o que, no caso, significaria a manutenção da condenação proferida. Mas condenação de quem, se da sentença se haveria de retirar o nome do AA e não conhecemos a identidade de quem alegadamente praticou os factos? Uma condenação contra incertos? Uma sentença condenatória decapitada da indicação do autor dos factos? Mas isso é algo que o nosso regime processual não admite, como claramente resulta, desde logo, dos arts. 283º, nº 1 e 374º, nº 1, alínea a) e 380º, nº 1, alínea), do CPP. Quer dizer: por via da simples correcção, mais do modificar “essencialmente” a sentença, acabaria pura e simplesmente por se destruir a própria condenação.  

Por outro lado, a via da simples correcção da sentença em causa sempre seria insusceptível de resolver de forma eficaz todas as consequências decorrentes da alegada injusta condenação que recaiu sobre o cidadão AA. Poderia, é certo, desonerá-lo da condenação, cancelando-se correspondentemente o registo criminal. Mas já não seria meio idóneo para o restituir de forma cabal e plena à situação jurídica anterior à condenação, como tem direito, nos termos dos arts. 461º e 462º do CPP: direito a ver publicamente reparada a sua imagem, nos termos amplos previstos no nº 2 do primeiro daqueles preceitos; direito a indemnização a pagar pelo Estado (nºs 1 e 2 do artº 462º); direito à restituição das importâncias que eventualmente haja suportado em custas e multa (nº 1 do mesmo artigo).

            De resto, o resultado da procedência do recurso interposto não se reflectirá apenas na revogação da condenação. Com essa revogação, a sentença será apagada da ordem jurídica, neutralizando-se, assim, todos os efeitos que lhe estavam ou podiam estar associados, designadamente em relação ao “usurpador de identidade” que, a ser identificado (e a não ocorrer ou ter ocorrido causa extintiva do procedimento criminal), terá de ser submetido a novo julgamento e a ver relevadas a sua personalidade, as suas condições de vida, os seus antecedentes criminais ou ausência deles, em vez de idênticos factores respeitantes a terceiro. E, então não se tratará, tão só, de procurar uma pena diferente (não sabemos se mais grave se menos grave, porque desconhecemos quem seja o autor do crime – pressupondo, naturalmente a absolvição do AA no julgamento decorrente da autorização da revisão), mas sim do julgamento de pessoa diferente.

            Convém finalmente frisar que não nos encontramos face a uma situação em que duas pessoas diferentes foram condenados pelos mesmos factos, susceptível de desencadear o processamento indicado no artº 458º do CPP.

A sentença a rever, insistimos, é a que condenou o arguido AA. Por isso que autorizada a sua revisão, seguir-se-ão os trâmites dos arts. 459º e segs., do CPP, em ordem ou a restitui-lo à situação jurídica anterior à condenação (artº 461º) ou a ser efectivamente condenado por aquela infracção (artº 463º).

Em sentido próximo do aqui defendido, cfr. o acórdão de 25.03.2010, Pº nº 25/08.8GTLRA-A.S1.

 

3. Em conformidade com o exposto, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em autorizar a revisão da sentença proferida no Processo em epígrafe, reenviando o processo para sorteio pelos Juízos do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, com exclusão do 3º Juízo que proferiu a sentença revidenda, nos termos do artº 457º, nº 1, do CPP.

Sem custas.

                                        Lisboa, 30 de Outubro de 2013

Processado e revisto pelo Relator

Sousa Fonte (relator)
Santos Cabral
Pereira Madeira




[1]    Como também se referiu no acórdão do S.T.J., de 11/03/93, que negou a requerida revisão: «Os meios de prova de que o Tribunal de serviu para formular o seu juízo condenatório em relação a uma pessoa física em nada foram condicionados pelos elementos de identificação inexactos do ente que se submeteu à justiça do tribunal criminal», in CJASTJ, I, I, 212.
[2]    Cf. BMJ 18-144.
[3]    Cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Coimbra, 1972, anotações ao art. 626.º, p. 716, Código de Processo Penal, 13.ª edição, anotações ao art. 468.º, p. 910, e anotação ao acórdão do S.T.J. de 16/06/71, BMJ 208-93.
[4]    Cf. o artigo 283.º, n.º 1, do CPP.
[5]    Cf. o artigo 308.º, n.º 1, do CPP.
[6]    Cf. o artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do CPP.
[7]    Cf., nomeadamente, Maia Gonçalves, ob. cit. É curioso, também, atentar na alteração do sentido da jurisprudência após o acórdão de 5 de Julho de 1995. Neste, embora com três votos de vencido, foi autorizada a pretendida revisão. A tese então vencida, segundo a qual, tendo sido julgada e condenada a pessoa física que cometeu o crime, não há lugar a recurso de revisão mas a correcção do erro de identificação nos termos do art. 380.º, n.º 1, al. b), do C.P.P., logrou obter vencimento logo em 8 de Novembro seguinte, no acórdão n.º 47970, subscrito pelos Juízes Conselheiros da Secção Criminal, sem qualquer voto de vencido.
[8]    Ob. cit., 13.ª edição, p. 910.