I - O legislador contrabalançou, prudentemente, os latos poderes de resolução em benefício da massa insolvente conferidos ao administrador da insolvência, contrapondo-lhes, nos termos do preceituado no art. 125.º do CIRE, o direito de impugnação da resolução, quer pela outra parte (do acto resolvido), quer por iniciativa dos terceiros a quem a resolução seja oponível.
II - Não há qualquer coincidência ou sobreposição entre o âmbito de previsão e aplicação dos arts. 286.º do CC e 125.º do CIRE: ali, contempla-se o regime legal de arguição e conhecimento da nulidade de que, eventualmente, enferme um acto jurídico, sempre pressupondo que a correspondente acção seja, nos casos em que são estabelecidos prazos legais da respectiva caducidade, tempestivamente instaurada; aqui, diversamente, estabelece-se um prazo de caducidade, peremptório-substantivo, de instauração da acção de impugnação da resolução operada em benefício da massa insolvente, a qual tanto pode visar a impugnação dos fundamentos fácticos da resolução levada a cabo pelo administrador da insolvência, como a impugnação da validade do próprio acto resolutivo por ocorrência de circunstancialismo determinante da respectiva nulidade.
Proc. nº 3057/11.5TBPVZ-D.P2.S1[1]
(Rel. 206)
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça
1 – “AA, Lda” instaurou, em 04.12.12, na comarca da Póvoa de Varzim, contra a “Massa Insolvente de BB e CC”, acção de impugnação da resolução (em benefício da massa) da compra e venda outorgada, em 09.03.11, referente a um prédio rústico sito em E... – B... – Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …/B... e inscrito na matriz sob o art. …º.
Culminando a p. i., formulou o seguinte pedido:
/
Nos indicados termos e nos mais de direito, deve a presente acção ser totalmente procedente por provada:
a) – Já no despacho saneador, declarando-se nula, ineficaz e de nenhum efeito a carta resolutiva enviada pelo administrador da insolvência (A. I.), que constitui o doc. nº 2 supra;
b) – Sem prescindir, revogada a resolução do contrato de compra e venda efectuada pelo A. I., por vício de forma e/ou não verificação dos pressupostos previstos no art. 120º e segs. do CIRE e/ou abuso de direito;
c) – E, consequentemente, reconhecido, para todos os efeitos legais, que a A. é a dona e legítima proprietária do prédio id. no item 21º da p. i.;
Subsidiariamente, deve a R. ser condenada a reconhecer que o preço efectivamente pago pela A. aos insolventes e por estes recebido, pela aquisição do prédio id. no item 21º da p. i. foi de € 175 000,00; e, consequentemente,
a) – Deve a R. ser condenada a, por via da resolução, restituir à A. a indicada quantia de € 175 000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 09.03.11, constituindo este um crédito da A. sobre a massa;
b) – E, ainda, ser reconhecido à A. o direito de retenção sobre o id. prédio até reembolso pela R., com prevalência sobre os demais credores, do seu invocado crédito.
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Alegou, em síntese, que, por escritura pública de 09.03.11, comprou ao casal, ora, insolvente o prédio rústico que identificam. Por carta registada datada de 26.06.12, o Sr. A. I. comunicou a resolução daquele negócio. A carta não invoca fundamentos de facto, o que acarreta a sua nulidade e limita as possibilidades de defesa da sociedade.
A massa insolvente contestou, invocando a caducidade do direito exercitado pela A., por ter instaurado a acção, decorrido um prazo superior a 3 meses, previsto no art. 125º do CIRE.
No saneador, foi apreciada a falta de fundamentação da carta com vista à resolução, remetida pelo Sr. A. I., tendo-se concluído que a resolução se encontra suficientemente fundamentada.
No mais, foi decidido que a impugnação foi tempestiva. Para tanto, considerou-se que o prazo de que a A. dispunha era de 6 meses, previsto no art. 125º do CIRE, na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 16/12. Em seguida, procedeu-se à selecção da matéria de facto.
Ambas as partes interpuseram recurso: a A., do segmento que julgou improcedente a excepção da nulidade da carta resolutiva; a massa insolvente do segmento que julgou improcedente a extemporaneidade da instauração da acção.
Cada uma das partes respondeu ao recurso interposto pela outra, pronunciando-se pela respectiva improcedência.
Por despacho proferido em 1ª instância, em 08.07.13 (Fls. 23), apenas foi admitido o recurso interposto pela A., não tendo sido emitida qualquer pronúncia sobre o recurso interposto pela R.
Remetidos os autos à Relação do Porto, instruídos com peças referentes ao recurso da A. (mas sem as contra-alegações da massa insolvente), em 12.11.13, foi proferido acórdão referente àquele recurso (Fls. 108 a 115).
Notificada do acórdão, a massa insolvente alertou para a circunstância de terem sido interpostos dois recursos, de apenas ter sido apreciado um e de este ter sido decidido como se não tivessem sido apresentadas contra-alegações. Concluindo, em conformidade, pela nulidade do acórdão, decorrente de omissão de pronúncia, o que foi contrariado pela A.
Tendo sido ordenada a baixa dos autos à 1ª instância, a título devolutivo, foi, aí, admitido o recurso interposto pela massa insolvente, voltando os autos à Relação, devidamente instruídos com todos os elementos necessários à apreciação de ambos os recursos.
Na Relação, após se decidir que a prolação do seu sobredito acórdão, nos termos que ficam relatados, consubstanciou a prática da nulidade prevista no art. 195º, nº1, do CPC, foi proferido o acórdão de 20.05.14 (Fls. 309 a 321), em que se decidiu:
I – Na procedência do recurso interposto pela massa insolvente de BB e CC, julgar verificada a excepção (“da caducidade”[2]) do direito de a A. impugnar a resolução do contrato de compra e venda do prédio rústico sito no lugar de E..., freguesia de B..., Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº… – B... e inscrito na matriz rústica sob o art. …º, a que se reporta a escritura outorgada no dia 9 de Março de 2011, resolução essa que foi comunicada através da carta reproduzida a fls. 67;
II – Julgar improcedente o recurso interposto pela A.
Inconformada, interpôs, então, esta recurso de revista excepcional, o que foi rejeitado pelo douto despacho de fls. 411/412, onde se determinou a remessa dos autos para a normal distribuição, vindo, pois, o recurso a ser admitido, no exame preliminar do relator, como “revista normal”.
Visando a revogação do acórdão recorrido, a A. culminou as respectivas alegações com a formulação das seguintes conclusões:
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1ª – A questão controvertida que se coloca nesta revista extraordinária é: Caduca o direito de pedir a declaração de nulidade/ineficácia de declaração resolutiva se esse pedido é feito para além do prazo de impugnação da resolução previsto no artigo 125º do CIRE?
2ª – O acórdão-fundamento conclui que não caduca esse direito, entendendo que o prazo de impugnação previsto no indicado normativo não se inicia, sequer, pelo facto da declaração resolutiva ser nula e ineficaz;
3ª – Tal como considera o acórdão-fundamento, antes de analisar os fundamentos de impugnação, está sob escrutínio a validade “lato sensu” da resolução efectuada;
4ª – Não são ainda os fundamentos de impugnação propriamente ditos, o que está sob o escrutínio do julgador; o que está em discussão é tão- somente, a validade ou invalidade, em si, da declaração resolutiva, ou seja, a sua susceptibilidade de operar e ser eficaz;
5ª – Só se a declaração resolutiva for eficaz e operar é que, então, o transmissário para evitar os seus efeitos (retroactivos) previstos no n° 1 do artigo 126º do CIRE, terá de a impugnar nos moldes e prazo previsto no artigo 125º do CIRE;
6ª – O facto de, como no caso do acórdão-fundamento o transmissário não o ter feito, não impediu o Tribunal da Relação de declarar nula e de nenhum efeito a declaração resolutiva que padecia, em absoluto, de fundamentação e que, portanto, era insuficiente para operar e ser eficaz;
7ª – Ao contrário do que entende o acórdão recorrido, a questão nem se coloca, na lei especial ou geral, mas sim na insusceptibilidade de um acto nulo produzir efeitos;
8ª – A questão que se coloca é, antes de mais, saber como é legalmente admissível reconhecer efeitos (início de contagem de prazo de impugnação) a uma declaração resolutiva que é nula, por absoluta falta de fundamentação [tal como a Relação, no caso concreto, havia declarado, o que não se pode escamotear], e que, como tal é insusceptível de produzir efeitos, ao que cremos se impõe uma resposta negativa;
9ª – A nulidade é a característica de um acto jurídico que, por enfermar «ab initio» de um vício grave, não produz desde o momento da sua formação (ex tunc), os efeitos que dele corresponderiam;
10ª – Não assiste razão ao acórdão recorrido quando defende que o artigo 125º do CIRE alude ao direito de impugnar a resolução sem estabelecer qualquer distinção entre os fundamentos que possam ser invocados e sem distinguir entre as situações em que a resolução se apresenta fundamentada ou enferma de falta de fundamentação, pelo que se a lei não distingue, não se encontrando um fundamento razoável e coerente para tanto, também o intérprete não deve distinguir;
11ª – Na nossa humilde opinião, o intérprete «esbarra» desde logo com um argumento de peso: do outro lado, encontra-se posto em causa o direito de propriedade, direito real e absoluto, consagrado nos artigos 1305° e 1308° do Código Civil;
12ª – Cremos não ser desrazoável, nem incoerente exigir que, para operar a ablação do direito de propriedade em que se consubstancia uma declaração resolutiva eficaz, ou seja, para se realizarem os radicais efeitos previstos no artigo 126° do ClRE, esta tenha de ser devidamente fundamentada em concreta factualidade, de forma a permitir ao destinatário da mesma conhecer "dos concretos motivos subjacentes a esta" e dela se defender eficazmente;
13ª – Não o sendo, a mesma é ineficaz e, como tal, não opera nenhum dos seus efeitos (como o de início de contagem de prazo de impugnação);
14ª – O argumento que contrapomos ao acórdão recorrido é, pois, estarmos perante um direito real, que Orlando de Carvalho, na sua magistral obra «Direito das Coisas» definiu acutilantemente como o «Poder directo e imediato sobre uma coisa, impondo-se à generalidade dos membros da comunidade jurídica...»
15ª – Este é um fortíssimo e mais do que razoável argumento no sentido de que se impõe ao intérprete do artigo 125° do CIRE a necessidade de distinguir entre a impugnação dos fundamentos da declaração resolutiva e a validade desta em si mesma, “lato sensu”;
16ª – Distinção que está, de resto, em coerência com o sistema jurídico, não só com aquilo que constitui um direito real, como com aquilo que caracteriza um acto nulo e sem efeitos, nulidade por isso, invocável a todo o tempo, nos termos do artigo 286° do Código Civil;
17ª – Distinção que, portanto, observa o nº 1 do artigo 9° do Código Civil que preceitua que na interpretação de uma norma há que ter sempre presente a unidade do sistema jurídico;
18ª – A interpretação que o Acórdão Recorrido faz do artigo 125º do CIRE, para nele pretender incluir mesmo as situações de declarações resolutivas nulas e ineficazes é legalmente inadmissível, por violar o princípio do contraditório, o princípio da igualdade, o princípio da propriedade privada, o princípio da segurança do comércio jurídico e o princípio da proporcionalidade;
19ª – No equilíbrio dos interesses em jogo, por um lado, o carácter urgente do processo de insolvência e a satisfação paritária dos interesses dos credores, e por outro, a tutela do direito real e absoluto de propriedade do transmissário, consagrado constitucionalmente no artigo 62º do Texto Fundamental, o contraditório e as garantias de defesa, cremos que a balança terá que, perante declarações resolutivas nulas, necessariamente pender para estes, sob pena de caírem por terra todos os alicerces em que se baseia o nosso ordenamento jurídico-constitucional;
20ª – O interesse patrimonial dos credores não pode ser assegurado a qualquer preço, violando os interesses e direitos consagrados constitucionalmente, que, em hipótese alguma, se podem haver como menores;
21ª – A interpretação que o acórdão-fundamento faz do artigo 125º do ClRE, ao não ressalvar as situações em que a comunicação resolutória seja nula e insusceptível de operar e ser eficaz e, como tal, de operar os radicais efeitos retroactivos previstos no artigo 126º do CIRE, pondo em causa de forma injusta e desproporcionada o direito de propriedade do transmissário, é materialmente inconstitucional, por violar o direito fundamental consagrado no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, que garante a todos o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição;
22ª – Mais viola o direito de igualdade consagrado no artigo 13º da CRP, pois faz prevalecer os interesses dos credores da massa sobre os interesses dos transmissários, de tal forma desacautela a tutela dos interesses mediante a prática de actos resolutivos nulos de nenhum efeito;
23ª – Sendo jurisprudência fixada por esse Supremo Tribunal no Assento n° 4/95 DR Ia SERIE A, de 17-05-1995 que o tribunal pode conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico, quando invocado no pressuposto da sua validade, entendemos, em coerência, ser manifesto que o tribunal pode, a todo o tempo, conhecer da nulidade da declaração resolutiva, seja a mesma invocada no prazo previsto no 125°, fora do prazo, ou mesmo que não seja;
24ª – Impõe-se que, no provimento da presente revista, seja lavrado acórdão no sentido de que, mesmo pedido para além do prazo de impugnação da resolução previsto no artigo 125° do CIRE, não caduca o direito de pedir a declaração de nulidade/ineficácia de declaração resolutiva, se a mesma for nula e, como tal, insusceptível de produzir efeitos (um dos quais seria o do início da contagem do prazo de impugnação).
NOS INDICADOS TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO À PRESENTE REVISTA E, EM CONSEQUÊNCIA, REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE, NA ESTEIRA DO ACÓRDÃO- FUNDAMENTO ENTENDA QUE:
O direito de pedir a declaração de nulidade de declaração resolutiva, em processo de insolvência, NÃO CADUCA se aquela for nula por absoluta falta de fundamentação e, como tal, insusceptível de produzir efeitos.
Contra-alegando, defende a recorrida a manutenção do julgado.
Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2 – Na Relação, para além dos que emergem do antecedente relatório e que, aqui, se têm por reproduzidos, para os legais efeitos, tiveram-se, ainda, por provados os seguintes factos (que, nos termos legais, temos por imodificáveis):
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1 – A insolvência de BB e CC foi decretada, em 09.02.12;
2 – A carta remetida pelo Sr. administrador da insolvência à, ora, A., a comunicar a resolução em benefício da massa insolvente da escritura de compra e venda outorgada em 09.03.11, encontra-se datada de 26.06.12 e foi recebida pela, ora, A., em 04 de Julho de 2012;
3 – Aquela carta era do seguinte teor:
«…Serve a presente para, na qualidade de Administrador da Insolvência, nomeado no âmbito do processo nº 3057/11.5TBPVZ, que corre os seus termos legais no 3º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim, em que são insolventes BB e CC (…) e nos termos do disposto no artigo 121º nº 1 alínea h) e seguintes do CIRE, proceder à resolução incondicional em benefício da massa insolvente, da escritura de compra e venda outorgada em 09/03/2011, entre Vossas Ex.as e os insolventes (…) melhor identificado na escritura de compra e venda, cuja cópia se anexa, passando por conseguinte esta compra e venda a não produzir quaisquer efeitos legais.
A presente resolução, tem como base, o facto de ser um acto celebrado pelos devedores/insolventes a título oneroso dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência, nos termos do disposto no artigo 121º nº 1 al. h) do CIRE.
Conforme disposto no artigo 126º do citado preceito, a resolução tem efeitos retroactivos, devendo reconstituir-se a situação que existiria se a transacção não tivesse sido celebrada.
Face aos efeitos produzidos pela presente resolução, deverão Vossas Exªas, no prazo máximo de 10 dias, a contar da presente carta, restituir os bens, direitos ou títulos já recebidos ao abrigo da aludida compra.»
4 – No dia 9 de Março de 2011, no Cartório Notarial de DD, foi celebrada a escritura de compra e venda reproduzida a fls. 69 a 72;
5 – Consta dessa escritura que BB e mulher, CC declararam vender à “AA Limitada”, que aceitou comprar, pelo preço de € 65.000, já recebidos, um prédio rústico sito em E..., B..., Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória sob o número …, B...;
6 – Em resposta à carta do Sr. administrador da insolvência, a mencionada sociedade remeteu àquele a carta reproduzida a fls. 73, datada de 12.07.12, na qual informava que se considerava credora da massa no montante de € 175 000, correspondente ao preço efectivamente pago. Acrescentava que, nos termos do art. 754º do Código Civil, exerceria o direito de retenção sobre o prédio objecto do negócio, até pagamento do indicado valor;
7 – A presente acção foi instaurada em 04.12.12.
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3 – Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente e não havendo lugar a qualquer conhecimento oficioso, as questões por si suscitadas e que, no âmbito da revista, demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso são, essencialmente, as seguintes:
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I – Se, carecendo de qualquer fundamentação a declaração resolutiva prevista no art. 123º do CIRE, o prazo de arguição das nulidades de que enfermem os negócios jurídicos (art. 286º do CC) deve prevalecer sobre o prazo de três meses previsto no art. 125º para a instauração da acção de impugnação da resolução operada em benefício da massa insolvente; e, na negativa
II – Se o entendimento contrário consubstancia violação do direito de propriedade privada, constitucionalmente consagrado, e, bem assim, dos princípios – igualmente com sede constitucional – da igualdade, do contraditório e da proporcionalidade, para além do da segurança do comércio jurídico.
Apreciando:
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4 – I – Como se proclama no Preâmbulo do DL nº 53/04, de 18.03, que aprovou o CIRE (“Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”), “O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”. Ponderando-se, mais adiante, em sintonia: “A finalidade precípua do processo de insolvência – o pagamento, na maior medida possível, dos credores da insolvência – poderia ser facilmente frustrada através da prática pelo devedor, anteriormente ao processo ou no decurso deste, de actos de dissipação da garantia comum dos credores: o património do devedor ou, uma vez declarada a insolvência, a massa insolvente. Importa, portanto, apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham ainda na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostram prejudiciais para a massa (…) A possibilidade de perseguir esses actos e obter a reintegração dos bens e valores em causa na massa insolvente é significativamente reforçada no presente diploma (…) No actual sistema, prevê-se a possibilidade de resolução de um conjunto restrito de actos, e a perseguição dos demais nos termos apenas da impugnação pauliana, tão frequentemente ineficaz, ainda que se presuma a má fé do terceiro quanto a alguns deles. No novo Código, o recurso dos credores à impugnação pauliana é impedido, sempre que o administrador entenda resolver o acto em benefício da massa. Prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – «a resolução em benefício da massa insolvente» –, que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património”.
Em conformidade – e após se dispor, no art. 81º, nº1, do citado Código, que “a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência”, que, nos termos do nº4 do mesmo preceito legal, “assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência” –, mostram-se previstos, nos arts. 121º e 120º do mesmo compêndio normativo, diversos casos, respectivamente, de resolução (de actos) incondicional e de resolução que, por contraposição, poderá designar-se de condicional, em benefício da massa insolvente.
Esta resolução é levada a cabo, nos termos do disposto no art. 123º, nº1 do mesmo Código, pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de recepção nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência, podendo, porém, a mesma ser declarada, nos termos do disposto no nº2 do mesmo art., sem dependência de prazo, por via de excepção, enquanto o negócio não estiver cumprido.
Sob pena, porém, de os proclamados fins da mencionada resolução serem sacrificados a ocasionais jogos de prepotência, compadrio e (ou) corrupção ou de, simplesmente, aquela ser exercida sem o preenchimento dos necessários e correspondentes requisitos, o legislador contrabalançou, prudentemente, tão latos poderes conferidos ao administrador da insolvência, contrapondo-lhes, nos termos do preceituado no art. 125º do mesmo Cod., o direito de impugnação da resolução, para que terão legitimidade activa a outra parte (do acto resolvido) e os terceiros a quem a resolução seja oponível e que, após a entrada em vigor da Lei nº 16/12, de 20.04, ou seja, 20.05.12, caduca no prazo de três meses. Intervindo, pois, a acção de impugnação como travão amortecedor ou dissuasor dos sobreditos desvios à finalidade que, na óptica do legislador, deverá ser prosseguida pelo instituto jurídico em causa (“resolução em benefício da massa insolvente”).
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II – No caso dos autos, constata-se que, na 1ª instância, foi julgada tempestiva a instauração da acção de impugnação por parte da recorrente, no pressuposto de que o prazo da respectiva caducidade a ter em consideração deveria ser o de seis e não o de três meses.
Diversamente, na Relação, foi decretada a intempestividade, por extemporaneidade, da instauração da mesma acção, uma vez que se entendeu que o correspondente prazo de propositura teria de ser o de três e não o de seis meses, tendo a resolução sido consumada em 04.07.12 (data da recepção, pela recorrente, da carta registada que a operou) e vindo a presente acção a ser instaurada, apenas em 04.12.12.
A recorrente não impugna a aplicação, “in casu”, do prazo de três meses introduzido na redacção do art. 125º do CIRE pela referida Lei nº 16/12, apontando, no entanto, as baterias da respectiva argumentação jurídica em função do recurso de revista excepcional por que optou e que não foi admitido por douto despacho do Ex. mo Cons. da competente formação (Cfr. fls. 411/412)
Não obstante, tal argumentação subsiste no presente recurso de “revista normal”, pelo que não poderá deixar de ser confrontada.
Em síntese e no essencial, sustenta a recorrente que a carta que operou a resolução enferma de nulidade, pelo que, atento o regime legal da respectiva arguição (art. 286º do CC), poderia a presente acção ser proposta “a todo o tempo”, em ordem ao conhecimento de tal nulidade, à semelhança, aliás, do que foi entendido no Ac. da Relação de Guimarães, de 26.03.09, ainda que anterior à alteração introduzida no art. 125º do CIRE pela referida Lei nº 16/12.
A recorrente não tem razão: não há qualquer coincidência ou sobreposição entre o âmbito de previsão e aplicação dos arts. 286º do CC e 125º do CIRE.
Ali, contempla-se o regime legal de arguição e conhecimento da nulidade de que, eventualmente, careça um acto jurídico, sempre pressupondo que a correspondente acção seja, nos casos em que são estabelecidos prazos legais da respectiva caducidade, tempestivamente instaurada; aqui, diversamente, estabelece-se um prazo de caducidade, peremptório-substantivo[3] (Cfr., entre outros, o Ac. deste Supremo, de 05.11.13, relatado pela, ora, 1ª Adjunta), de instauração da acção de impugnação da resolução operada em benefício da massa insolvente, a qual, como bem se doutrinou no Ac. deste Supremo, de 22.05.13, relatado pelo Ex. mo Cons. Tavares de Paiva, “tanto pode servir para impugnar os fundamentos fácticos da resolução levada a cabo pelo administrador da insolvência, como para impugnar a validade do próprio acto resolutivo em virtude da ocorrência de alguma situação susceptível de provocar a nulidade ou anulabilidade desse acto e consequentemente está em qualquer caso sujeita ao prazo de caducidade de seis” (aqui, como referido, três) “meses, não sendo, por isso, de observar a respeito do fundamento relativo à nulidade do acto resolutivo o regime geral do art. 286º do CC”.
Dito de outro modo, o CIRE não obsta à observância e aplicação (antes as impondo) do regime legal de arguição da nulidade contemplada no art. 286º do CC e que seja invocada como fundamento na acção de impugnação prevista no art. 125º daquele Cod., desde que esta seja instaurada dentro do prazo, aí, estabelecido para o efeito. Não o sendo, opera a caducidade, aí, prevista, não tendo, pois, cabimento, “in casu”, a invocação do clássico brocardo de que “Lex specialis generali derogat”.
Improcedendo, assim, as correspondentes conclusões formuladas pela recorrente.
/
III – A recorrente sustenta, por outro lado, que a posição expendida enferma de diversas inconstitucionalidades.
Sem razão, mais uma vez.
Em primeiro lugar, tal não traduz a violação, em qualquer vertente, do direito de propriedade privada, constitucionalmente protegido: bem pelo contrário, trata-se de uma legítima opção legislativa que visa salvaguardar a finalidade prosseguida com o processo de insolvência, com respeito do princípio “par conditio creditorum” (art. 194º do CIRE), tendo o legislador atribuído igualdade de armas aos possíveis contendores e sendo de imputar, exclusivamente (“sibi imputet”), ao impugnante da resolução a responsabilidade pelas consequências da inobservância do prazo de caducidade estabelecido no mencionado art. 125º. Sendo, por outro lado, certo que, como sustentam os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “CRP Anotada”, 4ª Ed., Vol. I, pags. 804), muito embora a liberdade de transmissão seja um dos aspectos explicitamente garantidos no art. 62º, nº1 da CRP, o correspondente “direito deve ser entendido no sentido restrito de direito de não ser impedido de transmitir, mas não no sentido genérico de liberdade de transmissão, a qual pode ser mais ou menos profundamente limitada por via legal, quer quanto à transmissão inter vivos (…), quer quanto à transmissão mortis causa”.
Em segundo lugar, não se consegue vislumbrar onde possa ocorrer violação do princípio constitucional da igualdade (art. 13º da CRP), manifesto como se antolha que o CIRE não consagra – bem ao contrário – qualquer discriminação entre o impugnante da resolução e os credores da massa insolvente, estabelecendo, igualitariamente, a defesa e protecção das suas posições jurídicas, sem prejuízo do seu tempestivo accionamento judicial que àquele, exclusivamente, compete.
Em terceiro lugar, não pode sustentar-se que ocorra violação do princípio constitucional da proporcionalidade (Cfr., designadamente, os arts. 18º, nº2 e 19º, nº4 da CRP), porquanto não se vislumbra qualquer ofensa aos três subprincípios em que o mesmo se desdobra: adequação ou idoneidade; exigibilidade ou necessidade/indispensabilidade; e proporcionalidade em sentido restrito, nos termos mencionados a pags. 392/393 da mencionada obra dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira.
Finalmente, também não ocorre qualquer violação dos princípios do contraditório, da confiança e da invocada segurança do comércio jurídico: para além do que já ficou expendido, a lei confere igualdade de armas aos diversos contendores, não podendo nela radicar os malefícios decorrentes, exclusivamente, da passividade ou inércia de quem, não o exercendo tempestivamente, provoca a caducidade do respectivo direito.
Improcedendo, destarte, as remanescentes conclusões formuladas pela recorrente.
*
5 – Na decorrência do exposto, acorda-se em negar a revista.
/
Custas pela recorrente.
Lx 24/ 03 / 2015 /
Fernandes do Vale (Relator)
Ana Paula Boularot
Pinto de Almeida
_______________________
[1] Relator: Fernandes do Vale (06/15)
Ex. mos Adjuntos
Cons. Ana Paula Boularot
Cons. Pinto de Almeida
[2] Conquanto não conste, expressamente, do texto do acórdão, a correspondente omissão é revelada, manifestamente, pelo respectivo contexto (art. 249º do CC).
[3] Em caso similar, o Cons. Pinto Furtado (in “Manual de Arrendamento Urbano”, 4ª ed., Vol. II, pags. 846/847 e1112/1113), qualifica tal caducidade como caducidade por omissão ou caducidade em sentido próprio (caducidad, déchéance, decadenza, Ausschlussfriesten, nas ordens jurídicas mais próximas da portuguesa), a qual constitui uma forma de extinção de um direito ou pretensão, em vista do seu não uso dentro de certo prazo e a que se aplicam os princípios gerais dos arts. 328º a 333º do CC.
Sobre esta temática, cfr., com interesse: Prof. Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 7ª Ed. (2012), pags. 325 a 327 e 336 a 341; Aníbal de Castro, in “A Caducidade”, pags. 71 a 91; Prof. Menezes Leitão, in “Direito da Insolvência”, 2ª Ed., pags. 220; Catarina Serra, in “O Regime Português da Insolvência”, 5ª Ed. (2012), pags. 108 a 110; e, de algum modo, Prof. A. Reis, in “CPC Anotado”, Vol. II, pags. 379 e segs.