CONTRATO DE EMPREITADA
INCUMPRIMENTO
DESISTÊNCIA
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Sumário


1. No âmbito de um contrato de empreitada, em que não se encontre estabelecido um prazo essencial e em que o empreiteira suspenda a execução da obra por considerar haver atraso nos pagamentos devidos pelo dono da obra, a rutura da relação negocial, por parte deste, sem prévia interpelação admonitória daquela, equivale a desistência, nos termos e para os efeitos do art.º 1229.º do CC.
   2. A indemnização devida em virtude dessa desistência corresponderá:
   i) – Por um lado, os gastos e trabalhos já suportados pelo empreiteiro à data da desistência, independentemente do preço convencionado, sem se atender à utilidade que a parte executada possa ter para o dono;
   ii) – Por outro lado, ao proveito que o empreiteiro deixou de tirar com a realização completa da obra, a apurar pela diferença entre o custo global da obra e o preço convencionado. 
3. Todavia, determinado que seja o preço global da empreitada, que inclui materiais, mão-de-obra e proveitos ali incorporados, e apurado o valor dos trabalhos não realizados, sem que se prove qualquer outro proveito frustrado, a indemnização corresponderá à diferença entre aquele preço e o valor dos trabalhos não realizados, sem que se mostre relevante discriminar, nessa diferença, a parcela relativa aos gastos e trabalhos realizados e a parcela do proveito frustrado. 
4. Dependendo o valor da indemnização devida pela desistência do dono da obra do apuramento dos gastos e trabalhos parcialmente realizadas, não se pode considerar, sem mais, imputável ao devedor a falta dessa liquidação, só se tornando líquida a obrigação em face de tal apuramento. 

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA - Indústria de Reparação e Construção Naval, Ldª (A.), instaurou, em 21/10/2008, junto do Tribunal Judicial de Vila do Conde, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB (R.), a pedir a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 118.038,54, acrescida de € 23.607,71 relativos a IVA à taxa legal aplicável de 20%, caso o R. não comprovasse estar isento dele, e ainda os juros de mora contados, à taxa comercial, desde a citação, alegando, em resumo, que:

. A A., a pedido do R., executou trabalhos de reparação numa embarcação a este pertencente, com início em dezembro de 2006, conforme orçamento apresentado nos inícios daquele mês e contrato assinado em 24/05/ 2007;

. O preço de tais trabalhos, faturado conforme iam sendo solicitados, ascendeu ao total de € 205.538,54, sem IVA;

. Desse montante, o R. apenas pagou o total de € 87.500,00 até outubro de 2007, mas, a partir desta data, face à falta de pagamentos, a A. suspendeu os trabalhos na embarcação, a qual foi, contra a vontade da mesma A., retirada pelo R. dos estaleiros e removida para os estaleiros de uma outra empresa.

2. O R. contestou, sustentando, em síntese, que:

. Os trabalhos de reparação no seu barco foram objeto dum contrato de construção naval e de orçamento acordado com a A.;

. Porém, a A. não executou a totalidade dos trabalhos contratados, recusando dar cumprimento ao projeto de estabilidade da embarcação, o que obrigou o R. à sua remoção para outro estaleiro com vista à execução dos trabalhos em falta.

Concluiu pela improcedência da acção.

3. A A. replicou a impugnar o alegado pelo R. e dizendo que:

. O R. não aceitara o orçamento proposto para a realização dos trabalhos, pelo que estes foram sendo executados e faturados conforme lhe iam sendo solicitados por aquele;

. Os trabalhos não foram terminados porque o réu deixou de proceder ao respetivo pagamento e removeu o navio para outro estaleiro.

4. Findos os articulados e fixado o valor da causa, foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual foi mandada desentranhar a réplica, seguindo-se a seleção da matéria de facto tida por relevante com organização da base instrutória (fls. 186-195).

5. Realizada a audiência final e decidida a matéria de facto controvertida, conforme despacho de fls. 1663-1670, foi proferida sentença (fls. 1671-1684), em 19/11/2013, a julgar a ação parcialmente procedente, condenando o R. a pagar à A. a quantia de € 27.464,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal dos juros comerciais, desde a citação, sem prejuízo do pagamento do respetivo IVA, caso o R. não beneficie de isenção.   

6. Inconformadas com tal decisão, ambas as partes interpuseram recursos para o Tribunal da Relação do Porto, os quais foram julgados parcialmente improcedentes, condenando-se o R. a pagar à A. o valor de € 42.305,00 acrescida de juros vencidos apenas a partir da data da sentença, confirmando-se no mais a sentença recorrida, conforme acórdão proferido a fls. 1830-1846/v.º, datado de 23/10/2014.

7. Mais uma vez irresignadas, vieram ambas as partes interpor revista desse acórdão para este Supremo Tribunal, tendo formulado as seguintes conclusões:

7.1. Por parte do R.:

   1.ª - Pese embora o acórdão recorrido mereça total respeito, não se pode conformar com a solução pelo mesmo encontrada para a situação submetida à sua apreciação;

   2.ª - A vasta matéria de facto provada, submetida à apreciação deste STJ permite encontrar uma solução adequada e justa à resolução do litígio em causa;

   3.ª - O Recorrente atribui à Recorrida a prática de uma conduta que conduziu ao incumprimento definitivo e culposo do contrato de empreitada por aquela;

   4.ª - Resulta amplamente provado do teor destes autos, que o R. e a A. celebraram um contrato de empreitada que tinha por objeto principal a conclusão de uma embarcação, “CC”, no prazo convencionado, até 30/09/ 2007;

  5.ª - Em junho de 2008, as obras de execução do mencionado contrato estavam suspensas pela A..

  6.ª - Em julho de 2008, o R. interpela o Instituto Marítimo Portuário, indagando do estado do processo. É informado de que faltam na instrução do mesmo, inúmeros documentos que já haviam sido soli-citados à A., em vistoria realizada em 10/10/2007;

  7.ª - Em julho de 2008, o R. solicitou informações à Direção-Geral de Pescas sobre o andamento do processo e é informado de que a construção se processa de forma lenta; 

  8.ª - E que o prazo de conclusão da obra é até 30/09/2008, por decisão proferida pela Unidade de Gestão do PROMAR;

  9.ª - Por missiva endereçada à A., o R. solicitou-lhe o envio da documentação em falta, essencial à conclusão da obra;

  10.ª - Por carta de 04/08/2008, a A. informou o R. de que a documentação não será enviada e que “não é executado qualquer trabalho na embarcação”;

   11.ª - O prazo fixado pelas Entidades Públicas para conclusão da obra, em 30/09/2008, era do conhecimento da A., construtora naval, sediada em …;

  12.ª - A A. teve um prazo suplementar para conclusão da obra, entre o período que mediou o prazo convencional e o mês de agosto de 2008, ou seja, um prazo suplementar de doze meses para concluir a obra;

  13.ª - Antes do envio da missiva datada de 4/8/2008, a A. nunca apresentou ao R. qualquer reclamação pelas obras ditas extra-contrato, que mencionasse a existência de uma obrigação pecuniária devida pelo R. e que fosse certa, líquida e exigível;

  14.ª - Da experiência da A. na construção e reparação naval resulta que a mesma tinha conhecimento da essencialidade do prazo para cumprimento da obrigação principal emergente daquele contrato - a construção e conclusão dos trabalhos até 30/09/2008;

  15.ª - A A. não cumpriu no que toca quer à obrigação principal emergente do contrato, quer às prestações acessórias daí decorrentes, o contrato de forma pontual e de boa-fé, violando desse modo o disposto nos artigos 406.º, n.º 1, e 763.º, n.º 1, ambos do CC, princípios norteadores do cumprimento de qualquer contrato;

  16.ª - A confiança que preside à fase pré-negocial é essencial estar presente na execução do contrato, tendo a A. violado este princípio;

   17.ª - Após a recusa da A. em executar a obra, o R. não procedeu a uma interpelação admonitória, fixando um prazo suplementar necessário e adequado ao cumprimento do contrato, porque aquela sobre o prazo convencionado para conclusão dos trabalhos - 30/9/2007- já tinha beneficiado de um prazo suplementar de 12 meses, até agosto de 2008, e não tinha concluído a empreitada adjudicada;

   18.ª - Ademais e como é entendimento unânime, quer da doutrina quer da jurisprudência, aquele prazo só é necessário para conversão da mora em incumprimento definitivo, sempre que das concretas circunstâncias do caso, e da experiência comum, resulta que o prazo convencionado nos contratos não foi o prazo suficiente para o cumprimento da obrigação principal;

  19.ª - Não foi esta a situação dos autos: a A. conhece da essencialidade do prazo para entrega da obra concluída em 30/9/2008;

  20.ª - A A., pela experiência que tem da reparação e construção naval, sabe que se trata de um prazo perentório, ou seja, do denominado “prazo fatal”;

  21.ª – Beneficiou de um prazo suplementar sobre o prazo convencionado, em cerca de 12 meses;

  22.ª - Atentas as características daquele prazo, fixado pela Unidade de Gestão do PROMAR, o mesmo é um prazo perentório;

  23.ª - Mesmo perante aquelas concretas circunstâncias, a Recorrida notifica o Recorrente que não executa mais a obra;

  24.ª - Esta circunstância provada de que a A. se recusou a executar mais obra, acrescida do conhecimento pela mesma da essencialidade do cumprimento do prazo para conclusão da obra, determinam por aplicação, do princípio da boa fé contratual, que o R. não tivesse procedido a uma interpelação admonitória junto da A., para que esta cumprisse;

   25.ª - Pelo que o R. não tinha que interpelar a A. para converter a mora em incumprimento, por estarmos perante uma exceção ao normativo constante do artigo 805.º, n. 1, do CC;

  26.ª - A A., com toda a sua conduta, já havia entrado em incumprimento definitivo e culposo, não logrando afastar, ao longo de todo o processo, a presunção constante do artigo 799.º, n.º 1, do CC;

  27.ª - O princípio da boa-fé contratual, pressupõe que o R. tivesse o direito de adjudicar a terceiro a conclusão das obras, dado o sistemático e contínuo incumprimento do contrato, pela A.;

   28.ª - As instâncias viriam a considerar que houve desistência do contrato pelo R., nos termos do disposto no artigo 1229.º, n.º 1, do CC;

   29.ª - Porém, não podem tirar tal conclusão da conduta do R., confrontado com um incumprimento definitivo do contrato pela A.;

  30.ª - Diversamente da fundamentação constante do teor do acórdão recorrido, o R. não desistiu do contrato de empreitada, tal como vem regulado no artigo 1229.º do CC;

  31.ª - A A. é que, de modo inequívoco, incorreu em incumprimento ilícito e culposo, recusando-se a executar obra socorrendo-se para o efeito de baixa chantagem;

   32.ª - O R., diversamente ao sustentado no acórdão recorrido, manteve a vontade de cumprir aquele contrato de empreitada, mas perante o incumprimento definitivo da A., teve que adjudicá-lo a terceiro, que concluísse os trabalhos em falta;

  33.ª – Assim, o prejuízo da A. há-de corresponder, à diferença entre o que o R. pagou para a conclusão da obra e o que teria que pagar na execução do contrato, acrescido do valor dos trabalhos a mais incorporados na embarcação pela A. ao tempo em que a mesma deixou de executá-la:

      - € 98.600,00 + € 42.305,00 = € 140.905.00 - € 87.500,00 = € 53.405,00;

      - € 53.405,00 - € 25.941,00 = € 27.464,00;

  34.ª - Ou seja, há-de corresponder ao valor de € 27.464,00, acrescido de juros de mora calculados à taxa comercial em vigor, desde o trânsito em julgado da sentença final nestes autos lavrada;

  35.ª - O acórdão recorrido, ao ignorar todas estas questões, violou de forma flagrante, o disposto nos artigos 799.º, n.º 1, 406.º, n.º 1, 801.º, n.º 1, 808.º, n.º 1, todos do CC;

  36.ª - Os juros de mora a serem devidos, só poderão vencer-se com o trânsito em julgado da sentença final nestes autos lavrada, que fixará em definitivo a importância devida à Recorrida e só aí a mesma, se torna certa líquida e exigível;

Pede o R./Recorrente que seja revogado o acórdão recorrido, na parte em que alterou o montante a entregar pelo R. à A., mantendo-se a condenação no montante de € 27.464,00, tal como fora decidido pela l.ª instância, acrescido de juros desde o trânsito em julgado da sentença final.

      7.2. Por banda da A.:

1.ª - O acórdão recorrido seguiu o raciocínio da desistência da empreitada por parte do R.;

2.ª - A desistência da empreitada pelo dono da obra prevista no art.º 1229.º do CC nunca foi o caminho trilhado por nenhuma das partes;

3.ª - A extinção do contrato, por desistência do dono da obra (art.º 1229.º CC) é uma faculdade discricionária que pode ser tácita, sem forma especial, não carece de fundamento, nem de pré-aviso e assume eficácia “ex nunc”;

4.ª - A desistência da empreitada pelo dono da obra confere ao empreiteiro o direito a uma indemnização que incide sobre as despesas que o empreiteiro teve e o proveito que o empreiteiro poderia tirar da obra.

5.ª - Existe um orçamento de € 98.600,00 e desse valor apenas foi pago pelo R. o valor de € 87.500,00, pelo que existe um valor não pago pelo R. de € 11.100,00;

6.ª - No caso de uma desistência, e caso a obra não padeça de defeitos - que foi o caso, pois nunca foram alegados - a indemnização devida corresponde ao preço total da obra;

7.ª - A indemnização a pagar pelo R. à A. deverá ser igual ao valor da diferença entre o valor do orçamento e o valor pago no montante de € 11.100,00;

8.ª - No entanto, caso assim se não entenda, o acórdão recorrido, ao seguir, como seguiu, o raciocínio da desistência da empreitada por parte do dono da obra como forma de extinção do contrato, deveria ter condenado o R. a pagar à A. (empreiteiro) a indemnização que se liquidar em posterior incidente, correspondente aos gastos e trabalhos na obra, por esta realizados, e lucro que deixou de obter, em função da desistência da empreitada pelo R. (dono da obra);

9.ª - O acórdão recorrido, ao seguir, como seguiu, o raciocínio da desistência de empreitada, não poderia, sem mais, dizer que esta questão teria que ter sido objeto autónomo da ação;

10.ª - O referido acórdão deveria ter relegado a liquidação dos danos para liquidação de sentença com as legais consequências;

11.ª - À condenação do R. no pagamento do valor de € 42.305,00 deverá necessariamente acrescer o valor de € 11.100,00 ou, caso assim se não entenda, relegar para execução de sentença a liquidação do valor da indemnização a pagar pelo R. à A. pela desistência da empreitada;

12.ª - Não existe qualquer razão para se considerar que o crédito da A. é ilíquido.

13.ª - A A. pediu que a R. fosse condenada a pagar-lhe uma determinada quantia a título de trabalhos prestados na embarcação do R.;

14.ª - O R. contestou, entre outras coisas, o valor;

15.ª - Uma coisa é saber qual a exata quantia em dívida e outra determinar se esta é ou não líquida;

16.ª - Determina o artigo 804.º, n.º 1, o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido;

17.ª - O devedor não pode ser premiado pelo atraso no cumprimento da obrigação;

18.ª - Consta do sumário do acórdão do STJ de 16.03.99: "o facto de existir controvérsia sobre se são devidas as quantias pedidas, não pode beneficiar o devedor relativamente ao pagamento de juros quando se conclui que efectivamente deve.”

19.ª - Consta do sumário do acórdão do STJ de 16/03/99 a obrigação é ilíquida quando é incerto o seu quantitativo";

20.ª - O crédito só é ilíquido quando à data em que deve ser efetuado o pagamento não é possível proceder à sua liquidação;

21.ª - O n.º 3 do art.º 805.º do CC deve ser interpretado no sentido de que o crédito só é ilíquido quando, à data em que deve ser efetuado o pagamento, não for possível proceder à sua liquidação, ou seja, saber qual a quantia em dívida;

22.ª - Para que o crédito se considere ilíquido não basta que o devedor impugne a obrigação de pagar ou alegue que a quantia pedida não é total ou parcialmente devida;

23.ª - O R. é obrigado a pagar juros de mora à taxa comercial, desde a citação até efetivo e integral pagamento;

24.ª - Existe uma quantia que sempre foi líquida e que o R. se recusou a pagar, os varandins;

25.ª - O valor de € 7.500,00 relativo aos varandins sempre esteve líquido pelo que sobre este, pelo menos, têm que ser contabilizados juros desde a citação até efetivo e integral pagamento;

26.ª – A A. não aceita que fosse só este o valor líquido, outrossim todo o valor a que o R. foi condenado a pagar;

        

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

     II - Delimitação do objeto do recurso


       Em face quer da data da propositura da ação (21/10/2008) quer das datas das decisões recorridas (19/11/2013 e 23/10/2014), não sofre qualquer dúvida que à presente revista é aplicável o novo regime recursal introduzido pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, como decorre do disposto no respetivo art.º 5.º, n.º 1.

Como é sabido, no que aqui releva, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, e 639.º, n.º 1, do CPC.


Dentro desses parâmetros, as questões suscitadas consistem nas seguintes:


A – Quanto ao recurso interposto pelo R.:

i) – A questão do incumprimento definitivo do contrato em apreço, que o R. imputa à A. (1.ª a 27.ª e 33.ª a 35.ª conclusões do R.);

ii) - A questão da desistência do referido contrato de empreita-da, por parte do dono da obra, como tal considerada pelas ins-tâncias, mas que o R. impugna (28.ª a 32.ª conclusões);

iii) – A questão subsidiária da data inicial da contagem dos ju-ros de mora (36.ª conclusão);


B – Quanto ao recurso da A.:

i) – A questão do montante da indemnização devida em decorrência da desistência da empreitada por parte do dono da obra (1.ª a 11.ª conclusões da A.);

ii) – A questão da data inicial da contagem dos juros de mora, por sua vez, relacionada com a liquidez da dívida (12.ª a 26.ª conclusões).

        

     Neste quadro enunciativo, tais questões serão apreciadas pela seguinte ordem:

   1.º - a questão relativa ao incumprimento definitivo do contrato;

    2.º - a questão da desistência da empreitada;

     3.º - se for caso disso, a questão do montante indemnizatório;

     4.º - a questão da relativa à contagem dos juros de mora.


III – Fundamentação   

 

1. Factualidade dada como provada pelas Instâncias


Vem dada como provada pelas Instâncias a factualidade que aqui importa reordenar para uma melhor compreensão de todo o universo fáctico relevante, nos termos seguintes[1]:     

1.1. A autora (A.) é uma sociedade comercial cuja atividade principal é a construção e reparação de embarcações de pesca – alínea A) dos factos assentes;

1.2. Em novembro de 2006, o réu (R.), proprietário da embarcação em construção por substituição da embarcação naufragada de nome “CC” contactou a A. no sentido desta proceder à remoção da referida embarcação dos estaleiros da empresa “DD, Lda” – alinea B) dos factos assentes;

1.3. O R. solicitou à A. um orçamento para a realização dos trabalhos em falta, orçamento esse que foi apresentado em inícios de dezembro de 2006, e que constitui o documento junto aos autos a fls. 19 a 22, sendo que o preço global é de € 98.600,00, sem IVA incluído, e que a 4.ª e última prestação devia ser paga com a conclusão da empreitada - alínea D) dos factos assentes com o extrato extensivo do acórdão recorrido;

1.4. A. e R. acordaram, em dezembro de 2006, que a A. executaria, a favor do R., os trabalhos descritos no orçamento referido em 1.3 (alínea D) pelos preços nele constantes – resposta ao art.º 1.º da base instrutória;

1.5. Após a A. se certificar da propriedade da embarcação, e, depois de ter obtido a autorização do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos, procedeu, conforme pedido do R., à remoção da embarcação para as suas instalações – alínea C) dos factos assentes;

1.6. Em dezembro de 2006, a A. deu início à execução de trabalhos – alínea E) dos factos assentes;

1.7. A. e R. subscreveram o documento intitulado “Contrato de Construção Naval n.º 2/2007”, junto a fls. 23 a 30, firmado no dia 24/05/ 2007, com as assinaturas reconhecidas notarialmente em 18/09/2007, do qual consta, entre o mais, que:

  - o preço será entregue em 4 prestações, a última com a entrega da embarcação;

   - a título de cláusula indemnizatória, para qualquer atraso, se prevê o valor de € 2.500,00 por mês;

  - as obras se iniciaram em fevereiro de 2007 e deveriam ficar concluídas até 30/09/2007;

   - o navio será entregue, pronto a operar e nas devidas condições de segurança e exploração no Porto da Capitania de Vila do Conde;

alínea F) dos factos assentes com extrato extensivo feito pelo acórdão recorrido;

1.8. A A. efetuou na embarcação os trabalhos descritos no orçamento referido em 1.3. (alínea D) com exceção dos referidos em 1.25 a 1.34 cujo valor, mão-de-obra e materiais incluídos, a preços à data, ascende a € 25.941,00, assim como executou, a pedido do R., outros trabalhos não compreendidos no referido orçamento e cujo valor de mão-de-obra e de materiais incluídos, a preços à data, ascende a um total de € 42.305,00 – resposta ao art.º 7.º da base instrutória

1.9. Os trabalhos e materiais aplicados pela A. são os que constam do orçamento referido em 1.3. (alínea D); do orçamento que constitui o documento junto a fls. 825 - varandins - e os discriminados no documento que se encontra junto a fls. 1557 a 1558, com exceção dos aí discriminados sob os itens 7, 10, 28, 32, 35, 36, 37, 38, 39, 41, 48 e 51 – resposta ao art.º 9.º da base instrutória;

1.10. Para além da A., havia outras empresas, de outros ramos de atividade, a realizar trabalhos na embarcação – alínea G) dos factos assentes;

1.11. A A. elaborava fichas de obra referentes aos trabalhos realizados – resposta ao art.º 3.º da base instrutória;

1.12. Por força do referido em 1.10 (alínea G), a A. teve, pelo menos numa ocasião, de desfazer e voltar a fazer trabalho compreendido no referido orçamento, já executado, com o que despendeu, pelo menos, mais 16 horas de trabalho – resposta ao art.º 4.º da base instrutória;

1.13. Todos os trabalhos efetuados pela A. na embarcação foram realizados a solicitação do R. – resposta ao art.º 5.º da base instrutória;

1.14. O R. acompanhava regularmente a realização dos trabalhos por parte da A., verificando os trabalhos que iam sendo realizados e dando ordem para a realização de outros não compreendidos no orçamento referido em 1.3. (alínea D) – resposta ao art.º 6.º da base instrutória;

1.15. Na sequência do acordado entre as partes, até outubro de 2007, o R. pagou à A. o montante de € 87.500,00 – alínea H) dos factos assentes;

1.16. Por o R. não ter procedido a qualquer outro pagamento, para além do referido em 1.15 (alínea H), apesar de tal lhe ter sido solicitado pela A., esta suspendeu os trabalhos na embarcação em junho de 2008 – resposta ao art.º 8.º da base instrutória;

1.17. Por escrito, a que foi aposta a data de 22/07/2008, endereçado ao R., a Direção-Geral das Pescas e Aquicultura, comunicou-lhe o seguinte:

«Decorrente de uma visita de acompanhamento efectuado ao estaleiro naval da A., por técnico naval desta Direcção Geral, constatou-se que o projecto de construção acima referido apresenta um ritmo de processamento bastante lento, encontrando-se ainda por concluir alguns dos trabalhos. Deste modo, chama-se à atenção de V.Ex.ª que face ao encerramento do Programa PROMAR e por orientação da Unidade de Gestão de 20/10/2006, a data limite para a conclusão e registo da nova embarcação na nova frota de pesca nacional, é dia 30/09/2008»

alínea J) dos factos assentes;

1.18. Em 24/07/2008, o Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos prestou a seguinte informação endereçada ao réu, conforme documento de fls. 135:

«1 - (...) continuam em falta os seguintes elementos corrigidos: memória descritiva; arranjo geral; secções transversais; corte longitudinal; convés principal; expansão vertical do casco; querenas direitas e inclinadas; plano de faróis; plano de implantação de agulha magnética; relatório da verificação de deslocamento leve e caderno de estabilidade (conforme solicitados na vistoria realizada a 10/10/2007);

2: Informo ainda que continuam em falta as seguintes vistorias: final e de funcionamento à instalação propulsora e auxiliares; meios de detecção e extinção de incêndios; sistema de esgotos; final de montagem e funcionamento à instalação eléctrica; faróis e material de sinalização sonora; feios de salvação; compensação da agulha magnética.»

alínea L) dos factos assentes;

1.19. Por carta datada de 04/08/2008, junta a fls. 137, a A. informou o R. de que:

«1. Os elementos necessários ao registo da nova construção não estavam abrangidos pelo contrato de construção n.º 02-2007.

2. Para proceder à rectificação dos planos finais e respectivas vistorias finais é necessário acabar todos os trabalhos de carpintaria, serralharia, electricidade, montagens de máquinas, encanamentos e electrónicos.

3. Não será executado qualquer trabalho na embarcação, sem que antes sejam pagos na íntegra os trabalhos já realizados extra contrato e acordado o pagamento dos trabalhos a realizar”

alínea M) dos factos assentes;

1.20. As comunicações referidas em 1.17 e 1.18 (repetivamente alíneas J e L) surgiram na sequência de um requerimento dirigido pelo R. ao IPTM e DGPA, informações sobre o estado do processo de construção da embarcação – resposta ao art.º 11.º da base instrutória;

1.21. Na posse desses elementos, o R. notificou a A. para que esta enviasse ao IPTM os elementos em falta e necessários ao registo da embarcação, conforme teor do documento de fls. 136 – resposta ao art.º 12.º da base instrutória;

1.22. No dia 04/10/2008, o R., sem consentimento da A., retirou a embarcação aqui em causa do cais afeto à A. e removeu-a para as instalações de uma outra empresa que se dedica à construção e reparação naval, a firma “EE, Lda” – alínea I) dos factos assentes;

1.23. A sociedade referida em 1.22 (alínea I) procedeu à elaboração de trabalhos e acabamento final na embarcação e de pintura – resposta ao art.º 10.º da base instrutória;

1.24. O R. contratou os serviços de outro estaleiro, conforme o referido em 1.22 (alínea I), por, além do mais, não concordar com a posição da A. expressa em 1.19 (alínea M), nomeadamente, quanto à exigência de pagamento para continuação dos trabalhos – resposta ao art.º 13.º da base instrutória;

1.25. Aquando da entrega da embarcação no estaleiro referido em 1.22 (alínea I) e tendo por referência o orçamento elaborado pela A., verificou-se que ao nível da pintura faltava pintar a casa das máquinas; pintar a última demão de esmalte no alboio interior de cobertura, borda falsa, escotilhas e antepara do castelo – resposta ao art.º 14.º da base instrutória;

1.26. Nos acabamentos exteriores faltava pintar a última demão de tinta em todo o costado e cobertura – resposta ao art.º 15.º da base instrutória;

1.27. Na casa do leme, faltava aplicar tapete de borracha tipo moeda, nos estrados do chão; fixar/frigorífico; aplicar cantoneira em madeira de faia no aro do projetor de tecto; Falta aplicar uma cadeira em PVC, com pé em alumínio; aplicar uma porta de correr no acesso ao convés inferior; despolir e envernizar a última demão nas madeiras do beliche e remates do compacto; fazer revisão à vedação e fecho das janelas da ponte; e aplicar escada de acesso ao tejadilho da casa do leme – resposta ao art.º 16.º da base instrutória;

1.28. Na cozinha faltava aplicar a parte da mesa que é de abater; aplicar fechos nas portas dos móveis; construir armário para as garrafas de gás no exterior – resposta ao art.º 17.º da base instrutória;

1.29. Na camarinha faltava aplicar o tapete de borracha tipo moeda, nos estrados do chão; despolir e envernizar a última demão nas madeiras dos beliches e remates do compacto; e aplicar varandim na escada de acesso do convés para a camarinha – resposta ao art.º 18.º da base instrutória;

1.30. Ao nível da casa de banho, faltava a instalação de uma sanita; espelho; lavatório; torneiro monobloco; chuveiro e cabides; instalação e fornecimento de uma escotilha de 230 mm – resposta ao art.º 19.º da base instrutória;

1.31. Ao nível do porão, faltava construção de uma escada de alumínio para acesso ao porão; construção de uma tampa em contraplacado marítimo, com isolamento em poliuretano e revestido a fibra de vidro; construção de 4 prumos em aço inox; construção de panas em PVC para divisão do porão; construção dos suportes das bóias de salvação dos enroladores de cabos e suportes dos exteriores – resposta ao art.º 20.º da base instrutória;

1.32. Ao nível dos meios de salvação, faltava jangada RFD tipo A de 10 homens com berço metálico, em aço inox, cintas e disparador hidrostático; duas bóias circulares sendo uma com retinida e outra com facho de mão; 10 coletes adultos; um extintor de neve carbónica de 6KGS, para a casa das máquinas; três extintores – resposta ao art.º 21.º da base instrutória;

1.33. Ao nível da certificação, faltava execução das vistorias de agu-lha e faróis e meios de salvação; realização dos cálculos da prova de estabilidade; realização dos cálculos de arqueação – resposta ao art.º 22.º da base instrutória;

1.34. Ao nível do tanque de água doce, faltava lavar e limpar toda a tinta solta e ferrugens existentes no tanque; aplicar acabamento final – resposta ao art.º 23.º da base instrutória;

1.35. O R. contratou os serviços da empresa “FF - Consultoria e Equipamentos Navais, Lda”, para analisar o projeto de construção, execução do mesmo e estabilidade, tendo esta concluído que a embarcação está mais pesada (21,6t) e abcissa do centro de gravidade 0,172 – resposta ao art.º 24.º da base instrutória;

1.36. Mais afirmaram que como o máximo admissível é respetivamente de 2% e 1% a embarcação teria que realizar prova de estabilidade com a presença de inspetor de IPTM – resposta ao art.º 25.º da base instrutória;

1.37. Sendo então necessário entregar ao IPTM os seguintes orçamentos: verificação e deslocamento leve; deslocação a Vila do Conde para prova da estabilidade; cálculos de prova de estabilidade; cálculos das condições de carga e caimento – resposta ao art.º 26.º da base instrutória;

1.38. Havia também necessidade de correção dos desenhos existentes e novas alterações ao nível do arranjo geral; secções transversais; corte longitudinal; convés principal – resposta ao art.º 27.º da base instrutória;

1.39. Para realização dos trabalhos por aquela empresa foi apresentado o orçamento de € 850,00, acrescido de € 5.300,00, o que o R. aceitou – resposta ao art.º 28.º da base instrutória.


2. Do mérito do recurso


2.1. Enquadramento preliminar


Com a presente ação pretendia a A. a condenação do R. no pagamento da quantia de € 118.038,54, acrescida de € 23.607,71 relativos a IVA, caso não se comprove a respetiva isenção, e ainda nos juros de mora, à taxa comercial, desde a citação, a título do preço acordado pelas partes para a execução de trabalhos de reparação numa embarcação pertencente ao R., execução essa iniciada em dezembro de 2006, conforme orçamento apresentado nos inícios desse mês, mas cujo contrato escrito só fora assinado em 24/05/2007.

Por sua vez, o R. invocou, a título de exceção, o incumprimento definitivo por parte da A., razão pela qual aquele removera a embarcação para o estaleiro de outra empresa com vista à execução dos trabalhos em falta, concluindo, nessa base, pela improcedência da ação.


Face à factualidade provada, o tribunal da 1.ª instância, qualificando o contrato em foco como empreitada, considerou que o mesmo não fora integralmente cumprido nos termos acordados, mas que, tendo-se o R. limitado a excecionar o não cumprimento por culpa da A. sem pedir a cumprimento do remanescente, acabara por desistir da obra, adjudicando os trabalhos em falta a outra empresa.

A par disso, considerou que dos trabalhos inicialmente orçamentados no total de € 98.600,00, sem IVA incluído, a A. executou parte deles, à exceção de alguns no valor de € 25.941,00, tendo ainda realizado, a pedido do R., trabalhos a mais, não compreendidos no orçamento referido, os quais ascendiam ao total € 42.305,00, aos preços à data.

Nessa base, computando o valor total dos trabalhos realizados em € 114.964,00 (€ 98.600,00 - € 25.941,00 + € 42.305,00) e deduzindo a importância de € 87.500,00, já paga pelo R., o mesmo tribunal apurou o montante em dívida no valor de € 27.464,00, sem prejuízo do IVA a que houvesse lugar, e a que acresceriam juros de mora, à taxa comercial, desde a citação.


Por sua vez, o acórdão ora recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, pronunciou-se sobre as questões ali suscitadas nos seguintes domínios:

  (i) - impugnação de parte da decisão de facto;

  (ii) - modificação da decisão de direito por decorrência da eventual alteração na decisão de direito;

  (iii) - a questão de saber se o R. podia resolver o contrato com base no respetivo incumprimento por parte da A.;

  (iv) - a questão de deverem ser descontados os trabalhos não efetuados pela A. no valor do que era devido pelo R.;

  (v) - a questão relativa ao início de contagem dos juros.

       Nessa base, o referido acórdão, em primeira linha, julgou improcedente a impugnação de facto com o que ficou prejudicada a apreciação de direito daí decorrente.

        Relativamente à questão de saber se o R. podia resolver o contrato com fundamento em incumprimento por parte da A., em sede do recurso por esta interposto, foi considerado que, por um lado, quando ela suspendeu os trabalhos já incorria em mora, e que, por outro lado, não se poderia afirmar que o R. também estivesse em mora, não se podendo, pois, concluir que a A. pudesse excecionar o incumprimento do R.. E, já no âmbito do recurso do R., concluiu-se também não estar demonstrado o incumprimento definitivo da A. por aquele invocado.  

        Quanto à questão sobre o desconto dos trabalhos não efetuados pela A., o acórdão recorrido, considerando que a conduta do R. se traduzia numa desistência, havendo lugar à indemnização prevista no art.º 1229.º do CC, mas que o apuramento desta indemnização teria de ser objeto de ação autónoma com vista a discutir o custo global dos trabalhos orçamentados e o preço fixado, para só então se encontrar o valor do lucro esperado, depois de se apurar o valor dos gastos e trabalho tidos pela A., bem como aquilo que o R. já tinha pago por ele.

Nessa linha, o acórdão recorrido condenou o R. no valor de € 42.305,00, correspondente aos trabalhos realizados a mais, acrescido de juros desde a data da sentença.


       Perante o assim decidido, o R. persiste na tese do incumprimento definitivo do contrato imputado à A., em virtude do decurso do prazo essencial para a execução final dos trabalhos e de que os juros de mora devem ser contados desde o trânsito em julgado da sentença. 


Por seu turno, a A. sustenta que, em consequência da desistência da dona da obra reconhecida pelas instâncias, o R. deve ser condenado no pagamento do valor de € 42.305,00, acrescido do montante de € 11.100,00, correspondente à diferença entre o valor orçamentado e o valor pago pelo R., ou, caso assim se não entenda, relegar-se para execução de sentença a liquidação do valor da indemnização; e que os juros de mora são devidos desde a data da citação.


Vejamos.


Em termos gerais, não vem suscitada qualquer questão que recaia sobre a amplitude da decisão de facto nem ocorrem razões que, a título oficioso, a permitam questionar, tendo-se assim por adquirida tal amplitude em conformidade com o julgado pelas instâncias.

De igual modo, não vem posta em causa a qualificação do contrato em apreço como contrato de empreitada, na definição dada pelo art.º 1207.º do CC.

Com efeito, estamos no âmbito de um contrato celebrado pelas partes, verbalmente em dezembro de 2006 e reduzido a escrito em 24/05/2007, tendo por objeto a execução pela A. de trabalhos de reparação da embarcação naufragada, de nome “CC”, pertencente ao R..

Tais trabalhos foram inicialmente orçamentados pela A. e, como tal, aceites pelo R. no valor total de € 98.600,00, sem IVA incluído, tendo sido iniciados em dezembro de 2006 para serem concluídos até 30/09/2007, com a entrega do navio pronto a operar nas devidas condições de segurança e exploração no Porto da Capitania de Vila do Conde.

O preço deveria ser pago em quatro prestações, a última delas com a entrega da embarcação.

Sucede que, entretanto, a A. realizou, a pedido do R., trabalhos não compreendidos no referido orçamento, cujo valor de mão-de-obra e de materiais ascendeu ao total de € 42.305,00.   

O R. acompanhou regularmente a realização dos trabalhos por parte da A., verificando os trabalhos que iam sendo realizados e dando ordem para a realização de outros não compreendidos no orçamento. E, conforme o acordado, o R. pagou à A. o montante de € 87.500,00 até outubro de 2007.

Todavia, pelo facto de o R. não ter procedido a qualquer outro pagamento, apesar de tal lhe ter sido solicitado pela A., esta suspendeu os trabalhos na embarcação em junho de 2008. 

Foi então que, a partir daqui, emergiram as questões suscitadas no presente litígio e que abaixo serão abordadas.


2.2. Do recurso interposto pelo R.


2.2.1. Quanto à questão do alegado incumprimento definitivo 


Como já foi referido acima, as instâncias consideraram que, face à matéria provada, não se encontrava demonstrado o incumprimento definitivo da A. excecionado pelo R.   

Porém, o R./Recorrente continua a sustentar que:

   - Após a recusa da A. em executar a obra, o R. não procedeu a uma interpelação admonitória, fixando um prazo suplementar necessário e adequado ao cumprimento do contrato, porque aquela sobre o prazo convencionado para conclusão dos trabalhos, em 30/9/2007, já tinha beneficiado de um prazo suplementar de 12 meses, até Agosto de 2008, e não tinha concluído a empreitada adjudicada;

  - Conforme doutrina e jurisprudência correntes, aquele prazo só é necessário para conversão da mora em incumprimento definitivo, sempre que das concretas circunstâncias do caso, e da experiência comum, resulta que o prazo convencionado nos contratos, não foi o prazo suficiente para o cumprimento da obrigação principal;

  - Não foi esta a situação dos autos, já que a A. conhece da essencialidade do prazo para entrega da obra concluída em 30/9/2008;

   - A A., pela experiência que tem da reparação e construção naval, sabe que se trata de um prazo perentório, tendo assim beneficiado de um prazo suplementar sobre o prazo convencionado, em cerca de 12 meses;

   - Atentas as características daquele prazo, fixado pela Unidade de Gestão do PROMAR, o mesmo é um prazo perentório;

   - Mesmo perante aquelas concretas circunstâncias, a A. notificou o R. no sentido de que não executava mais a obra;

   - A recusa da A. em executar mais a obra, acrescida do conhecimento pela mesma da essencialidade do cumprimento do prazo para respetiva conclusão, determinam por aplicação, do princípio da boa fé contratual, que o R. não tivesse procedido a uma interpelação admonitória junto da A., para que esta cumprisse.


Vejamos se lhe assiste razão.


Antes de mais, importa reter que, em matéria de não cumprimento, mormente para efeitos de resolução do contrato de empreitada, são aplicáveis as regras gerais dos contratos.

Assim, o artigo 406.º, n.º 1, do CC estabelece o princípio da pontualidade no cumprimento do contrato e, segundo o artigo 798.º do mesmo diploma, a falta culposa ao cumprimento da obrigação torna o devedor responsável pelo prejuízo causado ao credor, sendo que, nos termos do artigo 799.º, incumbe àquele provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua. Assim, quando a obrigação estiver sujeita a prazo certo, o devedor que não realize a prestação a que está obrigado dentro desse prazo constitui-se, a partir daí, em situação de mora, como se preceitua no artigo 805.º, n.º 2, alínea a), do citado Código.

A par disso, segundo o indicado artigo 808.º:

1- Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.

2 – A perda do interesse na prestação é apreciada objetivamente.

     Um destes efeitos é precisamente, no caso de contrato bilateral, o direito que assiste ao credor de resolver o contrato, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 801.º daquele Código, atenta a equiparação que no n.º 1 deste artigo é feita entre a impossibilidade da prestação imputável ao devedor e a falta de cumprimento culposa da obrigação. Trata-se pois de um direito de resolução legal, o qual, segundo a doutrina corrente, se funda numa espécie de cláusula resolutiva tácita[2].

      De acordo com este quadro normativo, à luz dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, para que surja na esfera jurídica do credor o direito potestativo de resolução legal do contrato não basta, salvo nos casos especialmente previsto na lei, a ocorrência da simples mora do devedor, traduzida na falta de cumprimento da obrigação dentro do prazo que tiver sido inicialmente fixado.

Em face do prescrito no indicado n.º 1 do artigo 808.º, importa que o credor, face à mora do devedor, interpele este para cumprir a obrigação, fixando-lhe um prazo suplementar razoável, com a advertência de que a inobservância deste prazo implicará para todos os efeitos o não cumprimento da obrigação, o mesmo é dizer, o incumprimento definitivo do contrato ou mais rigorosamente não cumprimento definitivo. Essa interpelação é designada por interpelação admonitória[3].

    Assim, uma vez feita a interpelação admonitória ao devedor, se este mantiver o incumprimento, o credor poderá, em alternativa, exigir-lhe uma indemnização substitutiva da prestação em falta – a chamada grande indemnização -, por violação do interesse contratual positivo, nos termos do artigo 798.º do CC, ou optar por resolver o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 801.º, e exigir, para além da restituição do que tiver prestado, nos termos do 433.º com referência ao artigo 289.º do CC, bem como a indemnização pelos prejuízos advenientes da frustração do contrato, do dano in contrahendo ou dano confiança, fundada na violação do interesse contratual negativo, a coberto do disposto no artigo 227.º do CC[4]. Além disso, tem sido admitido que, para os mesmos efeitos, é dispensável a interpelação admonitória, desde que se verifique uma recusa antecipada inequívoca de cumprir por parte do devedor[5].

      Porém, no âmbito do princípio da liberdade contratual, podem as partes convencionar cláusulas resolutivas, ao abrigo do disposto no artigo 432.º, n.º 1, do CC, que confiram às partes o direito de resolução em caso de simples mora do devedor ou então associadas a um prazo essencial, desde logo fixado no próprio contrato. Nesta última hipótese, o direito de resolução, dito convencional, emerge da falta de cumprimento do devedor no decurso desse prazo, sem necessidade de qualquer interpelação.

    Em síntese, a convenção de um prazo para o cumprimento do contrato pode revestir alcances distintos, nomeadamente:

a) - a fixação de um mero prazo de cumprimento, cuja inobservância dará ao credor apenas a faculdade de converter a mora em não cumprimento definitivo, por via de interpelação admonitória e da fixação de um prazo suplementar, com o subsequente direito à resolução legal do contrato, nos termos dos artigos 808.º, n.º 1, e 801.º, n.º 2, do CC;

b) - a fixação de um prazo suplementar, no próprio contrato, ainda que dependente de interpelação prévia, associado a uma cláusula resolutiva;

c) - a fixação de um prazo essencial, não dependente de interpelação, acoplado a uma cláusula resolutiva ou mesmo a fixação de um prazo de caducidade.  

A convenção das partes de prazos nas espécies indicadas nas alíneas b) e c) prevalecerá sobre o regime legal, que é de caráter supletivo.


No caso vertente, da factualidade provada colhe-se que:

(i) – As parte acordaram em que os trabalhos a realizar deveriam ser concluídas até 30/09/2007 e que a embarcação a reparar seria entregue, pronta a operar e nas devidas condições de segurança e exploração no Porto da Capitania de Vila do Conde;

 (ii) – A par disso, estipularam uma cláusula indemnizatória para qualquer atraso, no valor de € 2.500,00 por mês;

(iii) - A A. efetuou na embarcação os trabalhos descritos no orçamento apresentado, com exceção dos referidos em 1.25 a 1.34 cujo valor, mão-de-obra e materiais incluídos, a preços à data, ascende a € 25.941,00, assim como executou a pedido do R. outros trabalhos não compreendidos no referido orçamento e cujo valor de mão-de-obra e de materiais incluídos, a preços à data, ascende a um total de € 42.305,00;

(iv) Os trabalhos e materiais aplicados pela A. são os que constam do orçamento referido, constante do documento junto a fls. 825 - varandins - e os discriminados no documento que se encontra junto a fls. 1557 a 1558, com exceção dos aí discriminados sob os itens 7, 10, 28, 32, 35, 36, 37, 38, 39, 41, 48 e 51;

(v) - Para além da A., havia outras empresas, de outros ramos de atividade, a realizar trabalhos na embarcação;

(vi) - A A. elaborava fichas de obra referentes aos trabalhos realizados;

(vii) - Por força do referido em (v), A. teve, pelo menos numa ocasião, de desfazer e voltar a fazer trabalho compreendido no referido orçamento, já executado, com o que despendeu, pelo menos, mais 16 horas de trabalho;

(viii) - Todos os trabalhos efetuados pela A. na embarcação foram realizados a solicitação do R.;

(ix) - O R. acompanhava regularmente a realização dos trabalhos por parte da A., verificando os trabalhos que iam sendo realizados e dando ordem para a realização de outros não compreendidos no orçamento referido;

(x) - Na sequência do acordado entre as partes, até outubro de 2007, o R. pa-gou à A. o montante de € 87.500,00;

(xi) - Por o R. não ter procedido a qualquer outro pagamento, para além do referido, apesar de tal lhe ter sido solicitado pela A., esta suspendeu os trabalhos na embarcação em junho de 2008;

(xii) - Por escrito, a que foi aposta a data de 22/07/2008, endereçado ao R., a Direção-Geral das Pescas e Aquicultura, comunicou-lhe o seguinte:

«Decorrente de uma visita de acompanhamento efectuado ao estaleiro naval da A., por técnico naval desta Direcção Geral, constatou-se que o projecto de construção acima referido apresenta um ritmo de processamento bastante lento, encontrando-se ainda por concluir alguns dos trabalhos. Deste modo, chama-se à atenção de V.Ex.ª que face ao encerramento do Programa PROMAR e por orientação da Unidade de Gestão de 20/10/2006, a data limite para a conclusão e registo da nova embarcação na nova frota de pesca nacional, é dia 30/09/2008»

(xiii) - Em 24/07/2008, o Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos prestou a seguinte informação endereçada ao réu, conforme documento de fls. 135:

«1 - (...) continuam em falta os seguintes elementos corrigidos: memória descritiva; arranjo geral; secções transversais; corte longitudinal; convés principal; expansão vertical do casco; querenas direitas e inclinadas; plano de faróis; plano de implantação de agulha magnética; relatório da verificação de deslocamento leve e caderno de estabilidade (conforme solicitados na vistoria realizada a 10/10/2007);

2: Informo ainda que continuam em falta as seguintes vistorias: final e de funcionamento à instalação propulsora e auxiliares; meios de detecção e extinção de incêndios; sistema de esgotos; final de montagem e funcionamento à instalação eléctrica; faróis e material de sinalização sonora; feios de salvação; compensação da agulha magnética.»

(xiv) - Por carta datada de 04/08/2008, junta a fls. 137, a A. informou o R. de que:

«1. Os elementos necessários ao registo da nova construção não estavam abrangidos pelo contrato de construção n.º 02-2007.

2. Para proceder à rectificação dos planos finais e respectivas vistorias finais é necessário acabar todos os trabalhos de carpintaria, serralharia, electricidade, montagens de máquinas, encanamentos e electrónicos.

3. Não será executado qualquer trabalho na embarcação, sem que antes sejam pagos na íntegra os trabalhos já realizados extra contrato e acordado o pagamento dos trabalhos a realizar”

(xv) - As comunicações referidas surgiram na sequência de um requerimento dirigido pelo R. ao IPTM e DGPA, informações sobre o estado do processo de construção da embarcação;

(xvi) - Na posse desses elementos, o R. notificou a A. para que esta enviasse ao IPTM os elementos em falta e necessários ao registo da embarcação, conforme teor do documento de fls. 136.

 

       Ora, nem dos termos do contrato nem da natureza da prestação de facto a que a A. se obrigou decorre que o prazo inicialmente estabelecido para a reparação e entrega da embarcação, até 30/09/2007, se traduza num prazo essencial, tanto mais que, subsequentemente, foram solicitados pelo R. e realizados pela A. trabalhos não previstos no orçamento apresentado, além de que as próprias partes até preconizaram uma cláusula penal moratória, para qualquer atraso que ocorresse.

        Por outro lado, das vicissitudes verificadas depois dessa data, nomeadamente quanto ao constatado ritmo lento na conclusão dos trabalhos referido na carta endereçado ao R. pela Direção-Geral das Pescas e Aquicultura, não se mostra lícito, sem mais, concluir pelo esgotamento de qualquer prazo essencial, que nem tão pouco fora admonitoriamente indicado pelo R. à A.. Nem se mostra sequer exigível que a A., nessas circunstâncias, como profissional da construção naval, o devesse considerar como tal.

       Quando muito, o que se imporia era que, em face disso, o R. interpelasse a A., fixando-lhe então claramente um prazo perentório razoável para o término dos trabalhos, sob pena de resolução do contrato, o que não fez. 

Acresce que a A. perante a situação gerada não manifestou qualquer comportamento inequívoco de não realizar a obra, limitando-se sim a suspender os trabalhos, sem que antes fossem pagos na íntegra os trabalhos já realizados não inicialmente orçamentados, pelo que não é aqui configurável uma situação específica de dispensa de interpelação admonitória por inequívoca recusa de cumprir.

Como bem se refere no acórdão recorrido, é certo que dos factos provados não resulta que o R. se encontrasse em mora relativamente às prestações exigidas pela A., mas resulta que esta se encontrava em mora, presumivelmente culposa, pelo atraso na realização da obra.

Seja como for, tal situação moratória imputável à A. não chegou a ser convertida pelo R. em incumprimento definitivo, nos termos acima referidos.

Assim sendo, bem decidiram as instâncias no sentido de que não se verifica incumprimento definitivo imputável à A.. 


2.2.2. Quanto à desistência da empreitada por parte do dono da obra


Relativamente à questão em epígrafe, o R. questiona o entendimento das instâncias ao qualificarem a sua conduta de remoção da embarcação dos estaleiros da A. como desistência do contrato, sustentando que tal comportamento era lícito em face do incumprimento da mesma A..

Ora, dos factos provados extrai-se que o R., no dia 04/10/2008, sem consentimento da A., retirou a embarcação em referência do cais afeto à A. e removeu-a para as instalações de uma outra empresa que se dedica à construção e reparação naval, a firma “EE, Lda”, com vista à realização dos trabalhos em falta, conforme consta do ponto 1.22 da factualidade acima consignada correspondente à alínea I) dos factos assentes por acordo da partes.

Desse modo, o R., sem que tenha interpelado admonitoriamente a A. para cumprir o contrato nem, nessa base, resolvido o mesmo, acabou por romper, unilateralmente, a relação contratual com aquela A., sem que tivesse fundamento legal para a resolução do contrato.

Sucede que o artigo 1229.º do CC prescreve que:

O dono da obra pode desistir da empreitada a todo o tempo, ainda que tenha sido iniciada a sua execução, contanto que indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra.


   Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela[6]:

«A desistência por parte do dono da obra não corresponde a uma revogação ou resolução unilateral, nem, rigorosamente, a uma denúncia do contrato, dados os efeitos prescritos neste artigo (…)

Trata-se, pois, de uma situação sui generis, que não corresponde a nenhuma daquelas figuras, e cujo objectivo é apenas o de dar ao dono da obra a possibilidade de não prosseguir com a empreitada, interrompendo a sua execução para o futuro, o que pode ter a sua justificação nas mais variadas causas: mudança de vida, alteração das condições económicas, etc. (…), ou de prosseguir nela, mas com outro empreiteiro, ou de realizar a obra por outra forma (…)

(…)

A lei não exige forma especial para a desistência. Trata-se de uma declaração negocial que pode ser feita por qualquer dos meios admitidos (cof. art. 217.º). Pelo que respeita, porém, à prova da extinção da empreitada por desistência do dono da obra, há que atender, quanto às testemunhas, ao disposto no artigo 395.º, se o acto tiver sido reduzido a escrito.» 

  Nessa conformidade, o comportamento do R., ao remover a embarcação dos estaleiros da A. para os de outra empresa, nas circunstâncias referidas, reconduz-se, objetivamente, a uma manifestação de vontade tácita de desistência da empreitada adjudicada à A., nos termos conjugados dos artigos 217.º e 1229.º do CC, que, de resto, se encontra suportada em factos assentes por acordo das próprias partes.             

Termos em que improcedem as razões do R./Recorrente nesta parte.


2.3. Do recurso interposto pela A., quanto ao montante indemnizatório


Considerada que foi, no ponto precedente, a ocorrência da desistência por parte do dono da obra, resta agora saber qual o montante de indemnização devida à A.

      Recorde-se que sobre este ponto, o tribunal da 1.ª instância, computando o valor total dos trabalhos realizados em € 114.964,00 (€ 98.600,00 - € 25.941,00 + € 42.305,00) e deduzindo a importância de € 87.500,00 já paga pelo R., apurou como montante em dívida a cifra de € 27.464,00, sem IVA.

     Por sua vez, o acórdão recorrido, embora concluindo que não se pode descontar o valor dos trabalhos orçamentados que à A. faltava executar, considerou que o apuramento da indemnização devida teria de ser objeto de ação autónoma com vista a discutir o custo global dos trabalhos orçamentados e o preço fixado, para só então se encontrar o valor do lucro esperado, depois de se apurar o valor dos gastos e trabalho tidos pela A., bem como aquilo que o R. já tinha pago por ele. E, nessa linha, limitou-se a condenar o R. ao valor de € 42.305,00, correspondente aos trabalhos realizados a mais, acrescido de juros desde a data da sentença.     

      Por seu lado, a A. Recorrente sustenta que o R. deve ser condenado no pagamento do valor de € 42.305,00, acrescido do montante de € 11.100,00, correspondente à diferença entre o valor orçamentado e o valor pago, ou, caso assim se não entenda, relegar-se para execução de sentença a liquidação do valor da indemnização.


     Já vimos que, segundo a 2.ª parte do artigo 1229.º do CC, em caso de desistência do dono da obra, assiste ao empreiteiro o direito a ser indemnizado dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra.

      A este propósito, refira-se o ensinamento de Vaz Serra, quando, sobre os efeitos da desistência do dono da obra, escreve[7] que:

«O efeito deste acto, não seria a integral dissolução retroactiva da relação jurídica existente entre o dono da obra e o empreiteiro (aquele não pode recusar a parte já executada da obra), nem seria fazer cessar de todo, para o futuro, essa relação (o dono da obra teria de pagar o preço convencionado, como se tivesse sido concluída, embora com determinada redução). O que se tem em vista é permitir ao dono da obra que obste à realização ou à construção desta, sem prejuízo do empreiteiro.»  

E, já no que respeita, à indemnização daí decorrente, Pires de Lima e Antunes Varela[8], observam que:

«5. A indemnização devida pelo dono da obra incide, em primeiro lugar, sobre os gastos e trabalho. São considerados todos os danos emergentes, sem se atender à utilidade que a parte executada possa ter para o dono.

A fixação dos gastos e trabalho não está relacionada com o preço da empreitada. Este pode interessar para a fixação dos proveitos, mas não para a fixação do que se gastou em material e trabalho. O Código afastou-se da solução do anteprojecto, que fixava a indemnização global por um critério negativo: o do preço da empreitada com a dedução daquilo que o empreiteiro deixasse de gastar ou adquirisse por outra aplicação da sua actividade. Embora, na generalidade dos casos, os resultados sejam praticamente os mesmos, pareceu mais simples e mais rigoroso o critério do Código de 1867, que veio a ser admitido.

Devem considerar-se como gastos não só as despesas feitas com a obra, nomeadamente as despesas com a aquisição dos materiais de construção, embora ainda não incorporados, como também os salários pagos ou devidos aos operários durante o período de tempo em curso, salvo se eles forem utilizados noutros trabalhos ou não houver obrigação legal de lhes pagar. Claro que, computados estes materiais no montante da indemnização, eles passam a pertencer ao dono da obra. (…) e não há razão para não aceitar a doutrina entre nós, que, pertencendo os materiais ao empreiteiro até à sua incorporação, esta tem a faculdade de ficar com eles, não sendo, neste caso, computado o seu custo na indemnização.

6. A determinação do proveito que o empreiteiro poderia tirar da obra terá por base a obra completa e não apenas o que foi executado. É àquela, ou melhor, à parte que falta realizar (visto os gastos do empreiteiro e o seu trabalho já estarem compreendidos na verba anterior: n.º 5) que se refere a parte final do artigo 1229.º. Terá, pois, de se atender, para este efeito, ao custo global da empreitada e ao preço fixado. Da subtracção destas duas verbas resultará o lucro.»            

       Em suma, para a determinação da indemnização devida ao empreiteiro pelo dono da obra desistente, importa ponderar duas vertentes:

(i) – Por um lado, os gastos e trabalhos já suportados pelo empreiteiro à data da desistência, independentemente do preço convencionado, sem se atender à utilidade que a parte executada possa ter para o dono;  

(ii) – Por outro lado, ao proveito que o empreiteiro deixou de tirar com a realização completa da obra, a apurar pela diferença entre o custo global da obra e o preço convencionado. 

   

     Ora, dos factos provados retira-se que:

   - os trabalhos a executar foram orçamentados no valor total de € 98.600,00, sem IVA incluído;

   - a A. efetuou na embarcação os trabalhos descritos no orçamento referido, com exceção dos referidos em 1.25 a 1.34, cujo valor, mão-de-obra e materiais incluídos a preços à data, ascende a € 25.941,00, assim como executou a pedido do R. outros trabalhos não compreendidos no referido orçamento e cujo valor de mão-de-obra e de materiais incluídos, a preços à data, ascende a um total de € 42.305,00;

  - na sequência do acordado entre as partes, até outubro de 2007, o R. pagou à A. o montante de € 87.500,00.


        Destes factos decorre, pois, que o preço global estabelecido para a empreitada em função dos trabalhos orçamentados foi de € 98.600,00, sem IVA incluído, o que compreende gastos, trabalhos, bem como o proveito para o empreiteiro ali incorporado.

      Apura-se, porém, que dos trabalhos assim orçamentados só não foram realizados trabalhos cujo valor da mão-de-obra e materiais importaram em € 25.941,00.

      Assim sendo, não obstante o método analítico de cálculo indemnizatório acima enunciado, no caso dos autos, de uma forma mais sincrética, pode inferir-se, com suficiente segurança, que a diferença entre o valor total inicialmente orçamentado de € 98.600,00 e o valor de € 25.941,00, relativo a mão-de-obra e materiais dos trabalhos não executados, equivalente a € 72.659,00, só pode corresponder aos gastos e trabalhos realizados pela A. até à desistência e ao proveito que a A. tiraria da obra completa, incorporado no preço global, ainda que, na diferença apurada, não se discrimine qual a parcela relativa aos gastos e trabalhos e a respeitante aos proveitos frustrados, discriminação que, no entanto, aqui não se mostra relevante. Nem da factualidade provada se extrai que ocorra para a A. a frustração de qualquer outro proveito específico.

Acresce que foram realizados trabalhos a mais, não inicialmente orçamentados, cujo valor, em mão-de-obra e materiais, ascende ao montante de € 42.305,00. Estes trabalhos, apesar de não terem sido inicialmente orçamentados integram-se ainda no objeto da empreitada, já que foram efetuados pela A. a solicitação do R. (pontos 1.13 e 1.14 correspondentes, respetivamente às respostas ao art.º 5.º e 6.º da base instrutória).

      Na sequência do acordado entre as partes, o R., até outubro de 2007, pagou à A. o montante de € 87.500,00.

       Em face disso, não resta senão concluir que o valor dos gastos e trabalhos da obra parcialmente executada pela A. e dos proveitos que deixou de auferir pela realização completa da empreitada, incorporado no preço global, importa no total de € 72.659,00, a que acresce o valor dos trabalhos executados a mais, na cifra de € 42.305,00, perfazendo o montante global de € 114.964,00. 

       Tendo o R. pago já a importância de € 87.500,00, a quantia em dívida é de € 27.464,00, tal como foi fixada em 1.ª instância, sem prejuízo do IVA que seja porventura devido.       

 

2.4. Quanto aos juros de mora


Neste capítulo, a 1.ª instância fixou os juros de mora a partir da citação do R., enquanto que o acórdão recorrido o fez a partir da data da sentença.

Por sua vez, enquanto que a A. pugna pela fixação a contar da citação, o R. sustenta que devem ser contados só a partir do trânsito em julgado da decisão final.


Vejamos.

Segundo o artigo 805.º do CC, no que aqui releva:

   1 – O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extra-judicialmente interpelado para cumprir.

  2 – Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:

      a) – Se a obrigação tiver prazo certo;

      b) – Se a obrigação provier de facto ilícito;

   c) – Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.    

   3 – Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez foi imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.    


No que respeita à mora relativa a obrigação ilíquida, o acórdão do STJ, de 07/11/2006, proferido no processo 06A2874[9], distinguindo iliquidez subjetiva e objetiva, considerou que:

« (…) se o devedor está em condições de saber o que deve e quanto deve não há motivos juridicamente relevantes para o considerar isento de culpa, sendo, então, a iliquidez meramente aparente ou subjectiva e, como tal, não coberta pelo princípio non illiquidis non fit mora, apenas válido e invocável em situações que  configurem iliquidez objectiva ou real.»

No caso vertente, estamos perante uma obrigação de indemnização decorrente da desistência do dono da obra, nos termos da 2.ª parte do artigo 1229.º do CC e não, rigorosamente, da obrigação do pagamento do preço da empreitada.

O valor dessa indemnização dependia do apuramento dos gastos e trabalhos parcialmente realizados pela empreiteira, bem como do valor proveito que deixou de auferir pela realização completa da obra, nos termos acima expostos.

Ora, no caso presente, tal apuramento só resultou em face da determinação do valor dos trabalhos não realizados, materiais e mão-de-obra, na cifra de € 25.941,00, a deduzir ao preço global da empreitada de € 98.600,00, acrescendo ainda o valor dos trabalhos não inicialmente orçamentados mas que foram realizados, e que não constitui crédito autónomo, como parece pretender a A..  

Nessa medida, o direito à indemnização em causa, que não se confunde com o preço global convencionado para a empreitada ou parte dele, traduz-se num crédito ilíquido emergente do facto lícito da desistência do dono da obra, não se demonstrando que seja imputável à A. a falta de liquidez.

Em face do aqui considerado em sintonia com o decidido em 1.ª instância sobre a importância devida, afigura-se que a obrigação só se tornou líquida com o apuramento ali feito e aqui sufragado. 

Termos em que os juros são devidos desde a data da sentença, 19/11/ 2013, à taxa supletiva para os créditos de que são titulares empresas comerciais, que for sucessivamente aplicável, nos termos dos artigos 102.º do Código Comercial, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 62/2013, de 10-05, em vigor desde 01/07/2013, da Portaria n.º 277/2013, de 26-08, em conformidade, desde logo, com os avisos da DGTF n.º 11617/2013, publicado no DR II Série, n.º 179, de 17-09-2013, n.º 1019/2014, DR II Série, n.º 17, de 24-01-2014, n.º 8266/2014, DR II Série, n.º 135, de 16-07-2014, e n.º 563/2015, DR II Série, n.º 12, de 19-01-2015.       


IV - Decisão


Pelo exposto, acorda-se em:

   A – Negar provimento à revista da A.;

B – Conceder provimento parcial à revista do R., alterando-se o acórdão recorrido no sentido de condenar aquele a pagar à A. a quantia de € 27.464,00 (vinte e sete mil, quatrocentos e sessenta e quatro euros, sem prejuízo do IVA que for porventura devido, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva para os créditos de que são titulares empresas comerciais, sucessivamente aplicável, desde a data da sentença da 1.ª instância até integral pagamento.  

As custas da ação e dos recursos ficam a cargo das partes, na proporção dos respetivos decaimentos.


Lisboa, 15 de Abril de 2015  

        

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria

João Luís Marques Bernardo

_______________________
[1] Perante a constatada enunciação dos factos provados pelas instâncias, não se pode aqui deixar de anotar que o método, aliás frequente, de sequenciar os mesmos, sem a preocupação de os reordenar lógica e cronologicamente, não se afigura o mais curial, sabido como é que o seu parcelamento, em sede da base instrutória, por decorrência do ónus de impugnação, os desloca dos nichos contextuais em que foram alegados pelas partes e que, por isso, devem ser reconduzidos à sua ordenação primitiva, sob pena de prejudicar a sua coerência semântica, podendo mesmo conduzir a leituras erróneas e dificultando a própria reapreciação e análise da matéria de facto pelos tribunais de recursos.     
[2] Vide, Castro Mendes, Direito Civil (Teoria Geral), Vol. III, AAFDL, 1973, pags. 406/407.
[3] Sobre a conversão da mora em não cumprimento definitivo por via da interpelação admonitória, vide, entre outros, Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, in Boletim da Faculdade de Direito – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, Vol. II – Iuridica, pags. 343 e segs.; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª Edição, Almedina, pags. 124-126, e Ano-tação ao Ac. do STJ. De 2/11/1989, in RLJ Ano 128º, pags. 137-138; Almeida Costa, Direito das Obri-gações, 11.ª Edição, Almedina, pags. 1054-1055.
[4] Sobre este ponto vide, além dos autores e lugares citados na nota precedente, Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II , Almedina, 391-398.
[5] Vide, Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil – Do Enquadramento e do Regime, Separata do Vol. XXII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1982, pag. 128.
[6] In Código Civil Anotado, Vol II, 4.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1997, p.908.
[7] In Empreitada, separata do BMJ, 1965, p
[8] Ob. cit. na nota 6, p. 908 e 909.
[9] Relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Alves Velho, acessível na Internet