DOAÇÃO
DOAÇÃO MORTIS CAUSA
FORMA DO TESTAMENTO
FORMALIDADES
OBRIGAÇÃO NATURAL
MANDATO
REVOGAÇÃO
CADUCIDADE
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
TESTAMENTO
NULIDADE
QUESTÃO NOVA
HERANÇA
ENCARGO DA HERANÇA
Sumário


I - O mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação (n.º 1 do art. 1170.º). Porém, se o mandato tiver sido conferido no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa (n.º 2 do mesmo artigo).
II - Por «interesse do mandatário e de terceiro», nos termos do art. 1170.º, n.º 2, não basta a ocorrência de uma qualquer vantagem económica do mandatário ou do terceiro, sendo que a simples retribuição não constitui critério para a determinação desse interesse. Será necessário que esse interesse se relacione e esteja em conexão com o próprio mandato e se verifique um benefício do mandatário (ou de terceiro) derivado de “um direito próprio a fazer valer conexionado com o próprio encargo e o mandato seja a condição, ou a consequência ou o modo de execução do direito que lhe pertence, ou represente então para o mandatário uma garantia do próprio direito”.
III - Em paralelo com este art. 1170.º, n.º 2, estabelece o art. 1175.º que “a morte, interdição ou inabilitação do mandante não faz caducar o mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro…”, constituindo esta disposição uma excepção ao disposto no art. 1174.º, al. a), que estabelece que o mandato caduca por morte (ou interdição) do mandante ou do mandatário. Aplicando a esta norma o que se afirmou em relação ao art. 1170.º, n.º 2 (revogação do mandato), o mandatário ou terceiro será titular de um interesse no negócio por existir uma relação subjacente justificativa do mandato, constituindo este a forma de a efectuar.
IV - Foi em sequência e, por causa, da intenção do falecido em querer compensar as suas empregadas após a sua morte, que a ré efectuou as indicadas transferências bancárias no valor de € 25 000 para cada uma delas, tendo-o feito não propriamente em resultado de uma pura vinculação jurídica justificativa do mandato, mas sim por razões de ordem moral e social, ou seja no cumprimento de uma obrigação natural.
V - A doação em causa subverte as normas atinentes ao direito das sucessões, cujas normas são, em regra, imperativas. Do art. 946.º, n.º 1 e n.º 2, resulta que as doações por morte são, em regra, proibidas. Todavia, as doações a produzir efeitos após a morte do doador serão permitidas, desde que tenham sido observadas as formalidades do testamento.
VI - A proibição da doação por morte é estabelecida pela lei de forma a possibilitar ao autor da sucessão a disponibilidade dos seus bens enquanto vivo, em paralelo com as disposições testamentárias em que a regra é (precisamente) a da sua revogabilidade (art. 2179.º, n.º 1), não podendo o testador, inclusivamente, renunciar a tal faculdade (tendo-se por não escrita qualquer cláusula que contrarie a faculdade de revogação (art. 2311.º, nos 1 e 2).
VII - A doação por morte poderá ser havida como disposição testamentária se tiverem sido as formalidades dos testamentos (n.º 2 do art. 946.º). Neste caso, haverá a conversão do negócio nulo num negócio de tipo diferente, de harmonia com o disposto no art. 293.º. Relevante será a circunstância de as formalidades do testamento, no negócio diverso, sejam observadas.
VIII - Dado que nas doações em exame as formalidades atinentes ao testamento não foram observadas (as disposições monetárias a favor das ditas empregadas foram meramente verbais), não poderão deixar de serem consideradas nulas.
IX - As questões relativas aos valores devidos às referidas empregadas a título de salários e subsídios e correspondente liquidação e quanto às despesas com o funeral, são questões novas já que o tribunal recorrido não se pronunciou sobre elas e, por isso, não sendo do conhecimento oficioso, este Supremo Tribunal não teria que se pronunciar sobre elas.
X - Mas mesmo que assim não fosse sobre os valores devidos às referidas empregadas a título de salários e subsídios que a recorrida lhes terá pago, tratando-se tais despesas de dívidas do falecido, a herança responde por elas, como decorre do art. 2068.º, pelo que tendo a recorrida pago essas dívidas com meios da herança do falecido, mais não fez do que dar cumprimento ao que dispõe a disposição legal evidenciada. É certo que a administração da herança pertence ao cabeça de casal, como resulta do disposto no art. 2079.º. Mas, para além de não se saber se, na realidade, o autor foi designado e tomou posse de tal cargo (os factos assentes são omissos quanto a tal circunstância), o facto de ter sido a recorrida a solver os ditos encargos da herança (e não o autor como cabeça de casal), constituirá mera irregularidade formal, sem interesse para aqui considerar, dado que tal não desmente o que (substancialmente) estabelece o dito art. 2068.º.

Texto Integral

                                  

                                              

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

                       

                       

                       

I- Relatório:

  1-1- AA, solteiro, maior, residente no Edifício ........... Rua de ....., n.º ..., ....., Linda-a-Velha, intentou acção declarativa com processo comum contra BB viúva, residente na Av. ..... n.º ...., Estoril, pedindo que a R. seja condenada a reconhecê-lo como herdeiro único de CC e a restituir à herança aberta por morte de CC a quantia de 28.090,00 euros, e a quantia de 37.500,00 euros, bem como os demais valores que se vierem a apurar pertencerem à herança.

Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo ser o herdeiro único da herança aberta por falecimento de seu tio CC, o qual possuía, à data do óbito, diversas contas bancárias e aplicações financeiras das quais a R. se veio a apropriar, e a fazer suas indevidamente, no montante de 65.590,00 euros.

   A R. contestou, impugnando a versão dos factos descritos pelo A., alegando, também em síntese, ser amiga de longa data do falecido CC, e trabalhar para este, competindo-lhe administrar e gerir a quinta onde ele residia, nomeadamente estando incumbida de efectuar os pagamentos ao pessoal, as despesas correntes com água, luz, gás, etc, sendo que no âmbito da relação descrita que mantinha com o falecido, este incumbiu-a de, após a sua morte, entregar a cada uma das 2 empregadas, DD e EE, que o serviram mais de 30 anos, e residiam na própria quinta, a quantia de 25.000,00 euros a cada, a titulo de liberalidade e compensação pelos anos de serviço e dedicação. Foi no cumprimento do determinado pelo falecido, e com poderes de autorização para movimentar a conta, que efectuou uma transferência de 28.090,00 euros da conta da CGD pertença de CC, para uma conta de DD, no dia do falecimento. Por seu turno, as contas a prazo existentes no Millenium BCP, com o saldo total de 75.000,00 euros eram pertença, em conjunto, do falecido e dela, R., e à data do óbito já não existiam, por a R. ter transferido a totalidade dos saldos para uma outra conta apenas titulada por si, do mesmo banco, cancelando essas contas a 8-6-2010, pelo que, devendo atender-se para fixação do património da herança à data da sua abertura que coincide com a do óbito.

             Deve, assim, concluir-se que nada deve a R. restituir à herança, relativamente aos saldos bancários dessas três contas.

Em reconvenção, alega que suportou do seu bolso o pagamento do ordenado e da referida quantia de 25.000,00 euros a favor de EE, bem como o pagamento das despesas de funeral no valor de 18.108,41 euros, o que constitui encargos da herança de que deve ser ressarcida.

Conclui pela sua absolvição dos pedidos, e pela procedência da reconvenção, condenando-se o A. a restituir-lhe o que despendeu a título de encargos da herança, no valor global de 46.108,41 euros, acrescido de juros moratórios calculados à taxa legal, desde a data de notificação e até integral pagamento.

 

Replicou o A., respondendo à matéria de excepção e opondo-se à reconvenção, concluindo pela improcedência das excepções e da reconvenção.

                       

     O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido o despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e se organizou a base instrutória, se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu à base instrutória e se proferiu a sentença.

Nesta julgou-se a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, condenou-se a R. BB a:

1º- Reconhecer o A. AA como herdeiro único de CC;

2º- Bem como a restituir à herança aberta por morte de CC a quantia de 37.500,00 euros (trinta e sete mil e quinhentos euros)”.

Mais se julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional formulado pela R., e em consequência, deduzindo-se o montante de 37.500,00 euros referido em 2º, condenou-se o A., na qualidade de único e universal herdeiro da herança aberta por óbito de CC, a pagar à R. o valor de 8.608,41 euros (oito mil seiscentos e oito euros e quarenta e um cêntimos) acrescido de juros moratórios calculados à taxa legal para operações civis, vencidos desde a data da citação e até integral pagamento.

1-2- Não se conformando com esta decisão, dela recorreu o A. de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo-se aí, por acórdão de 9-12-2015, julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

                       

                   1-3- Irresignado com este acórdão, dele recorreu o A. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido pela Formação de Juízes a que alude o art. 672º nº 3 do C.P.Civil, como revista excepcional.

                       

                     O recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:

                        “(a) Vem o Autor, aqui Recorrente, interpor Recurso de Revista do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 9 de Dezembro de 2015, que confirmou a Sentença da Primeira Instância de 27 de Abril de 2015.

                   (b) Contesta o Recorrente a decisão do tribunal a quo, que manteve a condenação do Tribunal de Primeira Instância que julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional da Recorrida, reconhecendo-a como credora do montante de EUR 46.108,41 a título de encargos da herança, a compensar com o montante de EUR 37.500,00 que a Recorrida foi condenada a devolver à herança, condenando o Recorrente a pagar à Recorrida a diferença - EUR 8.608,41.

(c) Inconforma-se o Recorrente com o acórdão recorrido, na medida em que enquadra incorretamente a relação jurídica do de cujus CC e da Ré, ora Recorrida, num contrato de mandato sem representação, que terá legitimado os atos da Recorrida.

(d) Considera o ora Recorrente que as alegadas declarações do falecido CC, no sentido de serem entregues às suas empregadas EE e DD as quantias de EUR 25.000,00 após a sua morte, não poderão considerar-se juridicamente relevantes, dado que tal intenção não foi plasmada em qualquer documento solene que pudesse confirmar com exatidão qual a vontade do de cujus e que permitisse a respetiva execução pela Recorrida, após o óbito daquele.

(e) Uma vez que o acórdão recorrido deu por provados os factos constantes dos artigos 18.°, 19.°, 24.° e 25.° da matéria de facto provada, o Recorrente apresenta as suas alegações de recurso pressupondo tais factos, embora não possa deixar de expressar a sua discordância com o facto de Tribunal a quo ter dado por provada a vontade do de cujus com base em prova testemunhal (incluindo os terceiros interessados).

(f) A decisão recorrida contém inúmeros erros na aplicação do direito aos factos dados como provados pelo Tribunal de Primeira Instância.

(g) Neste sentido, e salvo devido respeito, a decisão recorrida viola normas imperativas de Direito das Sucessões, nomeadamente as relativas aos requisitos de forma das disposições testamentárias (artigo 2204.° do CC) e das doações por morte (artigo 2204.° do CC ex.vi. 946.°, nº 2 do CC), procedendo ainda ao errado enquadramento jurídico da alegada relação de representação entre a Ré e o de cujus, legitimando indevidamente os atos da Ré.

                       (h) As quantias transferidas a favor de de DD e a EE em cumprimento das alegadas instruções do de cujus devem ser enquadradas juridicamente âmbito do Direito das Sucessões, estando sujeitas às regras da sucessão voluntária.

(i) Para saber quais as vocações que justificariam o chamamento das referidas empregadas à herança, há que qualificar os atos praticados pela Recorrida - o que não fez o Tribunal a quo.

      (j) De acordo com a matéria de facto, as transferências a favor de DD e EE operadas pela Recorrida enquadram-se no conceito de doação, não se podendo afastar esta qualificação pelo simples facto de inexistir um contrato (escrito) outorgado por doador e donatário - já que tal apenas pode determinar a invalidade do contrato por vício de forma (cfr. artigo 947°, nº 2 in fine do Código Civil).

   (k) Qualificando-se os atos da Recorrida como doações, estas deveriam subsumir-se ao regime da doação por morte, já que se destinam a produzir efeitos após a morte do doador.

(I) Da mesma forma, não pode dizer-se que uma liberalidade não é uma doação mortis causa por inobservância das formalidades necessárias para a sua validade (as prescritas para o testamento, por conversão legal em disposições testamentárias artigo 946°, nº 2 do CC).

(m) No entanto, da matéria de facto não resulta evidente que tenha havido aceitação da doação, pelo que pode questionar-se a existência da bilateralidade que define o contrato de doação.

(n) Face aos factos assentes pelas instâncias anteriores, a vontade alegadamente expressa pelo de cujus parece melhor enquadrar-se no regime jurídico do testamento - um ato negocial necessariamente unilateral e revogável.

(o) Estas alegadas manifestações de vontade do de cujus relativamente à distribuição dos seus bens após a morte seriam assim verdadeiras deixas testamentárias, que consistiriam num novo testamento, implicando a revogação do testamento anteriormente celebrado ou, no mínimo, a sua alteração,

(p) Não obstante, tais disposições testamentárias não poderiam produzir efeitos, já que não respeitaram a forma legalmente prescrita para expressão da última vontade - o testamento público (cfr. Artigo 2205,° do Código Civil) ou o testamento cerrado (cfr. Artigo 2206.° do Código Civil).

(q) Note-se que, por regra, as manifestações de vontade do de cujus quanto à disposição dos bens post mortem fora do testamento, ou são consideradas nulas (artigo 2028.° do CC), ou, se cumprirem as formalidades, são reconvertidas em deixas testamentárias, permitindo que o de cujus as revogue a todo o tempo (e.g., 946.°, nº 2 do CC).

(r) O Tribunal a quo, ao afirmar a validade aos atas praticados pela Recorrida em cumprimento da vontade do de cujus, reconheceu, de forma contraria à Lei, a validade de disposições testamentárias alegadamente celebradas oralmente pelo de cujus, que são nulas, em virtude da violação da forma legalmente prescrita.

(s) Por outro lado, andou mal o Tribunal a quo ao considerar que a alegada existência de um contrato de mandato sem representação entre a Recorrida e o de cujus, que legitimava a primeira para a prática dos atos em crise.

(t) A celebração do contrato de mandato não isenta o mandatário de respeitar a forma legalmente prevista para os atos a praticar em nome do mandante.

(u) Por este motivo, tendo em conta que as alegadas instruções que o de cujus transmitiu à Recorrida devem ser consideradas disposições testamentárias, não poderiam ter sido praticadas pela Recorrida sem que estivessem plasmadas em documento respeitando as formalidades do testamento, provando o conteúdo da vontade expressa pelo de cujus.

(v) Ainda que os valores alegadamente devidos às referidas empregadas a título de salários e subsídios pudessem vir a ser considerados encargos da herança (cfr. 2068,° do CC), a liquidação dos mesmos só poderia ser feita pelo cabeça-de-casal, que no caso é o Recorrente (cfr. Artigo 2080.°, nº 1 alínea c) do CC).

(w) Também quanto às despesas com o funeral, a Recorrida agiu por sua própria conta, sem estar legitimada para concretizar os atos por conta da herança, e sem prestar esclarecimentos nem tentar informar-se de qual seria a vontade do herdeiro legal do de cujus.

(x) O valor reclamado pela Recorrida a título de despesas com o funeral (EUR 18.108,41) é exorbitante e não se harmoniza com o património encontrado na herança, devendo ser suportado pela Recorrida.

(y) O douto Tribunal a quo refere ainda que a alegada vontade expressa pelo de cujus conferiu à Recorrida uma mandato sem representação, e que tal legitimou as subsequentes transferências a favor das empregadas do de cujus.

(z) Ora, dando cumprimento às disposições testamentárias do de cujus, a Recorrida teria agido como testamenteira, nos termos do artigo 2320.° do Código Civil, e não como mandatária.

(aa) O que diferencia a testamentaria do mandato sem representação concedido no interesse de terceiro, que não caduca após a morte (cfr. Artigo 1175.° do Código Civil), é o facto de o testamenteiro se limitar a dar execução ao testamento, garantindo o cumprimento da vontade do de cujus, nos termos em que foi expressa; já o mandatário sem representação assegura a continuidade da prática de certos atas do interesse de terceiros, que se devem refletir na esfera jurídica do mandante após a sua morte.

(bb) As alegadas deixas testamentárias do de cujus são nulas por vício de forma, o escopo da atividade da Recorrente enquanto testamenteira esgotou-se, visto não ter objeto.

(cc) Pelo exposto, as transferências operadas pela Recorrida a favor de DD e a EE em alegado cumprimento da vontade do de cujus, devem considerar-se meras liberalidades da Recorrida, não devendo ser imputadas à herança,

(dd) Porém, ainda que se considerasse existir entre a Recorrida e o de cujus um contrato de mandato sem representação válido (o que não se concede) tal mandato não legitimaria à Recorrida para prática dos atos a que se propôs.

(ee) Ao ter alegadamente instruído a Recorrida, ao abrigo do contrato de mandato sem representação, para que transferisse as quantias em causa para as referidas empregadas após a sua morte, o de cujus teria não só procedido a uma alteração inválida do testamento, por falta de forma (artigo 2204.° do Código Civil), como teria ainda incumbido a Recorrida na função de incumprir o seu testamento anterior, alterando materialmente a sua última vontade por intermédio da sua alegada mandatária.

(ff) Nos termos do artigo 2182° do Código Civil, é proibida a celebração (e, consequentemente, a alteração) do testamento através representante, bem como a intervenção na representante na decisão de cumprimento ou incumprimento do testamento.

(gg) Ainda que o de cujus tivesse estabelecido uma relação de representação de qualquer tipo com a Recorrida, os poderes da Ré nesse âmbito teriam sempre que ser limitados à prática de atos executórios da vontade validamente expressa pelo falecido (i.e., em documento solene), ou, no limite, os atos que a lei permite que o testador cometa a terceiros (ie., os atos previstos no nº 2 do artigo 2182° do CC), não podendo tais poderes ser usados para alterar livremente o testamento do de cujus, concedendo relevância a alegadas disposições testamentárias oralmente expressas (e por isso feridas de nulidade).

(hh) Ou seja, nenhum instrumento informal poderia conferir à Ré o poder de alterar o se testamento anteriormente celebrado, dada a natureza pessoal do mesmo - o que aconteceu no caso em apreço nos presentes dos autos.

(ii) Desta forma, a Recorrida não se encontrava legitima e validamente autorizada a mobilizar o dinheiro do de cujos para compensar a empregadaDD, no montante total de EUR 28.090,00, que deverá ser condenada a restituir à herança.

Nestes termos, e nos demais de Direito: a) Deverá o presente recurso ser admitido nos termos do disposto nos artigos 629°, número 1; 671° número 1 e 3; 672.°, número 1, alínea b), e 672°, número 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil… e ser julgado integralmente procedente, sendo revogada a Decisão Recorrida, por errada aplicação da lei, sendo consequentemente a Decisão Recorrida substituída por outra que condene a Recorrida a restituir à herança o montante de EUR 28.090,00, a acrescer à quantia de EUR 37.500,00 na qual fora previamente condenada, perfazendo um total de EUR 65.590,00”.

                         Não foram apresentadas contra-alegações.

                        Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

                       

                        II- Fundamentação:

2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (art. 639º nºs 1 e 2 do C.P.Civil)

Nesta conformidade, serão os seguintes os assuntos a apreciar e decidir:

          - Se não existiu qualquer mandato sem representação do de cujus a favor da R. e se as entregas de dinheiro feitas pela recorrida às empregadas do falecido são doações ou deixas testamentárias e, por isso, são nulas por vício de forma.

        - Se a R. terá que devolver ao A. os valores monetários pagos às empregadas do falecido a título de salários bem como o montante pago pelas despesas do funeral do de cujus.

                 2-2- Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:

1º- CC faleceu no dia 17 de Junho de 2010, às 11 horas e 30 minutos, na freguesia de Alcabideche, concelho de Cascais, no estado de viúvo de FF.

2º-Por escritura publica outorgada no dia 7 de Julho de 2010, no Cartório Notarial de Algés, AA, declarou que CC faleceu no dia 17 de Junho de 2010, no estado de viúvo de FF; que o falecido deixou um testamento público; não deixou ascendentes nem descendentes vivos, e deixou como único herdeiro seu sobrinho, AA.

3º-O falecido deixou testamento, outorgado em 5 de Maio de 2003, no Primeiro Cartório Notarial de Cascais, mediante o qual deixou legados a sua irmã, GG, a sua sobrinha neta, HH, e a Fundação FF.

4º-CC foi titular de depósitos bancários, títulos, aplicações e outros produtos financeiros, nomeadamente na Caixa Geral de Depósitos e no Banco Millennium BCP e associou terceiras pessoas às contas que possuía naqueles bancos, como Contitulares ou autorizados.

5º-Na data em que CC faleceu, este era titular, na Caixa Geral de Depósitos, agência de Cascais, das seguintes contas bancárias com depósitos:

a) Conta de depósito a prazo nº 000000000000 que na data do óbito apresentava o saldo de € 25 000,00;

b) Conta de depósitos à ordem (caderneta) nº 00000000000000, com o saldo, à data do óbito, de € 4.266,04.

6º-A estas contas, constituídas na Caixa Geral de Depósitos, das quais era o único titular, CC associou, como autorizadas, a R., BB e GG.

                        7º-GG faleceu em 15 de Setembro de 2005.

8º-No banco Millennium BCP, agência de Cascais, o falecido CC possuía, à data do óbito, em regime de contitularidade com a Ré, a seguinte conta:

a) Conta de depósitos à ordem nº 00000000 que apresentava à data do óbito o saldo de € 3 953,17. (resposta ao art. 1º da b.i.);

9º-O falecido possuía investimentos no mesmo banco em carteira de seguros (seguros de poupança/unit linked). (resposta ao art. 3º da b.i.)

      10º-Em 31/05/2010 constavam as seguintes existências patrimoniais:

- Depósitos à ordem – 51.658,85

-Aplicações financeiras – 75.000,00

- Carteira de títulos – 6.738,91

- Seguros de poupança/Unit Linked - 60.000,00. (resposta ao art. 4º da b.i.)

              11º-Em 31/12/2010 constavam os seguintes saldos credores:

- Depósitos à ordem – 3.929,30

- Carteira de títulos – 7.134,67. (art. 5º da b.i.)

12º-A R. resgatou o saldo da conta de depósito a prazo com o nº 0000000000 que o falecido CC possuía à data do óbito na Caixa Geral de Depósitos (identificada em 5º), agência de Cascais, no valor de € 25.000,00 e, uma vez creditado este valor na conta à ordem procedeu à sua transferência para a conta n.º 0000000000 titulada por DD, e outro (resposta ao art. 7º da b.i.)

13º-O resgate da referida quantia de € 25.000,00 foi efectuado às 15.54.49 horas do dia 17 de Junho de 2010. (resposta ao art. 8º)

14º-Em 19 de Junho de 2010, mediante uma transferência efectuada em máquina ATM, a R. retirou da mesma conta à ordem da Caixa Geral de Depósitos a quantia de 3 090,00 euros, transferindo-a para a conta de DD referida em 12º (resposta ao art. 9º da b.i.)

15º-A R. era amiga de longa data do falecido e, de acordo com as orientações e instruções do mesmo, tratava de todos os seus assuntos, situação que se veio a acentuar no último ano de vida, pois, no seguimento da intervenção cirúrgica a que foi sujeito, para tratamento de uma hérnia, o falecido deixou de poder andar. (resposta ao art. 10º da b.i.)

16º-Enquanto vivo o falecido manteve ao seu serviço, como empregadas, DD e EE, auferindo, cada uma, no último ano de vida daquele, o salário mensal de € 1.000,00, sendo ambas empregadas de longa data, mais de 30 anos de casa, leais, honestas, zelosas e diligentes, que ao longo dos anos sempre acompanharam e assistiram o falecido, nos bons e maus momentos. (resposta ao art. 11º da b.i.)

17º-O falecido reconhecido e como recompensa subscreveu junto da Companhia de Seguros Fidelidade dois seguros de vida, titulados pelas Apólices n.º 00000 e 00000 no valor base de € 25.000,00, cada, que tinham por beneficiárias as duas referidas empregadas, tendo tais seguros de vida o seu início em 20 de Março de 2002 e terminus em 21 de Março de 2010, já que celebrados pelo prazo e 8 anos e um dia (resposta ao art. 12º da b.i.).

18º- Pese embora o fim dos seguros de vida, o falecido Dr. CC manteve sempre uma vontade clara e inequívoca de recompensar as suas duas empregadas, pelo que, para lhes atribuir uma compensação pelos anos de serviço, incumbiu a R. no dever de, após a sua morte, entregar a cada uma das suas empregadas a quantia de € 25.000,00. (resposta ao art. 13º da b.i.)

19º- Foi em cumprimento do determinado pelo falecido e descrito em 18º que a Ré actuou da forma descrita em 12º, 13º e 14º. (resposta ao art. 14º da b.i.)

20º-No banco Millennium BCP, agência de Cascais, a R. e o falecido, Dr. CC, foram contitulares das seguintes contas:

a) Conta de depósito à ordem n.º 000000000 que apresentava à data do óbito o saldo de € 3 953,17;

b) Conta de depósitos a prazo n.º 000000000000, com o saldo de € 5.000,00 em 8-06-2010;

c) Conta de depósitos a prazo n.º 00000000000, com o saldo de € 50.000,00 em 8-06-2010;

d) Conta de depósitos a prazo n.º 00000000000000, com o saldo de € 20.000,00 em 8-06-2010. (resposta ao art. 15º da b.i.)

21º-As contas a prazo referidas em 20º, b), c) e d) foram canceladas em 8 de Junho de 2010. (resposta ao art. 16º da b.i.)

22º-O que ocorreu por ordem emitida pela R. ao banco enquanto co-titular das contas, a 8-06-2010, a qual solicitou a transferência dos valores nelas depositados para a conta de que é titular, no mesmo banco Millennium, com o n.º 0000000.

23º-Em 21 de Junho de 2010, a R. transferiu da sua conta n.º 0000000000 para uma conta bancária da empregada. EE, a quantia de € 25.000,00. (resposta ao art. 17º da b.i.),

24º-Igualmente, em 21 de Junho de 2010, a R. transferiu da sua conta n.º 00000000000 para uma conta bancária da empregada. EE a quantia de € 3.000,00, referente ao salário de Junho de 2010, férias e subsídio de férias. (resposta ao art. 18º da b.i.),

25º-Foi em cumprimento do determinado pelo falecido e descrito em 18º que a Ré actuou da forma descrita em 23º e 24º. (resposta ao art. 17º e 18º)

26º-Em 24 de Junho de 2010 a R. pagou do seu bolso, à Servilusa – Agências Funerárias a quantia de € 18.108,41 referente ao custo do funeral do falecido Dr. CC. (resposta ao art. 18º da b.i.),

27º- O seguro poupança que em 31/05/2010 se encontrava valorizado em € 60.000,00, Apólice 0000000, deixou de figurar na conta, pois tinha como beneficiário a R. e, como tal, foi por esta resgatado. (resposta ao art. 19º da b.i.).---------------------------------------

2-3- Na presente revista, o recorrente entende que as alegadas declarações do falecido CC, no sentido de serem entregues às suas empregadas EE e DD as quantias de 25.000,00 € após a sua morte, não poderão considerar-se juridicamente relevantes, dado que tal intenção não foi plasmada em qualquer documento solene que pudesse confirmar com exactidão qual a vontade do de cujus e que permitisse a respectiva execução pela recorrida, após o óbito daquele. Essas quantias, transferidas a favor de DD e a EE em cumprimento das alegadas instruções do de cujus, devem ser enquadradas juridicamente âmbito do Direito das Sucessões, estando sujeitas às regras da sucessão voluntária. De acordo com a matéria de facto, as transferências a favor de DD e EE operadas pela recorrida enquadram-se no conceito de doação, não se podendo afastar esta qualificação pelo simples facto de inexistir um contrato (escrito) outorgado por doador e donatário - já que tal apenas pode determinar a invalidade do contrato por vício de forma (art. 947°, nº 2 do Código Civil, diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem). Qualificando-se os actos da recorrida como doações, estas deveriam subsumir-se ao regime da doação por morte, já que se destinam a produzir efeitos após a morte do doador. Da mesma forma, não pode dizer-se que uma liberalidade não é uma doação mortis causa por inobservância das formalidades necessárias para a sua validade (as prescritas para o testamento, por conversão legal em disposições testamentárias art. 946° nº 2). Da matéria de facto não resulta evidente que tenha havido aceitação da doação, pelo que pode questionar-se a existência da bilateralidade que define o contrato de doação. Face aos factos assentes pelas instâncias anteriores, a vontade alegadamente expressa pelo de cujus parece melhor enquadrar-se no regime jurídico do testamento - um acto negocial necessariamente unilateral e revogável -. Estas alegadas manifestações de vontade do de cujus relativamente à distribuição dos seus bens após a morte seriam assim verdadeiras deixas testamentárias, que consistiriam num novo testamento, implicando a revogação do testamento anteriormente celebrado ou, no mínimo, a sua alteração. Não obstante, tais disposições testamentárias não poderiam produzir efeitos, já que não respeitaram a forma legalmente prescrita para expressão da última vontade - o testamento público (art. 2205º) ou o testamento cerrado (art. 2206°). Por regra, as manifestações de vontade do de cujus quanto à disposição dos bens post mortem fora do testamento, ou são consideradas nulas (art. 2028º), ou, se cumprirem as formalidades, são reconvertidas em deixas testamentárias, permitindo que o de cujus as revogue a todo o tempo (946° nº 2). O tribunal recorrido, ao afirmar a validade dos actos praticados pela recorrida em cumprimento da vontade do de cujus, reconheceu, de forma contraria à Lei, a validade de disposições testamentárias alegadamente celebradas oralmente pelo de cujus, que são nulas, em virtude da violação da forma legalmente prescrita. Por outro lado, andou mal o tribunal a quo ao considerar que a alegada existência de um contrato de mandato sem representação entre a recorrida e o de cujus, legitimava a primeira para a prática dos actos em crise. A celebração do contrato de mandato não isenta o mandatário de respeitar a forma legalmente prevista para os actos a praticar em nome do mandante. Por este motivo, tendo em conta que as alegadas instruções que o de cujus transmitiu à recorrida devem ser consideradas disposições testamentárias, não poderiam ter sido praticadas pela recorrida sem que estivessem plasmadas em documento respeitando as formalidades do testamento, provando o conteúdo da vontade expressa pelo de cujus. Ainda que os valores alegadamente devidos às referidas empregadas a título de salários e subsídios pudessem vir a ser considerados encargos da herança (2068°), a liquidação dos mesmos só poderia ser feita pelo cabeça-de-casal, que no caso é o recorrente (art. 2080° nº 1 alínea c)). Também quanto às despesas com o funeral, a recorrida agiu por sua própria conta, sem estar legitimada para concretizar os actos por conta da herança, e sem prestar esclarecimentos nem tentar informar-se de qual seria a vontade do herdeiro legal do de cujus. O valor reclamado pela recorrida a título de despesas com o funeral (EUR 18.108,41) é exorbitante e não se harmoniza com o património encontrado na herança, devendo ser suportado pela recorrida. O tribunal recorrido refere ainda que a alegada vontade expressa pelo de cujus conferiu à recorrida uma mandato sem representação, e que tal legitimou as subsequentes transferências a favor das empregadas do de cujus. Ora, dando cumprimento às disposições testamentárias do de cujus, a recorrida teria agido como testamenteira, nos termos do artigo 2320°e não como mandatária. O que diferencia a testamentaria do mandato sem representação concedido no interesse de terceiro, que não caduca após a morte (art. 1175°), é o facto de o testamenteiro se limitar a dar execução ao testamento, garantindo o cumprimento da vontade do de cujus, nos termos em que foi expressa, sendo que o mandatário sem representação assegura a continuidade da prática de certos actos do interesse de terceiros, que se devem reflectir na esfera jurídica do mandante após a sua morte. As alegadas deixas testamentárias do de cujus são nulas por vício de forma, o escopo da actividade da recorrente enquanto testamenteira esgotou-se, visto não ter objecto. Pelo exposto, as transferências operadas pela recorrida a favor de DD e a EE, em alegado cumprimento da vontade do de cujus, devem considerar-se meras liberalidades da recorrida, não devendo ser imputadas à herança. Porém, ainda que se considerasse existir entre a recorrida e o de cujus um contrato de mandato sem representação válido (o que não se concede) tal mandato não legitimaria à recorrida para prática dos actos a que se propôs. Ao ter alegadamente instruído a recorrida, ao abrigo do contrato de mandato sem representação, para que transferisse as quantias em causa para as referidas empregadas após a sua morte, o de cujus teria não só procedido a uma alteração inválida do testamento, por falta de forma (artigo 2204°), como teria ainda incumbido a recorrida na função de incumprir o seu testamento anterior, alterando materialmente a sua última vontade por intermédio da sua alegada mandatária. Nos termos do art. 2182° é proibida a celebração (e, consequentemente, a alteração) do testamento através representante, bem como a intervenção na representante na decisão de cumprimento ou incumprimento do testamento. Ainda que o de cujus tivesse estabelecido uma relação de representação de qualquer tipo com a recorrida, os poderes da R. nesse âmbito teriam sempre que ser limitados à prática de actos executórios da vontade validamente expressa pelo falecido (i.e., em documento solene), ou, no limite, os actos que a lei permite que o testador cometa a terceiros (ie., os actos previstos no nº 2 do artigo 2182°), não podendo tais poderes ser usados para alterar livremente o testamento do de cujus, concedendo relevância a alegadas disposições testamentárias oralmente expressas (e por isso feridas de nulidade). Ou seja, nenhum instrumento informal poderia conferir à R. o poder de alterar o se testamento anteriormente celebrado, dada a natureza pessoal do mesmo, o que aconteceu no caso em apreço nos presentes dos autos. Desta forma, a recorrida não se encontrava legitima e validamente autorizada a mobilizar o dinheiro do falecido para compensar a empregada DD, no montante total de EUR 28.090,00, que deverá ser condenada a restituir à herança.

Sobre a matéria em discussão o douto acórdão recorrido considerou que “a intenção verbal do falecido em compensar as suas empregadas, que se materializou na compensação pecuniária paga pela Ré a DD e EE, foi na sentença recorrida qualificada como integrando um contrato de mandato sem representação havido entre o falecido e a Ré. …O mandato forma-se nos termos gerais dos contratos mediante a proposta do mandante e a aceitação do mandatário, as quais podem ser expressas ou tácitas – artigo 217º do Código Civil. Segundo vários depoimentos produzidos no julgamento verificou-se que CC terá várias vezes referido, inclusivamente a DD e a EE, que as compensaria se elas continuassem ao serviço até à hora da sua morte, e que desse desígnio já havia encarregue a Ré BB governanta da casa, e amiga de longa data do mesmo. Que estava tudo tratado. O mandato formou-se assim por proposta e aceitação expressas. O mandato terá de ser aceite enquanto o proponente for vivo ou se mantiver capaz, e, pelos factos e elementos de prova oral colhidos, a Ré aceitou essa incumbência, ainda em vida do mandante, que por outro lado se manteve no pleno uso das suas faculdades mentais até ao fim. A Ré assumiu perante o de cujus a obrigação de praticar um ou mais actos jurídicos, por conta do mandante. Tratou-se de um mandato gratuito. O mandato sem representação – artigos 1180º e ss do Código Civil – não é sujeito a forma especial. A obrigação principal do mandatário - artigo 1161º a)  do Código Civil – é a de praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante. A vontade do mandante é comunicada nas instruções que o mandatário recebeu e deve respeitar. A Ré tinha poderes para junto dos bancos movimentar as contas com dinheiro do de cujus. Os actos jurídicos praticados pela Ré, não pertencem a esta, são alheios. Todos os seus efeitos se vão repercutir na esfera jurídica do mandante. Não provou o Autor que a Ré actuasse dispondo do seu património, actuasse em nome próprio, nem em associação com as beneficiárias, terceiras DD e a EE É certo que a Ré cumpriu o mandato que recebeu de CC, já depois deste ter falecido. Isso mesmo resultou das instruções recebidas. Como o mandato em causa foi conferido no interesse do mandatário ou de terceiros, o mandato não caducou com o falecimento o mandante – artigo 1175º do C. Civil – e consequentemente a Ré não cumpriu um contrato já cessado. A situação dos autos não integra doação por inexistir um contrato a outorgar por doador e donatário, como acontece na doação. Não se trata de doação por morte, por não se terem observado as formalidades do testamento – cfr. artigo 946º o CC. Com a qualificação atribuída de mandato sem representação, o de cujus não estava obrigado a respeitar as formalidades do testamento”.

Ou seja, de essencial, o douto acórdão recorrido entendeu que a R. actuou, na disposição monetária a favor das terceiras beneficiárias, como mandatária sem representação do falecido no interesse dela, mandatária, e de terceiros, pelo que o mandato não caducou com o falecimento o mandante, de harmonia com o disposto no art. 1175º. No caso dos autos não existe doação por morte já que não se observaram as formalidades do testamento, sendo que no mandato sem representação o falecido não necessitava de respeitar as formalidades do testamento.

                       

                        Vejamos:

Face à posição assumida pelo recorrente na presente revista, a questão essencial que se coloca diz respeito à integração jurídica das transferências monetárias operadas pela recorrida a favor de DD e a EE, em (alegado) cumprimento da vontade do de cujus, transferências praticadas já depois do seu falecimento.

                        Segundo o recorrente estes actos constituem doações ou deixas testamentárias que são nulas por vício de forma.

    As instâncias consideraram juridicamente estas entregas de dinheiro da R. às ditas pessoas, empregadas do falecido, como o exercício por aquela de um mandato sem representação que não caducou com o falecimento do mandante – art. 1175º-, pois o mesmo foi conferido no interesse do mandatário ou de terceiros, sendo que tal mandato era válido visto que não estava sujeito a qualquer forma especial.

                       

             Como decorre do art. 1157º, o mandato é o contrato pela qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra.

Resulta deste dispositivo que o acto jurídico deve ser praticado por conta do mandante e nesta conformidade, nos limites dos poderes que competem ao representante, produz efeito na esfera jurídica do representado (art. 258º). O acto jurídico deve, pois, ser praticado por conta do mandante. Porém, como assinalam Pires de Lima e Antunes Varela (C. Civil Anotado, 3ª edição, Vol.II, pág. 707), não é necessário que o acto seja realizado em nome de outrem. “Pode o acto ser realizado em nome do mandante, se houver mandato com representação (cfr. art. 1178º), mas também pode ser realizado em nome do mandatário, se não houver representação (cfr. art. 1180º). No primeiro caso, o acto produz os seus efeitos na esfera jurídica do mandante; no segundo, na esfera jurídica do mandatário. Este é a parte no negócio que celebra, muito embora, em consequência e execução do mandato, deva transferir para o mandante os direitos adquiridos”. Como referem os mesmos autores invocando Galvão Telles (Contratos civis, págs. 71 e segs.) “o mandato lógica e praticamente não exige mais, não requer que o mandatário seja representante do mandante. Sempre que uma pessoa promete a outra a sua colaboração jurídica, pondo à disposição dela a sua capacidade de agir no mundo do direito, contratando com terceiros ou praticando outros actos jurídicos em face deles, constitui-se um vínculo de mandato. O mandatário não se encontra forçosamente, por essa sua qualidade, investido em poderes representativos. Pode não os ter, e então executa em nome próprio a gestão de que está incumbido, o que quer dizer que se torna ele, formalmente, o sujeito dos direitos e obrigações promanados da actividade exercida, embora os deva depois transferir ao mandante, no interesse de quem essa actividade foi realizada. Tais direitos e obrigações só se projectam directamente no património do mandante, se o mandatário tiver poderes de representação e proceder à sobra deles. O simples mandatário age por conta do mandante, mas em nome próprio, só o mandatário representante age ao mesmo tempo por conta do mandante e em nome dele…”.

Quer dizer, no mandato sem representação (com interesse directo para o caso vertente) e como refere Mota Pinto (Teoria Geral, pág. 247) o mandatário “não recebeu para agir em nome do mandante; age por conta do mandante mas em nome próprio” (vide art. 1180º).

O mandato constitui uma modalidade do contrato de prestação de serviço.

                       Decorre do art. 1158º que o mandato pode ser gratuito e oneroso, sendo que se presume gratuito, a não ser se tiver por objecto actos que o mandatário pratique por profissão, presumindo-se, neste caso como oneroso (nº 1 do mesmo dispositivo).

O mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação (nº 1 do art. 1170º). Porém, se o mandato tiver sido conferido no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa (nº 2 do mesmo artigo).

       A possibilidade de revogação do mandato é imperativa, pois não é admissível a renúncia ao direito de revogação, como (também) decorre do disposto no art. 265º nº 2. Todavia o nº 2 do art.1170º estabelece um obstáculo à livre revogação por parte do mandante, o que sucederá se o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário e de terceiro. Neste caso não poderá ser revogado pelo mandante sem o acordo do interessado (salvo ocorrendo justa causa)[1].

A propósito do alcance a dar à expressão «interesse do mandatário e de terceiro» refere-se no acórdão deste STJ de 18-2-2014 (in www.dgsi.pt/jstj.nsf), invocando o acórdão do Supremo de 24 de Janeiro de 1990, BMJ, nº 393, pág. 588 que “o princípio geral da livre revogabilidade da procuração assenta na ideia de que esse acto jurídico unilateral de atribuição de poderes representativos é um “acto de confiança” do dador de poderes, que “se entrega a uma certa dependência do procurador”, uma vez que os efeitos dos negócios realizados nos limites desses poderes se produzem na esfera jurídica do representado, o qual deve ficar inteiramente livre, em regra, de recuperar a autonomia da sua vontade pondo termo àquela relação de confiança. A lei não define o “interesse do procurador ou de terceiro” que se deva ter como relevante para exclusão daquele princípio geral e, normalmente, será de atender à “relação jurídica em que a procuração se baseia”, sendo caso típico daquele interesse o de qualquer deles ter “contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio” ou “o direito a uma prestação” (cfr. Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 109°, pág. 124”. No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, analisando o dispositivo em questão e mais concretamente o que se deve entender pela enunciação do «interesse do mandatário e de terceiro» referem que “constitui exemplo característico duma procuração lavrada no interesse do procurador a datio pro solvendo nos termos do art. 840º … e, no interesse de terceiro, a existência de um contrato celebrado por este com o mandante, o qual se pretende precisamente executar através de procurador ou mandatário”. Sobre o mesmo conceito refere-se no acórdão deste STJ de 27 de Setembro de 1994 (Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano 1994, Tomo III, pág. 68), “para haver mandato de interesse comum não basta que o mandatário ou o terceiro tenham um interesse qualquer, é necessário que esse interesse se integre numa relação jurídica vinculativa, isto é, que o mandante, tendo o mandatário o poder de praticar actos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daquele, queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário ou terceiro tenham direito”. Ainda sobre o mesmo tema afirmou-se no acórdão deste STJ de 18-2-2014 já acima mencionado, em jeito de síntese, que “temos, assim, que, quer o mandato, quer a procuração não são revogáveis apenas por do contrato ou do acto jurídico unilateral (caso da procuração) constar expressamente uma cláusula de irrevogabilidade; relevante é que da relação basilar, que está na origem da decisão do “dominus”, resulte a existência de um interesse conferido no interesse do mandatário, ou representante, ou de terceiro, que incorpore um direito subjectivo que transcenda o mero interesse do mandante ou do representado”. Também o acórdão deste Supremo de 11.12.2003 (in www.dgsi.pt/jstj.nsf) tomou posição sobre o assunto afirmando que “ a livre revogabilidade do mandato que flui do n.º 1 do artigo 1170.º, nos termos expostos, é, porém, afastada nas situações hipotizadas no nº 2 do mesmo artigo: quando o mandato tenha sido conferido «também no interesse do mandatário ou de terceiro» (mandato «de interesse comum»; denominado, como sabemos, in rem propriam no primeiro caso) não pode ser revogado pelo mandante sem o acordo do interessado, salvo justa causa. Falta apurar qual o conceito de interesse na conservação do mandato, tutelado pelo n.º 2 do artigo 1170.º, susceptível de justificar semelhante restrição ao princípio da revogabilidade. No tocante ao mandatário entende-se, em primeiro lugar, que a aferição do interesse relevante não pode resultar de «um critério meramente económico com a inerente e grave consequência duma excessiva extensão dos casos de irrevogabilidade absoluta». Mais precisamente, «o carácter oneroso do contrato não basta, de per si, para afirmar o interesse do interposto, sem prejuízo da relevância da onerosidade para efeitos indemnizatórios», retirando-se, aliás, «da articulação entre o artigo 1170.º e a alínea c) do artigo 1172.º», «inequivocamente, a conclusão de que, para a lei, a retribuição não constitui critério para a determinação do interesse» em apreço. O «interesse do mandatário tem de ser suficientemente relevante em termos de justificar a grave medida da irrevogabilidade», e não satisfaz esta exigência «o estrito interesse na manutenção do ‘status’ de mandatário, em virtude de benefícios económicos - quer directos, como seja a retribuição, quer indirectos, como seja, por ex., a facilidade de obtenção de crédito em decorrência da qualidade de mandatário -, ou outros - prestígio, por exemplo» Nesta ordem de ideias tem a jurisprudência deste Supremo afirmado que o interesse de que fala o n.º 2 do artigo 1170.º «não pode ser uma qualquer vantagem do mandatário ou de terceiro», nomeadamente, «que o mandatário receba uma remuneração ou aufira lucros da sua actividade a qual, como se disse, implica a modelação da esfera jurídica do mandante», com a consequente livre revogabilidade do mandato em tais hipóteses, «ainda que em certos casos possa haver lugar a indemnização (gerente de sociedade, contrato de agência)». Imprestável, pois, o critério da retribuição e das vantagens patrimoniais ou sociais do mandatário, mercê do mandato, muito menos, em segundo lugar, poderia o interesse nuclearmente relevante do mandatário in rem propriam reconduzir-se a uma actuação por sua conta”. E mais adiante, em resumo, refere-se que “para haver mandato de interesse comum não basta que o mandatário ou o terceiro tenham um interesse qualquer, é necessário que esse interesse se integre numa relação jurídica vinculativa, isto é, que o mandante, tendo o mandatário o poder de praticar actos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daquele, queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário ou o terceiro tenham direito”.

                        Sobre o interesse do mandatário e de terceiro afirma, em sentido idêntico, Manuel Januário Costa Gomes (in em Tema de Revogação do Mandato Civil, pág. 148) que esse interesse “tem de ser suficientemente relevante em termos de justificar a grave medida da irrevogabilidade. Não satisfaz este requisito o estrito interesse da manutenção do “status” de mandatário, em virtude dos benefícios económicos ou outros que tal posição carreie. O interesse juridicamente relevante passa necessariamente pelo desenvolvimento da actividade do mandato, pelo cumprimento do acto (ou actividade) gestório. A conclusão pela existência de um interesse de pessoa diversa do mandante tem basear-se num critério estrutural que, permitindo recorrer à indagação de um direito subjectivo, permita afirmar a existência de verdadeiro interesse jurídicoAssim sendo, para se concluir pelo interesse do mandatário ou de terceiro, é forçoso descortinar um direito subjectivo de um deles seja titular, direito que é exercido, ou por qualquer forma actuado, através do mandato e, mais especificadamente, através do cumprimento do acto gestório”.

Quer isto tudo dizer que para que, nos termos do art. 1170º nº 2, o mandante não possa livremente revogar o mandato, não basta a ocorrência de uma qualquer vantagem económica do mandatário ou do terceiro, sendo que a simples retribuição não constitui critério para a determinação desse interesse. Será necessário que esse interesse se relacione e esteja em conexão com próprio mandato e se verifique um benefício do mandatário (ou de terceiro) derivado de “um direito próprio a fazer valer conexionado com o próprio encargo e o mandato seja a condição, ou a consequência ou o modo de execução do direito que lhe pertence, ou represente então para o mandatário uma garantia do próprio direito” (in Acórdão deste STJ de 11.12.2003 já acima referido). Ou seja, o mandatário ou terceiro, deverão ser titulares de um interesse no negócio por existir uma relação subjacente justificativa do mandato, influenciando-o. Por outras palavras o interesse do mandatário ou terceiro deverá decorrer da existência de uma vinculação jurídica com o mandante, constituindo o mandato a forma de a executar.

Em paralelo com este art. 1170º nº 2 estabelece o art. 1175º que “a morte interdição ou inabilitação do mandante não faz caducar o mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro…”. Constitui esta disposição uma excepção ao disposto no art. 1174º al. a) que estabelece que o mandato caduca por morte (ou interdição) do mandante ou do mandatário.

Aplicando a esta norma o que se afirmou em relação ao art. 1170º nº 2 (revogação do mandato), o mandatário ou terceiro será titular de um interesse no negócio por existir uma relação subjacente justificativa do mandato, constituindo este a forma de a efectuar, ou por outras palavras, há interesse no mandato “quando o mandatário ou um terceiro tenha um próprio direito a fazer valer conexionado com o próprio encargo e o mandato seja a condição ou a consequência ou o modo de execução do direito que lhe pertence ou represente então para o mandatário uma garantia do próprio direito” (F.Dominedó reproduzido por Manuel Januário Costa Gomes (in em Tema de Revogação do Mandato Civil, pág. 149).

                        No caso vertente provou-se, de essencial, que o falecido Dr. CC manteve sempre uma vontade clara e inequívoca de recompensar as suas duas empregadas (DD e EE), pelo que, para lhes atribuir uma compensação pelos anos de serviço, incumbiu a R. no dever de, após a sua morte, entregar a cada uma dessas suas empregadas a quantia de € 25.000,00, tendo sido em cumprimento do determinado pelo falecido que a R. actuou da forma descrita em 12º, 13º e 14º, isto é, resgatou o saldo da conta de depósito a prazo com o nº 0000000 o falecido CC possuía à data do óbito na Caixa Geral de Depósitos, agência de Cascais, no valor de € 25.000,00 e, uma vez creditado este valor na conta à ordem procedeu à sua transferência para a conta n.º 0000000 titulada por DD. Também em 21 de Junho de 2010, a R. transferiu da sua conta n.º 000000 para uma conta bancária da empregada. EE, a quantia de € 25.000,00

              Ou seja, foi em sequência e, por causa, da intenção do falecido em querer compensar as suas empregadas após a sua morte, que a R. efectuou as ditas transferências bancárias no valor de 25.000 € para cada uma delas. Note-se que, como igualmente se provou, tratava-se de pessoas que foram subordinadas do falecido por mais de 30 anos, leais, honestas, zelosas e diligentes, que ao longo dos anos sempre o acompanharam e assistiram, nos bons e maus momentos.

             Terão essas transferências monetárias sido legais?

                Já vimos que o terceiro será titular de um interesse no negócio se existir uma relação subjectiva subjacente justificativa do mandato, constituindo este a forma de a efectuar.

                        No caso, a nosso ver, pese embora não exista uma pura vinculação jurídica justificativa do mandato e, portanto, não se vislumbre um consistente interesse directo na realização do mandato, o certo é que razões de ordem moral e social fundamentam o desenvolvimento da representação e, consequentemente, os actos efectuados pela demandada no cumprimento das instruções do mandante, o falecido Dr. CC. Nesta conformidade, os actos praticados pela R., no cumprimento de estritas ordens do falecido, obedeceram ao cumprimento de uma obrigação natural. E neste sentido as terceiras (as ditas empregadas) são portadoras de um direito (de ordem natural) a fazer valer conexionado com o próprio encargo constituindo o mandato concedido pelo falecido a favor da mandatária, a condição da execução desse direito natural. Sublinhe-se que o próprio recorrente aceita (e defende) que a dita actuação da R. constitui um “acto de pura generosidade, de cortesia social, de culto, enfim de demonstração de apreço ou de gratidão”.

As obrigações naturais fundam-se num mero dever de ordem moral ou social, o seu cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça (art. 402º). Estão estas obrigações sujeitas ao regime das obrigações civis em tudo o que não se relacione com a realização coactiva da prestação (art. 404º), pois o seu cumprimento não é judicialmente exigível. Por outro lado, não pode ser repetido o que for prestado em cumprimento de uma obrigação natural, excepto se o devedor não tiver capacidade para efectuar a prestação (art. 403º). Como refere Almeida Costa[2]para que se verifique uma situação deste tipo, fora dos casos expressos, impõe o referido preceito (art. 402º) a concorrência de um requisito negativo e dois positivos. A saber: 1) que a prestação não seja judicialmente exigível; 2) mas que a respectiva obrigação se baseie num dever moral e social; 3) e que o seu cumprimento corresponda a um dever de justiça”.

No que toca à circunstância de a obrigação se dever basear num dever moral e social, dizem Pires de Lima e Antunes Varela[3]o dever de ordem moral ou social em que se funda a obrigação natural não é definido por lei, nem podia sê-lo, antes ao tribunal cabendo a determinação casuística sobre se existe ou não um dever que justifique a qualificação da obrigação com natural”.

             Para que exista uma obrigação natural é necessário que ocorra, como afirma Antunes Varela, “como fundamento da prestação, um dever moral ou social específico entre pessoas determinadas, cujo cumprimento seja imposto por uma recta composição de interesses (ditames de justiça)[4].

                        As obrigações naturais decorrem de deveres de justiça que não são, porém, deveres jurídicos. Claro que os deveres de justiça dependem das concepções sociais e morais predominantes de cada sociedade.

                    Seguindo o que sobre o assunto refere Almeida Costa[5] para se detectarem obrigações naturais, fora dos casos especificados expressamente na lei, compete aos tribunais, “de harmonia com as concepções sociais predominantes e as circunstâncias concretas de cada caso, averiguar, primeiro, se existe um dever moral e social, e, seguidamente se esse dever moral social é tão importante que o cumprimento envolva um dever de justiça. Exige-se que o dever de uma pessoa para com outra não respeite somente a consciência moral, mas algo mais, que respeite também à sua consciência jurídica”.

E nos caso dos autos, como já se disse, as prestações efectuadas pela R. a favor das indicadas pessoas, cumprindo o desejo expresso do falecido, corresponderam a um dever de justiça social. E nesta perspectiva, o mandato, dado o interesse das ditas empregadas, não teria caducado.

   Assim, e numa primeira aproximação à questão, seríamos levados a considerar que a doação efectuada, através do mandato sem representação, seria legal. Porém, a nosso ver, isso não poderá suceder já que a sua concretização iria subverter as normas atinentes ao direito das sucessões, cujas normas são, em regra, imperativas.

Estabelece quanto às doações por morte o art. 946º nº 1, directamente aplicável ao caso, que “é proibida a doação por morte, salvo os casos previstos na lei[6]. Acrescenta o nº 2 que “será, porém, havida com disposição testamentária a doação que houver de produzir os seus efeitos por morte do doador, se tiverem sido observadas as formalidades dos testamentos”.

Destes dispositivos resulta que as doações por morte são, em regra, proibidas. Todavia, as doações a produzir efeitos após a morte do doador, serão permitidas desde que tenham sido observadas as formalidades do testamento.

A este propósito afirma Menezes Leitão (in Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em especial, pág. 218) “a lei proíbe em princípio a doação por morte (art. 946º nº 1), com o que se pretende evitar pressões sobre o autor da sucessão, manter-lhe a disponibilidade dos seus bens enquanto estiver vivo, e evitar decisões precipitadas, que não poderiam ser livremente revogáveis, ao contrário do que sucede com as disposições testamentárias. Efectivamente a doação por morte levantaria o problema de, apesar de se estabelecer que a aquisição só se verificará por morte do doador, no entanto o respectivo contrato de doação vem a ser celebrado em vida deste, com aceitação do donatário. Ora, atenta a regra da estabilidade dos contratos (art. 406º nº 1) a doação por morte, uma vez celebrada, não poderia mais ser livremente revogada, assim se defraudando a regra expressa quanto ao testamento, que é da sua revogabilidade (art. 2179º nº 1), a qual é irrenunciável (art. 2311º)”. No mesmo sentido afirma Inocêncio Galvão Teles que vigora na nossa lei uma verdadeira proibição de actos sobre sucessão futura, sendo o fundamento desta proibição, no que se refere à doação mortis causa, a conservação pelo de cujus intacta até ao último momento da vida a “liberdade de disposição por morte (Direito das Sucessões, 6.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 127). Também Oliveira Ascensão refere a propósito das razões para a nulidade prevista no art. 946º nº 1 que a lei privilegia o negócio mortis causa unilateral, apenas admitindo que o mesmo seja bilateral nos casos previstos na lei, precisamente por querer: i) evitar pressões sobre o autor da sucessão: ii) manter-lhe a disponibilidade dos bens enquanto ele for vivo; iii) evitar decisões precipitadas, que não teriam o amparo da revogabilidade, essencial à disposição testamentária (Direito Civil – Sucessões, 4.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 106).

                      Quer dizer e em síntese, a proibição da doação por morte é estabelecida pela lei de forma a possibilitar ao autor da sucessão a disponibilidade dos seus bens enquanto vivo, em paralelo com as disposições testamentárias em que a regra é (precisamente) a da sua revogabilidade (art. 2179º nº 1), não podendo o testador, inclusivamente, renunciar a tal faculdade (tendo-se por não escrita qualquer cláusula que contrarie a faculdade de revogação - art. 2311º nºs 1 e 2 -). “A vontade da lei é a de que as disposições de última vontade correspondam efectivamente à última vontade do autor da sucessão, pelo que pretende que elas resultem de um negócio unilateral revogável como o testamento e não de um contrato” (Menezes Leitão, mesma obra, pág. 218).

           Pese embora a doação por morte seja nula, poderá ser havida como disposição testamentária, a doação por morte do doador, se tiverem sido cumpridas as formalidades dos testamentos (nº 2 do art. 946º). Neste caso haverá a conversão do negócio nulo num negócio de tipo diferente, de harmonia com o disposto no art. 293º. Relevante será que as formalidades do testamento[7], o negócio diverso, sejam observadas. “As razões de proibição da doação por morte radicam no seu carácter contratual e, em princípio irrevogável, pelo que sendo o testamento um negócio unilateral e revogável (art. 2179º nº 1), não há obstáculo a que a doação por morte possa ser objecto de conversão”.

Desta forma e dado que nas doações em exame as formalidades atinentes ao testamento não foram observadas (as disposições monetárias a favor das ditas empregadas foram meramente verbais), não poderão deixar de ser consideradas nulas. Note-se que a (simples) doação de coisa móvel (e já não a doação por morte) quando não acompanhada da tradição da coisa doada, só pode ser feita por escrito, como estipula o art. 947º nº 2.

Pronunciando-se sobre a procuração post mortem irrevogável, Pedro Pais de Vasconcelos (in Procuração Irrevogável, págs. 189 e 190) reconhece que tal procuração pode colidir com regras de direito sucessório, normas na sua maioria imperativas, afirmando que “a procuração naturalmente irrevogável post mortem não é necessariamente um instrumento de fraude à lei, especialmente de fraude às regras do Direito das Sucessões. Como tal deve ser admitida, em princípio, a sua validade e eficácia. No entanto, quando a procuração naturalmente irrevogável post mortem se destine a permitir alcançar um fim contrário à lei, à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes, se esse fim for comum a todos os interessados, a procuração será nula, nos termos do art. 281º do Código Civil”.

Quer isto dizer, este autor, mesmo em caso de procuração irrevogável (o que não sucede no caso, em que está em causa um mero mandato sem representação), entende se tal constituir um modo de contornar a lei, de alcançar um fim contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes, a procuração deverá ser considerada nula (nos termos do art. 281º). Tal instrumento não pode ser um modo de defraudar as regras do Direito das Sucessões.

Significa isto tudo que os actos praticados pela R., consistentes nas disposições monetárias a favor das ditas empregadas, não poderão deixar de ser considerados como nulos e, consequentemente, o objecto de tais actos deverá ser devolvido à herança do falecido e ao A.

                        Nesta parte o recurso procederá.

                       

O recorrente sustenta, por outro lado, que ainda que os valores alegadamente devidos às referidas empregadas a título de salários e subsídios pudessem vir a ser considerados encargos da herança (2068°), a liquidação dos mesmos só poderia ser feita pelo cabeça-de-casal, e não pela R.. Também quanto às despesas com o funeral, a recorrida agiu por sua própria conta, sem estar legitimada para concretizar os actos por conta da herança, e sem prestar esclarecimentos nem tentar informar-se de qual seria a vontade do herdeiro legal do de cujus. Além disso, o valor reclamado pela recorrida a título de despesas com o funeral (18.108,41 €) é exorbitante e não se harmoniza com o património encontrado na herança, devendo ser suportado pela recorrida.

Como ponto prévio diremos que esta matéria é questão nova já que o tribunal recorrido não se pronunciou sobre ela (apesar de lhe ter sido submetida a apreciação em termos de apelação)[8]. Sendo questão nova e de não conhecimento oficioso, este Supremo Tribunal não teria que se pronunciar sobre ela. É que, como se sabe, os recursos visam a reapreciação de questões já submetidas a apreciação no tribunal recorrido e não criar decisões sobre matéria nova (neste sentido vai a jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal – entre outros, Ac. do STJ de 3-2-2004 in www.djsi.pt/jstj.nsf). Nesta conformidade não é lícito, no âmbito do recurso, invocar questões que não tenham sido objecto da decisão recorrida. Ao tribunal de recurso, só cabe, pois, apreciar as questões decididas pelo tribunal hierarquicamente inferior (só assim não será relativamente às questões de conhecimento oficioso, para o conhecimento das quais, o tribunal de recurso tem competência).

Mas para que não fiquem dúvidas diremos, sobre o tema, sinteticamente, o seguinte:

Começando pelas despesas do funeral, tendo-se provado que a R. pagou do seu bolso, à Servilusa – Agências Funerárias a quantia de € 18.108,41 referente ao custo do funeral do falecido Dr. CC, parece-nos evidente que a importância a considerar, nesse âmbito, terá que ser esta (e não outra), não se vendo que, face à circunstância assente, o presente recurso seja o meio próprio para discutir o preço de tal funeral.

Sobre os valores devidos às referidas empregadas a título de salários e subsídios que a recorrida lhes terá pago, como o recorrente aceita, tratando-se tais despesas de dívidas do falecido, a herança responde por elas, como decorre do art. 2068º. Assim, tendo a recorrida pago essas dívidas com meios da herança do falecido, mais não fez mais do que dar cumprimento ao que dispõe a disposição legal evidenciada.

É certo que a administração da herança pertence ao cabeça de casal, como resulta do disposto no art. 2079º. Mas para além de não se saber se, na realidade, o A. foi designado e tomou posse de tal cargo (os factos assentes são omissos quanto a tal circunstância), o facto de ter sido a recorrida a solver os ditos encargos da herança (e não o A. como cabeça de casal), constituirá mera irregularidade formal, sem interesse para aqui considerar, dado que tal não desmente o que (substancialmente) estabelece o dito art. 2068º.

    O recurso nesta parte, pelas ditas razões, é insubsistente.

  Na presente acção, para além do pedido de reconhecimento da sua qualidade de herdeiro único, peticionou o A. a condenação da R. a restituir à herança aberta por morte de CC, as quantias de € 28.090,00 e de € 37.500,00, no valor total de 65.590,00, bem como nos demais valores que se vierem a apurar pertencerem à herança. O quantitativo de € 28.090,00 corresponde à soma das transferências de € 25.000,00 e de € 3.090,00 em favor de uma empregada do falecido, sendo o valor de € 37.500,00 correspondente a metade do valor das aplicações financeiras de que o falecido era contitular com a R.

                  Foi deduzido pedido reconvencional, no qual a R. peticionou a condenação do A., igualmente na sua qualidade de único herdeiro do falecido, a pagar-lhe as quantias de € 28.000,00 e de € 18.108,41, por si desembolsadas, em substituição da herança, no valor total de € 46.108,41. O quantitativo de € 28.000,00 corresponde, por sua vez, a uma transferência de 25.000,00 e ao pagamento de € 3.000,00 realizado em favor da outra empregada do falecido, sendo o valor de € 18.108,41 respeitante às despesas de funeral.

          Na sentença de 1ª instância, confirmada pelo acórdão recorrido, foi decidido condenar a R. a restituir (apenas) à herança a quantia de € 37.500,00, por se ter considerado como improcedente o pedido de restituição das quantias entregues pela R. a uma empregada do falecido por o terem sido feitas ao abrigo do mandato conferido. Já o pedido reconvencional, foi integralmente acolhido, procedendo-se à sua compensação com o crédito do A. sobre a R. objecto da condenação parcial, pelo que foi o A. condenado no pagamento da diferença no valor de € 8.608,41 (46.108,41 - € 37.500,00).

              Por efeito da presente decisão, e atento o caminho percorrido que considerou as transferências de € 25.000,00 realizadas em favor de cada uma das antigas empregadas do A., no total de € 50.000,00, como doações por morte inválidas, cabe efectuar o correspondente juízo condenatório.

De sublinhar que os 25.000 € a que alude o nº 23 da factualidade assente, não terá que ser devolvido à herança já que não foi daí subtraído, pois era verba monetária da própria R. (daí ter sido objecto do pedido reconvencional).

Nesta conformidade, deve ser devolvido à herança, e concomitantemente ao A., o montante global de 62.500,00 € (37.500,00 + 25.000,00).

                    Por sua vez, o A. deverá ser condenado a pagar à R. o valor do pedido reconvencional atendido, € 21.108,41 (18.108,41 + 3.000,00).

Fazendo a correspondente compensação, ficará a R. condenada a pagar ao A. o montante líquido de € 41.391,59 (62.500,00 - 21.108,41).

                        III- Decisão:

Por tudo o exposto, dá-se parcialmente procedimento à revista, condenando-se a R. a restituir à herança aberta por morte de CC a quantia de € 41.391,59.

                 No mais, confirma-se o decidido pelas instâncias.

Custas pela recorrida e recorrente, consoante o vencimento.

Elabora-se o seguinte sumário (arts. 679º e 663º nº 7 do Novo C.P.Civil):

              - O mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação (nº 1 do art. 1170º). Porém, se o mandato tiver sido conferido no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa (nº 2 do mesmo artigo).

- Por «interesse do mandatário e de terceiro», nos termos do art. 1170º nº 2, não basta a ocorrência de uma qualquer vantagem económica do mandatário ou do terceiro, sendo que a simples retribuição não constitui critério para a determinação desse interesse. Será necessário que esse interesse se relacione e esteja em conexão com próprio mandato e se verifique um benefício do mandatário (ou de terceiro) derivado de “um direito próprio a fazer valer conexionado com o próprio encargo e o mandato seja a condição, ou a consequência ou o modo de execução do direito que lhe pertence, ou represente então para o mandatário uma garantia do próprio direito”.

- Em paralelo com este art. 1170º nº 2 estabelece o art. 1175º que “a morte interdição ou inabilitação do mandante não faz caducar o mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro…”, constituindo esta disposição uma excepção ao disposto no art. 1174º al. a) que estabelece que o mandato caduca por morte (ou interdição) do mandante ou do mandatário. Aplicando a esta norma o que se afirmou em relação ao art. 1170º nº 2 (revogação do mandato), o mandatário ou terceiro será titular de um interesse no negócio por existir uma relação subjacente justificativa do mandato, constituindo este a forma de a efectuar.

                      Foi em sequência e, por causa, da intenção do falecido em querer compensar as suas empregadas após a sua morte, que a R. efectuou as indicadas transferências bancárias no valor de 25.000 € para cada uma delas, tendo-o feito não propriamente em resultado de uma pura vinculação jurídica justificativa do mandato, mas sim por razões de ordem moral e social, ou seja no cumprimento de uma obrigação natural.

A doação em causa subverte as normas atinentes ao direito das sucessões, cujas normas são, em regra, imperativas. Do art. 946º nº 1 e nº 2 resulta que as doações por morte são, em regra, proibidas. Todavia, as doações a produzir efeitos após a morte do doador, serão permitidas desde que tenham sido observadas as formalidades do testamento.

A proibição da doação por morte é estabelecida pela lei de forma a possibilitar ao autor da sucessão a disponibilidade dos seus bens enquanto vivo, em paralelo com as disposições testamentárias em que a regra é (precisamente) a da sua revogabilidade (art. 2179º nº 1), não podendo o testador, inclusivamente, renunciar a tal faculdade (tendo-se por não escrita qualquer cláusula que contrarie a faculdade de revogação (art. 2311º nºs 1 e 2).

A doação por morte poderá ser havida como disposição testamentária se tiverem sido as formalidades dos testamentos (nº 2 do art. 946º). Neste caso haverá a conversão do negócio nulo num negócio de tipo diferente, de harmonia com o disposto no art. 293º. Relevante será a circunstância de as formalidades do testamento, no negócio diverso, sejam observadas.                                             

Dado que nas doações em exame as formalidades atinentes ao testamento não foram observadas (as disposições monetárias a favor das ditas empregadas foram meramente verbais), não poderão deixar de serem consideradas nulas.

      - As questões relativas aos valores devidos às referidas empregadas a título de salários e subsídios e correspondente liquidação e quanto às despesas com o funeral, são questões novas já que o tribunal recorrido não se pronunciou sobre elas e, por isso, não sendo do conhecimento oficioso, este Supremo Tribunal não teria que se pronunciar sobre elas.

                Mas mesmo que assim não fosse sobre os valores devidos às referidas empregadas a título de salários e subsídios que a recorrida lhes terá pago, tratando-se tais despesas de dívidas do falecido, a herança responde por elas, como decorre do art. 2068º, pelo que tendo a recorrida pago essas dívidas com meios da herança do falecido, mais não fez mais do que dar cumprimento ao que dispõe a disposição legal evidenciada. É certo que a administração da herança pertence ao cabeça de casal, como resulta do disposto no art. 2079º. Mas para além de não se saber se, na realidade, o A. foi designado e tomou posse de tal cargo (os factos assentes são omissos quanto a tal circunstância), o facto de ter sido a recorrida a solver os ditos encargos da herança (e não o A. como cabeça de casal), constituirá mera irregularidade formal, sem interesse para aqui considerar, dado que tal não desmente o que (substancialmente) estabelece o dito art. 2068º.

Lisboa, 13 de Setembro de 2016

Garcia Calejo (Relator)

Helder Roque

Gabriel Catarino

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[1] Este dispositivo reproduz a mesma doutrina da do art. 265º nº 3 no que respeita procuração (representação voluntária).
[2] Em Noções de Direito Civil, 2ª edição, pág. 36
[3] Em Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 351.
[4] Em Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª edição, págs. 748 e 749.
[5] Obra citada, pág. 37
[6] Estes casos são os indicados nos arts. 1700º als. a) e b) (convenções antenupciais lícitas) e 1755º nº 2 (doações entre casados), não tendo, por conseguinte, aplicação ao caso presente.
[7] As formalidades necessárias serão a escritura pública ou forma notarial equivalente (vide Menezes Leitão, obra citada, págs. 219 e 220 e a doutrina que referencia).
[8] E neste contexto o aresto poderá ser nulo, irregularidade, contudo, irrelevante porque não suscitada.