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CAMINHO PÚBLICO
PRESSUPOSTOS
Sumário
É necessário e suficiente para a qualificação de um caminho como público, a alegação e prova do requisito da afectação ao uso público para fins de utilidade pública, mediante satisfação de interesses colectivos relevantes, e que tal afectação ocorra desde tempos imemoriais, ou seja, desde tempos que se perdem na memória dos homens.
Texto Integral
Apelação Processo n.º 6662/09.6 TBVFR.P1 Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira - 2.º Juízo Cível Recorrentes – B… e outra Recorridos – C… e outros
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Maria do Carmo Domingues
Desemb. Maria Cecília Agante
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I – B… e mulher D…, intentaram no Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira a presente acção popular civil contra C…, pedindo:
- a declaração de que são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no art.º 1.º da petição inicial;
- a declaração de que o caminho melhor descrito nos actos 13.º a 56.º depois transformado em estrada é uma via pública,
- condenando-se a ré a reconhecer a pública dominialidade dessa via com o nome de …, a qual inicia junto ao entroncamento com a Rua … e termina junto à estrada da casa da ré, concretamente junto a um espigueiro ali existente, tendo em toda a sua extensão uma largura de cerca de 7 metros;
- e a condenação da ré a retirar o portão que colocou nessa via pública, …, deixando-a livre e totalmente desimpedida de obstáculos, permitindo a livre circulação de pessoas e bens e o acesso dos autores ao seu prédio confinante com a via pública.
Para tanto, alegaram que são donos e legítimos proprietários do prédio rústico denominado "…", situado no …, freguesia de …, inscrito na respectiva matriz sob o art.º 447.º e a ré é dona de dois prédios contíguos, um urbano e outro rústico, sendo que o caminho antigo entre as propriedades da avó da autora, desde o … até atingir o prédio hoje dos autores era estreito, tendo sido aberto pelos seus antecessores um caminho com cerca de 2 metros de largura, invocando factos, quanto ao caminho, da aquisição originária (usucapião).
Alegaram ainda que, no ano de 1984 a Junta de freguesia de … quis alargar tal caminho, solicitando aos donos dos prédios confinantes a cedência de terreno, tendo, para tanto, o pai da autora (anterior dono do prédio identificado no art.º 1.º) cedido cerca de 1,5 metros de largura, a ré cedido cerca de 2 metros e os donos de prédios que ficam do lado esquerdo, no sentido …/…, cedido cerca de 1,5 metros de terreno, realizando a autarquia obras no caminho, transformando-se em estrada com a largura de 7 metros e reduzindo para cerca de 6 metros de largura na parte final do troço, depois de passar o portão de entrada no prédio dos autores, e feitos melhoramentos na iluminação pública, passando nessa estrada quaisquer pessoas para acederem à povoação de … e outra, tendo sido deliberado pela competente Assembleia denominar a via como ….
Por fim, alegaram que no ano de 1989, essa estrada foi asfaltada e dotada de ramal de energia e iluminação pública, tendo sido novamente asfaltada pela autarquia em 1999, constituindo acesso directo a prédios urbanos e estabelece ligação à povoação, sendo considerada tal via pela autarquia local como pública, tendo a 11 de Abril de 2005, a ré espetado espigões em ferro no chão da estrada, concretamente antes de atingir a confrontação com o prédio dos autores, no sentido poente/nascente e colocou um portão fechado com aloquete em toda a largura da via, impedindo a passagem de qualquer veículo, impedindo assim os Autores de acederem ao seu prédio com qualquer viatura ou meio de transporte de bens.
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A ré foi pessoal e regularmente citada e veio deduzir contestação pedindo a improcedência da acção.
Para tanto, além do mais, alegou a ineptidão da petição inicial e a excepção do caso julgado e impugnou os factos alegados pelos autores.
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Os autores replicaram.
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Foi ordenada a citação da freguesia de …, do Município de … e editalmente os habitantes de …, mas não foi deduzida qualquer oposição.
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Foi proferido despacho saneador no âmbito do qual foi decidido e julgada improcedente a ineptidão da petição inicial e a excepção do caso julgado, após o que foi proferida sentença onde se julgou acção improcedente, por não provada, e em consequência absolveu-se C… do pedido formulado por B… e D….
Dessa decisão pode ler-se: “(…) Nos termos do disposto no art.º 14.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto "nos processos de acção popular, o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão previsto no artigo seguinte, com as consequências constantes da presente lei".
Refere Carlos Adérito Teixeira, Acção Popular, Novo Paradigma, in http:www.diramb.gov.pt/data/basedoc/TXT "que se estabelece na LAP uma ampla legitimidade ao reconhecer-se o direito de acção popular a qualquer cidadão, a associações e fundações defensoras dos interesses em causa, independentemente de terem interesse directo na demanda, e ainda a autarquias locais relativamente a interesses cujos titulares residam na área de circunscrição daquelas, sendo de registar o facto de se ver consagrada uma tríplice legitimidade: individual, do cidadão; colectiva, a cargo das associações e fundações; e institucional, na esfera das autarquias e, de modo restrito, do M.º.Pº”.
O art.º 84.º n.º 1, al. d), da Constituição da República Portuguesa, que se refere ao domínio público, determina que as estradas pertencem ao domínio público.
Os bens deste tipo estão fora do comércio, não podendo, por isso, ser objecto de negócios jurídicos, que afectem a sua natureza de bens dominiais, podendo ser concessionado o seu uso ou a sua exploração, sendo insusceptível de posse privada (cfr. art.º 202.º, n.º 2, do Código Civil).
A qualificação de um caminho ou de um terreno como públicos, com a consequente declaração dessa dominialidade, terá de fundamentar-se na verificação conjugada de dois pressupostos: no seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais e na sua propriedade, por parte de entidade de direito público, com afectação à utilidade pública, resultante de acto administrativo ou de prática consentida pela Administração.
A dominialidade pública dos caminhos foi abordada pelo Assento do STJ de 19/04/1989 (BMJ 386-121), entendendo serem "públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público, logo pertencendo ao domínio público, as faixas de terreno adaptadas para fazer a ligação entre dois lugares ou povoados, quaisquer que eles sejam, que desde tempos imemoriais se encontrem abertas ao uso directo e imediato do público e cumprindo, nessa medida, a função pública determinante da dominialização das vias de comunicação terrestre".
Conforme refere o Ac. STJ de 27/04/2006, in www.dgsi.pt "o assento consagrou uma das três teses que vinham sendo sustentadas para a definição de caminhos públicos. Uma entendia que, estando em vigor o art° 380.º do Cód. Administrativo, se tomava necessário para se definir um caminho como público que o mesmo tivesse sido produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público; outra bastava-se, para tanto, com o facto de o caminho estar no uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais; outra, intermédia, fazia a mesma exigência, mas defendia que, provado o uso imemorial pelo público, o caminho assumia a natureza pública, por ser de presumir que houve apropriação lícita por parte das entidades de direito público, dado ser impossível uma prova directa, sendo essa presunção ilidível por prova em contrário" e "acrescenta que foi esta posição intermédia a adoptada no Assento (cfr. ainda parecer de Freitas do Amaral e João Caupers, in CJ XIV, 1, 10 ss).
A expressão tempo imemorial significa "o tempo passado que já não consente a memória humana directa dos factos, ou seja, quando os vivos já não conseguem lembrá-los pelo recurso à sua própria memória ou ao relato da sua verificação pelos seus sucessores" (vide Ac. RP de 31/05/2007, in www.dgsi.pt).
No caso dos autos, os Autores alegaram a existência de um determinado caminho público, e bem assim que o mesmo permite o acesso ao público em geral à povoação de … e outra e dos próprios proprietários dos prédios que o ladeiam às suas propriedades, sendo os Autores um destes, que a Ré obstruiu esse caminho espetando espigões em ferro no chão da estrada e colocou um portão fechado com aloquete em toda a largura da via, impedindo a passagem de qualquer veículo.
Conforme resulta da matéria factual constante nos art.ºs 26.º ss da petição inicial resulta que a utilização pelo público em geral desse caminho remonta ao ano de 1984, data a partir da qual a Junta de freguesia de … alargou o caminho em causa, transformando-o numa via mais larga e com melhores acessos para a circulação, a que se deveu à cedência dos proprietários dos prédios confinantes de terreno para esse alargamento, e bem assim foram efectuados melhoramentos na iluminação pública, tendo sido deliberado pela competente Assembleia denominar a via como ….
Ora, a utilização pelo público em geral do caminho em causa, de acordo com a alegação dos Autores, só se faz há cerca de 27 anos (desde 1984), pelo que inexistindo no articulado petição inicial outros elementos que permitam concluir por uma utilização anterior tão longínqua no tempo que escapa à percepção da memória humana, falece o referido requisito da imemorial idade (vide Ac. STJ de 18/05/2006, in www.dgsi.pt).
Donde, não se encontrando preenchidos os requisitos exigidos pelo mencionado Assento, hoje com carácter uniformizador de jurisprudência "estar, desde tempos imemoriais, no uso directo e imediato do público" -o destino desta acção deverá ser a sua improcedência (…)”.
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Inconformados com tal decisão dela vieram os autores recorrer de apelação pedindo que a mesma seja revogada e substituída por outra que ordene seja elaborado despacho saneador com os factos assentes e a base instrutória, seguindo os autos para julgamento.
Os apelantes juntaram aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1. A Autarquia no ano de 1984 realizou obras de alargamento do caminho, colocou lá máquinas, procedeu ao desaterro e aterro do caminho, alargando-o à custa dos terrenos cedidos para a nova via aberta ao público, com cerca de 300m de extensão desde a estrada principal até ao seu termo, transformando o outrora caminho para carro de bois em estrada com a largura de 7metros.
2. Foi melhorada a iluminação pública nessa via pela qual se acede da povoação de … a outra com quaisquer veículos automóveis e passou a via a constar da cartografia municipal e por deliberação da Assembleia competente ficou a denominar-se na toponímia da freguesia de … como ….
3. Foi asfaltada em 1992, objecto de obras de beneficiação pelas entidades públicas, dotada de ramal de energia e iluminação pública.
4. Foi novamente asfaltada pela Autarquia em 1999 e constitui acesso directo a prédios urbanos e estabelece ligação à povoação.
5. Sendo considerada tal via como pública, fazendo-a a Autarquia constar da sua toponímia nos mapas locais;
6. Desde que foi asfaltada e até Abril de 2005, sempre foi limpa pelos cantoneiros da Junta de freguesia que executavam a limpeza em toda a …, e objecto de conservação pela Autarquia Municipal ao longo destes anos.
7. Em 11 de Abril de 2005, a Ré, espetou espigões em ferro no chão da estrada, em toda a largura da via, impedindo a passagem de qualquer veículo.
8. A causa de pedir assenta no facto de existir uma via de comunicação terrestre, que faz parte do domínio público rodoviário municipal produzida pela Autarquia local, a qual a apropriou, afectando-a à utilidade pública e ao uso do público em geral, realizando obras de conservação e melhoramento ao longo de mais de 20 anos e fazendo tal via parte da toponímia local, da cartografia municipal e integrada na rede rodoviária municipal pertencente ao domínio publico da autarquia local;
9. Em 11 de Abril de 2005, a Ré espetou espigões em ferro no chão da estrada, em toda a largura da via, impedindo a passagem de qualquer veículo e a Autarquia, face a participação do assunto, discutido em Assembleia e em sede de Câmara Municipal, não age e nada fez e faz para demover a Ré a retirar o portão da via pública;
10. Tratando-se de bem do domínio publico, face à não actuação da autarquia, assiste aos AA., como titulares de interesse difuso e com interesse na utilização da referida via, o direito de defenderem tal bem, impedindo a sua usurpação e/ou apropriação por particular, ex vi artigo 52.º da Constituição da Republica Portuguesa, conjugado com os artigos 1.º, n.º2, 2.º e 12.º da Lei n.º83/95 de 31 de Agosto (Lei de Acção Popular), com o artigo 26.º-A do C.P.C., requerendo seja reconhecida a via como via publica do domínio publico municipal integrada na rede rodoviária municipal.
11. Na acção invoca-se a natureza de bem do domínio público quanto á via em causa nos autos e a causa da sua aquisição, ou seja, tendo como causa a sua produção, construção, ampliação, manutenção e conservação pela autarquia local.
12. As coisas públicas são bens do domínio público, constituindo o regime das coisas públicas o que se chama a dominialidade, sendo o domínio público constituído pelo acervo de bens destinados ao uso de todos, regulado pelo direito público
13. No Código Civil vigente, no seu artigo 202.º, n.º2 evitou-se caracterizar as coisas públicas, fazendo-o pela negativa e remetendo-se para legislação especial.
14. O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência citado na decisão foi tirado na sequência de decisões divergentes sobre a caracterização de um caminho público, quando não aberto ou produzido pela entidade pública, e, distinguindo caminho público de atravessadouro, pronunciou-se apenas sobre uma das formas de aquisição dos bens para o domínio público, ou seja, por força de uma posse imemorial afecta ao uso directo e interesse do público. 15. Proferido o Assento nos termos da qual "São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público", logo se deu conta da insuficiência do conceito, quer porque coloca na sombra a aquisição da natureza dominial quando tenha sido construído ou legitimamente apropriado pelo Estado ou autarquia local e se mantenha sob a administração de um ente estadual ou autárquico, quer porque não exige publicidade que espelhe a sua afectação à utilidade pública.
16. Sendo "um dos requisitos essenciais da dominialidade a afectação do caminho à utilidade pública, ou seja, à satisfação de relevantes interesses colectivos, o referido Assento de 1989 deve "ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação à utilidade pública, ou seja, o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, e, ainda, de forma extensiva, quando afirma que deixou de subsistir, em alternativa, o critério segundo o qual é público um caminho pertencente a entidade pública e estar afecto à utilidade pública." RLJ, 134 e 135.
17. Assim, no caso como o dos autos, da abertura de uma estrada pela autarquia, afectando-a ao uso do público, verifica-se adquirido o referido carácter de bem do domínio público.
18. Afectação que resulta quer do acto da administração que determinou a sua abertura, utilização e inauguração, consagrando tal via ao uso público, ordenando a sua manutenção pelos funcionários e serviços públicos da autarquia e cuja classificação até se deduz da sua inscrição no cadastro municipal das vias rodoviárias e da toponímia local.
19. E sobretudo, pela sua construção e apropriação, há mais de vinte anos, pela autarquia, a qual a manteve, reparou e conservou, sem oposição de quem quer que fosse durante tal período de tempo superior a 20 anos, afectando a via ao interesse público em geral, passando pela via quem quer que fosse e fazendo-a constar quer do Plano Rodoviário Municipal, quer da toponímia local, identificando a via sempre como via pública.
20. A dominialidade pressupõe posse e superintendência dos bens, sendo públicos os caminhos cuja propriedade pertence ao Estado ou às Câmaras e Juntas de Freguesia, ou por que os produziram ou porque os apropriaram desde tempos imemoriais e os mantêm na sua administração, afectos ao uso público, sem oposição de ninguém, dos quais a todos é licito utilizar-se, com as restrições impostas por lei ou pelos regulamentos administrativos.
21. Ora os factos alegados na acção são caracterizadores da aquisição da pública dominialidade da via por força da sua construção, apropriação e afectação ao interesse público em geral, cfr. doutos Acs. do STJ de 08.05.2007, do TRG de 01.06.2005 e do TRP de 25.05.2010, todos in www.dgsi.pt.
22. No caso dos autos, estamos perante o que se denomina o domínio da circulação, e, dentro deste, temos o domínio rodoviário do Estado e o das Autarquias Locais.
23. Nos termos do artigo 84.º da CRP, sob a epígrafe domínio público estipula-se que pertencem ao domínio público, além de outros bens, as estradas, dizendo-se que a lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites (n.ºs 1, d) e n.º2).
24. Pertencem ao domínio público rodoviário todas as vias de comunicação terrestre, desde caminhos municipais a todo o tipo de estradas, e compete à lei determinar o sujeito titular desses diversos tipos de bens que integram o domínio público das respectivas entidades públicas, Estado, Regiões Autónomas e Autarquias.
25. É com base no denominado Plano Rodoviário Nacional, cuja base inicial podemos colher no Decreto-Lei n.º 34 5923 de 11.05.1945, revisto em 1985 pelo Decreto-Lei n.º 380/85 de 26.09, alterado sucessivamente com a designação de PRN/98 em 1998, em 1999, PRN 2000, e pelo DL 182/2003 de 16 de Agosto, que se fazem as classificações das vias, mantendo-se inalterado o essencial do domínio público municipal, mormente das estradas e caminhos municipais, estes ainda regidos pela Lei n.º 2110 de 19.08 de 1961, dizendo o PRN, artigo 13.º, que integram as redes municipais as estradas não incluídas no PRN.
26. Logo, por exclusão, as vias de comunicação terrestre, estradas municipais e caminhos públicos, produzidas e apropriadas pela autarquia, fazem parte do domínio público municipal, são públicas, por estarem afectas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhe está inerente, e regem-se pelas leis que tutelam as Autarquias.
27. Sempre que é aberta uma estrada nova entre propriedades de particulares, pela autarquia, pelo Estado, colocada à disposição do trânsito rodoviário, servindo as populações, dotada de infra estruturas como o piso, que pode ser asfalto ou de tipo semelhante, de iluminação pública, de bermas, de sinais de trânsito, fazendo-a constar de plano rodoviário, da toponímia e cadastro municipais, tal representa uma fonte de aquisição para o domínio público da entidade autarquia ou estado.
28. No caso dos autos a fonte da aquisição da pública dominialidade da via é a sua construção, feitura, apropriação e manutenção durante mais de vinte anos pela autarquia, com afectação ao interesse público em geral, como é alegado na p.i.
29. Pelo que, o chamar à colação como fonte de aquisição para o domínio público uma posse pública imemorial é deslocado, pois, não é tal fonte a invocada na acção nem é necessária havendo outra fonte de aquisição invocada.
30. Por isso a decisão proferida pela 1ª instância padece de um erro notório na qualificação dos factos e na sua subsunção ao direito, erro de julgamento pois a acção tem todos os factos que levam ao seu prosseguimento para julgamento.
31. A decisão de que se recorre violou as leis supra referidas na motivação, o conceito de aquisição de bem para o domínio público, mormente os artigos 84.º da CRP e 202.º do CC e as sucessivas leis sobre o denominado Plano Rodoviário Nacional, desde o Decreto-Lei n.º 345923 de 11.05.1945, revisto pelo Decreto-Lei n.º 380/85 de 26.09 e culminando no DL n.º 182/2003, mormente no seu artigo 13.º.
32. Finalmente, se propendia para o entendimento plasmado na decisão, a Mma Juíza devia, previamente, dar cumprimento aos artigos 508.º e 3.º, n.º3 do CPC, evitando assim uma decisão surpresa e convidar os AA. a aperfeiçoar o articulado, pelo que, não fazendo violou as referidas normas, sendo certo que os factos dos autos não são suficientes, para, sem julgamento da matéria de facto, possibilitar uma decisão, devendo ter sido proferido despacho saneador com os factos assentes e base instrutória, seguindo o processo para julgamento.
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A ré juntou aos autos as suas contra-alegações pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
II – Os factos relevantes para a decisão da presente apelação são os que estão enunciados no supra elaborado relatório, pelo que, por razões de economia processual, nos dispensamos de os reproduzir aqui.
III - Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 684.º n.º3, 684.º-B n.º 2 e 685.º-A, todos do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. Sendo que ao presente recurso é já aplicável o regime processual estabelecido pelo DL 303/2007, de 24.08, por respeitar a acção instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, cfr. n.º 1 do artº 11.º e art.º 12.º do citado DL.
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Ora, visto o teor das alegações dos recorrentes, são questões a decidir no presente recurso:
1.ª – A dominialidade do caminho em apreço nos autos.
2.ª – Do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial e decisão surpresa.
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1.ªquestão – A dominialidade.
A acção popular tem por objecto, no dizer de Teixeira de Sousa, in “A Legitimidade popular na Tutela dos Interesses Difusos”, pág. 120, “quer os interesses difusos stricto sensu, quer os interesses colectivos, quer ainda os respectivos interesses individuais homogéneos, o que, em termos práticos, significa que a acção popular pode visar tanto a prevenção da violação de um interesse difuso stricto sensu ou de um interesse colectivo, como a reparação dos danos de massas resultantes da violação destes interesses (cfr. art.º 52.º n.º 3 al. a) da C.R.Portuguesa). Em contrapartida, “no objecto da acção popular nunca se podem compreender direitos ou interesses meramente individuais”.
E noutro passo afirma, “dada a dupla dimensão individual e supra-individual dos interesses difusos, em qualquer acção popular é necessariamente protegido o interesse individual homogéneo de cada um dos seus titulares. O que sucede – importa esclarecer – é que na acção popular nunca se tutelam apenas alguns interesses individuais, mas antes os interesses individuais homogéneos de todos os titulares do interesse difuso”.
Como se decidiu no Ac. da Relação de Lisboa de 26.11.2000, in www.dgsi.pt, “a acção popular tem particularmente em vista a defesa dos interesses difusos, isto é, daqueles que não se reportam a pessoas individualmente consideradas nem a grupos definidos”.
A Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto veio regulamentar o direito de acção popular constitucionalmente consagrado no art.º 52.º da C.R.Portuguesa, o qual tem por finalidade, designadamente, “Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais” (n.º 3 al. b)). O art.º 1.º n.º1 da Lei 83/95 concretizou tal preceito quanto à acção popular, designadamente para a prevenção, cessação ou perseguição judicial das infracções relativas aos bens do Estado, das regiões autónomas e ou das autarquias locais.
A titularidade do direito de acção popular, compete, além do mais, aos cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos, independentemente de terem ou não interesse direito na demanda, cfr. art.º 2.º n.º 2 da Lei 83/95.
A Lei 83/95 contém um regime especial de representação processual, já que como preceitua o seu art.º 14.º “nos processos de acção popular, o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão previsto no artigo seguinte, com as consequências constantes da presente lei”.
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Segundo o que preceitua o art.º 84.º n.º1 al. d) da C.R.Portuguesa, que se refere ao domínio público, as estradas pertencem a esse domínio.
Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “C. R. Portuguesa, Anotada”, pág.1001, 1002 e 1004, a categoria de bens públicos é mais extensa do que a de bens do domínio público. Sendo que o conceito de estradas abrange todas as vias públicas, integrando as estradas o domínio da circulação. E que no domínio público se integram bens que resultam de fenómenos naturais e bens que são consequência da intervenção do homem (domínio natural e artificial).
Como se sabe, os bens públicos estão fora do comércio, pelo que não podem ser objecto de negócios jurídicos que afectem a sua natureza de bens dominiais, podendo ser concessionado o seu uso ou a sua exploração económica; tais bens não podem ser apropriados individualmente, sendo insusceptíveis de posse privatística, cfr. art.º 202.º n.º2 do C.Civil.
Consignou-se nos Acs. do S.T.J de 23.12.2008 e de 18.05.2006, ambos in www.dgsi.pt que é a seguinte a estrutura do conceito de caminho público considerado pela lei e pela jurisprudência de uniformizada.
“(…) O Código Civil de 1867 estabelecia, por um lado, serem públicas as coisas naturais ou artificiais apropriadas ou produzidas pelo Estado e pelas corporações públicas e mantidas sob a sua administração e que a todos, individual ou colectivamente, era lícito delas se utilizarem, com as restrições impostas por lei ou por regulamento administrativo (artigo 380.º, proémio).
E, por outro, integrarem a referida categoria as estradas, as pontes e os viadutos construídos e mantidos a expensas públicas, municipais ou paroquiais (n.º 1 do artigo 380.º).
O Decreto-Lei nº 23 565, de 12 de Fevereiro de 1934, que regulou o cadastro dos bens do domínio público do Estado, estabeleceu serem dessa natureza, além de outros, os que estivessem no uso directo e imediato do público (artigo 1.º, alínea g)).
O Decreto-Lei nº 47 344, de 25 de Novembro de 1966, que aprovou o actual Código Civil, estabeleceu ficar revogada, após o início da sua vigência, toda a legislação relativa às matérias por ele abrangidas, com ressalva da legislação especial a que se fizesse expressa referência (artigo 3.º).
O Código Civil de 1966, no que concerne à noção de coisas, apenas expressa estarem fora do comércio as que não possam ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontrarem no domínio público e as insusceptíveis, pela sua natureza, de apropriação individual (artigo 202.º, n.º 2).
Assim, o Código Civil de 1966, ao invés do que ocorria no Código Civil de 1867, não contém algum normativo que se reporte à caracterização das coisas públicas.
O Decreto-Lei nº 23 565, de 12 de Fevereiro de 1934, foi revogado pelo Decreto-Lei nº 477/80, de 15 de Outubro, que enumerou, para efeitos do inventário geral do património do Estado, os bens integrados no seu domínio público e privado (artigo 18.º).
No que concerne as vias de comunicação terrestre, o referido diploma apenas se reportou às linhas férreas de interesse público, ás auto-estradas e ás estradas nacionais com os seus acessórios e obras de arte (artigo 4.º, alínea e)).
Não abrangeu, por isso, as estradas públicas nem os caminhos públicos municipais ou integrados no âmbito das freguesias (…)”.
Entendendo-se na esteira do Prof. Marcello Caetano e de vária jurisprudência, ainda hoje, ser indispensável, para o reconhecimento da dominialidade pública de um caminho, provar-se que foi produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de Direito Público e que por ela é administrado, constituindo o uso público directo e imediato, quando imemorial, mera presunção dessa dominialidade, ilidível por prova em contrário.
No seio da divergência jurisprudencial sobre o “conceito de caminho público”, uma no sentido de o ser sempre que estivesse no uso directo e imediato do público, e a outra no sentido de também se exigir para o efeito que tenha sido administrado pelo Estado ou por outra pessoa de direito público e se encontrasse sob a sua jurisdição, foi proferido, no dia 19 de Abril de 1989, pelo Pleno do S.T.J., um Assento, hoje com valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, no sentido de serem públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público, cfr. D.R., I Série, de 2.06.1989.
Uma das razões determinantes de tal Assento residiu exactamente na consideração de o art.º 380.º do C.Civil de 1867 e o Decreto-Lei nº 23 565, de 12 de Fevereiro de 1934 estarem revogados, não estar a dominialidade das estradas municipais e dos caminhos públicos definida por lei, serem públicos se estiverem afectados de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente, ser suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso directo e imediato pelo público, sem que seja necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por uma pessoa colectiva de direito público.
Todavia, posteriormente, o S.T.J. tem vindo a interpretar restritivamente o referido Assento, com base no considerando do seu texto essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública.Tendo-se referido para tanto que a publicidade dos caminhos também depende da sua afectação a utilidade pública, ou seja, de que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, cfr. entre outros, Ac. do STJ de 8.05. 2007 e de 13.03.2008, in www.dgsi.pt.
Como se refere no Ac. do S.T.J. de 18.05.2006, in www.dgsi.pt “O caminho é a faixa de terreno por onde se transita e a expressão público significa o povo, a população ou os habitantes que pretendam e realizem directa e imediatamente esse trânsito.
O referido uso directo e imediato do caminho pelo público envolve, como é natural, a sua utilidade pública, ou seja, a sua afectação a utilidade pública, isto é, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos.
É essa característica de afectação do caminho à utilidade pública, isto é à satisfação de interesses colectivos relevantes, que distingue os caminhos públicos dos atravessadouros.
A expressão tempo imemorial significa o tempo passado que já não consente a memória humana directa de factos, ou seja, quando os vivos já não conseguem percepcioná-los pelo recurso à sua própria memória ou ao relato da sua verificação pelos seus antecessores (…)”.
Assim, ocorre fundamento de declaração da dominialidade de um determinado caminho, ou seja, estamos perante um caminho público depois de se alegar e provar que desde o mais remoto tempo da sua afectação, este se integrou no domínio público. Ou seja, se resultar provado que esse caminho está adstrito ao uso directo e imediato pelo público para fins de utilidade pública, mediante satisfação de interesses colectivos relevantes, e se tal uso se verifica desde tempos imemoriais.
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No caso em apreço nestes autos, pedindo os autores que se declarando que são donos do prédio identificado em 1.º da p.i.; se declare ainda que o outrora caminho referido supra depois transformado em estrada é uma via pública; condenando-se a ré a reconhecer a publica dominialidade dessa via com o nome de “…”, a qual se inicia junto ao entroncamento com a Rua … e termina junto à entrada da casa da Ré, concretamente junto a um Espigueiro ali existente, tendo em toda a sua extensão uma largura de sensivelmente 7 metros e consequentemente, se condene a ré a retirar o portão que colocou nesse via pública, …, tal corno consta das fotos juntas, deixando a via livre e totalmente desimpedida de obstáculos, bens ou outra qualquer coisa, permitindo a livre circulação de pessoas e bens e mormente o acesso dos autores ao seu prédio confinante com a via pública.
Para tanto alegaram, em síntese, os autores que o único acesso que o seu prédio tem à via pública é um acesso que era um caminho em terra. Esse caminho antigo entre as propriedades privadas do … era estreito e foi aberto pelos referidos antecessores. Tal caminho de carro de bois foi aberto à custa de terreno dos antecessores dos autores. E desde esses tempos remotos sempre foi fruído pelos antepossuidores do prédio dos autores e depois pelos próprios autores, há mais de vinte e trinta anos e mesmo ultrapassando a memória dos vivos.
No ano de 1984 a Junta de freguesia de …, em conjunto com os confinantes, quis alargar e beneficiar tal caminho transformando-o numa via mais larga e com melhores acessos para a circulação e para tanto solicitou aos donos dos prédios confinantes a cedência de terreno para alargamento, o que fizeram. E a autarquia, face a tais cedências, nesse ano de 1984, realizou obras de alargamento do caminho, colocou lá máquinas e procedeu ao desterro e aterro do caminho, alargando-o, por forma que o caminho outrora para carro de bois transformou-se em estrada com a largura de 7 metros. Foi melhorada a iluminação pública nessa via pela qual se acede da povoação de … a outra com quaisquer veículos automóveis e passou a via a constar da cartografia municipal e na toponímia da freguesia, por deliberação da respectiva Assembleia passou a denominar-se como “…”.
Tal estrada em terra batida foi asfaltada em 1992 e objecto de obras de beneficiação pelas entidades públicas, dotada de ramal de energia e iluminação pública. foi novamente asfaltada pela autarquia em 1999. Sendo considerada tal via pela Autarquia Local como pública, e fazendo-o constar da sua toponímia local.
Desde que foi asfaltada e até Abril de 2005, sempre foi limpa pelos cantoneiros da Junta de freguesia que executavam a limpeza em toda a “…”, e objecto de conservação pela Autarquia Municipal ao longo destes anos.
Em 11.04.2005, a ré, espetou espigões em ferro no chão da estrada imediatamente antes de a mesma atingir a confrontação com o prédio dos autores, para quem vem no sentido Poente - Nascente, vindo do … para a “…”, e colocou um portão, fechado com aloquete, em toda a largura da via, impedindo a passagem de qualquer veículo.
A Autarquia, apesar da participação que lhe foi feita, não age.
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Ora, como correctamente se aponta na decisão recorrida “(…)da petição inicial resulta que a utilização pelo público em geral desse caminho remonta ao ano de 1984, data a partir da qual a Junta de freguesia de … alargou o caminho em causa, transformando-o numa via mais larga e com melhores acessos para a circulação, a que se deveu à cedência dos proprietários dos prédios confinantes de terreno para esse alargamento, e bem assim foram efectuados melhoramentos na iluminação pública, tendo sido deliberado pela competente Assembleia denominar a via como ….
Ora, a utilização pelo público em geral do caminho em causa, de acordo com a alegação dos Autores, só se faz há cerca de 27 anos (desde 1984), pelo que inexistindo no articulado petição inicial outros elementos que permitam concluir por uma utilização anterior tão longínqua no tempo que escapa à percepção da memória humana, falece o referido requisito da imemorial idade (vide Ac. STJ de 18/05/2006, in www.dgsi.pt).
Donde, não se encontrando preenchidos os requisitos exigidos pelo mencionado Assento, hoje com carácter uniformizador de jurisprudência "estar, desde tempos imemoriais, no uso directo e imediato do público" -o destino desta acção deverá ser a sua improcedência (…).
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Pretendem os apelantes defender que a referida “…” é sem dúvidas uma estrada ou caminho público, pois que “tendo sido aberta pela autarquia, afectando-a ao uso do público, verifica-se adquirido o referido carácter de bem do domínio público, cuja classificação até se deduz da sua inscrição no cadastro municipal das vias rodoviárias e da toponímia local.
Afectação que resulta quer do acto da administração que determinou a sua abertura, utilização e inauguração, consagrando tal via ao uso público, ordenando a sua manutenção pelos funcionários e serviços públicos da autarquia.
E sobretudo, pela sua construção e apropriação, há mais de vinte anos, pela autarquia, a qual a manteve, reparou e conservou, sem oposição de quem quer que fosse durante tal período de tempo superior a 20 anos, afectando a via ao interesse público em geral, passando pela via quem quer que fosse e fazendo-a constar quer do Plano Rodoviário Municipal, quer da toponímia local, identificando a via sempre com via pública”. Defendendo em suma quenão ocorre a necessidade de decorrerem tempos imemoriais para que se verifique a aquisição para o domínio público.
Mas carecem de razão.
Na verdade, cuidando-se do domínio público da pessoa colectiva pública, .por um lado, nenhuma relevância tem aqui o chamado “corpus” nem o “animus” possessório de qualquer autarquia local, ou de outrem, a que se reporta o artigo 1251.º do C.Civil, porque não está em causa a aquisição de algum direito de propriedade sobre a referida faixa de terreno por usucapião, nos termos do art.º 1287.º, do C.Civil, por outro lado, as demais circunstâncias apontadas, atento o que acima se deixou consignado, são insuficientes para a qualificação do dito caminho como público, designadamente, à míngua, da alegação e prova do requisito da afectação ao uso público para fins de utilidade pública, mediante satisfação de interesses colectivos relevantes, desde tempos imemoriais, ou seja, desde tempos que se perdem na memória dos homens. Ora, os apelantes apenas alegam que, pelo menos, desde 1984, ocasião em que a junta de freguesia alargou o outrora caminho fazendeiro, este passou a ser utilizado pelo público em geral, o que é insuficiente para caracterizar a aquisição para o domínio público do mesmo caminho, como pretendem os apelantes.
Pelo exposto, a decisão recorrida fez correcta interpretação e qualificação dos factos alegados e correcta subsunção dos mesmos ao Direito.
Improcedem as respectivas conclusões dos apelantes.
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2.ªquestão – Do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial e decisão surpresa.
Dizem os apelantes que se o julgador da 1.ª instância propendia para o entendimento que veio a ser plasmado na decisão recorrida, devia previamente, dar cumprimento aos art.ºs 508.º e 3.º, n.º 3 do C.P.Civil, evitando assim uma decisão surpresa e convidar os autores a aperfeiçoar o articulado.
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Sem esquecer que uma das traves mestras do nosso ordenamento jurídico, no que ao ramo do direito processual civil respeita, continua a ser o princípio do dispositivo, a verdade é que o disposto no art.º 508.º do C.P.Civil constitui exemplo acabado de que na actual lei adjectiva civil procurou colocar o acento tónico na supremacia do direito substantivo sobre o processual; nos princípios da cooperação e da descoberta da verdade material e justa composição do litígio, designadamente despindo-se esse princípio da cooperação dos seus anteriores rigores formais.
Dispõe o art.º 508.º do C.P.Civil:
“1. Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do n.º 2 do art. 265º;
b) Convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes.
2. O juiz convidará as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
3. Pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”
Consubstancia assim tal preceito legal um poder/dever do tribunal que se insere no poder mais amplo de direcção do processo e princípio do inquisitório previstos no art.º 265.º C.P.Civil, impedindo que razões de forma impeçam a obtenção de direitos materiais legítimos das partes.
Como ensina Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Código de Proc. Civil”, págs. 77/78, “os factos essenciais devem ser invocados nos articulados (cfr. art.º 264.º-1), mas importa referir que a sua omissão não implica necessariamente a preclusão da sua alegação posterior”.
Mas analisando o referido art.º 508.º do C.P.Civil verificamos que ele comtempla duas situações bem distintas.
Segundo o seu n.º 1 al. a) – deve o juiz providenciar pelo suprimento das excepções dilatórias, nos termos do artigo 265.º n.º 2. Manifestamente, estamos perante um poder-dever do juiz, ou seja, um poder “vinculado”, poder que contém em si uma obrigação de agir, cfr. n.º 2 do citado art.º 265.º do C.P.Civil.
Mas decorre do seu n.º 1 al. b) – o poder de proferir (ou não) despacho a convidar as partes no âmbito nos números 2 e 3 (que contempla situações diferentes, sendo o número 2 destinado a corrigir as irregularidades dos articulados e o número 3 destinado a completar articulados deficientes). Se por um lado se refere “o juiz convidará” – cfr. nº 2 e “pode ainda o juiz” – cfr. n.º 3, parece-nos óbvio que o que se consagra, não sendo um puro poder discricionário do juiz, é um despacho que o juiz poderá ou não proferir no seu prudente critério, se detectar, em tempo, essas irregularidades ou deficiências, e sempre que se lhe afigure que o mesmo é necessário à justa composição do litígio despacho.
O caso em apreço nos autos é, em rigor, uma situação de omissão de alegação de factos essenciais ao bom desfecho da causa, atento o pedido formulado. Mas atendendo à lógica de toda a alegação constante da p. inicial, não nos parece que, mesmo no entendimento dos apelantes, o dito caminho, tivesse sido utilizado pelo público em geral antes de 1984, pois como expressamente afirmam, até então, era apenas um caminho antigo entre propriedades para acesso aos prédios que o ladeavam, designadamente, dos autores e seus antecessores, ao seu prédio. Daí que, bem interpretando o alegado na petição inicial, não nos parece que se impusesse ao julgador da 1.ª instância a formulação de qualquer convite para aperfeiçoamento do articulado.
Ora, a questão dos autos, como resulta da petição inicial, fundou-se em errada interpretação do Direito aplicável, pois que os autores estavam convencidos que bastava para a caracterização da natureza pública de tal caminho o facto de o mesmo ter sido alargado, arranjado, melhorado e conservado desde 1984 pela respectiva junta de freguesia, a qual até lhe deu um nome toponímico e, assim possibilitou que o público em geral o utilizasse.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, improcedem as respectivas conclusões dos apelantes.
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Sumário: É necessário e suficiente para a qualificação de um caminho como público, a alegação e prova do requisito da afectação ao uso público para fins de utilidade pública, mediante satisfação de interesses colectivos relevantes, e que tal afectação ocorra desde tempos imemoriais, ou seja, desde tempos que se perdem na memória dos homens.
IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Porto, 2012.06.19
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas