RECURSO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
PEÃO
CULPA EXCLUSIVA
CULPA DO LESADO
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Sumário


I  -   O acórdão recorrido da relação não procedeu à indicação da factualidade que foi tida como provada e como não provada – o que se não afigura de boa técnica dado que a peça processual decisória deve valer por si só, sem necessidade de consulta de outros elementos para que se torne inteligível – concluindo-se, contudo, da sua leitura, que considerou como correctamente fixada a matéria de facto pela 1.ª instância. Estando em causa um acórdão proferido por tribunal superior não se verifica qualquer nulidade, uma vez que tais decisões não têm de ser elaboradas nos precisos termos previstos para sentenças proferidas em 1.ª instância, já que o seu objecto é a decisão recorrida e não directamente a apreciação do objecto do processo.
II - Não é admissível o recurso subordinado interposto do acórdão da relação para este STJ, uma vez que nele apenas se visa convocar o reexame da matéria de facto apurada pelas instâncias, e isto quer se entenda que o fazem em termos amplos, com a finalidade de impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, por erro de julgamento, não admissível nos termos do art. 434.º, do CPP, quer se entenda que o fazem no quadro dos vícios do art. 410.º, do CPP.
III - Decorre das conclusões apresentadas pelos assistentes/demandantes que estes pretendem, sob a capa da invocação do vício do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, afirmar que a decisão recorrida deveria ter extraído da prova produzida uma conclusão diferente daquela que consta do acórdão recorrido. Ora, uma coisa é a existência de erro notório na apreciação da prova e outra bem diversa é a valoração da prova que conduziu à matéria de facto fixada nas instâncias: os recorrentes, ao invocarem tal vício, estão afinal a impugnar a formação da convicção do tribunal recorrido na valoração da prova, pondo em causa a livre apreciação da prova, sendo que tal não se coaduna com a apreciação do sobredito vício.
IV -      Não subsistem dúvidas de que tanto a vítima como a condutora actuaram culposamente, contribuindo para o evento danoso. A vítima atravessou a passadeira estando ainda o sinal luminoso ali existente vermelho para peões, pelo que, com esta conduta, violou as disposições constantes dos arts. 101.º, n.º 1, do CE e 74.º do Regulamento de Sinalização do Trânsito, conduta essa que foi causal do atropelamento e lhe é imputável a título de culpa, pois impunha-se-lhe que respeitasse a sinalização luminosa que proibia o atravessamento da faixa de rodagem aos peões.
V - Tal não afasta a culpa da condutora no atropelamento, como pretende a recorrente, uma vez que resultou provado que a arguida sabia da existência da passadeira de peões, avistou a vítima a 60 m, parada na berma, nada constando provado quanto a eventuais factores que lhe tivessem diminuído tal visibilidade, pelo que se lhe impunha que tivesse tomado as cautelas que lhe permitiriam evitar o atropelamento da vítima, ainda que estivesse a efectuar a travessia da faixa de rodagem de forma indevida e contrária às regras estradais. Pelo que, bem andou o acórdão recorrido ao concluir no sentido de que o atropelamento é imputável a culpa concorrente da vítima e da condutora.
VI -      Do art. 570.º, n.º 1, do CC, resulta que o critério para proceder à repartição das culpas é o da gravidade das culpas de ambas as partes e das consequências que delas resultaram, ou seja, é o da gravidade/intensidade do concreto comportamento culposo para o evento danoso, sendo que a “diferença de massas”, utilizada como critério pelo acórdão recorrido, não surge pelo menos de forma directa como critério ponderável para a fixação de tal repartição de culpas. Do conjunto de regras do CE que respeitam à circulação de veículos e peões, ressalta a ideia fundamental de que não há nem para uns, nem para outros um direito absoluto de prioridade e que a todos se impõem regras de prudência e de cuidados acrescidos que permitam minimizar os consabidos perigos dessa circulação.
VII – A vítima não tinha um direito de atravessamento, tanto mais que a luz de sinalização luminosa lho não permitia, sendo que, a lei também impunha ao condutor um dever de cedência perante o peão ainda que a sinalização lhe permitisse avançar, pois é esse o sentido do art. 103.º, n.º 1, do CE. Por outro lado, não pode deixar de jogar a favor da condutora a expectativa de que a vítima não fizesse o atravessamento da via quando a sinalização luminosa lho impedia. Pelo que, ponderadas ambas as condutas considera-se que o comportamento da vítima contribuiu numa proporção superior à da condutora para o evento danoso: a situação de perigo para a sua vida teve origem no seu comportamento apensar de ser certo que a condutora não se mostrou capaz de evitar a sua consumação como podia e devia. Foi a vítima ao adoptar uma conduta temerária no atravessamento da via que desencadeou o processo dinâmico do acidente e se expôs ao dano, pelo que se considera que a proporção de repartição da culpa pelo acidente é a inversa da que foi decidida pelo tribunal recorrido: 1/3 para a condutora e 2/3 para a vítima.

Texto Integral


1. – No âmbito do processo nº 470/08.9GALSD do então ... Juízo do Tribunal de ... AA foi pronunciada pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal, por referência aos arts 24°, nº 1 e 25°, nº 1, ambos do Código da Estrada e art. 69°, nº 1 do Regulamento de Sinalização de Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1/10.

Os demandantes BB e CC, respectivamente marido e filho da vítima DD deduziram pedido de indemnização cível contra “EE, SA”, pedindo a sua condenação no pagamento de € 175.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos em consequência da morte daquela.

Foi ainda deduzido pedido de indemnização contra a demandada “EE …” pelo Instituto de Segurança Social, IP pedindo o pagamento de €14.206,86, a título de reembolso de subsídio por morte da vítima e pensões de sobrevivência no período de Julho/2008 a Abril de 2012.

         Efectuado o julgamento a arguida foi absolvida e os pedidos cíveis julgados improcedentes.

         O demandante e também assistente BB interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que lhe deu provimento decidindo:

         - Condenar a arguida AA como autora de um crime de homicídio por negligência dos arts 137º, nº 1 e 15º, al. b) do C. Penal, com referência ao art. 103º do Código da Estrada na pena de 1 ano e 3 meses de prisão com a respectiva execução suspensa;

  - Condenar a demandada “EE …” a pagar ao demandante Instituto de Segurança Social, IP a quantia de € 14.206,86 respeitante a pensões de sobrevivência vencidas desde Maio de 2012 e ainda o valor de prestações vincendas até ao trânsito da decisão condenatória acrescidos de juros à taxa legal;

   - Condenar a demandada “EE …” a pagar aos demandantes BB e CC € 40.000,00 por dano não patrimonial «perda de vida» mais € 10.000,00 por dano não patrimonial «sofrimento da percepção da iminência do embate até à morte»; mais € 20.000,00 por dano não patrimonial «sofrimento próprio da perda do cônjuge»; mais €20.000,00 por dano não patrimonial «sofrimento próprio da perda da progenitora», importâncias estas acrescidas de juros à taxa legal com dedução do valor que a “EE …” pagar ao ISS IP.

 A demandada “EE Portugal – Companhia de Seguros, SA” interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça formulando na motivação respectiva as seguintes conclusões (transcrição):

A) Pretende-se, com o presente recurso, ver reapreciada a valoração feita pelo Venerando Tribunal a quo sobre a contribuição de ambos os intervenientes – arguida e vítima mortal – na produção do acidente, que aquele Tribunal entendeu dever fixar em 2/3 pra a condutora do veículo seguro na Recorrente e em 1/3 para a infeliz vitima, fazendo-o com apelo a critérios de "comportamento médio" que justificariam a adopção de conduta diversa por parte da arguida, condutora do veículo seguro na Recorrente.

B) Dos factos provados resulta imediatamente evidenciado que o comportamento causal do acidente foi a iniciativa de travessia da via pela infeliz vítima, apesar de estar acesa a luz vermelha para a travessia dos peões, sendo certo que aquele local, como resulta provado sob o n° 56 se "caracteriza por ter grande intensidade de trânsito".

C) Nestas condições, dificilmente conseguiria, a infeliz vitima, proceder à travessia da passadeira sem que se aproximasse um veículo que a poderia – como infelizmente viria a suceder – atropelar.

D) Foi assim, pelo menos, o comportamento da infeliz vítima, decisivo e determinante para o acidente, não se podendo, como parece ter feito o Venerando Tribunal a quo, recorrer ao intitulo de responsabilidade pelo risco, ou sem culpa, repartindo a contribuição dos intervenientes pela medida do respectivo risco na circulação.

E) A haver concorrência de culpas – o que não se aceita mas deve admitir-se como hipótese de raciocínio – sempre deveria fixar-se como determinante o comportamento da infeliz vítima, graduando em, pelo menos 75% a sua contribuição para o acidente que a viria a vitimar.

F) Não pode, no entanto, a Recorrente, deixar de pugnar pela justeza de uma decisão de Absolvição da Recorrente, pois tal como fez o M° Juiz de 1ª Instância, se considera nada se ter provado que permita formular um juízo de censura sobre o comportamento da condutora do veículo seguro.

G) Do mesmo modo, não se provou que lhe seria exigível que previsse a persistência de tal comportamento pela vítima, devendo admitir-se que um condutor médio sempre pensaria que o peão o deixasse passar pela sua frente, não insistindo no atravessamento de modo a tornar inevitável o acidente, pelo que não se poderá dizer que fosse exigível a adopção de comportamento diferente.

H) Seria este, muito provavelmente, o comportamento de um "homem médio”, também adoptado pela infeliz vítima, não fora a elevadíssima quantidade de álcool que tinha ingerido e que terá influenciado decisivamente a infeliz vitima, que não estaria, muito provavelmente, em condições de discernir um veículo em aproximação de um veículo parado ...

1) O desconhecimento pela condutora do veículo seguro desta afectação pelo álcool por parte da infeliz vítima reforça a conclusão de que não lhe seria exigível – se é que o pudesse ter adoptado, o que, manifestamente, se considera não ter resultado provado – comportamento diverso, impondo-se concluir não lhe poder ser assacada qualquer parcela de responsabilidade no acidente, que ocorreu por falta exclusiva da infeliz vitima.

J) O douto acórdão proferido violou, por errada interpretação os comandos insertos nos artigos 483° e 487°, ambos do Código.

         O demandante BB interpôs recurso subordinado formulando nele as seguintes conclusões (transcrição):

I. O Assistente interpõe recurso subordinado do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido nos presentes autos que, no seu entender, incorreu em erro notório na apreciação da prova (cfr. art. 410", n.° 2, alínea e) do C.P.Penal).

II. Nomeadamente, desde logo não se pode conformar o Assistente com o facto do Tribunal se ter socorrido de um conceito indeterminado usado pela testemunha FF - velocidade regular - para concluir que a Arguida circulava a velocidade inferior a 50km/ h.

Não se pode, ainda, conformar o Assistente com o facto do douto Acórdão recorrido ter colocado no ponto 9 dos Factos Provados uma expressão que neles não existia, a saber "consideravelmente", o que, no entender do Assistente, foi feito sem suporte fálico ou jurídico algum.

IV. Também não se pode conformar o Assistente com a não valoração dada pelo Tribunal à confissão da Arguida no que respeita à velocidade com que circulava no cruzamento imediatamente anterior à passadeira onde se deu o acidente dos autos, cfr. fls. 790 do Acórdão recorrido.

V. Isto, quando a propósito dos factos provados sob n.°s 9, 2.a parte e 13, consta da Fundamentação de Facto da sentença proferida a quo e que o Tribunal ad quem não questionou: "O Tribunal acreditou nas declarações da arguida (cfr. Acórdão fís. 789) sendo que esta as prestou de forma clara e verosímil sendo que a própria relatou que, quando passou o semáforo, seguia a cerca de 60/65 km/hora".

VI. Ainda menos se conformando o Assistente quando, a tal confissão se junta a Matéria de Facto Provada sob n.° 14 "A Arguida avistou uma pessoa do sexo feminino (a vítima) que se fazia acompanhar por uma criança, parados na berma da estrada a uma distância de cerca de 60 metros". Os quais ao abeirarem-se da passadeira situada na berma direita da estrada pararam porque o semáforo para peões estava ainda vermelho - Factos Provados sob n.°s 6 e 7.

VII. Pois, se a Arguida avistou a vítima / peã a cerca de 60 metros antes do embate (ponto 14 dos factos provados), daqui resultaria indiscutivelmente que, caso a arguida circulasse a menos de 50km/hora, como resulta do Douto Acórdão recorrido, esta sempre poderia ter abrandado de forma a deixar a peã concluir a travessia da passadeira e até parar o seu veículo, no espaço livre e visível à sua frente - cfr. art. 24.° n.° 1 do C.E. - o que de todo não sucedeu, malogradamente.

VIII. Assim como, o ter-se provado que a arguida apenas conseguiu imobilizar o seu veículo cerca de 4 ou 5 metros (fls. 790 do Acórdão recorrido) após a passadeira e após o embate na inditosa vítima também leva a concluir, obrigatoriamente, pela velocidade excessiva e inadequada a que a arguida circulava.

IX. Pois, não obstante, o Acórdão recorrido não se ter pronunciado sobre os factos alegados pelo Assistente nas suas conclusões XXIII e XXIV do respectivo recurso para o Tribunal ad quem, porquanto não levou em conta que, não obstante a velocidade na altura permitida para o local fosse de 50km/hora - a arguida deveria especialmente moderar a velocidade que imprimia ao seu veículo nos termos do disposto no art. 25.°, n.° 1 alínea a) do C. Estrada - à aproximação de passadeiras assinaladas na faixa de rodagem para travessia de peões - Facto Provado sob o n.° 15 do Douto Acórdão; art. 25.° n.° alínea f) do mesmo Código - nos cruzamentos, Facto Provado n.° 5; art. 25.°, n ° 1 alínea j) do C. Estrada - sempre que exista grande intensidade de trânsito - factos provados sob n.°s 5 e 16.

X. A arguida percorreu, desde que avistou a vítima, cerca de 64/65 metros e, só após estes, conseguiu imobilizar a sua viatura!! Por isso, ou circulava a arguida em excesso de velocidade ou então completamente desatenta ao trânsito de veículos e de peões que se fazia sentir no momento do acidente.

XI. Ainda não se conforma o Assistente com o facto do Tribunal recorrido se ter socorrido de factos que nem sequer constam da Matéria de Facto Provada para assim sustentar que a Arguida seguia a velocidade inferior a 50km/h - vidé a título de exemplo fls. 787 e 788 do Acórdão recorrido.

XII. Se não resulta dos Factos Provados que a arguida tenha travado, a que título teria que haver rastos de travagem marcados no pavimento? Ora, a ser assim, e fazendo apelo ao normal acontecer e juízos de experiência comum nem sequer se pode concluir que a arguida tenha abrandado, dado que tal também não resulta dos Factos Provados.

XIII. De encontro à posição que sempre defendeu o Assistente de que a Arguida circulava a velocidade excessiva e inadequada às características da via, à intensidade de veículos e peões característicos da mesma (vidé Factos Provados sob n.°s 5, 15 e 16), sendo que, velocidade excessiva aqui não significa, como atrás já se viu, tão só velocidade superior a 50km/h, porquanto a mesma devia ser em tal local especialmente reduzida (vidé facto provado n.° 12), vão os graves e profundos ferimentos provocados pelo embate do veículo conduzido pela Arguida na inditosa vítima (vidé relatório de autópsia de fls. 102 a 110).

XIV. Não entende, e não se conforma, o Assistente, com a valoração que é dada ao depoimento da testemunha FF também para fundamentar a alegada velocidade inferior a 50km/hora a que circularia a Arguida, e ainda para proferir decisão, como proferiu, sobre o funcionamento dos semáforos, porquanto no seu depoimento existiram contradições gritantes, tais como as que a mesma proferiu em sede de julgamento: ao minuto 25 "penso que foi um estrondo, eu não ouvi". E aos minutos 25:17, 25:26, 26:45 e 26:50, respectivamente, disse: "Sim. Estava a mexer no rádio. Troquei o CD". "Eu vi a carrinha passar". "Não ouvi estrondo nenhum". E, ainda, ao minuto 12:30 disse: "... o estrondo foi grande".

XV. Pois, se a testemunha confessou que estava a trocar um cd, facto que, malogradamente, nenhum dos tribunais valorou como devia, enquanto aguardava que o semáforo passasse a verde, segundo as regras da experiência comum, como poderia

XII. Se não resulta dos Factos Provados que a arguida tenha travado, a que título teria que haver rastos de travagem marcados no pavimento? Ora, a ser assim, e fazendo apelo ao normal acontecer e juízos de experiência comum nem sequer se pode concluir que a arguida tenha abrandado, dado que tal também não resulta dos Factos Provados.

XIII. De encontro à posição que sempre defendeu o Assistente de que a Arguida circulava a velocidade excessiva e inadequada às características da via, à intensidade de veículos e peões característicos da mesma (vidé Factos Provados sob n.°s 5, 15 e 16), sendo que, velocidade excessiva aqui não significa, corno atrás já se viu, tão só velocidade superior a 50km/h, porquanto a mesma devia ser em tal local especialmente reduzida (vidé facto provado n.° 12), vão os graves e profundos ferimentos provocados pelo embate do veículo conduzido pela Arguida na inditosa vítima (vidé relatório de autópsia de fls. 102 a 110).

XIV. Não entende, e não se conforma, o Assistente, com a valoração que é dada ao depoimento da testemunha FF também para fundamentar a alegada velocidade inferior a 50km/hora a que circularia a Arguida, e ainda para proferir decisão, corno proferiu, sobre o funcionamento dos semáforos, porquanto no seu depoimento existiram contradições gritantes, tais como as que a mesma proferiu em sede de julgamento: ao minuto 25 "penso que foi um estrondo, eu não ouvi". E aos minutos 25:17, 25:26, 26:45 e 26:50, respectivamente, disse: "Sim. Estava a mexer no rádio. Troquei o CD". "Eu vi a carrinha passar". "Não ouvi estrondo nenhum". E, ainda, ao minuto 12:30 disse: "... o estrondo foi grande".

XV. Pois, se a testemunha confessou que estava a trocar um cd, facto que, malogradamente, nenhum dos tribunais valorou como devia, enquanto aguardava que o semáforo passasse a verde, segundo as regras da experiência comum, como poderia estar a mesma atenta ao momento preciso em que tal aconteceu e, muito mais, ao trânsito de veículos e de peões que se fazia sentir à sua frente??

XVI. Mesmo que assim não se entenda, como entende o Assistente/ Recorrente, dúvidas não podem existir de que "A Arguida violou a disposição legal do C. Estrada 103 n° 1 na parte em que estabelece: "Ao aproximar-se de uma passagem de peões assinalada".... Facto provado n° 15 - ou seja que a arguida não ignorava a existência em tal cruzamento de 2 passadeiras para travessia de peões pois passava por aquela por diversas vezes), "...em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem." (Facto que o Acórdão recorrido, e bem, teve em conta a fls. 795 quando se refere à violação pela arguida do artigo do C. Estrada atrás indicado, ou seja, à sua culpa efectiva, ...."cuja aplicação in casu não se teve a quo mas se tem ad quem, por inquestionável, tendo presente a "dinâmica de movimentações" provada em 7 a 9".

XVII. Nenhum sentido faz o que a Recorrente seguradora pretende, ou seja, ver reapreciada a valoração feita pelo Venerando Tribunal a quo sobre a contribuição de ambos os intervenientes - Arguida e vítima mortal - na produção do acidente, respectivamente de dois terços para a arguida e de um terço para a vítima mortal, para 75% para esta e 25% para aquela, e não faz, desde logo, porque, conforme refere o Acórdão recorrido a fls. 796 in fine e 797, a considerar-se verdade que a inditosa vítima era portadora de urna TAS de 1,72g/1

XVIII. para estabelecer nexo de causalidade, como resulta da sentença recorrida (pág. 16) não basta aí afirmar, como é feito: "Não podemos, ainda, desconsiderar que a vítima trazia uma taxa de álcool no sangue de 1,72g/l." Ou seja, não basta a alegação genérica dos intervalos malefícios dos efeitos do álcool, mas sim necessário se torna a alegação de factos relativos aos concretos efeitos do álcool, no caso dos autos, no peão.

Não basta, pois, que, em abstrato, a influência alcoólica do peão seja adequada a desencadear o efeito danoso.

XIX. Sendo que, no que ao pedido cível respeita, necessário era também que a seguradora demonstrasse que, atentas as circunstâncias do caso em concreto, o dano resultou do estado de ébrio do peão, de tal modo que se não fosse a taxa de alcoolemia verificada, o acidente não teria ocorrido, ou, no máximo, não se teria produzido da mesma forma. A prova do nexo causal no plano factual há-de resultar da articulação / conjugação de várias circunstâncias factuais, particularmente da concreta taxa de alcoolemia que o peão apresentava e do modo e circunstâncias que envolveram a eclosão do sinistro. Quanto à factualidade provada temos apenas a que resulta do facto provado n.° 33 ou seja "A vítima trazia urna taxa de álcool no sangue de 1.72g/1". Impõe-se perguntar se esta taxa de alcoolemia afectou a capacidade de perceção do espaço físico e do procedimento adequado ao peão para aquela travessia?

XX. Tanto assim é que a fls. 54 dos autos consta que: "a morte da inditosa vítima DD foi devida às lesões traumáticas toraco-abdominais atrás descritas. Estas, bem como as demais lesões traumáticas deveram-se a violento traumatismo de natureza contundente, tal como o que pode ter sido devido a atropelamento, corno consta da informação recolhida ..."

XX. Tanto assim é que a fls. 54 dos autos consta que: "a morte da inditosa vítima DD foi devida às lesões traumáticas toraco-abdominais atrás descritas. Estas, bem como as demais lesões traumáticas deveram-se a violento traumatismo de natureza contundente, tal como o que pode ter sido devido a atropelamento, corno consta da informação recolhida ..."

XXI. Desde logo resulta de fls. 22 dos autos do certificado de óbito da inditosa vitima DD que a vítima faleceu em 24/06/2008 pelas 22h:10m, sendo que, como resulta do facto provado sob nº  1 o acidente de viação ocorreu nesse dia pelas 20:30 horas.

- Resulta, ainda, de fls 43 e 44 que as amostras para análise laboratorial para rastreio de álcool no sangue de TAS e de substâncias psicotrópicas foram recolhidas no dia 24/06/2008 pelas 22h:43m, ou seja, quando a inditosa vítima já era cadáver.

- Por sua vez, resulta de fls. 50 dos autos que a data da receção de tais amostras ocorreu no IML do Norte apenas no dia 27/06/2008, pelas llh: 40m, ou seja, cerca de dois dias e meio depois, tendo o intervalo entre a data da morte da inditosa vítima e a data da respectiva colheita de amostras tido a duração de 2h:13m, e sendo que a perícia foi efetuada, como consta do documento de fls. 50 dos autos, apenas a 04/11/2008, tendo sido realizada cerca de 5 meses após a recolha das amostras e o óbito da vítima.

XXII. - Concluindo, sempre se dirá que a TAS de 1,72g/1 detetada no cadáver de DD nas circunstâncias de tempo e modo acabadas de descrever, não permite com a nítida certeza determinar a TAS existente no momento do acidente, nem sequer que a revelada no cadáver seja resultante de ingestão, produção endógena ou ambas.

- Porquanto não se pode ignorar factos tão determinantes como sejam o tempo decorrido entre a morte e a colheita, o local do corpo onde foi efetuada a colheita das amostras (que, no caso dos autos, até se ignora), entre outros.

- Como também não se pode ignorar que as temperaturas elevadas do meio externo (sendo que o acidente dos autos ocorreu em finais de Junho, em pleno Verão), com lesões corporais, representam condições férteis para a síntese post-mortem de etanol.

XXIII. Neste sentido, vidé Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04/04/2013, Juiz Desembargador Relator ... publicado no site www.dgsi.pt, onde se refere expressamente: "Na realidade saber se o etanol detetado num cadáver é produto de ingestão prévia ou resulta de produção endógena não é tarefa fácil".

XXIV. Também nenhum sentido faz afirmar a Seguradora recorrente / recorrida que a vítima teve uma iniciativa temerária quando da Matéria dos Factos Provados consta sob os pontos 6 e 7 que esta parou porque o semáforo para peões ainda estava vermelho - cfr. conclusão VI.

XXV. Fazendo apelo ao homem médio, como refere a recorrente / recorrida EE, impõe-se questionar: Por que é que uma peã pára num semáforo que está vermelho para depois iniciar a travessia sem o mesmo ter mudado para verde? Pelo que, nenhuma precipitação ocorreu por parte da vítima!

XXVI. E por que a condutora / ora arguida avista tal peã a 60m de distância parada na berma da estrada (Facto Provado sob ponto 14), alegadamente circulando a velocidade inferior a 50km/h, e, mesmo assim, não consegue deter a marcha do seu veículo quando a peã está prestes a concluir a travessia da passadeira da hemifaixa de rodagem por onde a arguida seguia??

XXVII. - Aliás, (Facto Provado sob n. 11) "A Arguida só imobilizou o referido MB depois de com este ter passado por cima do peão e de ter imobilizado o seu veículo com o corpo da vítima por baixo".

- E ainda (Facto Provado sob n' 10) "O veículo automóvel da Arguida ficou imobilizado por cima do peão, junto à placa separadora central".

- Bem como 'foi necessário chamar um reboque para proceder à remoção da viatura e dar assistência à própria vítima".

XXVIII. Com isto bem se compreende, ao contrário do que afirma a recorrente / recorrida, que o comportamento causal do acidente foi, outrossim, a conduta negligente da Arguida e, a haver alteração de divisão de responsabilidade, que não uma condenação total da arguida como responsável única pelo acidente dos autos, então sempre deveria fixar-se como determinante o comportamento da Arguida, graduando em, pelo menos, 75% a sua contribuição para o acidente que veio a vitimar a inditosa DD.

XXIX. Até porque a esta incumbia ter uma especial exigência de comportamento porquanto a condução de veículos é uma actividade perigosa pondo em risco valores elevados como a vida humana (neste sentido, e muito bem, o despacho de pronúncia proferido nestes autos).

O demandante CC interpôs também recurso subordinado em motivação separada mas de idêntico teor e com as mesmas conclusões das do precedentemente referido.

Ambos os demandantes responderam ao recurso da “EE ..” nas peças que apresentaram como recursos subordinados.

Não houve resposta a estes por parte da demandada “EE …”.

Neste Supremo Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de lhe não assistir legitimidade para dar parecer em virtude de estar pedida a reapreciação da “vertente cível da causa”.

                                           *

2. – O resultado do julgamento quanto aos factos provados pertinentes para a apreciação dos recursos[1] foi o seguinte (transcrição):

1. No dia 24/06/2008 pelas 20h30m ocorreu um acidente de viação.

2. A arguida AA, conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ...-MB na Estrada Nacional nº ...

3. O referido acidente ocorreu num troço caracterizado por uma recta com bastante visibilidade.

4. Ao tempo do acidente, no respectivo local, existia um cruzamento regulado com sinalização luminosa para veículos e peões, que se encontrava em funcionamento.

5. O cruzamento onde ocorreu o acidente caracteriza-se por ter uma grande intensidade de trânsito.

6. A vítima DD e o filho CC abeiraram-se da passadeira, situada na berma direita da estrada, relativamente ao sentido de marcha do veículo conduzido pela arguida, no sentido ....

7. Nesse instante, pararam ambos porque o semáforo para peões estava ainda vermelho.

8. A vítima começou a atravessar a estrada na passadeira, fazendo-o da direita para a esquerda em relação à faixa de rodagem por onde circulava o veículo da arguida.

9. No momento em que a vítima estava já a terminar a travessia da passadeira foi embatida pelo veículo conduzido pela Arguida, que circulava a velocidade não concretamente apurada mas inferior a 50 Km/h.

10. O veículo automóvel da Arguida ficou imobilizado por cima do peão, junto à placa separadora central.

11. A arguida só imobilizou o referido MB depois de com este ter passado por cima do peão e de ter imobilizado o seu veículo com o corpo da vítima por baixo.

12. O embate causou à vítima graves e profundos ferimentos, descritos no relatório de autópsia, de fls. 102 a 110, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e os quais foram causa directa e necessária da sua morte.

13. A velocidade máxima permitida naquele local que era de 50km/hora.

14. A arguida avistou uma pessoa de sexo feminino (a vítima) que se fazia acompanhar por uma criança, parados na berma da estrada a uma distância de cerca de 60 metros.

15. A arguida não ignorava a existência em tal cruzamento de duas passadeiras para travessia de peões, pois passava por aquela via diversas vezes.

16. A arguida não ignorava que a passadeira onde ocorreu o atropelamento se situa em local de grande intensidade de trânsito, de peões e de veículos e em local de grande sinistralidade.

(…)

                        33. A vítima trazia uma taxa de álcool no sangue de 1,72 g/l.

                                                                                 *

3. –  Os presentes recursos dizem apenas respeito à matéria relativa ao pedido de indemnização civil, não se colocando quaisquer problemas de admissibilidade face ao disposto no art. 400º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal (diploma a que pertencem as normas adiante indicadas sem menção de origem), à alçada da Relação de € 30.000  (conforme decorre do disposto no art. 31º da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto, e art. 44º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto), ao valor do pedido (175.000,00 €) e ao valor desfavorável para o recorrente relativamente à decisão impugnada (€ 90.000,00  “deduzido do valor global que EE, SA, pagar ao Autor Civil ISS, IP[2]).

De harmonia com o disposto no art. 412º, nº 1, é a partir da motivação do recurso interposto e das suas conclusões que se delimita o objecto deste, salvo as questões de conhecimento oficioso.

Face às conclusões apresentadas pela recorrente “EE …” constata-se que se reconduzem a duas as questões essenciais suscitadas:

a) Saber se o atropelamento a que se reportam os autos derivou de culpa exclusiva da vítima/peã (conclusões A a D e F a I);

b) Subsidiariamente, caso se entenda pela existência de culpas concorrentes da condutora e da vítima a diferente repartição de culpas entre os intervenientes – que a recorrente entende que deverá ser fixada na proporção de 75% para a vítima e 25% para a arguida (conclusão E).

No que diz respeito ao recurso subordinado interposto pelos assistentes/demandantes, face às conclusões de recurso apresentadas, a questão suscitada resume-se à invocação de erro notório na apreciação da prova (conclusões I a XV das alegações de recurso de ... e conclusões I a XV das alegações de recurso de ...), constituindo os restantes pontos das conclusões apresentadas pelos assistentes/demandados a sua resposta ao recurso apresentado pela demandada “EE…”.

                                            *

4. - Nos termos do art. 434º, o STJ somente reaprecia matéria de direito, sem prejuízo do conhecimento (oficioso) dos vícios previstos no art. 410º, nºs 2, als. a) a c), e 3, do CPP.
Quer isto dizer que ao STJ está vedado proceder à análise crítica da prova produzida nos autos, seja ela de que tipo for, testemunhal, documental ou outra, substituindo-se às instâncias na valoração dos meios de prova e na fixação da matéria de facto provada e não provada.
Decidido o recurso pela Relação, ficam esgotados os poderes de apreciação da matéria de facto, tornando-se esta definitivamente adquirida, salvo se ocorrer algum dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, de que o STJ deva conhecer oficiosamente.
No que diz respeito aos vícios a que alude o art. 410º, nº 2, é entendimento pacífico da jurisprudência deste Supremo Tribunal que a sua invocação não pode constituir objecto do recurso de revista a interpor para o STJ e que este tribunal apenas deles conhece oficiosamente, quando constate que a decisão recorrida denota deficiências ao nível da matéria de facto que inviabilizem a correcta aplicação do direito ao concreto caso em apreço.
Quando a Relação haja levado a cabo uma reapreciação dessa matéria mercê da sua invocação pelos sujeitos processuais no recurso para aí interposto «a discussão está encerrada por força dos limites de competência entre aquelas duas espécies de tribunais superiores, pois é na Relação que, em regra, se encerra a discussão do facto»[3].
Consequentemente, «é inadmissível o recurso [para o STJ, interpolação] no segmento, em que visa o reexame da matéria de facto sob a alegação de que a prova foi incorrectamente apreciada e que o acórdão da Relação enferma das vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou do erro notório na apreciação da prova»[4]
Analisado o acórdão recorrido, verifica-se que nele se não procedeu à indicação da factualidade que fora tida como provada e não provada – o que se não afigura de boa técnica dado que a peça processual decisória deve valer por si só, sem necessidade de consulta de outros elementos para que se torne inteligível –  concluindo-se, contudo, da sua leitura, que se considerou como correctamente fixada a matéria de facto pela 1ª instância, pois foi julgado improcedente o recurso apresentado pelos assistentes no que diz respeito à matéria de facto que fora impugnada, bem como quanto aos vícios do art. 410º, nº 2, que foram invocados, tendo feito uso dos factos dados como provados pela 1ª instância para as condenações que proferiu.
Isto significa que não é admissível o recurso subordinado interposto pelos assistentes/demandantes do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto para este Supremo Tribunal, uma vez que nele apenas visam convocar o reexame da matéria de facto apurada pelas instâncias, e isto quer se entenda, como se afigura, que o fazem em termos amplos, com a finalidade de impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, por erro de julgamento (de facto), quer se entenda, como está igualmente invocado na sua argumentação que o fazem no quadro dos vícios do art. 410º  (erro notório na apreciação da prova).
Por isso, os recursos subordinados não poderão deixar de ser liminarmente rejeitados, por inadmissibilidade legal, nos termos dos arts. 434º e 420º, nº 1, al. b).
Ainda que assim não fosse, sempre se imporia a rejeição dos ditos recursos .
O conhecimento dos vícios a que alude o art. 410º, nº 2 constitui uma válvula de segurança a utilizar apenas naquelas situações em que não seja possível tomar uma decisão (ou uma decisão correcta e rigorosa) sobre a questão de direito, por a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente, por se fundar em manifesto erro de apreciação ou ainda por assentar em premissas que se mostram contraditórias e por fim quanto se verifiquem nulidades que não se devam considerar sanadas.
Estando em causa um acórdão proferido em recurso por tribunal superior – relativamente aos quais o STJ tem afirmado que “as exigências de fundamentação não são as mesmas que o nº 2 do art. 374º prescreve para a sentença proferida em 1.ª instância”[5] – não se verifica qualquer nulidade.[6] Com efeito, tem entendido o STJ que tais decisões não têm de ser elaboradas nos precisos termos previstos para sentenças proferidas em 1.ª instância, o que bem se compreende visto que o seu objecto é a decisão recorrida e não directamente a apreciação do objecto do processo.
No mais, e quanto aos aludidos vícios do nº 2 do art. 410º, têm eles de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como prescreve o preceito.
Em particular, no que diz respeito ao vício previsto pela alínea c) do nº 2 do artigo 410º (invocado pelos assistentes/demandantes), ele ocorre quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.
Assim, o erro notório na apreciação da prova é um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, sem usar elementos externos à própria decisão, ou seja, é um vício intrínseco da sentença que há-de resultar do texto da decisão recorrida.
Se a discordância do recorrente for apenas quanto à forma como o tribunal valorou a prova e decidiu a matéria de facto, tal traduz-se em impugnação de matéria de facto apurada que, como já referido, se integra em objecto de recurso sobre a matéria de facto e portanto extravasa os poderes de cognição do STJ.
Ora, do texto da decisão recorrida e apenas deste, em conjugação com as regras da experiência comum, não se extrai que o mesmo padeça de algum erro notório da apreciação da prova.
Com efeito, a versão dos factos acolhida pelo Tribunal da Relação  mostra-se compatível com as regras da experiência comum, uma vez que a dinâmica do acidente retratada pelo acórdão da 1ª instância não corresponde a algo que não possa ter ocorrido, isto é, que na perspectiva do padrão do homem médio, surja como um evento inacreditável, inverosímil ou completamente desconforme com a realidade da vida.
Especificamente no que concerne à velocidade a que circulava a viatura interveniente no acidente (que é o ponto concretamente mencionado pelos assistentes/demandantes) não se vê que o facto de ter sido dado como provado que essa viatura seguia “a velocidade não concretamente apurada mas inferior a 50km/h” (facto 9) seja incompatível, de acordo com regras de lógica e experiência comum, com o facto de a condutora não ter conseguido evitar o atropelamento da vítima, uma vez que a velocidade não é bastante de per se para concluir, de modo definitivo, num ou noutro sentido. Como se explicará melhor infra, a velocidade específica, medida em quilómetros, a que a condutora seguia não é um factor decisivo na apreciação da dinâmica/culpa do acidente em causa nos autos.
O conceito de velocidade excessiva não se cinge apenas e só aquela que é superior à velocidade máxima permitida em determinado local. O que primordialmente importa considerar é o princípio geral (assim a epígrafe) constante do art. 24º, nº 1, do CE, isto é, o de que “O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”[7].
O que decorre das conclusões apresentadas pelos assistentes/demandantes é que estes pretendem, sob a capa da invocação do vício do art. 410º, nº 2, al. c), afirmar que a decisão recorrida deveria ter extraído da prova produzida uma conclusão diferente daquela que consta do acórdão recorrido. Ora, uma coisa é a existência de erro notório na apreciação da prova e outra coisa bem diversa é a valoração da prova que conduziu à matéria de facto fixada nas instâncias: os recorrentes, ao invocarem tal vício, estão afinal a impugnar a formação da convicção do tribunal recorrido na valoração da prova produzida e examinada, pondo em causa a livre apreciação da prova, sendo que tal não se coaduna com a apreciação do sobredito vício.

                                             *

5. - Nos termos do art. 483º, nº 1, do Código Civil (CC), aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Assim, em princípio, só está obrigado a indemnizar o prejuízo causado a outrem, aquele que tiver agido ilicitamente e com culpa: esta é a regra geral, reforçada pelo nº 2 do mesmo artigo.

Para que exista uma obrigação de indemnizar, no caso geral da responsabilidade por factos ilícitos, é necessário que:

a) haja um facto voluntário do agente;

b) o facto seja ilícito;

c) haja um nexo de imputação do facto ao agente;

d) ocorra um dano;

e) exista um nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Concluiu o acórdão recorrido, da seguinte forma, pela verificação no caso concreto dos cinco requisitos acima enunciados, no que diz respeito à conduta da arguida:

Como a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil (art 129 do CP) e aquele que, com dolo, violar ilicitamente o direito de outrem, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação (art 483-1 do Código Civil), os factos provados constitutivos da responsabilidade criminal supra firmada indubitavelmente perfectibilizam os 5 pressupostos dos quais depende a responsabilidade civil extra-obrigacional da (Seguradora pela) Arguida - o facto, a ilicitude, o dano, a culpa, o nexo de causalidade - que fundamentam o dever indemnizar os AA civis que são o pai e o filho sobrevivos à morte negligentemente produzida pela Arguida mais o ISS, IP, por suportar os subsídios até ao trânsito da Decisão Final condenatória.” (pág. 48 do acórdão recorrido).

Não obstante a forma sucinta como a apreciação dos pressupostos contidos no citado art. 483º, do CC foi efectuada pelo acórdão recorrido, é de considerar que perante atenta a factualidade provada se verifica o preenchimento de tais pressupostos.

Com efeito, ao atropelar a peã que se encontrava a atravessar a passadeira, causando a sua morte, dúvidas não há de que a condutora praticou um facto ilícito, não havendo também dúvidas, de que tal actuação foi causal da morte da vítima e dos restantes danos reclamados pelos assistentes/demandantes.

A discordância da recorrente “EE …” centra-se, pois, na culpa (nexo de imputação do facto ao agente) da condutora, defendendo que deve ser afastada, uma vez que “o comportamento causal do acidente foi a iniciativa de travessia pela infeliz vítima, apesar de estar acesa a luz vermelha para a travessia de peões” (conclusão B), pelo que não era exigível à condutora que “previsse a persistência de tal comportamento da vítima, devendo admitir-se que um condutor médio sempre pensaria que o peão o deixasse passar pela sua frente, não insistindo no atravessamento de modo a tornar inevitável o acidente, pelo que não se poderá dizer que fosse exigível a adopção de comportamento diferente” (conclusão G).

O art. 487º, nº 2, do CC estabelece que a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso. Consagra-se, assim, o critério da culpa em abstracto, conforme à diligência de um homem normal, medianamente sagaz, prudente e cuidadoso, em face do condicionalismo próprio do caso concreto.

O critério legal de apreciação da culpa é, reafirma-se, abstracto, impondo que sejam levadas em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do acidente de viação por referência a um condutor normal. Dito de outro modo: a diligência relevante para a determinação da culpa é a de uma pessoa normal em face do circunstancialismo do caso concreto. Pelo que, no âmbito da actividade da condução automóvel, a pessoa padrão a que a lei se reporta há-de ser aquela que actua no âmbito da circulação rodoviária, seja condutor ou peão.

A culpa lato sensu abrange as vertentes do dolo e da culpa stricto sensu, traduzindo-se a primeira na intenção de realizar o comportamento ilícito que o agente do comportamento configurou, e a segunda na mera intenção de querer a causa do facto ilícito. A culpa stricto sensu ou censura ético-jurídica exprime um juízo de reprovação pessoal em relação ao agente lesante que, em face das circunstâncias especiais do caso, devia e podia agir de outro modo, ou seja, na omissão da diligência que, na espécie, lhe era exigível.

No plano da culpa stricto sensu, faz-se a distinção entre a culpa consciente, por um lado, em que o agente prevê a produção do facto ilícito, mas, por precipitação, desleixo ou incúria, acredita na sua não verificação e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar; e a culpa inconsciente, por outro, em que o agente não chega, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade da produção do evento danoso, mas podia e devia tê-lo previsto se usasse da diligência devida.

Vejamos, então, a dinâmica do atropelamento por forma a precisar se este é ou não atribuível a culpa, exclusiva ou concorrente, da condutora e da vítima.

Partindo da análise dos factos provados crê-se que não assiste razão à recorrente “EE …” na sua pretensão recursória porquanto, como se concluiu no acórdão ora recorrido, também se entende que se está perante uma situação em que tanto a condutora como a vítima desenvolveram actuações culposas causais do atropelamento.

A este respeito, referiu o acórdão recorrido:

Não obstante, os Recursos Crime e Cível por conexão, dos Assistentes cônjuge BB e filho CC sobrevivos merecem provimento parcial face aos FPV por se afigurar de Direito Penal e de Direito Civil a estes Juízes que os FPV consubstanciam caso paradigmático de concorrência ou concurso de culpa efectiva da conduta e culpa efectiva da peã.

Culpa efectiva da condutora face ao art 103-1 do Código da Estrada ante Lei 72/2013 de 3/9 conforme o qual «Ao aproximar-se de uma passagem de peões assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem» cuja aplicação in casu não se teve a quo mas se tem ad quem por inquestionável tendo presente a «dinâmica de movimentações» provada em 7 a 9 que «Nesse instante, pararam ambos porque o semáforo para peões estava ainda vermelho. A vítima começou a atravessar a estrada na passadeira, fazendo-o da direita para a esquerda em relação à faixa de rodagem por onde circulava o veículo da arguida. No momento em que a vítima estava já a terminar a travessia da passadeira foi embatida pelo veículo conduzido pela Arguida …».

Culpa efectiva da peã face ao art 101-1 do Código da Estrada ante Lei 72/2013 de 3/9 conforme o qual «Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente» cuja aplicação in casu se tem por inquestionável tendo presente a «dinâmica de movimentações» provada em 7 a 9 que «Nesse instante, pararam ambos porque o semáforo para peões estava ainda vermelho. A vítima começou a atravessar a estrada na passadeira, fazendo-o da direita para a esquerda em relação à faixa de rodagem por onde circulava o veículo da arguida. No momento em que a vítima estava já a terminar a travessia da passadeira foi embatida pelo veículo …».

Salvo o devido respeito por opinião diversa, é evidente para qualquer «homem médio» face ao circunstancialismo espacial cuja visibilidade se mostra documentado/a nos autos que o embate só se deu mercê da conjugação daquelas 2 contra-ordenações estradais causais por concorrência ou concurso de culpas efectivas de condutora e peã pois o embate letal não se teria dado se a condutora tivesse afrouxado a marcha do MB o bastante (que era muito pouco) para deixar a peã concluir a travessia tal como o embate letal não se teria dado se a peã se tivesse previamente certificado que não lograria concluir a travessia sem hipótese de ser embatida pel(a marcha d)o MB.” (págs. 35 e 36 do acórdão recorrido).

Estipula o art. 103º, nº 1, do CE que “Ao aproximar-se de uma passagem de peões assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem”.

Por seu turno, o art. 101º, nº 1 desse diploma prevê que “Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”.

Há ainda que fazer referência ao Regulamento de Sinalização do Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar 22-A/98, de 01/10, especificamente ao seu art. 74º onde se dispõe que “A sinalização luminosa destinada a regular o trânsito de peões é constituída por um sistema de duas luzes, com as cores vermelha e verde, a que corresponde o seguinte significado:

a) Luz vermelha - proibição para os peões de iniciarem o atravessamento da faixa de rodagem;

b) Luz verde - autorização para os peões passarem; quando intermitente, indica que está iminente o aparecimento da luz vermelha”.

Transpondo-se a aplicação das mencionadas normas estradais para o caso em apreço, não subsistem dúvidas de que tanto a vítima como a condutora actuaram culposamente, contribuindo para o evento danoso.

Na verdade, no confronto com os factos provados, resulta que a vítima atravessou a passadeira estando ainda o sinal luminoso ali existente vermelho para peões, pelo que, com esta conduta, violou as disposições constantes dos arts. 101º, nº 1, do CE e 74º do Regulamento de Sinalização do Trânsito (factos provados 7 e 8). Conduta essa que foi causal do atropelamento e lhe é imputável a título de culpa, pois impunha-se-lhe que respeitasse a sinalização luminosa que proibia o atravessamento da faixa de rodagem aos peões. Se não tivesse feito o atravessamento haveria evitado o atropelamento, comportamento, aliás, que se impunha a qualquer homem médio, nenhum facto constando da materialidade dada como provada que afaste tal conclusão.

Tal, contudo, não afasta a culpa da condutora no atropelamento, como pretende a recorrente. Com efeito, a recta por onde a condutora circulava tinha boa visibilidade (facto provado 3), sendo que esta passava por aquela via diversas vezes, sabendo da existência no local de duas passadeiras para travessia de peões, bem como da grande intensidade de trânsito, peões e veículos no local e que esse era um local de grande sinistralidade (factos provados 15 e 16). Mais, resultou provado que a condutora avistou a vítima, parada na berma da estrada, a uma distância de cerca de 60 metros, pelo que, também por esse facto se lhe impunha que tivesse redobrado as cautelas na condução do veículo, designadamente, porque, nos termos do citado art. 103º, do CE, ao aproximar-se de uma passagem de peões assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem.

Da factualidade provada resulta, pois, que a arguida sabia da existência da passadeira de peões, avistou a vítima a 60 metros, parada na berma, nada constando provado quanto a eventuais factores que lhe tivessem diminuído tal visibilidade – bem pelo contrário, atento o facto provado 3 - pelo que se lhe impunha que tivesse tomado as cautelas que lhe permitiriam evitar o atropelamento da vítima, ainda que esta estivesse a efectuar a travessia da faixa de rodagem de forma indevida e contrária às regras estradais.

Refira-se, ainda, que a medição da concreta velocidade a que a condutora seguia não é o factor preponderante para o caso, pois o comando constante do art. 103º, nº 1do CE – isto é, o de que ao aproximar-se de uma passagem de peões assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem – impõe-se independentemente da velocidade a que aquela circulava (superior ou não ao limite máximo de 50 km/h legalmente permitido no local – cf. facto provado 13).

De qualquer modo sempre tinha a condutora, face ao art. 24º, nº 1, do CE –   cuja expressiva epígrafe é “Princípios gerais” sobre a velocidade – e ao facto de se aproximar de um cruzamento e de uma passadeira de peões num local de grande intensidade de trânsito, de peões e de veículos, bem como de grande sinistralidade (factos provados 4, 15 e 16), de regular a velocidade por forma a fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, ou seja, por forma, a evitar o atropelamento. Ao que acresce o disposto no art. 25º, nº 1 CE onde se determina que «sem prejuízo dos limites máximos fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade: a) À aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões (…) f) Nas curvas, cruzamentos, entroncamentos, rotundas, lombas e outros locais de visibilidade reduzida (…) j) Sempre que exista grande intensidade de trânsito».

Ora, manifesto se torna que mesmo considerando uma velocidade inferior a 50 km/hora como sendo aquela a que a condutora seguia (facto provado 9) essa velocidade não era a velocidade especialmente moderada a que se refere o art. 25º pois a condutora sabia da existência da passagem para peões, do cruzamento e da intensidade de tráfego no local (factos provados  4, 5, 15 e 16) e mesmo assim não regulou a velocidade de modo a conseguir deter a marcha do veículo antes de ocorrer o embate nem há menção alguma de que tenha levado a cabo qualquer manobra de emergência.

Não colhem, assim os argumentos aduzidos pela recorrente. Com efeito, não obstante o comportamento da vítima ter contribuído (ter sido causal) para o seu próprio atropelamento, não é menos certo que, como supra exposto, o comportamento da condutora também contribuiu (foi causal) para tal evento.

Nem se diga, que não era exigível à condutora que previsse o comportamento da vítima (conclusão G das alegações de recurso), pois que tal hipótese apenas seria configurável se aquela se encontrasse já muito perto da passadeira e não pudesse parar em condições de segurança, isto é, se a vítima tivesse iniciado a travessia quando o veículo conduzido pela condutora se encontrava já muito próximo da passadeira, o que não emerge da factualidade provada, resultando, inclusive, que o embate ocorreu no momento em que a vítima estava já a terminar a travessia da passadeira (facto provado 9), o que é contrário a tal hipótese.

Do mesmo modo, do facto de a vítima ter uma taxa de álcool no sangue de 1,72g/l (facto provado 33 e conclusões H e I) nenhuma conclusão se pode retirar relativamente à dinâmica do atropelamento, pois que nenhuma factualidade se provou que relacione tal facto com a decisão da vítima de efectuar o atravessamento com o sinal vermelho, nem com qualquer outro aspecto respeitante a essa dinâmica.

Assim, e em suma, o comportamento da vítima constitui violação do disposto nos arts. 101º, nº 1, do CE e 74º do Regulamento de Sinalização de Trânsito, ao passo que o comportamento da condutora foi  violador do disposto nos arts 24º, nº 1, 25º, nº 1, als. a) f) e j) e 101º, nº 1, do CE.

Conclui-se, pois, perante o quadro factual disponível, que nem a vítima nem a condutora tomaram as cautelas que lhes eram exigíveis perante as características da via, ao contrário do que teriam feito um peão e um condutor médios, colocado na mesma situação, que deveriam ter-se certificado previamente que os seus actos de circulação na via não comprometiam, como comprometeram, a segurança do trânsito, devendo e podendo proceder, em face das circunstâncias concretas apuradas, em termos de não a comprometer.

Como se decidiu no acórdão do STJ de 03-02-2011[8], “Se ambos os intervenientes num acidente de viação violaram regras de trânsito destinadas a proteger terceiros em circunstâncias em que era exigível que tivessem agido de outra forma, evitando o resultado danoso, há concorrência de culpas”.

Impõe-se, pois, face ao quadro de facto disponível, constatar que, não merece reparo o acórdão ora recorrido, ao concluir no sentido de que o atropelamento em causa é imputável a culpa concorrente da vítima e da condutora.

Isto é, na origem (causa) do atropelamento, esteve o comportamento tanto da vítima, como da condutora, censuráveis do ponto de vista ético-jurídico, ou seja, envolvidos de culpa stricto sensu, ao contrário do que sustenta a recorrente “EE …”.

                                           *

6. - Os valores indemnizatórios fixados pelo acórdão recorrido (pág. 66 do acórdão recorrido) não foram impugnados, questionando a recorrente EE Companhia de Seguros, SA, de forma subsidiária relativamente à exclusão de culpa da arguida, a concreta repartição de culpas efectuada pelo acórdão recorrido, de 2/3 para a arguida e de 1/3 para a vítima, entendendo que a mesma deverá ser fixada na proporção de 75% para a vítima e de 25% para a arguida (conclusões D e E).

A este respeito, discorreu o acórdão recorrido da seguinte forma:

«A culpa do lesante pode concorrer com a existência simultânea de culpa do lesado, entendendo-se essa, nos termos do art. 487.°, n.° 2, como a omissão da diligência que teria levado um bom pai de família, nas circunstâncias do caso, a evitar ou reduzir os danos sofridos. Nesse caso, tendo sido demonstrada a culpa do lesante, o art. 570.°, n.º 1, estabelece que “cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”  . No caso de a culpa do lesante não ter sido provada, mas ser apenas presumida, a culpa do lesado, salvo disposição em contrário, excluirá o dever de indemnizar (art.570°, n° 2), preceito que se deve também considerar aplicável, por maioria de razão, à hipótese da responsabilidade pelo risco. No caso da responsabilidade por culpa, caberá ao tribunal apreciar se e em que medida a concorrência da culpa do lesado com a culpa do lesante deve relevar para efeitos da atribuição da indemnização.

O regime da culpa do lesado demonstra a vertente sancionatória da responsabilidade civil subjectiva, uma vez que, não sendo o juízo de censura exclusivamente estabelecido em relação à conduta do lesante, não seria justificado obrigá-lo a indemnizar todos os danos sofridos pelo lesado, havendo antes que efectuar uma ponderação de ambas as culpas e das consequências que delas resultaram, sendo em função dessa ponderação que se estabelecerá a indemnização. Para este regime se aplicar é necessário que a actuação do lesado seja subjectivamente censurável em termos de culpa, não bastando assim a mera causalidade da sua conduta em relação aos danos. Naturalmente que por esse motivo, o lesado terá que ser imputável. A actuação culposa do lesado que contribui para os danos, não corresponde, porém, a um acto ilícito, mas apenas ao desrespeito de um ónus jurídico, uma vez que não existe um dever jurídico de evitar a ocorrência de danos para si próprio.

Não parece que a existência de dolo do lesante exclua a possibilidade de ponderação da culpa do lesado, uma vez que o art. 570.° não estabelece esse requisito, ao contrário do que sucede no art. 494.°. Assim, se alguém atingir outrem com uma faca, no intuito de lhe causar danos corporais, e os danos vêm a ser consideravelmente agravados por o lesado se recusar a tratar o ferimento, a agravação dos danos sofridos deve ser-lhe imputada, e não ao lesante.

A lei estabelece ainda uma equiparação entre a culpa do lesado e a culpa dos seus auxiliares ou das pessoas de que ele se tenha utilizado (art. 571.°), evitando assim que o juízo da culpa que pode recair sobre o lesado seja prejudicado pela interposição da culpa de alguma destas entidades. Em termos de prova da culpa do lesado, a lei faz correr esse ónus da prova por conta do lesante, admitindo-se, porém, que o tribunal conheça dessa culpa ainda que não seja alegada (art. 572.°)» 

As condenações civis de EE, SA, a favor de BB e de CC - a efectuar no item DECIDINDO deste Acórdão - não podem SER coincidentes com as somas dos capitais indemnizatórios supra arbitrados com base na equidade - tendo em conta as referências doutrinais e jurisprudenciais supra citadas - por cumprir efectuar uma primeira redução de cada um dos quantum compensatórios por «concorrência de culpas efectivas» da conduta do MB por violação do art 103-1 do CE e da peã mortal por violação do art 101-1 do CE – pelo supra explanado na apreciação da responsabilidade criminal da Arguida – por se afigurar não ter cabimento in casu o critério geral PARTES IGUAIS compreensivo como princípio geral transversal às responsabilidades civis ex vi os arts 497-2-II - conforme o qual «… presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis» no caso de «Responsabilidade solidária» - 506-2 - conforme o qual «Em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores» no caso de «Colisão de veículos» - mas a (des)proporção na sensibilidade sócio-jurídica destes Juízes 2/3 para a condução do MB e 1/3 para a travessia da peã na consideração da relevância da diferença de massas - dizer da Física - do veículo automóvel versus singelo corpo da peã - factor comummente tido por relevante em Direito Civil  - contributiva para a (des)proporção das lesões / dos danos por aquele facto a final letais para DD.

Assim: dos 70 000 € pedidos pela «perda da vida», procedem 2/3 de 60 000 €, isto é, 40 000 € para BB e CC; dos 40 000 € pedidos pelo «sofrimento próprio perda de cônjuge / progenitora», procedem 2/3 de 30 000 €, ou seja, 20 000 € para BB e 20 000 € para CC; e, dos 25 000 € pedidos pelos «sofrimentos da percepção da morte», procedem 2/3 de 15 000 €, isto é, 10 000 €; perfazendo o capital global 90 000 € sem prejuízo do seguinte:[9] (págs. 64 e 65 do acórdão recorrido).

Ensina Antunes Varela[10], que como “à culpa de cada um dos condutores corresponde a culpa de cada um dos lesados, a respectiva indemnização terá de ser fixada nos termos do art. 570.º do Código Civil”.

Assim, decorre do disposto no art. 570º, nº 1, do CC que “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”

O critério utilizado no acórdão recorrido para determinar a proporção das culpas assentou na “diferença de massas - dizer da Física - do veículo automóvel versus singelo corpo da peã - factor comummente tido por relevante em Direito Civil - contributiva para a (des)proporção das lesões / dos danos por aquele facto a final letais para DD”.

Ora, do art. 570º, nº 1, do CC, resulta que o critério para proceder à repartição é o da gravidade das culpas de ambas as partes e das consequências que delas resultaram, ou seja, é o da gravidade/intensidade do concreto comportamento culposo para o evento danoso, sendo que a “diferença de massas” não surge pelo menos de forma directa como critério ponderável para a fixação de tal repartição de culpas.

Assim, e para tanto, impõe-se a apreciação da culpa e dentro do dever de diligência em que aquela assenta, a verificação da exigência do seu grau, o qual será aferido pelo do homem médio, isto é pelo do homem zeloso e cauteloso, em face das necessidades de cada caso concreto, como já afirmado.

Tidas sempre em consideração as circunstâncias do caso concreto, comprovadas nos autos, relativas à dinâmica do atropelamento, considera-se, ao contrário do acórdão recorrido, que sempre se imporia à vítima uma maior diligência na sua actuação aquando do atravessamento da via, tendo sido a sua conduta temerária e irresponsável, ao não respeitar o sinal vermelho que lhe proibia o atravessamento com esta actuação contribuindo em larga medida, para o seu atropelamento.

O comportamento da condutora a relevar prende-se com a circunstância de não ter conseguido evitar o atropelamento da vítima, o que se lhe impunha fazer, não obstante a travessia da faixa de rodagem que esta levou a cabo de forma indevida e contrária às regras estradais.

Do conjunto dessas regras a que supra se fez referência, como de muitas outras do Código da Estrada que respeitam à circulação de veículos e peões, ressalta a ideia fundamental de que não há nem para uns nem para outros um direito absoluto de prioridade e que a todos se impõem regras de prudência e de cuidados acrescidos que permitam minimizar os consabidos perigos dessa circulação. Claro que esses perigos avolumam-se quando está em causa a circulação de peões a concorrer com a de veículos precisamente porque a «diferença de massas» destes em relação àqueles os tornam potencialmente mais lesivos desde logo porque mais difíceis de manobrar.

No caso presente, estava em causa a circulação de um veículo numa via em que a velocidade máxima permitida era de 50 km/hora.

Se a condutora circulava com normal atenção ao trânsito (e nada está provado em sentido contrário) não poderia deixar de se ter apercebido da presença da vítima. E é isso mesmo que resulta do facto provado 14 quando se refere, como já mencionado, que a condutora a 60 metros avistou a vítima na berma da estrada. Então, conhecendo como conhecia as condições da via e de intensidade de tráfego no local era exigível que acautelasse a possibilidade de atravessamento da dita via por parte da vítima.

Por isso, a condutora circulava em velocidade excessiva porque estava obrigada mercê das diversas circunstâncias relevantes, a moderar especialmente essa velocidade. Moderar especialmente abaixo dos 50 km/hora que era a velocidade limite fosse qual fosse a razão para ser fixado esse limite – por ser circuito urbano ou pelas peculiares condições da via –  mas que se justificará atingir  em condições optimizadas como quando haja pouco trânsito de veículos e peões, sendo dia ou a via bem iluminada, em recta, com bom piso e tempo seco, nomeadamente.

Porém, se havia uma passagem para peões com regulação luminosa, se essa passagem estava na eminência de ser usada pela vítima e eventualmente pelo seu filho que a condutora avistou a 60 metros,  ao fazer a aproximação, e se conhecia as características da via como sendo de tráfego intenso e de elevada sinistralidade então a velocidade a que circulava não foi reduzida com a premência e intensidade exigidas. Ou dito de outra maneira não era especialmente moderada como a lei impõe.

Sem embargo de se reconhecer e salientar de novo que a vítima não tinha um direito de atravessamento tanto mais que a luz sinalização luminosa lho não permitia não há dúvida também que a lei impõe ao condutor um dever de cedência perante o peão ainda que a sinalização lhe permita avançar pois é esse o sentido do art. 103º, nº1 citado que a condutora não respeitou. E igualmente um especial dever de reduzir a velocidade perante a concreta ocorrência e concorrência de circunstâncias relevantes. Aliás, como é do senso comum, só se circular a velocidade moderada estará em condições de cumprir esse dever de ceder a passagem.

Mas, por outro lado, não pode deixar de jogar a favor da condutora com algum peso, a natural expectativa, sempre à luz da visão do homem médio, de que a vítima não fizesse o atravessamento da via quando a sinalização luminosa lho impedia ainda que se não possa falar com rigor na aplicação do princípio da confiança pois este pressupõe que quem se comporta de acordo com a norma objectiva de cuidado, pode confiar que o mesmo sucederá com os outros, salvo se tiver razões concretamente fundadas para dever pensar de outro modo. E não foi esse o exacto caso pois, como já repisado, o comportamento da condutora não esteve padronizado com a exigida norma objectiva de cuidado.

Deste modo, ponderadas ambas as condutas no contexto factual mencionado considera-se que o comportamento da vítima contribuiu numa proporção superior à da condutora para o evento danoso: a situação de perigo para a sua vida teve origem no seu comportamento apesar de ser certo que a condutora não se mostrou capaz de evitar a sua consumação como podia e devia, caso tivesse usado da prudência que era exigível, no caso, a um homem médio.

Mas foi a vítima ao não usar das cautelas necessárias no atravessamento da via, e ao adoptar, portanto, uma conduta temerária, que desencadeou o processo dinâmico do acidente e se expôs ao dano, sendo-lhe assim imputável a produção do resultado, numa proporção superior à da condutora.

Por todas estas razões entende-se, com o devido respeito, que a proporção de repartição da culpa pelo acidente é a inversa da que foi decidida pelo tribunal recorrido: 1/3 para a condutora e 2/3 para a vítima.

Como existia, à data do acidente, seguro válido e eficaz, cabe à recorrente “EE …” satisfazer a respectiva indemnização, na exacta medida daquela proporcionalidade da culpa da condutora do veículo seguro.

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7. - Em conclusão, e recompondo os montantes indemnizatórios fixados pelo acórdão recorrido, de acordo com a nova repartição de culpas fixada, a demandada/recorrente “EE, SA” ficará condenada a pagar aos demandantes BB e CC a quantia de 20.000,00€ compensatória do dano não patrimonial «perda da vida da vítima» (1/3 do montante fixado de 60.000,00€), mais a quantia de 5.000,00€ compensatória do dano não patrimonial da vítima «sofrimento da percepção da iminência do embate até à morte» (1/3 do montante fixado de 15.000,00€), mais a quantia de 10.000,00€ a BB compensatória do dano não patrimonial «sofrimento próprio da perda de cônjuge» (1/3 do montante fixado de 30.000,00€), mais a quantia de 10.000,00€ a CC compensatória do dano não patrimonial «sofrimento próprio da perda da progenitora» (1/3 do montante fixado de 30.000,00€), deduzido do valor global que “EE, SA”, pagar ao Autor Civil ISS,IP, em execução da condenação constante supra em I, ponto 2).

Aos referidos valores acrescerão juros à taxa legal desde a data da notificação do pedido de indemnização civil para contestar, uma vez que, a sentença de 1ª instância e o acórdão recorrido não actualizaram a indemnização, pelo que, a condenação em juros de mora não se mostra atentatória do AUJ 4/2002, de 2002.05.09, publicado no DR 146 SÉRIE I-A, de 2002.06.27.

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8. – Em face do exposto decide-se:

A) Rejeitar os recursos subordinados interpostos pelos demandantes BB e CC.

B) Conceder parcial provimento ao recurso da demandada “EE, SA” e, nessa medida, condená-la a pagar:

- aos demandantes BB e CC a quantia de € 20.000,00 compensatória do dano não patrimonial «perda da vida da vítima»;

- aos demandantes BB e CC a quantia de € 5.000,00 compensatória do dano não patrimonial da vítima «sofrimento da percepção da iminência do embate até à morte»;

- ao demandante BB a quantia de € 10.000,00 compensatória do dano não patrimonial «sofrimento próprio da perda de cônjuge»;

- ao demandante CC a quantia de € 10.000,00 compensatória do dano não patrimonial «sofrimento próprio da perda da progenitora».

Sendo estes valores com dedução do valor global que a demandada “EE …” está condenada a pagar ao demandante ISS, IP.

C) Condenar a demandada a pagar juros à taxa legal de 4% desde a data da notificação para contestar os pedidos cíveis até integral pagamento com dedução do valor que a dita demandada pagar a esse título ao demandante ISS, IP.

D) Condenar os demandantes e a demandada nas custas cíveis na proporção do decaimento.

E) Condenar ainda cada um dos demandantes na importância de 3 UC nos termos do art. 420º, nº 3.

Feito e revisto pelo 1º signatário.

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[1] Omitem-se os que respeitam aos danos pois os montantes indemnizatórios não são questionados.
[2] O valor a pagar ao ISS, IP corresponde à condenação referida supra de 14.206,86€.
[3] Cfr Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar et all., 2ª ed. pag. 1273.
[4] Cfr Acórdão STJ de 2015.04.09, proc 353/13.0PAPNI.L1.D1.
 É quase inabarcável a jurisprudência neste sentido. Cfr entre muitos outros, por mais recentes  os seguintes acórdãos: de 2016.03.02, proc 81/12. 4GCBNV.L1.S1; de 2016.03.17, proc 77/14.1P6PRT.S1; de 2016.03.31, proc 221/14.9JAFAR.E1.S1; de 2016.04.13, proc 958/11.4PAMTJ.L1.S1 todos sumariados em http://www.stj.pt/index.php/jurisprudencia-42213/sumarios. Ou ainda os acórdãos de 13.11.2014, proc.  249/11.0PECBR.C1.S1, de 07.05-2014, proc. 250/12.7JABRG.G1.S1; de 18.06.2014, Proc.  659/06.5GACSC.L1.S1; de 02.10.2014, proc.  87/12.3SGLSB.L1.S1, estes disponíveis na versão integral em www.dgsi.pt.

[5] Ac. do STJ de 2-10-2014 (Proc. n.º 87/12.3SGLSB.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt.
[6] Em sede de apreciação da matéria crime poderia eventualmente colocar-se a questão da existência de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º, nº 2, al. a)), uma vez que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto não alterou a matéria de facto dada como provada e não provada fixada pela 1.ª instância, sendo que esta última deu como não provados todos os factos respeitantes ao elemento subjectivo do crime de homicídio por negligência do art. 137º, nº 1 CP, pelo que a matéria de facto dada como provada não seria susceptível de sustentar uma condenação pela prática de tal crime. Tal questão encontra-se, contudo, prejudicada pela ocorrência do trânsito em julgado no que diz respeito à matéria crime.
[7] A versão do CE aplicável ao caso concreto, atenta a data dos factos em causa (2008.06.24) é a que foi dada pelo DL 44/2005, de 23-02.
[8] Proc 605/05.3TDVVD.G1.S1 disponível em www.dgsi.pt
[9] A estes montantes o acórdão recorrido subtrai, ainda, o montante indemnizatório em que a recorrente EE foi condenada relativa ao pedido deduzido pelo peticionado pelo ISS, IP, a título de reembolso pelo pagamento do subsídio de morte e pensões de sobrevivência, matéria que não foi contestada em sede de recurso.
[10] “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 8.ª Ed., pág. 695