INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAL TRIBUTÁRIO
TRIBUNAL COMUM
EXECUÇÃO FISCAL
ADJUDICAÇÃO
BEM IMÓVEL
FALTA DE ENTREGA
FUNÇÃO JURISDICIONAL
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
DUPLA CONFORME
Sumário


I - Em regra, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares (art.º 370º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil).
II - Essa regra de irrecorribilidade é, contudo, excepcionada se invocada alguma das situações elencadas no artigo 629º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, entre as quais figura, na alínea a), a violação das regras de competência absoluta.
III - Nesses casos, não constitui também obstáculo à admissibilidade da revista a coincidência decisória entre a 1ª instância e a Relação (dupla conforme).
IV – É ao órgão de execução fiscal (repartição de finanças) que cabe proceder à entrega de imóvel adjudicado em venda executiva e, no caso de resistência à entrega, cabe-lhe ainda diligenciar no sentido de viabilizar essa entrega, com eventual requisição da força pública (art.ºs 828º e 861º do Cód. Proc. Civil e 2º, alínea e), do CPPT).
V – A decisão a proferir sobre a reacção jurídica por parte do detentor/retentor do imóvel caberá ao tribunal tributário, por se tratar de um acto jurisdicional (art.ºs 151°, n.º 1, do CPPT e 49°, n.º 1, alínea d), do ETAF).
VI - O tribunal judicial não substitui o órgão da administração tributária a quem cabe realizar a entrega, nem o tribunal tributário na resolução dos óbices colocados à entrega no processo de execução fiscal.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I AA e BB intentaram procedimento cautelar comum contra CC, DD e EE, alegando, em síntese, que:

Em 28/11/2007, no âmbito do processo de execução fiscal com o n°… em que são executados os requeridos EE e DD, a correr termos na repartição de finanças de Amarante, adquiriram o imóvel sito em …, Amarante, inscrito na matriz urbana sob o art.º 5….

Pagaram logo o preço (€ 60.000,00) e os respectivos encargos fiscais, tendo-lhes sido entregue o auto de adjudicação com o qual efectuaram a inscrição da aquisição do imóvel no registo predial, no dia 03/12/2007.

Sucede que os ali executados intentaram uma acção de anulação da venda, a qual suspendeu a entrega da casa em questão aos requerentes por parte do serviço de finanças.

Este processo de anulação da venda, que correu termos no TAF de Penafiel com o n° 79/08.7BEPNF, terminou em 2013, depois de ter percorrido todas as instâncias, tendo chegado a haver recursos, sem êxito, dos executados fiscais e ora requeridos para o Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal Constitucional.

Quando foram notificados da decisão do Tribunal Constitucional, em 3/04/2013, pensaram os requerentes que, estando esgotadas todas as instâncias recursórias, iriam finalmente ter a posse da casa, pois que, após aguardarem o respectivo trânsito, em 15/07/2013 enviaram um requerimento ao serviço de Finanças de Amarante a pedir, finalmente, a entrega do imóvel, o que ainda não ocorreu.

Recentemente foram citados da providência cautelar instaurada pelo aqui requerido CC que invoca ter um direito de crédito sobre os Requeridos DD e EE, o qual lhe confere um direito de retenção sobre o imóvel licitado, direito esse que diz reconhecido por acção judicial, direito de retenção veementemente contestado pelos aqui Requerentes, até porque nunca teve a posse do referido imóvel, nem lhe deve ser reconhecido qualquer direito real de retenção.

Aliás, face a essa providência, passou o presente procedimento, que somente iria ser requerido contra os Requeridos DD e EE, por mera cautela processual, a sê-lo igualmente contra o referido CC, ainda que os Requerentes não lhe reconheçam qualquer direito sobre o imóvel por si comprado.

De facto, quem reside no imóvel, quando vêm a Portugal (dado serem emigrantes em …) são os aqui Requeridos DD e EE, ninguém habitando o mesmo no restante período do ano, sendo que, ainda recentemente, quando o serviço de Finanças de Amarante notificou os executados fiscais para entregar as chaves da casa, quem assinou os avisos de recepção foi a executada DD.

Os Requerentes nada têm a ver com o alegado crédito do Requerido CC sobre os Requeridos DD e EE, sendo que esse alegado direito de retenção não produz qualquer efeito sobre o imóvel, devendo o alegado credor, aqui Requerido CC, reclamar créditos na execução fiscal, o que já deveria ter feito, dado ter confessado ter conhecimento da mesma ainda antes da venda.

Com tais fundamentos, consideram que inexiste qualquer motivo impeditivo do imóvel lhes ser entregue de imediato e há periculum in mora, já que a não entrega imediata aos requerentes causar-lhes-á um prejuízo sério, quer a nível pessoal quer patrimonial, terminando por pedir que seja ordenada a entrega imediata da casa comprada pelos requerentes no processo de execução fiscal, com recurso às Forças de Segurança, por se antever que a entrega não será pacífica, fixando-se ainda a indemnização diária de €500,00 pelo atraso na entrega.

Os requeridos arguiram a excepção de incompetência do Tribunal Judicial, em razão da matéria, pois que, pretendendo os requerentes que lhes seja entregue o prédio urbano, que dizem ter adquirido em 28.11.2007 numa venda executiva fiscal (processo n.° …) promovida pelo Serviço de Finanças de Amarante, caberá ao Tribunal Tributário de Penafiel conhecer desse pedido e dos demais conexos.

A invocada excepção não procedeu, tendo a 1ª instância judicial aceitado a competência para o impetrado procedimento cautelar.

Inconformados com essa decisão, apelaram os requeridos, sem êxito, tendo o Tribunal da Relação do Porto confirmado o decidido na 1ª instância, e, persistindo inconformados, interpuseram recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões:

I – No âmbito dos autos de execução fiscal que correu termos no Serviço de Finanças de Amarante, foi adjudicado aos recorridos o prédio que era propriedade dos recorrentes.

II – No seguimento dessa adjudicação, foi requerida a entrega do prédio identificado, através de providência cautelar de 19 de Dezembro de 2013, que correu termos no âmbito de Tribunal Judicial de Amarante.

III – Esse Tribunal proferiu decisão interlocutória, julgando a excepção invocada pelos requeridos, decidindo que era materialmente competente para apreciar a questão.

IV – No mesmo sentido segue a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, que veio confirmar a decisão de primeira instância.

V – Ocorrendo a “dupla conforme” das decisões proferidas fica, em regra, vedado o recurso de revista, salvo se for demonstrado, com êxito, concorrer alguma das três excepções ou pressupostos acolhidos pelas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 672.º do Código de Processo Civil.

VI – In casu, sempre será admissível o recurso de revista, uma vez que o objecto do recurso se fundamenta na violação das regras de competência em razão da matéria [al. a) do n.º 2 do art. 671.º, ex vi al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC].

VII – De todo o modo, e caso assim se não entenda, e porque o Acórdão recorrido está em frontal contradição com o douto Acórdão da 6.ª Secção do STJ de 24/02/2015, proferido no âmbito do processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, invoca-se subsidiariamente a oposição de julgados.

VIII – As providências cautelares para obter a entrega de bens adquiridos em venda executiva no âmbito de processos de execução fiscal devem ser apresentadas no tribunal administrativo territorialmente competente.

IX – Os Tribunais Administrativos e Fiscais são os únicos materialmente competentes para todos os actos relacionados com as execuções fiscais (artigo 212.º, n.º 3, da CRP).

X – De acordo com o artigo 4.º, n.º 1, alíneas a) e n) da Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, (ETAF), "compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal.

XI – Acresce que o processo judicial tributário compreende ainda "as providências cautelares de natureza judicial" – cfr. art. 97.º, n.º 1, al. i), do CPPT.

XII – Em face da legislação processual vigente os tribunais fiscais são os únicos materialmente competentes para todos os actos relacionados com as execuções fiscais – designadamente para a entrega de bens adjudicados em venda judicial ao respectivo adquirente.

XIII – É neste sentido a melhor jurisprudência – Ac. STJ de 24/02/2015, proferido no âmbito do processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1 e Acórdãos do Tribunal dos Conflitos, processo n.º 03/04 de 12.10.2004 e Processo n.º 043/13, de 16.01.2014, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

XIV – Acresce ainda que, nos termos do art. 49.º, n.º 1, al. v) do ETAF atribui-se competência aos Tribunais Tributários de 1.ª instância, além de outras, para a “execução das suas decisões”.

XV – Portanto, o regime jurídico exposto, determina sem qualquer ambiguidade que é competente para executar a decisão de entrega, e por maioria de razão para acautelar esse direito, o tribunal administrativo e fiscal territorialmente competente.

XVI – Só não seria assim se existisse uma norma legal que afastasse a aplicação da regra geral consagrada no art. 49.º, n.º 1, v) do ETAF, e atribuísse a competência para a execução das decisões dos tribunais administrativos aos tribunais judiciais.

XVII – Assim sendo, tendo o pedido de entrega imediata sido formulado contra os requeridos, executados na mencionada acção executiva fiscal, como efectivamente foi, o tribunal de Penafiel é absolutamente incompetente, em razão da matéria, para este procedimento cautelar.

XVIII – Por outro lado, a ausência do "ius imperium" na relação a dirimir entre as partes não determina, tout court, a incompetência dos tribunais administrativos, ao contrário do que defende o douto Acórdão recorrido.

XIX – Determinante, para aferir da competência do tribunal administrativo ou comum são as normas que regem esta disciplina, mormente o n.º 3, art.º 212.º da CRP, e art. 49.º, n.º 1, v) do ETAF.

XX – O Acórdão recorrido faz uma incorrecta escolha da legislação aplicável (art. 1311.º, n.º 1, CCivil), violando, entre outras, as disposições do art. 4.º, n.º 1, alíneas a) e n) do ETAF, arts. 49.º, n.º 1, al. v) e 97.º, n.º 1, al. i), do CPPT, e art. 212.º n.º 3, da CRP.

Não foi oferecida contra-alegação e, colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, tendo em consideração, em sede factual, o que consta deste relatório.

II – Fundamentação

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes (art.ºs 635º, n.º 4 , e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[1]), resumem-se à análise e dilucidação da única questão jurídica por eles colocada a este tribunal e que consiste em determinar se o tribunal judicial é competente, em razão da matéria, para apreciar do pedido de entrega de imóvel formulado em procedimento cautelar, quando a aquisição do mesmo ocorreu em execução fiscal e, no âmbito desta, a respectiva entrega ainda não se concretizou.

Antes de entrar na abordagem dessa questão, importa esclarecer que, em regra, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares (art.º 370º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil). Essa regra de irrecorribilidade é, contudo, excepcionada se invocada alguma das situações elencadas no artigo 629º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados.

Não se verificando qualquer uma destas situações excepcionais permissivas da revista «atípica», não será de admitir recurso para o Supremo Tribunal tendo por objecto o acórdão da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares.

Neste caso, ainda que se trate de procedimento cautelar e exista dupla conforme (decisões e fundamentação inteiramente coincidentes das instâncias, sem voto de vencido), versando o recurso precisamente sobre a fixação da competência material do tribunal, é óbvia a admissibilidade da revista - art.ºs 629º, n.º 2, alínea a), 671º, n.º 2, alínea a), e n.º 3 (parte inicial) do Cód. Proc. Civil.  

Definida a recorribilidade do acórdão impugnado e avançando para a questão fulcral do recurso - fixação do tribunal competente, em razão da matéria, para proceder à entrega do imóvel arrematado, no âmbito de execução fiscal, e apreciar dos óbices suscitados pelos interessados a que a mesma se concretize - interessa sublinhar que, como é doutrina e jurisprudência pacíficas, a competência em razão da matéria (ou jurisdição) afere-se em função da relação material controvertida configurada pelo autor[2]. É, portanto, a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado no requerimento inicial do impetrado procedimento cautelar que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é o tribunal (ou a jurisdição) competente para a apreciação do mesmo, tendo presente que o sistema judicial não é unitário, mas constituído por várias categorias de tribunais, separados entre si, com estrutura e regime próprios.

A tal propósito, dispõe o art.º 211°, n.° 1, da CRP que "os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais", estatuindo, por seu turno, o seu art.º 212°, n° 3, que "compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais".

Decorre dos citados preceitos constitucionais e do art.º 4º do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, em vigor desde 1 de Janeiro de 2004 (cfr. art.º 9.° da Lei n04-A/2003, de 19 de Fevereiro ) que os tribunais administrativos e fiscais são hoje os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, isto é, apresentam-se com uma área própria, uma reserva de jurisdição, que espelha o seu núcleo essencial, ainda que algumas matérias possam ser pontualmente atribuídas, por lei especial, a outra jurisdição. Tal doutrina está, aliás, plasmada em dezenas de acórdãos quer do Supremo Tribunal Administrativo, quer do Tribunal Constitucional ­ - cfr. acórdãos do STA de 03.10.96 (Pleno), rec. 41.403, de 26.02.97 (Pleno), rec. 41 487, de 2.02.98 (Pleno), rec. 40247, e de 27.02.2003, rec. 285/03, e acórdãos do TC, proc. 372/94, DR 07.09.94, proc. 347/97, DR 25.07.97, e proc. 508/94, DR 13.12.94.

Acrescenta também o art.º 49º, n.º 1, alínea d), do ETAF que «compete aos tribunais tributários conhecer dos incidentes, embargos de terceiro, reclamação da verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de atos lesivos, bem como de todas as questões levantadas nos processos de execução fiscal» que, de acordo com o disposto no art.º 10°, nº 1, f), do CPPT, e 6º, n.ºs 2 e 3, do DL 433/99, de 26 de Outubro, correm perante a repartição de finanças a quem cabe realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n.º 1 do art.º 151º do CPPT, que estão atribuídos ao tribunal tributário de 1ª instância, entre estes figurando a decisão dos aludidos incidentes suscitados na execução fiscal, bem como das reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos da execução fiscal[3].

Feito este excurso normativo, convém relembrar que a relação controvertida trazida pelos requerentes do procedimento cautelar assenta na compra do imóvel realizada no âmbito de execução fiscal, cuja entrega ainda não se concretizou devido a vicissitudes várias suscitadas pelos requeridos (primeiro anulação da venda e, por fim, direito de retenção), sendo certo que, nestas situações, como insistentemente tem decidido o STA e o Tribunal de Conflitos,  «é ao órgão de execução fiscal que cabe proceder à entrega do bem adjudicado em venda executiva» e, no caso de «reacção jurídica por parte do detentor do bem a decisão a proferir caberá ao tribunal tributário, por se tratar de um acto jurisdicional, enquanto que nos casos em que a resistência à entrega é meramente física, cabe à Administração Tributária diligenciar no sentido de viabilizar essa entrega, com eventual requisição da força pública»[4].

Não cabe, pois, ao tribunal judicial, que tem competência residual (art.ºs 64º do Cód. Proc. Civil e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08), conhecer do pedido de entrega formulado, por existir norma atributiva dessa competência a outra entidade, cuja actividade é jurisdicionalmente sindicada pelo Tribunal Tributário[5], no qual radica, nos termos dos art.ºs 151°, n.º 1, do CPPT e 49°, n.º 1, alínea d), do ETAF, a competência para conhecer de qualquer incidente de natureza jurisdicional, suscitado em execução fiscal.

Os tribunais judiciais não se substituem aos tributários, nem aos órgãos da administração tributária para ordenar a entrega de bens adquiridos em execução fiscal e cuja entrega não se concretizou devido a incidentes vários ali suscitados pelos interessados. A entrega deve ser requerida à repartição de finanças em que o imóvel se situa que providenciará pela concretização dessa entrega, se necessário for com recurso à força pública (art.ºs 828º e 861º do Cód. Proc. Civil e 2º, alínea e), do CPPT).

Da eventual recusa da repartição de finanças em proceder à entrega cabe reclamação para o tribunal tributário, nos termos do art.º 276 do CPPT, a quem igualmente cabe conhecer dos eventuais óbices incidentais suscitados[6], na medida em que tal órgão jurisdicional se apresenta actualmente como tribunal comum em matéria fiscal e está dotado dos meios processuais adequados para dar satisfação às pretensões formuladas pelos administrados em processos da sua competência.

É absolutamente irrelevante, para este efeito, que a questão concreta agora colocada como entrave à entrega do imóvel (invocação de direito de retenção) não seja materialmente uma questão fiscal, pois a competência do tribunal tributário, em sede de execução fiscal, decorre desse processo ter por objectivo primacial a cobrança coerciva de créditos tributários[7], envolvendo ainda, nesta perspectiva, uma relação jurídica de natureza fiscal ou administrativa[8].

A solução seria diferente se acaso o processo desencadeado pelos requerentes constituísse uma acção de reivindicação (art.º 1311º do Cód. Civil), cuja competência cai, como é unanimemente aceite, na esfera dos Tribunais Judiciais[9]. Só que os requerentes não enveredaram por esse caminho, não estruturando a lide com base na afirmação e reconhecimento do seu direito de propriedade e restituição do imóvel objecto desse direito.

Pelo contrário, narrando as várias peripécias da via crucis em que se viram enredados na execução fiscal e perante o arrastamento desse processo, com a inerente frustração na entrega do imóvel que ali arremataram, optaram por avançar para o tribunal judicial, em ordem a obter a entrega do mesmo. No fundo, pretendem que o tribunal judicial se substitua a quem cabe realizar a entrega e solucione os óbices que enfrentam no processo de execução fiscal, o que não pode ser alcançado pela via cautelar desencadeada que não é meio próprio para tal fim.

Nesta conformidade, procedem as conclusões dos recorrentes, a quem assiste razão em insurgir-se contra o decidido pelas instâncias que, sem quebra do devido respeito, não equacionaram devidamente a situação em apreço e não fizeram correcta leitura, interpretação e aplicação das citadas disposições legais, não podendo, por isso, subsistir.


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2 - Pode, assim, concluir-se, em síntese, que:

1 - Em regra, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares (art.º 370º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil).

2 - Essa regra de irrecorribilidade é, contudo, excepcionada se invocada alguma das situações elencadas no artigo 629º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, entre as quais figura, na alínea a), a violação das regras de competência absoluta.

3 - Nesses casos, não constitui também obstáculo à admissibilidade da revista a coincidência decisória entre a 1ª instância e a Relação (dupla conforme).

4 – É ao órgão de execução fiscal (repartição de finanças) que cabe proceder à entrega de imóvel adjudicado em venda executiva e, no caso de resistência à entrega, cabe-lhe ainda diligenciar no sentido de viabilizar essa entrega, com eventual requisição da força pública (art.ºs 828º e 861º do Cód. Proc. Civil e 2º, alínea e), do CPPT).

5 – A decisão a proferir sobre a reacção jurídica por parte do detentor/retentor do imóvel caberá ao tribunal tributário, por se tratar de um acto jurisdicional (art.ºs 151°, n.º 1, do CPPT e 49°, n.º 1, alínea d), do ETAF).

6 - O tribunal judicial não substitui o órgão da administração tributária a quem cabe realizar a entrega, nem o tribunal tributário na resolução dos óbices colocados à entrega no processo de execução fiscal.


III – Decisão

Nos termos expostos, decide-se conceder a revista e revogar o acórdão da Relação bem como a decisão da 1ª instância, declarando-se a incompetência material do tribunal judicial para ordenar a entrega do imóvel adquirido em execução fiscal.

Custas, em todas as instâncias, pelos requerentes da providência cautelar.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

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Lisboa, 02 de Março de 2017


António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º).
[2] Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 90 e 91, Miguel Teixeira de Sousa, in “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, Edições Lex, 1999, págs. 30 a 32, Mariana França Monteiro, in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa”, págs., 507 e 508, e, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12/01/2010 (proc. 1337/07.3TBABT.E1.S1), de 10/12/2015 (proc. 83/14.6TVLSB.L1.S1), de 13/10/2016 (proc. 30249/14.2YIPRT.G1.S1) de 29/11/2016 (proc. n.º 135/14.2T8MDL.G1.S1), e de 06/12/2016 (proc. 886/15.4T8SXL.L1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[3] Cfr, a este propósito, Domingos Pereira de Sousa, in Direito Fiscal e Processo Tributário, 1ª edição, 2013, Coimbra Editora, págs. 379 e 381, e João António Valente Torrão, in CPPT, anotado e comentado, 2005, Almedina, págs. 648 e 649.
[4] Cfr., neste sentido, os acórdãos do STA, de 02/05/2012 (recurso n.º 01115/11), de 09/04/2014 (recurso 869/13) e de 18/06/2014, (recurso 566/14), e do Tribunal de Conflitos de 12/10/2004 (recurso n.º  03/04), de 27/11/2008, (recurso   nº 18/08, e de 07/07/2009 (recurso n.º 10/09), todos disponíveis em www.dgsi,pt.
[5] Cfr., neste sentido, Serena Cabrita Neto, in Introdução ao Processo Tributário, 1ª edição, ISG, 2004, págs. 107, 132 a 134, e Domingos Pereira de Sousa, in Direito Fiscal e Processo Tributário, 1ª edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 379.
[6] Cfr., a este propósito, Serena Cabrita Neto, in Introdução ao Processo Tributário, 1ª edição, ISG, 2004, págs. 107, 133 e 134, e Domingos Pereira de Sousa, in Direito Fiscal e Processo Tributário, 1ª edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 379.
[7] Cfr., a este propósito, José Casalta Nabais, in Direito Fiscal, 2015,8ª edição, Almedina, pág. 309, Serena Cabrita Neto, in Introdução ao Processo Tributário, 1ª edição, ISG, 2004, pág. 105, e Jónatas Machado/Paulo Nogueira da Costa, in Curso de Direito Tributário, 2ª edição, Coimbra Editora, págs. 508 e 509.
[8] Cfr., neste sentido, Domingos Pereira de Sousa, in Direito Fiscal e Processo Tributário, 1ª edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 379.
[9] Cfr., neste sentido, entre outros, os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 07/07/2009 (recurso 011/09), de 27/11/2013 (recurso 035/13), de 15/05/2013 (recurso 024/13), de 18/12/2013 (recurso 018/13), de 05/06/2014 (recurso 04/14), de 06/02/2014 (recurso 047/13), de 10/09/2014 (recurso 016/14), de 25/09/2014 (recurso 027/14), de 30/10/2014 (recurso 015/14), de 20/11/2014 (recurso 046/14), de 03/06/2015 (recurso 012/15), de 10/03/2016 (recurso 050/15), de 07/06/2016 (recurso 033/15), de 07/07/2016 (recurso 048/15) e 26/01/2017 (recurso 052/14), todos disponíveis in www.dgsi.pt.