ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO
Sumário


1 - A descaracterização do acidente de trabalho com fundamento na 2ª parte da alínea a), do nº 1, do art. 12º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro - violação das condições de segurança previstas na lei - exige que o trabalhador atue com culpa grave, que tenha consciência da violação, não relevando os casos de culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração ou ao esquecimento.
2 – Tendo-se provado apenas que o sinistrado entrou na máquina paletizadora para prosseguir na reparação que já vinha fazendo desde há três semanas, sem se certificar que a mesma estava desligada da corrente elétrica e que tinha todos os mecanismos de acionamento automático desligados e que por o A. estar no interior da máquina, foi acionado o seu funcionamento, iniciando a mesma o ciclo de operação para o qual estava programada, provocando o entalamento do A. entre o carris e o prato elevatório, tal não basta para conduzir à descaracterização do acidente com base na violação das condições de segurança previstas na lei.

Texto Integral


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça ([1]) ([2])

1 - RELATÓRIO

AA intentou ação emergente de acidente de trabalho contra a BB, S.A., pedindo a condenação desta a reconhecer o acidente dos autos como acidente de trabalho e, em consequência:

- A pagar-lhe a quantia de € 6.114,90 (seis mil cento e catorze euros e noventa cêntimos), a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta sofrida desde a data do acidente de trabalho (4.02.2015) até à data da alta hospitalar e consequente consolidação do seu estado clínico ocorrido em 10.09.2015;

- A pagar-lhe a quantia de € 11.700,19 (onze mil e setecentos euros e dezanove cêntimos), a título de pensão anual e vitalícia, após o dia da alta, ou seja, a partir de 11.09.2015;

- A pagar-lhe a quantia de € 5.533,70 (cinco mil quinhentos e trinta e três euros e setenta cêntimos), a título de subsídio por situações de elevada incapacidade;

- A pagar-lhe quantia até ao limite máximo de € 5.533,70 (cinco mil quinhentos e trinta e três euros e setenta cêntimos), a título de subsídio de obras de readaptação;

- A pagar-lhe € 461,14 (quatrocentos e sessenta e um euros e catorze cêntimos), a título de prestação suplementar mensal;

- A designar-lhe médico assistente;

- A reembolsá-lo das seguintes quantias:

- € 19,74 (dezanove euros e setenta e quatro cêntimos), referentes à compra da tábua de transferência;

- € 114,50 (cento e catorze euros e cinquenta cêntimos), pelas despesas com consultas médicas;

- € 833,03 (oitocentos e trinta e três euros e três cêntimos), referentes a despesas em fisioterapia;

- € 930,64 (novecentos e trinta euros e sessenta e quatro cêntimos), a título de despesas medicamentosas despendidas desde a data do acidente;

- € 139,12 (cento e trinta e nove euros e doze cêntimos), referente à compra de fraldas, cuecas de incontinência e resguardos de cama que gastou desde a data da alta hospitalar;

- € 125,24, a título de despesas com o transporte de ambulância e serviços dos bombeiros;

- € 53,15, da compra de material para a casa de banho, adaptado à sua condição física;

- A pagar-lhe a quantia de € 1.105,20, referente a deslocações, em automóvel da família nas suas deslocações para as sessões de fisioterapia, consultas médicas e deslocações ao Tribunal;

- A disponibilizar-lhe as mais avançadas ajudas e dispositivos técnicos por forma a proporcionar-lhe as melhores condições, mormente uma cadeira de rodas automática, almofada e colchão anti-escara, cama articulável entre outras que se mostrarem necessárias;

- A providenciar-lhe assistência médica e cirúrgica e bem assim serviços de reabilitação médica ou funcional para a vida ativa;

- A prestar-lhe assistência medicamentosa e farmacêutica e cuidados de enfermagem;

- A disponibilizar-lhe, quando necessário, transportes para observação, tratamento, comparência a atos judiciais, bem como hospedagem;

- A disponibilizar-lhe apoio psicoterapêutico, sempre que necessário;

- A disponibilizar-lhe assistência psicológica;

- A pagar as despesas hospitalares com o tratamento desde a data do acidente, designadamente, ao CHC, aos Hospitais de ..., ..., de ..., ao Centro de Cuidados Continuados de Caneças e ao Centro de Reabilitação ...;

- A reembolsar à Segurança Social todos os custos quer com os cuidados médicos, fisiátricos e medicamentosos prestados após a data do acidente, quer os subsídios de doença (baixa) que lhe têm sido prestados;

- Condenar a Ré nas prestações em espécie previstas nos artigos 25º e ss., que se mostrem estritamente necessárias.

Como fundamento alegou que, no dia 4.2.2015, estava a trabalhar em ..., por ordem da sua empregadora, nas instalações da BB, S.A., e que entrou e saiu da máquina paletizadora a cuja manutenção vinha procedendo desde Janeiro de 2015, sem que os alarmes disparassem ou acendesse qualquer sinal luminoso, o que confirmava que a energia que alimentava a dita máquina estava desligada.

Sucede que, pouco depois das 15 horas, para proceder ao aperto de componentes da tubagem de ar comprimido, muniu-se de chave de “bocas” apropriada e colocou-se sentado na esteira de transporte da referida linha de produção, erguendo os braços, posição essa em que se manteve durante algum período de tempo, sendo que enquanto executava esta tarefa foi entalado contra a esteira de transporte, pela mesa paletizadora, esmagando-o contra aquela.

Para proceder à reparação em causa, tinha de aceder pelo interior da máquina, porquanto aquele ponto não é acessível do exterior, razão pela qual a dita reparação só pode ser efetuada sem que o circuito elétrico da máquina se encontre ligado.

Quando em Janeiro de 2015 se apresentou para iniciar a reparação do referido paletizador este estava desligado, o que terá resultado de ato do responsável técnico pela área da eletricidade, da BB S.A., sendo que nas duas ou três semanas que antecederam o acidente, tinha, além do mais, desmontado, verificado, substituído componentes e lubrificado o paletizador, que sempre se mantivera com a fonte de energia elétrica desligada, sendo certo que, só pontualmente, a energia foi ligada, na presença e sob a ordem de técnico da proprietária da máquina.

Em momento algum lhe foi transmitido que a corrente elétrica tinha deixado de estar desligada do paletizador, tendo procedido à reparação nos mesmos moldes em que o havia feito dezenas de vezes ao longo da sua atividade profissional.

Conclui no sentido de que, em consequência do acidente, que caracteriza como sendo de trabalho, sofreu as lesões e os danos que descreve e dos quais deve ser reparado.

Pediu a fixação de pensão provisória.

Citada, a Ré contestou invocando que o acidente de trabalho deverá ser descaracterizado, dado que o mesmo só ocorreu por facto imputável ao Autor decorrente de violação das regras de segurança, posto que este quando entrou no interior da máquina não acionou a paragem de segurança do equipamento e, voluntariamente, decidiu entrar para o interior da máquina sem se certificar que esta tinha todos os mecanismos de acionamento automático desligados. Por isso, quando estava no interior da máquina o Autor acionou com o seu movimento a fotocélula do prato elevatório, tendo este descido à posição mais baixa e iniciado o ciclo de operação, pelo que afastada está a obrigação de reparação dos danos resultantes do acidente.

Concluiu pedindo que a ação seja julgada improcedente e a sua absolvição do pedido.

Requereu, ainda, a realização de exame por junta médica para determinação da necessidade de ajuda de terceira pessoa e respetivo período.

O Instituto de Segurança Social, I.P. deduziu pedido de reembolso contra a Ré pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 6.133,75, correspondente ao valor pago ao Autor a título de subsídio por doença, no período de 27 de Abril de 2015 a 7 de Fevereiro de 2016.

A Ré respondeu ao pedido de reembolso efetuado pelo ISS, I.P. pugnando pela sua absolvição uma vez que não aceita assumir a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do acidente e que, caso assim não se entenda, então, deve ser condenada com a possibilidade de deduzir essa quantia nas prestações/pensões em que possa vir a ser condenada a pagar ao Autor.

Foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes e organizada a base instrutória e ordenou-se a realização de junta médica para determinar a necessidade do Autor da ajuda de terceira pessoa, bem como o âmbito dessa ajuda, tendo-se ordenado a organização do respetivo apenso no qual foi proferida decisão consignando as necessidades de locomoção, repouso e assistência por terceira pessoa decorrentes das sequelas do acidente.

Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida a sentença que finalizou com o seguinte dispositivo:

“Face a todo o exposto, julgo a presente acção improcedente e, em consequência:

a) absolvo a R. dos pedidos contra ela formulados;

b) declaro cessada a obrigação da R. de proceder ao pagamento ao A. a pensão provisória fixada.

Custas a cargo do A.

Registe e notifique.”

Inconformado, o sinistrado apelou requerendo a alteração da decisão sobre a matéria de facto com a consequente condenação da Ré.

A Relação alterou parcialmente a decisão sobre a matéria de facto e proferiu a seguinte deliberação:

«Em face do exposto, acorda-se em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência:

- julga-se parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto nos termos acima mencionados:

- revoga-se a sentença recorrida e, julgando-se a acção parcialmente procedente por provada, declara-se que o acidente dos autos configura um acidente de trabalho e:

1- Condena-se a Ré, BB, S.A. a pagar ao Autor:

a) a pensão anual e vitalícia, actualizável, devida desde o dia seguinte ao alta (11.09.2015), no valor de € 11.700,19, a ser paga mensalmente e no seu domicílio, até ao 3º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsídio de férias e de Natal, igualmente no valor de 1/14 da pensão anual cada, a serem pagos nos meses de Junho e Novembro de cada ano, respectivamente  a que acrescem juros de mora desde o dia seguinte ao da alta, a que devem ser deduzidos os valores pagos a título de pensão provisória;

b) a indemnização por incapacidade temporária absoluta no valor de € 6.114,68, a que acrescem juros de mora desde 10.09.2015;

c) a quantia de € 5.533,70, a título de subsídio de elevada incapacidade, a que acrescem juros de mora desde o dia seguinte ao da alta;

d) a quantia até ao limite máximo de € 5.533,70, a título de subsídio de obras de readaptação de habitação;

e) a quantia de € 461,14, a título de prestação suplementar por necessidade de assistência por terceira pessoa, a pagar 14 vezes por ano, sendo devida desde o dia seguinte ao da alta, a que acrescem juros de mora desde essa data; e

f) a quantia de € 2.142,53, a título de despesas suportadas em consequência do acidente;

2- Condena-se a Ré Seguradora a disponibilizar ao Autor cadeira de rodas automática, almofada, colchão anti-escara e cama articulável, bem como a prestar ao Autor a assistência necessária e adequada ao seu estado de saúde.

3- Condena-se a Ré Seguradora a pagar ao Autor o valor a apurar em incidente de liquidação, relativo às deslocações que este que fez em veículo particular, em consequência do acidente.

4- Julga-se procedente o pedido de reembolso formulado pelo Instituto de Segurança Social I.P. e, em consequência, condena-se a Ré Seguradora a pagar a este Instituto a quantia de € 6.133,75, que este pagou ao sinistrado a título de subsídio de doença, a que acrescem juros de mora à taxa legal devidos desde a data da notificação da Ré para contestar tal pedido, uma vez que o Autor já recebeu as quantias em causa do ISS I.P., assistindo à Ré seguradora o direito de descontar nas prestações devidas ao sinistrado o valor a entregar, a título de reembolso àquele instituto.

5- Absolve-se a Ré Seguradora do demais contra si peticionado.

As custas da acção e do recurso são devidas na proporção do respectivo decaimento, sendo que ao Autor foi concedido apoio judiciário.»

Desta deliberação recorre a Ré de revista para este Supremo Tribunal impetrando a revogação do acórdão e a sua absolvição dos pedidos, formulando as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o objeto do recurso ([3]) e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal:

«A. A Recorrente não se conforma com a decisão e com os fundamentos invocados no Acórdão da Relação, nomeadamente a apreciação crítica dos factos assentes interpretação da lei sufra[ga]dos pelo Tribunal a quo.

B. Por um lado, não aceita a alegada inexistência de matéria assente que demonstre que [o] sinistrado acedeu ao interior da máquina, sem ter desligado previamente a mesma à corrente eléctrica.

C. Da matéria de facto dad[a] como provada é possível retirar que i) a máquina estava em funcionamento (como tal, ligad[a] à electricidade) e que ii) o sinistrado não desligou o circuito eléctrico da máquina nem accionou o modo de emergência.

D. Tal matéria foi tomada em consideração pelo tribunal da 1.ª instância, e não foi introduzida pelo Acórdão recorrido qualquer alteração dos factos assentes que releve para a solução jurídica aplicável ao caso.

E. Na apreciação crítica da matéria de facto, o Acórdão recorrido amplia o espectro da matéria não assente, julgando não provada matéria que nunca foi posta em causa pelas partes.

F. Na sequência deste errado entendimento, é defendido pelo referido Acórdão que não está provada a existência de um comportamento voluntário por parte do Recorrido e que, pela Recorrente, não foi feita alegação e prova pela Recorrente [sic] de que não existiram quaisquer razões que justificassem a omissão do Recorrido. Quanto a isto, há a dizer que:

G. Em primeiro lugar, contrariamente ao defendido pelo Acórdão, a conduta do Recorrido de proceder à reparação da máquina com a mesma ligada (dever violado) consubstancia indiscutivelmente um facto voluntário e consciente, ainda que o Recorrido não tivesse desejado ou previsto a ocorrência do dano.

H. Em segundo lugar, foi alegado e demonstrado nos autos a inexistência de causa justificativa da conduta violadora do Recorrido.

I. Nos presentes autos, estão preenchidos os requisitos da descaracterização com fundamento na al. a), do n.º 1, do artigo 14.º da L.A.T.: i) existência de regras ou condições de segurança estabelecidas pela lei ou pela entidade empregadora; ii) verificação, por parte do sinistrado, de uma conduta violadora dessas regras ou condições; iii) voluntariedade desse comportamento, ainda que não intencional, e sem causa justificativa; iv.) existência de um nexo de causalidade entre o ato ou omissão do sinistrado e o acidente.

J. Face ao exposto, deverá ser revogada a decisão do Acórdão recorrido, sendo substituído por uma outra decisão que julgue procedente a excepção peremptória da descaracterização do acidente com fundamento na violação das regras de segurança, ao abrigo do artigo 14, n.º 1, al. a), da L.A.T., sendo a Recorrente totalmente absolvid[a] do pedido.»

O A. contra-alegou tendo formulado as seguintes conclusões (sic):

«A) Da enunciação do objeto de recurso, no imediato, se compreenderá a razão pela qual deverá soçobrar: ambas as questões articuladas se reportam ao julgamento da matéria de facto, matéria essa que se mostra assente nos precisos termos fixados pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, em virtude da previsão expressa do n.º 3 do artigo 674.º do Código de Processo Civil, aplicável por força da remissão ao regime da Revista constante do n.º 5 do artigo 81.º do Código de Processo do Trabalho;

B) Se considerarmos a defesa da Recorrente em sede de Contestação, a qual, configurando matéria de exceção, impunha a respetiva prova inequívoca por parte da contestante de versão diversa do sinistro daquela que já se mostrava assente ao saneador, é evidente que, não tendo a mesma obtido vencimento, a regra de repartição do ónus da prova obriga à procedência da ação, em obediência ao n.º 2 do artigo 342º do Código Civil, o que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, e bem, declarou;

C) E fê-lo, também, em matéria de aplicação do Direito, com magistral ciência pormenorizada na aplicação das normas ao caso concreto, inclusivamente por confronto com aquelas outras decisões judiciais em que havia sido julgada procedente a exceção conducente à descaraterização do acidente de trabalho, cotejando quanto distingue a presente lide daquelas outras;

D) A Recorrente discute o estado da máquina onde ocorreu o sinistro incorrendo em absoluta falácia: por um lado, porque não existe uniformidade nos conceitos utilizados, quer pelas partes, quer pelos depoentes, quer pelo próprio Tribunal, tornando-se claro que a referida máquina tem diversos estados ou modos de funcionamento não diretamente relacionados com a corrente elétrica, sem que a sua concreta caracterização tivesse resultada clara dos autos;

E) Por outro lado, não estamos na presença de um frigorífico ou micro-ondas, ou qualquer outro eletrodoméstico, que se desliga da ficha de corrente elétrica e não funciona;

F) No caso concreto, não resultou provado, como bem decorre da decisão em causa, a fls. 34, que a seleção dos modos de funcionamento da máquina fosse tarefa incumbida ao Recorrido, menos ainda que estive na sua esfera ou ao seu alcance;

G) Pela mesma razão, falar em vontade ou consciência, na omissão - usando a linguagem admitida pela própria Recorrente -, é um contrassenso;

H) Seria essencial que se tivesse demonstrado inequivocamente a existência de regra, para que se afirme omissão ao seu cumprimento, donde, nenhum reparo merece a decisão em crise e improcedem todas as conclusões formuladas.»

Cumprido o disposto no art. 87º, nº 3 do CPT, o Exmº Procurador-Geral-‑Adjunto emitiu douto parecer, que não mereceu resposta das partes, no sentido da improcedência da revista e consequente confirmação do acórdão.

2 – ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Os presentes autos respeitam a ação emergente de acidente de trabalho.

O sinistro ocorreu em 4.02.2015 e o recebimento em juízo da respetiva participação ocorreu em 10.07.2015.

O acórdão recorrido foi proferido em 3.05.2017.

Assim sendo, são aplicáveis:

         O Código de Processo Civil (CPC) na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho;

         O Código de Processo do Trabalho (CPT), aprovado pelo Decreto-‑Lei n.º 480/99, de 9 de novembro, e alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, 38/2003, de 8 de março, 295/2009, de 13 de outubro, que o republicou;

         A Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT).

3 - ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO

Face às conclusões formuladas pela recorrente, as questões submetidas à nossa apreciação consistem em saber:

1 – Se a Relação, ao não recorrer a presunções judiciais, incorreu em erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto;

2 – Se o acidente deve ser descaracterizado por inobservância pelo A. das normas de segurança.

4 – FUNDAMENTAÇÃO

4.1 – OS FACTOS

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

“1. No dia 04 de Fevereiro de 2015, pelas 15 horas, quando o A. exercia as funções de ..., por conta, sob a direcção e fiscalização de “CC – ..., Lda”, numa fábrica da BB, em ..., sofreu um acidente (A).

2. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1., o A. encontrava-se a proceder ao aperto de componentes da tubagem de ar comprimido, munido de chave de bocas apropriada e, colocado sentado na esteira de transporte da máquina paletizadora, erguendo os braços, aí se mantendo por algum tempo e, enquanto executava essa tarefa na máquina, foi entalado contra a esteira de transporte, pela mesa paletizadora, que o esmagou contra aquela (B).

3. Na data referida em A), o A. auferia a retribuição anual de € 14.625,24, (correspondente à retribuição mensal de € 970,85 x 14 meses e € 93,94 x 11 meses, de subsídio de alimentação) (C).

4. À data referida em 1., “CC – ..., Lda”, tinha transferido para a R. Seguradora, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., a responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho reportada ao A. pela retribuição anual de € 14.625,24 (D).

5. Em consequência do acidente referido em 1 e 2., o A. sofreu as lesões e sequelas referidas no exame de fls. 27/31, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, nomeadamente lesão vertebro-medular, com paraplegia dos membros inferiores, que lhe determinaram, directa e necessariamente, incapacidade permanente parcial de 100% e incapacidade permanente absoluta para qualquer profissão, desde 10.09.2015, data da alta, com necessidade de adaptação da residência e ajuda de terceira pessoa para realizar actos da vida diária e deslocações, bem como ajudas medicamentosas e técnicas (E).

6. Em consequência do referido acidente, o A. foi transportado ao CH de Coimbra, onde se manteve internado até 25 de Fevereiro de 2015, tendo, nessa data, sido transferido para o Hospital de ..., em Lisboa, onde permaneceu até 6 de Março de 2015 (F).

7. Em 4 de Abril de 2015, o A. foi internado no Hospital ..., em Lisboa, onde permaneceu até ao dia 30 de Abril de 2015, data em que foi transferido para o Hospital de ... e, daqui para o Centro de Reabilitação ..., onde permaneceu do dia 2 de Julho ao dia 9 de Setembro de 2015 (G).

8. Em consequência do acidente sofrido pelo A., o ISS pagou ao mesmo, desde 27 de Abril de 2015 a 7 de Fevereiro de 2016, a quantia de 6.133,75, a título de subsídio de doença (H).

9. Para proceder à reparação da tubagem referida em B) o Autor tinha de aceder ao interior da máquina, por esse ponto não ser acessível do exterior, o que sucedeu (1.º) (alterado pela Relação).

10. Para proceder a essa reparação em segurança, seria necessário desligar o circuito eléctrico da máquina (2.º).

11. A máquina paletizadora referida em 2. contém dispositivos de encaixe destinado à retenção ou protecção em trabalhos e que, nas circunstâncias de tempo referidas em 2., a máquina não tinha esses dispositivos, que haviam sido retirados pelo A. e seu ajudante no âmbito das tarefas que vinham desenvolvendo para a reparação dessa máquina (3.º).

12. O A. iniciou a actividade de manutenção da máquina referida em 2., cerca de três semanas antes da data referida em 1. e que, no decurso das tarefas inerentes à reparação, com desmontagem, verificação e substituição de suas componentes, a máquina esteve ligada, ou desligada, à corrente eléctrica, consoante fosse necessário (4.º, 5.º e 6.º).

13. Em consequência do acidente, e sequelas dele decorrentes, o A. foi a consulta médica de ortopedia, na Policlínica da Encarnação, tendo pago, para o efeito, a quantia de € 60,00 (9.º).

14. E continua a ser consultado no Centro ... e em consultas no Centro de saúde de ..., tendo despendido, para o efeito, € 54,50 (10.º).

15. E, tem de efectuar sessões periódicas de fisioterapia, tendo, para o efeito, pago ao Centro de Física da ..., € 405,00 (11.º).

16. E já pagou, em sessões de fisioterapia posteriores, na parte não comparticipada pela Segurança Social, a quantia de € 428,03 (12.º).

17. Para tratamentos medicamentosos e dispositivos médicos, o A. já despendeu € 930,64 (13.º).

18. Em fraldas e cuecas de incontinência e resguardos de cama, despendeu a quantia de € 139,12 (14.º).

19. E em transportes de ambulância e serviços de bombeiros, a quantia de € 125,24 (15.º).

20. Para efectuar deslocações a exames e tratamentos, quando não se deslocava em ambulância, o A. deslocava-se em veículo particular, percorrendo número concretamente não determinado de km, para o efeito (16.º)

21. O A., para se deslocar, precisa de cadeira de rodas automática (17.º).

22. E, para repouso, de almofada, colchão anti-escara e cama articulável (18.º).

23. A máquina referida em 2. dispõe de gradeamento metálico que impossibilita a entrada de pessoas e a aproximação à máquina quando está em laboração, dispondo também de botão de paragem de emergência (19.º).

24. Para que o A. fizesse a manutenção/reparação dessa máquina foi retirada a grade de protecção (20.º).

25. O A. entrou no interior da máquina sem se certificar que a mesma estava desligada da corrente eléctrica e que tinha todos os mecanismos de accionamento automático desligados (21.º e 22.º).

26. Por o A. estar no interior da máquina, foi accionado o seu funcionamento, iniciando a mesma o ciclo de operação para o qual estava programada, provocando o entalamento do A. entre o carris e o prato elevatório (23.º, 24.º e 25.º).

27. - Se o A. tivesse accionado o botão de paragem de emergência a máquina não teria iniciado o ciclo de operação para a qual estava programada. (26.º e 27.º) (alterado pela Relação).

28. Era o A. que estava a proceder, com um ajudante, em exclusivo, à reparação da máquina, desde há cerca de 3 semanas antes da data referida em 1. (28.º e 29.º) (alterado pela Relação).

29. O A. conhecia bem os componentes e forma de funcionamento daquela máquina, sendo que, no âmbito do referido em 1, há mais de 8 anos ia, pelo menos, uma vez por ano, proceder à manutenção/reparação daquelas máquinas à BB (31.º, 32.º, 33.º e 34.º).

30. Em 30.06.2016, no apenso para fixação de incapacidade, foi proferida decisão, a consignar que o A. é portador de sequelas que lhe determinam necessidades: para a sua locomoção, de uso de cadeira de rodas; para o seu repouso, de almofada e colchão anti-‑escara e cama articulável e, para satisfação das suas necessidades básicas com higiene e alimentação, da assistência de terceira pessoa durante 6 horas diárias, conforme fls. 27-28, desse apenso, que aqui se dá por integralmente reproduzido

31. - O sinistrado não está integralmente pago da indemnização por incapacidade temporária absoluta devida desde a data do acidente e até 10.09.2015, data da alta, no valor global de € 6.114,68; (aditado pela Relação).

4.2 - O DIREITO

Vejamos então as referidas questões que constituem o objeto do recurso, mas não sem que antes se esclareça que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões, mas apenas as questões suscitadas ([4]).

4.2.1 - Se a Relação, ao não recorrer a presunções judiciais, incorreu em erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto.

Vejamos.

Consignou-se na fundamentação da sentença (sublinham-se os factos que a Relação considerou não atendíveis):

«Revertendo às considerações efectuadas para a apreciação do caso concreto aqui em análise, e em face das regras de segurança aqui relevantes e referenciadas, verificamos que se encontra demonstrado nos autos, para o que ora releva, que:

- o A. sofreu o acidente quando procedia ao aperto de componentes da tubagem de ar comprimido, colocado sentado na esteira de transporte da máquina paletizadora, local a que acedeu por um lado destinado a ter grades de protecção, que não se encontravam colocadas, por haverem sido retiradas, pelo A. e seu ajudante, no âmbito das tarefas que vinham desenvolvendo para a reparação dessa máquina (factos n.º 2, 9, 11 e 24);

- o A. iniciou a reparação da máquina, cerca de 3 semana antes da data do acidente e, no decurso das tarefas inerentes à reparação, com desmontagem, verificação e substituição das suas componentes, a máquina esteve ligada, ou desligada, à corrente eléctrica, consoante fosse necessário, sendo que, para proceder à reparação que o A. estava a desenvolver, em segurança, seria necessário desligar o circuito eléctrico da máquina (factos 10 e 12);

- a máquina que o A. estava a reparar, e na qual ocorreu o acidente, dispõe de gradeamento metálico que impossibilita a entrada de pessoas e a aproximação à mesma quando está em laboração, dispondo também de botão de paragem de emergência (facto 23);

- o A. entrou no interior da máquina sem se certificar que a mesma estava desligada da corrente eléctrica e que tinha todos os mecanismos de accionamento automático desligados e, por o A. estar no interior da máquina, foi accionado o seu funcionamento, iniciando a mesma o ciclo de operação para o qual estava programada, provocando o entalamento do A. entre o carris e o prato elevatório (factos 25 e 26);

- se o A. tivesse accionado o «modo de descanso», a máquina não teria iniciado o ciclo de operação para o qual estava programada (facto 27);

- era o A. que estava a proceder, com um ajudante, em exclusivo, à reparação da máquina, desde há cerca de 3 semanas antes do dia do acidente, estando a mesma sob o seu inteiro e exclusivo domínio de actuação, para esse efeito (facto 28), e

- o A. conhecia bem os componentes e forma de funcionamento daquela máquina, sendo que, no âmbito do contrato realizado entre a sua entidade empregadora e a BB, o A., há mais de 8 anos ia, pelo menos, uma vez por ano, proceder à manutenção/reparação daquelas máquinas à BB (facto 29).

Desta factualidade resulta demonstrada a existência de regras e condições de segurança, estabelecidas por lei e, até, em bom rigor, decorrentes de elementares cuidados de prudência e bom senso, bem como a sua violação, por parte do A. para a realização dos trabalhos de manutenção/reparação da referida máquina paletizadora.

Efectivamente, o A., como técnico especializado, bem conhecendo os componentes e o modo de funcionamento da referida máquina; estando a proceder a trabalhos de reparação na mesma, ao longo de cerca de 3 semanas; estando essa máquina sob o seu exclusivo domínio de actuação para proceder a esses trabalhos; bem sabendo que havia retirado (com o seu ajudante) os componentes de segurança da máquina para os trabalhos que vinha realizando; introduziu-se no interior da mesma, de forma a proceder ao aperto da tubagem de ar comprimido, sem, previamente, ter desligado a corrente eléctrica da referida máquina, ou desligando o modo de funcionamento automático da mesma.

Salienta-se que o A. tinha obrigação de saber que a referida máquina estava ligada à corrente eléctrica, não só porque o próprio é que estava a proceder aos trabalhos de reparação na mesma, o que fazia, em exclusivo (porquanto o ajudante estava a pintar as grades de protecção da máquina), como o sistema de ar comprimido, para funcionar, pressupunha a ligação da máquina à electricidade.

Por outro lado, a própria máquina tinha sistemas de protecção, com quadro próprio para ligar/desligar e estava equipada com botão de paragem de emergência, sendo que o A., pelo menos, desde há oito anos anteriores à data do acidente, vinha procedendo à reparação daquele tipo de máquinas, bem conhecendo o modo de funcionamento das mesmas.

Ter efectuado os referidos trabalhos sem ter desligado a corrente eléctrica, ou, no mínimo, ter colocado a máquina fora do sistema de funcionamento automático, consubstancia uma conduta altamente temerária.

Conhecendo o A. as características da máquina, as regras a observar para a realização desses trabalhos e sendo um técnico especializado na reparação da mesma, correspondendo o corte de energia eléctrica a uma conduta básica para qualquer pessoa que lida com um equipamento eléctrico e que pretenda mexer nos seus componentes, não existe, no caso, causa justificativa para a não observação das referidas normas de segurança.»

Discordando parcialmente desta factualidade, referiu a Relação:

«Antes de mais e em primeiro lugar, importa referir que, por não constarem do elenco dos factos provados, não pode este Tribunal considerar na sua decisão, como fez o Tribunal a quo, que:

- o sinistrado entrou na máquina através de “local a que acedeu por um lado destinado a ter grades de protecção, que não se encontravam colocadas;”

- “se o A. tivesse accionado o «modo de descanso», a máquina não teria iniciado o ciclo de operação para o qual estava programada [“];

- “estando a mesma sob o seu inteiro e exclusivo domínio de actuação, para esse efeito”;

- [“] introduziu-se no interior da mesma, de forma a proceder ao aperto da tubagem de ar comprimido, sem, previamente, ter desligado a corrente eléctrica da referida máquina, ou desligando o modo de funcionamento automático da mesma[“];

- [“]o sistema de ar comprimido, para funcionar, pressupunha a ligação da máquina à electricidade[“];

- que a máquina [“]dispunha de quadro eléctrico próprio (comando autónomo ou painel de controlo) [“]; e

- O sinistrado [“]realizou a referida tarefa de aperto do ar comprimido, introduzindo-se no interior da máquina e sem, previamente, ter desligado a mesma. [“]»

E, efetivamente, esta factualidade não consta do elenco dos factos consignados como provados.

Porém, na tese da recorrente, a mesma resulta dos factos provados, ou seja, tratar-se-á de presunções (art. 349º do CC).

Nos termos do artigo 349.º do Código Civil, «[p]resunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido», sendo que, nos termos do artigo 351.º do Código Civil, «[a]s presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal».

Consistindo as presunções judiciais em juízos de valor formulados perante os factos provados, as mesmas referem-se ao julgamento da matéria de facto.

A Relação pode modificar a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto sempre que se verifique qualquer das situações previstas no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, e poderá também anular a decisão sobre a matéria de facto, mesmo oficiosamente, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a sua ampliação (artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC) ou ainda ordenar a fundamentação da decisão proferida pela primeira instância relativamente a algum ponto de facto que não estiver devidamente fundamentado (artigo 662.º, n.º 2, al. d), do CPC).

Já, porém, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça em sede de matéria de facto são limitados e residuais, limitando-se a apreciar a observância das regras de direito material probatório previstas nos arts. 674º, nº 3 e 682º, nº 2, do CPC.

Estabelece, efetivamente, o art. 682º, nos seus nºs 1 e 2, do CPC:

“1 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

2 - A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º.”

E estatui o nº 3 do art. 674º que “3 - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”

Significa isto que os poderes do Supremo Tribunal de Justiça são limitados «à apreciação da observância das regras de direito probatório material (denominada prova vinculada), ficando fora do seu âmbito de competência a reapreciação da matéria de facto fixada pela Relação no domínio da faculdade prevista no art.º 662.º do CPC, suportada em prova de livre apreciação e posta em crise apenas no âmbito da perceção e formulação do respetivo juízo de facto» ([5]).

Como refere Teixeira de Sousa ([6]) «O tribunal de revista está vinculado aos factos fixados pelo tribunal recorrido… Como consequência desta vinculação à matéria de facto apurada nas instâncias, o Supremo está adstrito a uma obrigação negativa: a de não poder alterar, salvo em casos excepcionais, essa matéria de facto… Estas vinculações implicam que o Supremo não pode controlar a apreciação da prova, porque uma vinculação à matéria de facto averiguada nas instâncias e uma proibição de a alterar conduzem necessariamente à impossibilidade (e também à desnecessidade) de controlar a sua apreciação. Em especial, o Supremo não pode controlar a prudente convicção das instâncias sobre a prova produzida pelas partes… A impossibilidade de conhecimento de matéria de facto pelo Supremo envolve igualmente a inadmissibilidade de controlo por este tribunal dos poderes inquisitórios ou instrutórios atribuídos às instâncias».

Vem sendo entendido que, pese embora as limitações referidas «[a]o Supremo Tribunal de Justiça compete ajuizar, por ser uma questão de direito, se as presunções judiciais extraídas pelas instâncias violam o disposto nos artigos 349.º e 351.º citados, isto é, se foram tiradas de factos desconhecidos (não provados) ou irrelevantes para firmar factos desconhecidos ou se exigem um grau superior de segurança na prova, ou, ainda, se conflituam com a factualidade material provada ou contrariam um facto que tenha sido submetido a concreta discussão probatória e que o tribunal considerou não provado (cf. Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 22 de Fevereiro de 2005, Revista n.º 4594/04, da 1.ª Secção, de 7 de Abril de 2005, Revista n.º 393/05, da 7.ª Secção, de 1 de Março de 2007, Revista n.º 4192/06, e de 27 de Junho de 2007, Revista n.º 1050/07, ambos da 4.ª Secção)…» ([7]).

No caso, importa sublinhar que os factos eliminados pela Relação não só não foram elencados na matéria de facto provada, como em parte alguma é dito que resultam dessa factualidade.

Por outro lado, a eliminação feita pela Relação não ocorreu por os ter analisado e concluído que não resultavam dos factos provados, mas pelo simples facto de «não constarem do elenco dos factos provados».

Mas, apesar do fundamento invocado, vejamos se os factos provados permitiam extrair, como alega a recorrente, aqueles que a Relação eliminou.

É referido na sentença: “(…) verificamos que se encontra demonstrado nos autos, para o que ora releva, que:

- se o A. tivesse accionado o «modo de descanso», a máquina não teria iniciado o ciclo de operação para o qual estava programada (facto 27);

- era o A. que estava a proceder, com um ajudante, em exclusivo, à reparação da máquina, desde há cerca de 3 semanas antes do dia do acidente, estando a mesma sob o seu inteiro e exclusivo domínio de actuação, para esse efeito (facto 28)”.

Os factos 27 e 28 consignados na sentença no elenco dos factos provados, eram do seguinte teor:

“27. Se o A. tivesse accionado o «modo de descanso», a máquina não teria iniciado o ciclo de operação para o qual estava programada (26.º e 27.º).

28. Era o A. que estava a proceder, com um ajudante, em exclusivo, à reparação da máquina, desde há cerca de 3 semanas antes da data referida em 1., estando a mesma sob o seu inteiro e exclusivo domínio de actuação, para esse efeito (28.º e 29.º).”

Porém, estes factos foram alterados pela Relação, passando a ter a seguinte formulação:

“27. - Se o A. tivesse accionado o botão de paragem de emergência a máquina não teria iniciado o ciclo de operação para a qual estava programada. (26.º e 27.º).

 28. Era o A. que estava a proceder, com um ajudante, em exclusivo, à reparação da máquina, desde há cerca de 3 semanas antes da data referida em 1. (28.º e 29.º).”

Face a esta alteração, cuja sindicância extravasa os poderes deste Supremo Tribunal, é inquestionável que não poderiam manter-se como factos provados as referências «modo de descanso» e «estando a mesma sob o seu inteiro e exclusivo domínio de actuação, para esse efeito».

É dito na sentença:

«[O] A. sofreu o acidente quando procedia ao aperto de componentes da tubagem de ar comprimido, colocado sentado na esteira de transporte da máquina paletizadora, local a que acedeu por um lado destinado a ter grades de protecção, que não se encontravam colocadas, por haverem sido retiradas, pelo A. e seu ajudante, no âmbito das tarefas que vinham desenvolvendo para a reparação dessa máquina (factos n.º 2, 9, 11 e 24)».

A Relação eliminou a expressão: «local a que acedeu por um lado destinado a ter grades de protecção, que não se encontravam colocadas», por considerar que a mesma não constava dos factos provados.

E, na verdade, dos factos referenciados pela 1ª instância «(factos n.º 2, 9, 11 e 24)», não resulta que o A. tenha acedido ao interior da máquina por um lado destinado a ter grades de protecção. Dos factos provados apenas se pode concluir que o A. acedeu ao interior da máquina. Já, porém, não permitem concluir que o tenha feito pelo lado destinado a ter grades de protecção ou se por qualquer outro lado.

E o mesmo se diga relativamente à referência constante da sentença, e igualmente eliminada pela Relação, de que «o sistema de ar comprimido, para funcionar, pressupunha a ligação da máquina à electricidade».

Desde logo na sentença não se refere qual o facto provado que permite tal ilação.

Por outro lado, pese embora esteja provado que o A. se encontrava a proceder ao aperto de componentes da tubagem de ar comprimido (2) e que para proceder à reparação da tubagem referida em B) o Autor tinha de aceder ao interior da máquina (9), nada permite concluir que o ar comprimido era um dos componentes da máquina, e/ou que a alimentação elétrica necessária ao seu funcionamento proviesse desta.

Também dos factos provados não resulta que a máquina dispunha de quadro elétrico próprio (comando autónomo ou painel de controlo), sendo que o que está provado é apenas que a máquina dispõe de botão de paragem de emergência (23), o que não significa que dispusesse de quadro elétrico próprio (comando autónomo ou painel de controlo), como referido pela 1ª instância.

De igual modo, não se nos afigura que a matéria eliminada «introduziu-se no interior da mesma, de forma a proceder ao aperto da tubagem de ar comprimido, sem, previamente, ter desligado a corrente eléctrica da referida máquina, ou desligando o modo de funcionamento automático da mesma» ou «sem ter desligado a [máquina]», resulta, inquestionavelmente, dos factos provados.

Está provado que «[p]or o A. estar no interior da máquina, foi accionado o seu funcionamento, iniciando a mesma o ciclo de operação para o qual estava programada, provocando o entalamento do A. entre o carris e o prato elevatório» (26). Está também provado que «[o] A. entrou no interior da máquina sem se certificar que a mesma estava desligada da corrente eléctrica e que tinha todos os mecanismos de accionamento automático desligados.

Dir-se-á que, estando a máquina ligada à corrente aquando do acidente e não se tendo o A. certificado, no momento que o antecedeu, de que a mesma estava desligada, indicará que, antes desta sua última introdução, não a desligou nem desligou os mecanismos de acionamento automático. Todavia, não se provou que era ao A. que competia ligar e desligar a máquina, nem que sabia que a máquina estava ligada e em modo automático, sendo certo que se desconhecem as circunstâncias que levaram o A. a aceder à máquina sem que se certificasse que esta estava desligada.

Por conseguinte, os factos provados não permitem concluir, de forma perentória como fez a 1ª instância, que o A. “introduziu-se no interior da [máquina], de forma a proceder ao aperto da tubagem de ar comprimido, sem, previamente, [a] ter desligado a corrente eléctrica […], ou desliga[do] o modo de funcionamento automático […].

Pelo referido, a revista improcede nesta parte.

4.2.2 – Se o acidente deve ser descaracterizado por inobservância pelo A. das normas de segurança.

As instâncias consideraram que o A. ao introduzir-se na máquina para proceder ao aperto de componentes da tubagem de ar comprimido sem se ter certificado de que a máquina em causa estava desligada (tese da Relação) ou, na tese da 1ª instância, ao não ter desligado previamente a mesma, assumiu um comportamento omissivo violador das normas de segurança legalmente estabelecidas para a reparação de máquinas, entendimento que as partes não questionam.

A 1ª instância considerou que «[e]ste comportamento omissivo do A. (correspondente a não desligar a corrente eléctrica da máquina, ou, no mínimo, não a ter colocado fora do modo de funcionamento automático), consubstancia a prática da conduta violadora das regras de segurança decorrentes da lei, necessariamente voluntária porquanto o mesmo bem sabia da existência dessas regras de segurança e o modo de funcionamento da máquina.»

Considerou ainda que se tratou de um comportamento voluntário, consciente, injustificado e causal do acidente, integrador dos requisitos cumulativos estabelecidos na 2ª parte do nº 1 do art. 14º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, conducente à sua descaracterização e consequente não reparação.

Dissentindo deste entendimento, observou a Relação que para que ocorra a descaracterização do acidente nos termos da referida norma, é necessário que a violação da regra de segurança seja voluntária, daí se excluindo (citando o “Acórdão do Supremo Tribunal de 23/6/04 [publicado em Acidentes de Trabalho, Jurisprudência 2000-2007, Edições Colectânea de Jurisprudência, pp. 77/78]”) as “chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco”. E entendeu “que nada nos autos aponta no sentido de que o Recorrente actuou voluntária e conscientemente. Na verdade, no caso, só se poderia concluir pela existência de um comportamento voluntário e consciente se se tivesse provado que o Autor, quando acedeu ao interior da máquina, sabia que ela estava ligada. Mas tal não foi alegado nem resultou provado. O que se provou foi, tão só, que o Autor não se certificou que a máquina estava desligada e que os mecanismos de accionamento da mesma estavam desligados.”

Vejamos.

Estabelece o art. 12º da LAT:

“1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:

a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;

b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;

c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.

2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.

3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”

Façamos um breve excurso histórico, necessariamente limitado.

O art. 17º da Lei nº 83 de 24.07.1913 excluía o direito às indemnizações nos acidentes de trabalho, por atos imputáveis ao sinistrado, nos seguintes termos:

“Quando se prove que o acidente foi dolosamente provocado pela vítima ou que esta se recusa a cumprir as prescrições clínicas do médico que o trata, deixarão ela e os seus representantes de ter direito a qualquer indemnização”.

Posteriormente, a Lei nº 1942 de 27.07.1936 passou a estabelecer, no seu art. 2º (sic):

“Não é acidente de trabalho, embora caiba em algum dos números do artigo anterior:

 1º O que for intencionalmente provocado pelo sinistrado;

 2º O que provier de acto ou omissão da vítima contra ordens expressas, e, logo propositadamente infringidas, das pessoas a quem estiver profissionalmente subordinada, ou de acto seu em que se deminuam as condições de segurança do trabalho estabelecidas pela entidade patronal ou exigidas pela natureza particular do trabalho;

3º O que fôr conseqüência de ofensas corporais voluntárias, salvo se estas tiverem relação imediata com outro acidente ou a vítima as sofrer por causa de funções de direcção ou vigilância que desempenhe;

4º O que resultar da privação do uso da razão do sinistrado, permanente ou acidental, nos termos dó artigo 353.º do Código Civil, se aquela não derivar da própria prestação do trabalho, ou se a entidade patronal ou seu representante, conhecendo o estado da vítima, consentir nesta prestação;

5º O que provier de caso de fôrça maior.

§ único. Só se considera caso de fôrça maior o que fôr devido a forças invencíveis da natureza, actuando independentemente de qualquer intervenção humana, e, sendo devido a estas fôrças, não constitua um risco natural da profissão nem se produza ao executar trabalhos expressamente ordenados pela entidade patronal em condições de perigo evidente.”

A Lei 1942 foi revogada pela Base LI da Lei 2127 de 3.08.1965 que passou a estatuir na Base VI:

“1. Não dá direito à reparação o acidente:

a) Que for dolosamente provocado pela vítima ou provier de seu acto ou omissão, se ela tiver violado, sem causa justificativa, as condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal;

b) Que provier exclusivamente de falta grave e indesculpável da vítima;

c) Que resultar da privação permanente e ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, ou for independente da vontade do sinistrado, ou se a entidade patronal ou o seu representante, conhecendo o estado da vítima, consentir na prestação;

 d) Que provier de caso de força maior.

2. Só se considera caso de força maior o que, sendo devido a forças inevitáveis da natureza, independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas condições de trabalho, nem se produza ao executar serviço expressamente ordenado pela entidade patronal em condições de perigo evidente.

3. A verificação das circunstâncias previstas nesta base não dispensa as entidades patronais da prestação dos primeiros socorros aos trabalhadores e do seu transporte ao local onde possam ser clinicamente socorridos.”

Esta Lei foi revogada pelo art. 42º da Lei 100/97 de 13.09.

Estabelecia o art. 7º deste diploma:

“1 - Não dá direito a reparação o acidente:

a) Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei;

b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;

c) Que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação;

d) Que provier de caso de força maior.

2 - Só se considera caso de força maior o que, sendo devido a forças inevitáveis da natureza, independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas condições de trabalho nem se produza ao executar serviço expressamente ordenado pela entidade empregadora em condições de perigo evidente.

3 - A verificação das circunstâncias previstas neste artigo não dispensa as entidades empregadoras da prestação dos primeiros socorros aos trabalhadores e do seu transporte ao local onde possam ser clinicamente socorridos.”

Como se vê dos transcritos art. 17º da Lei nº 83 e dos nºs 1 e 2, do art. 2º, da Lei 1942, para que o acidente não se considerasse como de trabalho era necessário que o acidente fosse intencionalmente provocado pelo sinistrado (dolosamente na terminologia da Lei 83) ou que este (na Lei 1942), por ato ou omissão, infringisse propositadamente ordens expressas da entidade patronal ou que resultasse de ato que, voluntária e conscientemente, diminuísse “as condições de segurança do trabalho estabelecidas pela entidade patronal ou exigidas pela natureza particular do trabalho, só conduzindo à descaracterização as “imprudências e temeridades inúteis, fortemente indesculpáveis e sem ligação direta com o trabalho” ([8]).

Desta formulação legal resulta que as meras imprevidências, distrações, incúrias, imperícias não descaracterizavam o acidente como de trabalho.

E o mesmo resulta das alíneas a) e b) da Base VI da Lei 2127.

Para que a violação das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal conduzisse à descaracterização do acidente seria necessário que o sinistrado tivesse conhecimento daquelas condições e a consciência de que as estava a violar.

A propósito desta norma refere Carlos Alegre ([9]), que o acidente só não dá direito a reparação, se se verificarem, cumulativamente, as seguintes condições:

«1ª. Que sejam voluntariamente violadas as condições de segurança, exigindo-se, aqui, a intencionalidade ou dolo, na prática ou omissão, o que exclui as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os atos involuntários resultantes ou não da habituação ao risco;

2ª. Que a violação das condições de segurança sejam sem causa justificativa (do ponto de vista do trabalhador), o que passa pelo claro conhecimento do perigo que possa resultar do ato ou omissão: a causa justificativa não tem que ter um carácter lógico ou normal em relação à atividade laboral, pode ser uma brincadeira a que não se associam consequências danosas, uma inadvertência ou momentânea negligência, uma imprudência ou mesmo um impulso instintivo ou altruísta.

3ª. Que as condições de segurança sejam, apenas, estabelecidas pela entidade patronal (em regulamento de empresa, ordem de serviço ou outra forma de transmissão.»

Por referência à al. a), do nº 1, da Base VI, da Lei 2127, decidiu esta Secção, no seu acórdão de 3.10.2012, proc. n.º 54/03.8TBPSR.E1.S1 (Gonçalves Rocha):

“I - Nos termos da alínea a) do n.º 1 da Base VI da Lei n.º 2127, não dá direito a reparação o acidente provocado por conduta intencional e deliberada do sinistrado e que desta forma pratica não só o acto determinante do acidente mas também deseja ou se conforma com todas as suas consequências (1.ª parte) e o acidente que provier de acto ou omissão do sinistrado que importe, sem causa justificativa, violação das regras de segurança estabelecidas pelo empregador (2.ª parte). II - No entanto, a violação de regras de segurança resultantes da lei ou regulamentos relativos a trabalhos industriais, só será apta a descaracterizar o acidente quando seja enquadrável na alínea b), impondo-se assim que a violação destas normas de segurança assuma a natureza dum comportamento temerário do sinistrado, inútil para o trabalho, indesculpável e reprovado pelo mais elementar sentido de prudência (…)”

 

A Lei 100/97, para além de alterações de semântica, limitou-se a acrescentar à formulação da al. a) do nº 1 da Lei 2127, que também as violações das normas de segurança previstas na lei e não apenas as estabelecidas pela entidade patronal conduziam à descaracterização do acidente.

Também no âmbito desta Lei esta Secção vinha entendendo que não bastava a mera inobservância pelo sinistrado das normas de segurança legalmente prescritas, sendo ainda necessário “que o trabalhador desrespeite voluntariamente e sem causa justificativa tais regras e a sua conduta tenha tido como consequência a produção do sinistro”([10]), mostrando-se “excluídas as chamadas culpas “leves”, desde a inadvertência, à imperícia, à distracção, esquecimentos ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes, ou não, da habituação ao risco”([11]), “não abrangendo a inadvertência momentânea do sinistrado” ([12]).

A formulação da Lei 100/97, com pontuais e irrelevantes alterações, foi mantida no atual art. 14º nº 1, al. a) da LAT.

Analisando este preceito refere Júlio Manuel Vieira Gomes ([13]) «[s]ublinhe-‑se, desde logo, que “a prática de atos e omissões que importem a violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei” não representa uma alínea autónoma, mas a parte final da alínea a) onde estão igualmente previstos os acidentes dolosamente provocados pelo sinistrado. Este elemento sistemático é importante, porque ilustra bem que estas situações de violação das condições de segurança contempladas pela lei são aquelas suficientemente graves para terem sido quase “equiparadas” ao dolo».

E continua, mais adiante, o mesmo autor ([14]): «a privação da reparação por acidente de trabalho é uma consequência desproporcionada, a não ser para comportamentos dolosos ou com um grau de negligência muito elevado que sejam, eles próprios, a causa do acidente, de tal modo que verdadeiramente se quebre o nexo etiológico entre o trabalho e o acidente.

(…)

Muito embora nos pareça que a lei dos acidentes de trabalho não distingue entre negligência grosseira e negligência grave do trabalhador sinistrado, afigura-se-nos que ainda mais criticável que esta distinção é inferir dela, por força da redação da lei que tem outra explicação e outra génese histórica, que só nos casos de negligência grosseira é que haveria que atender a fatores como a habitualidade ao perigo ou os usos da empresa ou da profissão. Pensamos ser, com todo o respeito, incompreensível, interpretar a lei como se a única causa justificativa da violação das condições de segurança fosse, exclusivamente, o desconhecimento, sem culpa, das regras de segurança ou a impossibilidade ou dificuldade em apreender o seu conteúdo. (…) [N]ão pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaracterização, devendo exigir-‑se um comportamento subjetivamente grave, ao que acresce que outras “justificações” poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito de tutela dos acidentes de trabalho. Essa culpa deve ser aferida em concreto e não em abstrato, e não poderá deixar de atender a fatores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a passividade do empregador perante condutas similares no passado (…) e, simplesmente, fatores fisiológicos e ambientais como o cansaço, o calor ou o ruído existente no local de trabalho, Destarte, deve considerar-se (…) que a violação das regras de segurança pode ter outras causas justificativas para além da dificuldade em conhecer ou entender a norma legal ou estabelecida pelo empregador».

Tudo para concluir que não basta a mera violação das regras de segurança para que o acidente seja descaracterizado. É necessário que essa infração ocorra por culpa grave do trabalhador, que tenha consciência da violação, não relevando os casos (citando Carlos Alegre) de “culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os atos involuntários resultantes ou não da habituação ao risco”.

A culpa do trabalhador tem que ser aferida em concreto e não em abstrato.

A Relação, após considerar ter existido violação das normas de segurança e que, apesar de não resultar dos factos provados que era o sinistrado quem tinha a obrigação de ligar e desligar a máquina, concluiu que «tal não implica que o Recorrente, para executar as suas funções de reparação, não estivesse obrigado a certificar-se que a máquina estava desligada sempre que precisasse de se introduzir no seu interior e que, caso esta estivesse ligada, não estivesse obrigado a diligenciar no sentido de ser desligada por quem tivesse tal incumbência».

Mas, apesar destas considerações, fundamentou a sua decisão de não considerar o acidente dos autos descaracterizado, nos seguintes termos:

«Impõe-se, contudo, saber se estamos perante um comportamento voluntário do Recorrente, ainda que não intencional e sem causa justificativa.

Ora, adianta-se, desde já, que os factos provados não esclarecem, com suficiência, todas as circunstâncias que levaram o Recorrente a aceder à máquina sem que se certificasse que esta estava desligada, sendo certo que apenas a circunstância de não se ter certificado de que a máquina estava desligada não é suficiente para descaracterizar o acidente.

Na verdade, desconhece-se, porque não alegado nem provado, se o sinistrado sabia que a máquina estava ligada e em modo automático, como estava, caso contrário a sua presença não teria sido suficiente para iniciar o ciclo operativo, no momento em que se introduziu na mesma.

Também ignoramos, porque não alegado nem provado, porque motivo o Autor acedeu ao interior da máquina sem se certificar que a mesma estava desligada: por mera incúria?; por esquecimento?; por entender que, com alguma sorte, no seu interior, se não se movimentasse junto à fotocélula da máquina não haveria perigo dela accionar e entalá-lo?; por estar convencido que a máquina estaria desligada, na medida em que as grades de protecção da máquina ainda não tinham sido colocadas no respectivo sítio e porque, conforme decorre do ponto 11 dos factos provados, os dispositivos de encaixe destinados à retenção ou protecção em trabalhos e que, tinham sido retirados pelo Autor e seu ajudante, ainda não tinham sido colocados na máquina?; se nesse dia, da parte da tarde, o Recorrente, ou o operador, alguma vez, ligou e desligou os comandos eléctricos da máquina, sabendo-se que ao longo das 3 semanas em que vinha decorrendo a reparação a máquina foi ligada e desligada consoante foi necessário?; se em algum momento desse dia o electricista ou o operador da máquina da empresa BB S.A. disseram ao Recorrente que a máquina já estava ligada?

E perante estas interrogações que não são esclarecidas pelos factos provados, impõe-se concluir que nada nos autos aponta no sentido de que o Recorrente actuou voluntária e conscientemente. Na verdade, no caso, só se poderia concluir pela existência de um comportamento voluntário e consciente se se tivesse provado que o Autor, quando acedeu ao interior da máquina, sabia que ela estava ligada. Mas tal não foi alegado nem resultou provado. O que se provou foi, tão só, que o Autor não se certificou que a máquina estava desligada e que os mecanismos de accionamento da mesma estavam desligados.

Ora, perante a factualidade provada pode-se conjecturar e dissertar porque razão ou razões o sinistrado, que era, sem dúvida, pessoa habilitada a proceder à reparação da máquina em causa e que conhecia os seus componentes e modo de funcionamento, bem como as condições de segurança a observar, não se certificou de que a máquina estava desligada.

Contudo, não podemos afirmar, com certeza, que o sinistrado actuou voluntariamente sabendo que a máquina estava ligada no momento em que acedeu ao seu interior e nem podemos excluir que o seu comportamento se traduziu numa desatenção ou esquecimento decorrente do facto de a máquina, ao longo da reparação, ter estado ligada e desligada.»

Concordamos com estas considerações.

Não está provado que o A., quando entrou na máquina, sabia que a mesma estava ligada à corrente elétrica e em modo automático, prova que incumbia à recorrente.

Não pode deixar de se ter em consideração que “no decurso das tarefas inerentes à reparação, com desmontagem, verificação e substituição de suas componentes, a máquina esteve ligada, ou desligada, à corrente eléctrica, consoante fosse necessário”.

Ora, nesse sucessivo ligar e desligar é suscetível de ocorrer um descuido momentâneo do A., ou mesmo o seu convencimento de que a máquina estava desligada da corrente.

Acresce que também não está provado que era ao A. que competia ligar e desligar a máquina.

Por outro lado, a máquina não estava em funcionamento, ou seja, não estava a trabalhar. Estava parada e apenas “por o A. estar no interior da máquina, foi accionado o seu funcionamento, iniciando a mesma o ciclo de operação para o qual estava programada”.

Em suma, os factos provados não permitem concluir que o A. tenha atuado com culpa de tal modo grave como, a nosso ver, o exige a segunda parte, da al. a), do nº 1, do art. 14º, da LAT, que implique a descaracterização do acidente e que, em consequência, o mesmo fique sem reparação.

Donde concluímos, que o acórdão revidendo não merece censura.

5. DECISÃO

Pelo exposto delibera-se:

1 – Negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2 – Condenar a recorrente nas custas da revista.

Anexa-se o sumário do acórdão.


Lisboa, 12.12.2017

Ribeiro Cardoso (Relator)

Ferreira Pinto

Chambel Mourisco

_______________
[1] Relatório elaborado tendo por matriz o constante no acórdão recorrido.
[2] Acórdão redigido segundo a nova ortografia com exceção das transcrições em que se manteve a original.
[3] Cfr. 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, o ac RE de 7/3/85, in BMJ, 347º/477, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.    
[4] Ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386º/446 e Rodrigues Bastos, in NOTAS AO Código de Processo CivIL, Vol. III, pág. 247, ex vi dos arts. 663º, n.º 2, 608º, n.º 2 e 679º do CPC.
[5] Ac. do STJ (4ª secção) de 10.12.2015 (Melo Lima), proc. 2367/12.9TTLSB.L1.S1. No mesmo sentido cfr. também o acórdão deste mesmo tribunal e secção de 22.04.2015 (Melo Lima), proc. 822/08.4TTSNT.L1.S1.
[6] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, pág. 422.
[7] Ac. desta 4ª Secção de 4.11.2009 (Pinto Hespanhol), proc. 154/07.5TTPDL.1.S1. Neste mesmo sentido o ac. desta mesma Secção de 18.05.2017 (Chambel Mourisco), proc. 20/14.8T8AVR.P1.S1 e os diversos arestos ali referenciados, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[8] Ac. do STA de 18.07.1967, in Bol. INTP, XXXVII, 15.5.970, p. 494 citado por Cruz de Carvalho in ACIDENTES DE TRABALHO E DOENÇAS PROFISSIONAIS, LEGISLAÇÃO ANOTADA, 1980, pág. 51.
[9]  In ACIDENTES DE TRABALHO E DOENÇAS PROFISSIONAIS, REGIME JURÍDICO ANOTADO – 2ª edição, Almedina, pág. 61.
[10] Ac. desta Secção de 6.12.2011, proc. 5139/07.97TTLSB.L1.S1 (Sampaio Gomes):
“(…) III - Para que o acidente de trabalho se deva descaracterizar por violação de regras de segurança por parte do trabalhador é necessário, por um lado, que essas regras estejam estabelecidas por directivas da entidade empregadora ou por disposição da lei e que a entidade empregadora crie condições para o seu cumprimento e, por outro lado, que o trabalhador desrespeite voluntariamente e sem causa justificativa tais regras e a sua conduta tenha tido como consequência a produção do sinistro (…)”.
[11] Acórdão de 10.12.2008, proc. 1893/08 (Sousa Grandão):
“I - A descaracterização do acidente de trabalho, com esteio na al. a), do nº 1 do art. 7.º, da LAT exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: que se evidencie uma conduta do sinistrado, por acção ou por omissão, suportada por uma vontade dolosa ou intencional na sua adopção; que existam condições de segurança, impostas por lei ou pelo empregador, e que as mesmas tenham sido desprezadas pelo acidentado, sem causa justificativa. II - Da previsão normativa em análise mostram-se excluídas as chamadas culpas “leves”, desde a inadvertência, à imperícia, à distracção, esquecimentos ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes, ou não, da habituação ao risco. III - Não pode afirmar-se o preenchimento desta hipótese de descaracterização se os autos não fornecem o menor elemento que habilite a afirmar a natureza volitiva - e, consequentemente, o seu grau - da omissão do sinistrado em colocar guarda-corpos na plataforma de trabalho de que veio a cair (…)”.
[12] Acórdão de 11.10.2005, proc. 2062/05 (Sousa Grandão):
“I - A descaracterização do acidente de trabalho pressupõe a constatação de que o sinistrado incorreu na violação de normas de segurança, sendo essa violação causal do acidente (art. 7.º, n.º 1, a), da LAT) ou que este se ficou a dever a negligência grosseira e excessiva do mesmo sinistrado (art. 7.º, n.º 1, b), da mesma lei). II - A previsão referida na alínea a), importa a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: existência de condições de segurança impostas pela entidade patronal ou pela lei; violação, por acção ou por omissão do sinistrado, dessas condições; actuação voluntária embora não intencional, e sem causa justificativa da vítima; acidente provocado, em exclusivo, por aquela actuação, não abrangendo a inadvertência momentânea do sinistrado (…)”.
[13] In O ACIDENTE DE TRABALHO – O ACIDENTE IN ITINERE, Coimbra Editora, 2013, págs. 226-227, dissentindo, aliás, da tese defendida por Pedro Romano Martinez, in DIREITO DO TRABALHO, 2017, 8ª edição, Almedina, página 897/898.  
[14] In ob. cit. págs. 232/234 e 240/246.