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EXPROPRIAÇÃO
NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO DE DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA
DEVOLUÇÃO DA PARCELA EXPROPRIADA
REQUISITOS PARA A DEVOLUÇÃO
Sumário
I- A declaração de nulidade do acto administrativo de declaração de utilidade pública contamina todos os procedimentos subsquentes, incluindo o despacho judicial de adjudicação, podendo no entanto manter-se na ordem jurídica os efeitos de tal despacho, se se verificar uma desproporção grave entre o benefício pretendido pelo titular do direito de propriedade do bem expropriado e o sacrifício por ele imposto á comunidade. II- Nesta situação, o pedido de devolução da parcela expropriada tem de obedecer aos requisitos legitimadores de moderação, equilíbrio, lógica, racionalidade e proporcionalidade do exercício do direito. III- Nesses requisitos não se enquadra o pedido de devolução de uma parcela onde já está construída uma auto-estrada.
Texto Integral
Processo n.º 705/08.8TBVCD.P2
Sumário do acórdão:
I. Da declaração de utilidade pública como facto constitutivo da relação de expropriação, emerge a sujeição do particular à actuação potestativa dos órgãos públicos, não decorrendo directa e exclusivamente desse acto, a extinção do direito de propriedade na esfera do particular e a sua aquisição pela entidade expropriante.
II. A aquisição do direito de propriedade concretiza-se com o despacho judicial de adjudicação previsto no n.º 5 do artigo 51.º do CE.
III. A declaração de nulidade do acto administrativo de declaração de utilidade pública contamina todos os procedimentos subsequentes, incluindo o despacho judicial de adjudicação, podendo no entanto manter-se na ordem jurídica os efeitos de tal despacho, se se verificar uma desproporção grave entre o benefício pretendido pelo titular do direito e o sacrifício por ele imposto à comunidade.
IV. O pedido de devolução da parcela expropriada “no estado em que se encontrava à data da ocupação”, fundado na nulidade do acto administrativo de declaração de utilidade pública, encontrando-se tal parcela integrada numa auto-estrada já concluída, utilizada por uma generalidade de cidadãos, não obedece aos requisitos legitimadores de moderação, equilíbrio, lógica, racionalidade e proporcionalidade do exercício do direito, pelo que a devolução da parcela nos termos preconizados podendo ainda ser direito (numa perspectiva positivista e formal), já não seria justiça.
V. O princípio da “intangibilidade da obra pública” consagra a prevalência do interesse geral sobre o direito particular, articulando-se, nomeadamente, com o n.º 2 do artigo 335.º do CC e a alínea i) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA, conduzindo a que o julgador, tendo em consideração o interesse geral que a obra pública representa, se abstenha de ordenar a sua restituição.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
B…. e esposa C….. instauraram a presente acção declarativa, de condenação, com processo comum e forma ordinária, contra D…., S.A., E….., S.A. e F…., A.C.E., pedindo a condenação das RR: a) a reconhecer o A. como dono e legítimo proprietário da parcela de terreno identificada (parcela n.º 23 do mapa de expropriações, e não também a parcela n.º 24, como rectificado na réplica) que as RR ocuparam e mantêm na sua posse; b) a devolver tal parcela 23 ao Autor, no estado em que se encontrava à data da ocupação; c) a pagar a sanção pecuniária compulsória de 100,00 Euros por dia, desde a data do Acórdão (do STA) que declarou nulo o acto expropriativo até à sua entrega definitiva ou do pagamento de indemnização substitutiva, sendo metade para os AA e metade para o Estado.
Alegaram em síntese os autores, que parte de um imóvel seu foi atingido por expropriação cuja utilidade pública foi declarada por despacho que veio a ser declarado nulo por decisão do Supremo Tribunal Administrativo que as RR jamais cumpriram, pois o terreno expropriado foi afectado à construção da auto-estrada A – 7 e aí se mantém.
A D…., S.A., contestou, invocando a incompetência do Tribunal em razão da matéria, pois seriam da competência dos tribunais administrativos as acções tendentes a efectivar a responsabilidade civil da contestante, deduzindo ainda a excepção dilatória de ilegitimidade passiva, pois a pretensão dos AA não radica em factos por si praticados.
À cautela, impugnou a alegação dos autores, invocando os seguintes argumentos: todo o processo expropriativo foi desencadeado na pressuposição da sua legalidade, a propriedade foi adjudicada à expropriante e os expropriados receberam a indemnização judicialmente fixada; a devolução do terreno aos AA supõe a destruição da auto-estrada, pelo que deve prevalecer o princípio da intangibilidade da obra pública sobre o direito de propriedade do particular que já recebeu a indemnização devida.
As rés E…., S.A. e F…., A.C.E., contestaram, invocando a incompetência do tribunal em razão da matéria, com fundamento em que a acção deveria ter sido intentada nos tribunais administrativos; alegaram a impropriedade do meio processual usado, pois deviam os AA ter executado o acórdão anulatório em que assentam os pedidos; invocaram também a sua ilegitimidade passiva, pois não foram as entidades expropriantes.
Em reconvenção, a ré E…., S.A. pediu o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a parte do prédio onde se encontra hoje a auto-estrada, por o haver adquirido por usucapião.
Os autores replicaram, reiterando os fundamentos já anteriormente invocados na petição e concluindo pela competência do Tribunal, pela legitimidade de todas as rés e pela improcedência do pedido reconvencional.
A ré E…., S.A. treplicou em defesa da procedência da reconvenção.
Foi proferida sentença (fls. 429), onde se julgou incompetente o Tribunal, em razão da matéria, e se absolveu os réus da instância.
Não se conformaram os autores e interpuseram recurso de apelação, julgado improcedente neste Tribunal (fls. 580), onde se confirmou a decisão recorrida.
Continuaram a não se conformar os autores, e interpuseram recurso da decisão deste Tribunal, o qual veio a obter provimento no Tribunal dos Conflitos, onde foi proferida decisão definitiva com este dispositivo: «Concede provimento ao recurso, revoga o despacho recorrido e declara a competência da jurisdição comum para conhecer da presente acção».
Baixaram os autos à primeira instância, onde foi proferido despacho a fixar o valor da causa em 30.000,01 €uros, correspondente ao pedido dos autores, e a considerar que o pedido reconvencional não é distinto do deduzido pelos autores.
Foi proferido despacho saneador, no qual: a) se considerou o Tribunal competente (em razão dos restantes factores de atribuição de competência); b) se considerou que não se suscitam dúvidas quanto à legitimidade da D…., S.A., e E…., S.A., pela simples razão de que a primeira foi a expropriante, e a segunda é a actual concessionária e ocupante da auto-estrada em que se integrou a parcela reivindicada, revelando-se manifesto interesse de ambas em contradizer; c) se considerou que a ré F…., A.C.E., “é completamente alheia aos pedidos e à incorporação da parcela do A. na auto-estrada”, dada a sua qualidade de empreiteira/construtora da auto-estrada, limitando-se por isso “a executar os actos materiais inerentes e indispensáveis à construção, no local e ocupando o solo supostamente adquirido pela expropriante”, concluindo-se, no entanto pela sua não absolvição da instância, apesar da ilegitimidade, de acordo com o disposto na parte final do n.º 3 do art. 288.º do CPC; d) se considerou não se verificar qualquer erro na forma de processo; e) se considerou processualmente inadmissível a reconvenção; f) se considerou que os autos fornecem os elementos necessários para decisão, de acordo com o disposto na al. b) do n.º 1 do art. 510.º do CPC; g) se proferiu decisão de mérito, com o seguinte dispositivo: «Termos em que julgo a acção de todo improcedente e absolvo as RR. dos pedidos».
Não se conformaram os autores, e interpuseram o presente recurso de apelação, apresentando alegações onde formulam as seguintes conclusões:
I. Subjacente à propositura da presente acção esteve, como é consabido, e foi dado como provado nos autos, um juízo de declaração de nulidade, transitado em julgado, do acto de declaração de utilidade pública em que se louvaram as Recorridas para promover uma expropriação por utilidade pública.
II. Resulta dos cânones jurídicos que, o acto declarado nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, tudo se passando, portanto, como se ele não existisse; de igual sorte, ademais, padecem os actos subsequentes. Isto traduzido, no caso concreto, corresponderá pois a afirmar que, não apenas o acto de génese da expropriação é nulo, como nulos são os demais (investidura na posse, adjudicação da propriedade, e, em termos gerais, o processo de expropriação), porque dependentes daquele.
III. A omissão, aquando da condição do processo expropriativo, de um pedido atinente à desafectação do solo e a inerente obtenção de parecer favorável da entidade competente, tem reflexos gravosos no acto que encerra o procedimento; daí que o legislador, respeitando os interesses comunitários envolvidos (urbanismo, ordenamento do território), o haja sancionado, quando assim praticado, sabendo que, como acto procedimental, mais do que não poder ser sanado, jamais poderia ser repetido se praticado fora daquele concreto momento e em data posterior à execução da obra.
IV. Ora, a sentença recorrida não perspectiva em tais termos a acção proposta, e a questão subjacente. Na verdade, salvaguardando acima de tudo o “interesse público do betão”, afastou-se da dogmática jurídico, olvidando aquele postulado de base. Todavia, se de entre as formas de aquisição da propriedade, por partes das Recorridas, se encontra a aquisição por via da expropriação, esta exige, ainda assim, a verificação de um conjunto de pressupostos de legitimidade, não sendo alheia à necessidade de previsão na lei e a sua corporização em acto válido.
V. Na medida exacta em que o acto genético da expropriação foi posto em causa, mais do que estarmos perante uma ofensa a um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, confrontamo-nos com uma utilização abusiva e a non domino do bem. Daí que não seja compreensível dizer-se – como vai dito na decisão recorrida – que não há falta grave ou dolo das Recorridas; só não houve, como se mantém até ao presente, sem que se ache, na perspectiva da M. Juiz “aquo”, mecanismo suficientemente apto a acautelá-lo.
VI. Destarte, é curioso notar que, assumindo claramente a validade substancial do juízo proferido pelo S.T.A., o Tribunal recorrido não soluciona o problema de saber de que forma as Recorridas adquiriram (e especificamente a E.P.) a propriedade sobre o bem. Se não o fizeram por via da expropriação, atento o que vai dito, e se improcedente foi julgado o pedido reconvencional de reconhecimento de aquisição do imóvel por acessão, invocada pela Recorrida concessionária (que curiosamente não poderia adquirir),
VII. Então a posse, porque não titulada, jamais integrou o domínio público, pois que, para acontecer, carecia de título válido (e a usucapião, afora o prazo legalmente previsto, não é forma de aquisição possível).
VIII. Consequentemente, não se compreende que o Tribunal recorrido haja julgado totalmente improcedente a acção. E dizemo-lo pois que, independentemente da [im]procedência de um, ou de alguns dos pedidos, implicar ou não a [im]procedência de todos, facto é que tendo os Recorrentes, lançado mão desta acção para reivindicarem o bem, teriam sempre de ver reconhecido o seu direito de propriedade.
IX. Na esteira daquela que é a construção legal, mas também dogmática, desta figura jurídica, como pedido principal apresenta-se o de reconhecimento da propriedade, o qual, uma vez obtido, leva inerente, por consequência, o direito à restituição do bem; apenas assim não sucederá nos casos plasmados na lei (artigo 1311.º, nºs 1 e 2).
X. Volvendo ao caso concreto, vai dado como provado que a parcela 23 é “pertencente ao A” (ponto 2.º). Isto quer dizer que, na falta de melhor prova, atenta aantecipação para esta sede do julgamento do objecto do litígio, beneficiando oRecorrente da presunção derivada do registo (artigo 7.º do C.R.P.), não tendo sido apropriedade contestada e tendo sido julgado improcedente o pedidoreconvencional (sem que a entidade competente – E.P. – tivesse pedido adeclaração de qualquer direito de idêntica natureza), resulta da declaração denulidade (ponto 2.º da matéria de facto) que apenas ele é proprietário, e assimdevia ver declarado o seu direito.
XI. Assim sendo, o entendimento manifestado na decisão recorrida tornou-a nula por dissidência entre os fundamentos, de facto e de direito, que o Tribunal valorou e o sentido da decisão recorrida, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do C.P.C. Aliás, mais do que se dar prevalência à ilegalidade, sobre os postulados do Estado de Direito, estar-se-á, por via de decisão recorrida, a criar um vazio jurídico quanto à titularidade do direito, que não está, pois, definida.
XII. Colhe do expresso que se o direito de propriedade do bem visado deve ser reconhecido ao Recorrente, e reitera-se uma vez mais, salvo melhor prova, por decorrência da intervenção do Tribunal “a quo”, então o bem ilegitimamente apropriado terá de ser restituído.
XIII. O modo como a decisão proferida coloca, neste particular, o enfoque da questão não deixa de ser curioso; e isto porque, embora não reconhecendo o direito de propriedade, invoca o princípio da intangibilidade da obra pública para julgar improcedente a acção. Sucede que, do regime jurídico transcrito, e tal ocorre em termos próximos na jurisdição administrativa, estão questão só se suscita não numa fase declarativa do direito mas, tendo sido esta obtida, se constate que há uma causa que impede a restituição do bem.
XIV. De outro modo, aliás, seria penalizar os Recorrentes que, tendo sido ablados ou espoliados do seu bem, tendo mérito em procurar sancionar aquela conduta desvaliosa do Direito, não podem sequer ver declarados o mesmo porque há um suposto interesse público – lesivo de outras manifestações desse mesmo interesse – que lhes imporá a improcedência da acção e suportar as custas devidas.
XV. A invocação do mencionado princípio, que para nós, porém, não seria de manter sob pena de se perigar o postulado base do Estado de Direito, e do próprio direito de propriedade, justificar-se-ia, eventualmente, no limite, todavia numa fase subsequente á declaração do direito e à restituição do bem; e posterior porque só quando existe direito é que poder-se-á concluir se será preferível, na ponderação de interesses e direitos convocados, manter-se uma posse que se sabe ser ilegal.
XVI. Todavia, esta linha de argumentação não colheria pois que, perante expropriações ilegais, e de acordo com o quadro de mecanismos de que os particulares podem lançar mão, não cabe dar tutela àquele princípio não escrito quando o acto de génese da expropriação esteja, ele próprio viciado; teria lugar, isso sim, eventualmente, perante situação de «via de facto», situação que não se reconduz à dos autos.
XVII. Isto dito, e pelo menos no que aos dois primeiros pedidos respeita, a acção teria de ser julgada procedente, e consequentemente determinando-se a reconstituição do bem; só se demonstrassem as Recorridas a impossibilidade de reconstituição in natura – o que de momento não consta de todo nos autos, o legislador permitira salvaguardar mecanismos para o ultrapassar.
XVIII. Esta situação acaba ela própria por ir de encontro com a alegação que fizeram os Recorrentes, dando nota de que receberam uma indemnização no processo de expropriação respectivo, mas que, e fruto da declaração de nulidade, sabem que terão de devolver à entidade que a realizou; todavia, fá-lo-ão ora contra a entrega do bem, ora com o ajuste devido com a indemnização peticionada em sede própria.
XIX. Esta situação fica longe, parece-nos, de constituir qualquer causa de abuso de Direito; esta é mais uma conclusão tirada à pressa, pois que a existir o mencionado abuso, ele reporta-se às condutas das Recorridas que, tendo obtido a d.u.p. em 2003, tiveram conhecimento da sua impugnação, nesse mesmo ano, e obtiveram o parecer de desafectação do solo, no ano seguinte, tendo, ainda assim, naquele outro processo, peticionado a fixação da indemnização por referência àquele pressuposto com o intuito claro de diminuir o valor do bem
XX. Em conclusão, e como é sobejamente demonstrado, os autos não se encontravam preparados para prolação de decisão final, pois que carecia de melhor prova, prova essa que o Tribunal resolveu afastar, não abrindo fase de instrução, sede própria para que as partes exercessem o seu direito de oferecer prova e realizá-la.
Consequentemente, e porque os elementos constantes dos autos, na dúvida, não permitiam concluir com certeza, como se vê, pela exclusiva ou necessária improcedência da acção, a não proceder o agora invocado, deverá sempre ser anulado o julgamento efectuado, com vista a produção de prova, atenta a violação do disposto no artigo 510.º, n.º 1, al. b), e bem assim do direito das partes a indicarem e produzirem prova, com vista á demonstração dos factos por si invocados.
As recorridas D….., S.A., E….., S.A.[1] e F….., A.C.E., apresentaram resposta às alegações, preconizando a total improcedência do recurso.
A recorrida D….., S.A., formulou as seguintes conclusões, na sua resposta:
1. Bem andou o Digníssimo Tribunal recorrido que, sem necessidade de apurar qualquer outro facto para além daqueles que resultaram aceites por ambas as partes, deu prevalência à salvaguarda do interesse público e do alegado princípio da intangibilidade da obra pública.
2. Não se entende a ligeireza com que os AA. desvalorizam factos de primordial importância como sejam o parecer favorável da comissão da RAN que efectivamente veio a ser emitido e ainda o facto de terem recebido a indemnização que lhes foi atribuída no processo de expropriação, sem ao seu recebimento aporem quaisquer entraves ou reservas, sendo certo que o podiam e deviam ter feito, desde logo invocando a existência de causa prejudicial ao prosseguimento do processo de expropriação.
3. O parecer favorável da comissão da RAN que não existia na data em que, por lei, deveria constar do procedimento expropriativo, existiu de facto, tendo sido emitido porquanto se preenchiam todos as condicionantes legais impostas por lei para que pudessem ser desafectados solos com vocação agrícola e reservados por lei a este destino de salvaguarda. Ou seja, em nenhuma altura foi beliscado o interesse público de protecção das áreas de reserva.
4. Os recorrentes aceitaram o normal desenvolvimento do processo de expropriação e receberam a indemnização que lhes foi atribuída pela expropriação. Por que é optaram por se conformar com o trânsito em julgado do despacho de adjudicação de propriedade proferido no âmbito do processo de expropriação, se já sabiam que o acto administrativo era nulo? Não é isto abuso de direito.
5. A crítica que os recorrentes fazem à conduta da aqui contra-alegante que opta por traçados rodoviários em solos agrícolas em detrimento de solos urbanos, constitui um desempenho exemplar das suas funções públicas. Será que os recorrentes preferiam que ao Povo Português fosse pedido o sacrifício de ficar sem as habitações de milhares de pessoas e sem o dinheiro necessário para as compensar desses inigualáveis prejuízos sociais?
6. Tendo sido compensados dos prejuízos pela desapropriação do terreno, resulta não só inútil a presente lide como constitui gritante abuso de direito o que vem de ser reclamado, pelo que nada mais se impunha conhecer que impedisse o conhecimento imediato do pedido deduzido.
7. A decisão recorrida manifesta-se como tal inatacável.
II. Do mérito do recurso 1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões: i) saber se a decisão recorrida enferma de nulidade “por dissidência entre os fundamentos, de facto e de direito (…) nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do C.P.C.” [conclusão 11.ª]; ii) saber se se verifica a nulidade porque “os autos não se encontravam preparados para prolação de decisão final” [conclusão 20.ª]; iii) reapreciação do mérito jurídico da decisão na eventualidade de se concluir pela não verificação das nulidades suscitadas.
2. Apreciação das nulidades arguidas 2.1. A alegada oposição entre os fundamentos e a decisão
Nos termos do disposto no artigo 668º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, a sentença é nula sempre que os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
O vício invocado pelos recorrente verifica-se sempre que os fundamentos de facto e de direito invocados conduzam logicamente a resultado oposto ou diverso daquele que integra o respectivo segmento decisório[2].
Decorre do exposto que os fundamentos de facto e de direito da sentença devem ser logicamente harmónicos com a pertinente conclusão ou decisão e que tal se não verifica quando haja contradição entre esses fundamentos e a decisão nos quais assenta.
Não se confunda a contradição lógica apontada no recurso [entre os fundamentos e a decisão da sentença], com o erro de interpretação dos factos ou do direito ou da integração daqueles neste[3].
Analisada a sentença sob censura, não verificamos a apontada contradição. Pelo contrário, os factos considerados provados, juridicamente integrados, estão em harmonia com a conclusão expressa no dispositivo.
Todo o percurso expositivo que culmina no segmento decisório da sentença se revela formalmente coerente, sendo manifesta a harmonia lógica entre os fundamentos de facto e de direito invocados e a decisão que suportam, revelando-se manifestamente improcedente o recurso nesta parte. 2.2. A alegada necessidade da fase de instrução omitida
A M.ª Juíza considerou que os autos forneciam todos os elementos necessários para a decisão, de acordo com o disposto na al. b) do n.º 1 do art. 510.º do CPC, tendo proferido a sentença em sede processual de “saneador”.
Prescreve a disposição legal citada: «1. Findos os articulados, se não houver que proceder à convocação da audiência preliminar, o juiz profere, no prazo de vinte dias, despacho saneador destinado a: […] b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidas deduzidos ou de alguma excepção peremptória».
Na conclusão 20.ª, das suas alegações de recurso, dizem os recorrentes: “como é sobejamente demonstrado, os autos não se encontravam preparados para prolação de decisão final, pois que carecia de melhor prova, prova essa que o Tribunal resolveu afastar, não abrindo fase de instrução, sede própria para que as partes exercessem o seu direito de oferecer prova e realizá-la”.
Lidas e relidas as alegações, com o devido respeito não vislumbramos qualquer demonstração da tese defendida.
Os ora recorrentes não alegam um único facto, relativamente ao qual pretendam fazer prova. Arguindo a nulidade por falta de fase de instrução, incumbia-lhes identificar os factos que entendem que deveriam integrar o thema decidendum factual, de forma a permitir ao Tribunal de recurso apreciar a sua relevância, integrando-os no respectivo elenco, caso estivessem assentes, ou determinando a produção de prova, caso se revelassem controvertidos.
Compreende-se a omissão dos recorrentes, dado que a única matéria controvertida é a integração jurídica dos factos, que se revelam pacíficos.
A M.ª Juíza entendeu, e bem, que os autos fornecem todos os elementos necessários, não se vislumbrando a necessidade de produzir qualquer prova, sobre factualidade cuja identificação é totalmente omitida pelos recorrentes.
Revela-se manifesta a improcedência do recurso nesta parte.
3. Fundamentos de facto
Encontra-se provada nos autos a seguinte factualidade relevante:
1 – Por despacho do Sr. Secretário de Estado das Obras Públicas n.º 11056-A/2003, publicado no DR, II série, de 3.6.2003, foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação das parcelas de terreno necessárias à execução da obra da concessão norte A7/IC5 – Póvoa de Varzim – Famalicão – Sublanços IC/1 (Póvoa do Varzim) – En 206 – Famalicão e identificadas no mapa e planta anexos.
2 – Entre essas parcelas abrangidas pela expropriação assim decretada conta-se a n.º 23 do mapa anexo, com 26.291 m2, pertencente ao A.
3 – No desenvolvimento do processo expropriativo, foi a parcela incorporada na auto-estrada A 7, entretanto concluída
4 – As parcelas referidas em 1 estavam inseridas na RAN e aquando do Despacho ali mencionado não tinham sido dela desafectadas nem tinha sido pedido parecer à Comissão da Reserva Agrícola.
5 - Em reunião de 3.09.2004 a Comissão Regional de Reserva Agrícola de Entre Douro e Minho emitiu parecer favorável à utilização de 580.690 m2 de solo agrícola para construção da A7/IC 5 (Póvoa de Varzim – Vila Nova de Famalicão).
6 - No processo de expropriação que correu termos pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Vila do Conde sob o n.º 2720/04.1TBVCD, foi adjudicada a parcela de terreno em causa à entidade expropriante, tendo os ora autores (expropriados) recebido a respectiva indemnização.
7 - Por Acórdão de 19.6.2007, proferido no recurso n.º 1458/03-12 em que o A. foi, com outros, recorrente, e eram recorridos o Secretário de Estado das Obras Públicas e as aqui RR, o Supremo Tribunal Administrativo declarou nulo o acto identificado em 1 acima porque o seu autor não colheu prévio parecer favorável da Comissão da Reserva Agrícola de Entre Douro e Minho, parecer necessário porque a parcela 23 ora em causa – e só essa aqui interessa – estava integrada na Reserva Agrícola Nacional.
4. Fundamentos de direito 4.1. Os limites éticos do exercício do direito dos autores
Em suma, a questão equaciona-se desta forma: os ora autores foram expropriados de uma parcela de terreno; no âmbito do processo expropriativo (n.º 2720/04.1TBVCD) receberam a respectiva indemnização; a parcela foi incorporada na auto-estrada A 7; requerem a devolução da parcela “no estado em que se encontrava à data da ocupação”; propõem-se devolver a indemnização recebida “contra a entrega do bem” (Conclusão XVIII).
Na sentença sob censura, a M.ª Juíza sintetiza nestes termos o absurdo da pretensão, perante o bom senso e a prudência que devem presidir ao acto de julgar: “não cabe na cabeça de qualquer juiz normalmente sagaz e prudente mandar destruir parte de um autoestrada para, retirado o alcatrão e mais componentes, plantar árvores e ervas, restituindo o solo ao estado de terreno agrícola anterior à expropriação e sua incorporação na autoestrada”.
A questão remete-nos para os limites éticos do exercício do direito, onde se deverá ter em conta um dos fins essenciais do direito: o bem comum[4].
O processo visa realizar o direito (art. 2.º/2 do CPC), com vinculação ao “apuramento da verdade e à justa composição do litígio” (art. 265/3 CPC), devendo ajustar-se a forma ou procedimento ao fim visado (art. 265.º-A do CPC), não devendo nunca esquecer-se que “a Justiça é um valor ético e que às normas de Direito inere a pretensão de realizar esse valor”[5].
A pretensão que os autores, ora recorrentes, pretendem realizar nesta sede processual ignora ostensivamente o “bem comum”, como se apenas relevasse para a ordem jurídica “o seu direito”, sem quaisquer limites, designadamente os impostos “pelos bons costumes”, que nos remetem para as regras da moral social[6].
O direito invocado aparece assim desligado dos interesses da comunidade, gerando uma “desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem”[7], in casu a um conjunto vastíssimo de cidadãos que utilizam a auto-estrada, que os recorrentes, para única e exclusiva satisfação do direito que invocam, pretendem ver cortada.
O direito que os autores invocam, realizado nos precisos termos em que o preconizam - devolução da parcela “no estado em que se encontrava à data da ocupação” – poderia ainda ser direito (numa perspectiva positivista e formal), mas já não seria justiça[8].
Lendo atentamente as conclusões de recurso, fica-nos a convicção de que são elaboradas num plano teórico, sem descer à realidade concreta, onde os direitos não se exercem numa redoma isolada, antes interagem com o exercício de outros direitos, com que por vezes colidem, que por vezes condicionam, numa dinâmica que não pode ser ignorada, porque se trata da realidade social da qual o direito é parte integrante e estruturante.
A realização do direito dos ora recorrentes, tal como vem peticionada, teria esta consequência: cortava-se a A7, subtraindo-lhe a parcela em causa, ficando naquele local um espaço bucólico, agrícola (tal como era antes), interrompendo-se ali o movimento dos cidadãos utentes da via, em homenagem a um direito (o direito dos autores), absolutamente esvaziado de conteúdo ético, porque implicava um imenso sacrifício para a generalidade dos cidadãos, numa desproporção que o direito, encarado na perspectiva de realização da justiça, não pode tutelar.
O direito assim perspectivado não obedece aos requisitos legitimadores do seu exercício “moderado, equilibrado, lógico, racional”, referidos por Pires de Lima e Antunes Varela[9], podendo equacionar-se o instituto do abuso de direito como suporte suficiente para a recusa de provimento da pretensão dos autores[10].
Acresce que se provou que em reunião de 3.09.2004 a Comissão Regional de Reserva Agrícola de Entre Douro e Minho emitiu parecer favorável à utilização de 580.690 m2 de solo agrícola para construção da A7/IC 5 (Póvoa de Varzim – Vila Nova de Famalicão).
A declaração de nulidade suportou-se exclusivamente na omissão do parecer em causa[11], e este facto essencial (emissão tardia da parecer omitido), não sendo susceptível de validar o acto administrativo viciado, revela-se fundamental na ponderação e na definição da prevalência dos interesses conflituantes em presença.
Há, no entanto, que abordar a questão numa outra perspectiva.
4.2. A sustentabilidade do acto de adjudicação, face ao interesse público
Dúvidas não restam, de que o acto administrativo que esteve na génese do processo expropriativo [despacho do Sr. Secretário de Estado das Obras Públicas onde foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação da parcela] é nulo, porque assim foi declarado por acórdão do STA, de 19.6.2007, com fundamento na falta do parecer favorável da Comissão da Reserva Agrícola de Entre Douro e Minho.
Como consequência da declaração de nulidade, conforme se colhe do ensinamento do Professor Freitas do Amaral[12], o acto é ineficaz desde o início, sendo tal vício insanável.
Face a este regime, o vício em causa é insanável, não ocorrendo a reabilitação do acto, como se disse, apesar de se ter provado que, em momento anterior à prolação do acórdão que declarou a nulidade, em reunião de 3.09.2004, a Comissão Regional de Reserva Agrícola de Entre Douro e Minho emitiu parecer favorável à utilização da parcela.
Tem-se questionado na doutrina, qual o efeito da declaração de utilidade pública, nomeadamente se da mesma decorre, desde logo, a aquisição dos bens ou direitos pelo beneficiário da expropriação[13].
Na óptica do Professor José de Oliveira Ascensão[14], o efeito da declaração de utilidade pública é tecnicamente a sujeição à expropriação, “os bens ficam onerados em termos reais, sendo o titular impotente para evitar a actuação potestativa por parte dos órgãos públicos”. Conclui o autor citado, que da mera declaração de utilidade pública não resulta a expropriação mas a sujeição à expropriação: “a expropriação só surgirá no termo do processo expropriatório”.
Dispõe o n.º 5 do artigo 51.º do Código das Expropriações[15]: «Depois de devidamente instruído o processo e de efectuado o depósito nos termos dos números anteriores, o juiz, no prazo de 10 dias, adjudica à entidade expropriante a propriedade e posse, salvo, quanto a esta, se já houver posse administrativa, e ordena simultaneamente a notificação do seu despacho, da decisão arbitral e de todos os elementos apresentados pelos árbitros, à entidade expropriante e aos expropriados e demais interessados, com indicação, quanto a estes, do montante depositado e da faculdade de interposição de recurso a que se refere o artigo 52º».
A aquisição da propriedade só ocorre em momento posterior ao acto administrativo de declaração de utilidade pública, em consequência do despacho judicial previsto no normativo que se transcreveu[16].
Em suma, a aquisição da propriedade por parte da entidade expropriante decorre como consequência de um acto judicial que no encadeado do procedimento expropriativo se deverá qualificar como “acto consequente”, de acordo com a terminologia administrativa.
O Professor Freitas do Amaral[17] define tais actos nestes termos: “Os actos consequentes foram praticados, ou dotados de certo conteúdo, em virtude da prática de um acto anterior, de tal modo que sem o acto antecedente os actos consequentes não podiam ter sido praticados ou, pelo menos, não podiam ter sido praticados com o conteúdo que lhes foi dado”[18].
A alínea i) do n.º 2 do artigo 133.º do Código de Procedimento Administrativo fere de nulidade “Os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente”.
Em anotação a este normativo, escrevem Mário Esteves de Oliveira e outros[19] “Tem de aplaudir-se a excepção legalmente estabelecida - nos casos em que o acto consequente é (seria) nulo - nesta alínea i) do art. 132.º, n.º 2: se existirem contra-interessados com interesse legítimo na sua manutenção, põe-se dúvidas quanto a saber se o acto passa, então, a ser anulável (e apenas desapareceu a automaticidade da sanção da nulidade) ou se deixa, mesmo, de ser inválido e deve ser mantido. É esta, naturalmente, a boa solução”.
Desenvolvendo este conceito em sede legitimação da excepção à execução das sentenças administrativas, o Professor Freitas do Amaral[20] cita a tese do Professor Marcelo Caetano, que referia como excepção à exequibilidade as situações “que possam provocar perturbações da ordem ou danos irreparáveis em obras ou em bens de interesse geral”, concluindo: “parece não haver dúvida de que os interesses colectivos devem prevalecer sobre os interesses individuais, de tal sorte que entre o interesse da Administração (…) e o interesse do particular (…) é incontestavelmente o segundo que deve ceder em confronto com o primeiro”.
Regressamos nesta matéria, à questão já abordada, dos limites éticos do exercício do direito, onde se deverá ter em conta um dos fins essenciais do direito: o bem comum[21]. In casu, temos um despacho de adjudicação judicial (através do qual a entidade expropriante adquiriu o direito de propriedade sobre a parcela em causa), que se deverá qualificar como “acto consequente”, relativamente a um acto administrativo que o precede e que foi declarado nulo, estando tal despacho “contagiado” pela mesma nulidade [artigo 201.º, n.º 2 do CPC], havendo um “interesse legítimo” na sua manutenção (da comunidade, que frui o bem comum – auto-estrada, onde se integrou a parcela). Quid juris?
O Professor Fernando Alves Correia[22], traça duas hipóteses que se deparam ao particular, na sequência da anulação do acto administrativo de declaração de utilidade pública: i) caso os bens expropriados ainda não tenham sofrido transformações substanciais e a obra pública não esteja concluída ou em estado adiantado de execução, a anulação contenciosa do acto em causa tem como efeito o desaparecimento ope juris de todos os efeitos; ii) caso o bem expropriado já tenha sofrido profundas transformações em face do fim da expropriação, encontrando-se substancialmente modificada ou prejudicada a vocação que tinha à data do início do processo expropriativo, a execução[23] da decisão do tribunal administrativo torna-se impossível, porque “acarretaria grave prejuízo para o interesse público”, traduzindo-se numa causa legítima de inexecução da sentença dos tribunais administrativos.
Conclui o Professor citado, que na segunda hipótese enunciada, em homenagem à prevalência do interesse público, o particular fica impossibilitado de recuperar o seu bem, defendendo, com apoio da jurisprudência francesa, a reparação do expropriado com uma indemnização que deverá então cobrir a totalidade dos prejuízos suportados, nomeadamente aqueles que não tinham sido abrangidos pela indemnização normal da expropriação, como o prejuízo moral[24].
Apoiada no pensamento do Professor Fernando Alves Correia[25], a jurisprudência tem vindo a aplicar a estas situações o princípio da “intangibilidade da obra pública”[26], como forma de salvaguarda e prevalência do interesse comum geral no confronto com o interesse particular.
Este princípio geral é o mesmo que se encontra aflorado no citado artigo 133.º, n.º 2, alínea i) do CPA, onde se salvaguarda a possibilidade de manter o acto consequente ao acto administrativo nulo (in casu o acto judicial de adjudicação), face à primazia do interesse colectivo.
No sentido apontado se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 29.04.2010[27]: «O denominado princípio da “intangibilidade da obra pública”, princípio geral do direito das expropriações, a operar, nomeadamente, quando tendo havido um princípio de actuação legal expropriativa não ocorra um atentado grosseiro ao direito de propriedade, conduz a que o julgador já não deverá colocar a Administração numa posição idêntica à de um qualquer particular, determinando a restituição do bem ou demolição da obra como meios de fazer cessar uma “via de facto”, mas, atendendo ao interesse geral que a obra pública representa, abster-se de ordenar a restituição e limitar-se a conceder ao proprietário uma indemnização pela privação do gozo da coisa, enquanto ela se verificar»[28].
Como bem se refere na sentença recorrida, a doutrina expressa no acórdão citado encontra também suporte no disposto no art. 335 do CC, sobre a colisão de direitos, de espécie diferente, prevalecendo o interesse colectivo, protegido pelo princípio da intangibilidade da obra pública[29].
Em conclusão, pese embora a nulidade que inquina o acto administrativo de declaração de utilidade pública, vício que contamina o acto judicial de adjudicação da propriedade, face à prevalência do interesse público colectivo, tutelado pelo princípio da intangibilidade da obra pública, não é viável a declaração do direito de propriedade dos autores/recorrentes, com a consequente devolução da parcela expropriada “no estado em que se encontrava à data da ocupação”.
Face a todas as considerações que se teceram, afigura-se manifesta a improcedência do recurso, que terá que naufragar, não merecendo censura a decisão recorrida.
IV. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento, mantendo a decisão recorrida.
Custas do recurso pelos Apelantes.
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O presente acórdão compõe-se de vinte páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.
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Porto, 29 de Outubro de 2012
Carlos Manuel Marques Querido
José Fonte Ramos
Ana Paula Pereira de Amorim
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[1] Agora “designada Ascendi Norte – Auto Estradas do Norte, S.A.”
[2] Acórdão do STJ, de 30.09.2004, proferido no Processo n.º 04B2894, acessível em http://www.dgsi.pt
[3] Como adverte o Professor Antunes Varela (Antunes Varela Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1985, pág. 686), não se incluem entre as nulidades da sentença, o erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável e o erro na construção do silogismo judiciário, ao contrário do que ocorria no Código de 1867.
[4] Gustav Radbruch (Filosofia do Direito, Arménio Amado Editor, 1979, pág. 417, Tradução e Prefácio de Cabral Moncada)
[5] João Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 62
[6] Revistada Ordem dos Advogados, Ano 2005, Ano 65 - Vol. II - Set. 2005, Artigos Doutrinais
[7] António Menezes Menezes Cordeiro, revista citada
[8] Referimo-nos ao conceito de “Justiça”, que alguém definiu como “Pólo Norte do direito”, e que Gustav Radbruch (Filosofia do Direito, Arménio Amado Editor, 1979, pág. 91, Tradução e Prefácio de Cabral Moncada), elege como razão de ser do direito: «o direito não é afinal senão a realidade que tem o [9] Código Civil Anotado, 4.ª edição, Volume 1.º, pág. 300
[10] A questão é aflorada nas conclusões de recurso, sendo no entanto entendimento pacífico nos tribunais superiores o entendimento de que, verificando-se os pressupostos do instituto do abuso de direito (art. 334.º CC), ainda que o mesmo não tenha sido invocado pela parte que dele se pode prevalecer, por estar em causa um interesse de ordem pública, o mesmo é de conhecimento oficioso - nesse sentido, vejam-se os seguintes acórdãos: Ac. STJ, de 25 de Novembro de 1999, CJ, Acs. STJ, Ano VII, Tomo 3, 1999, pág. 124, e acórdão deste tribunal, de 22.01.2008, Proc. 665/1998.C1, acessível em http://www.dgsi.pt.
[11] Razão inquestionavelmente suficiente, face à imperatividade do parecer em causa e na medida em que a lei fulmina com a nulidade a sua omissão.
[12] Direito Administrativo, Volume III, Lisboa, 1989, pág. 324
[13] Fernando Alves Correia - As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, págs. 110 e 178 – define a declaração de utilidade pública como o facto constitutivo da relação de expropriação
[14] Estudos sobre Expropriações e Nacionalizações, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1989, pág. 38
[15] Aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro, actualizado de acordo com: Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro – Rectificada pela Declaração de Rectificação nº 18/2002, de 12 de Abril; e Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro – considerando que a DUP ocorreu em 3.06.2003.
[16] O autor citado defende que a aquisição expropriativa tem natureza originária e não derivada (ob. cit., pág. 51). Parece ser essa a tese prevalecente na doutrina. Veja-se, a propósito, Salvador da Costa (Código das Expropriações e Estatuto dos Peritos Avaliadores, Anotados e comentados, Almedina, 2010, pág. 86), onde se refere “a extinção do direito de propriedade do expropriado e a sua aquisição pela entidade expropriante”. Tal matéria não releva, no entanto, na apreciação do caso que nos ocupa.
[17] A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, 2.ª edição, Almedina, pág. 84
[18] Para Mário Esteves de Oliveira, são “aqueles actos cuja prática ou sentido foram determinados pelo acto agora anulado ou revogado, e cuja manutenção +e incompatível com a execução da decisão anulatória ou revogatória” (ob. cit., pág. 650)
[19] Código de Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição., Almedina, 1997, pág. 651
[20] A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, 2.ª edição, Almedina, pág. 132 a 137
[21] Gustav Radbruch (Filosofia do Direito, Arménio Amado Editor, 1979, pág. 417, Tradução e Prefácio de Cabral Moncada).
[22] As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública – Separata do voluma XXIII do Suplemento não Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1982, pág. 199 e seguintes.
[23] Leia-se “a produção de efeitos”.
[24] Desenvolvendo este conceito à luz do nosso ordenamento jurídico, defende o Professor Fernando Alves Correia (ob. cit., pág. 204), que “o particular terá direito a uma tríplice indemnização: 1) Uma indemnização correspondente ao valor real e corrente dos bens expropriados. 2) Uma indemnização que abrange os danos não cobertos pela anterior, com base na responsabilidade civil extracontratual da Administração por prática de um acto administrativo ilícito culposo (…). 3) Uma indemnização dos danos decorrentes da inexecução da sentença anulatória do acto de declaração de utilidade pública (…)”.
[25] As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, Almedina, 1982, págs. 172 e seguintes e 195.
[26] Veja-se, no sentido enunciado, o acórdão do STJ, de 9.1.2003, proferido no Processo 02B3575 (acessível em http://www.dgsi.pt).
[27] Proferido no Processo n.º 1857/05.4TBMAI.S1, acessível em http://www.dgsi.pt.
[28] No mesmo sentido, veja-se a decisão proferida por este Tribunal em 29.03.2011, no Processo n.º 1120/08.9TBSJM.P1, sumariada nestes termos: «I - O “principio da intangibilidade da obra pública” determina a sua preservação, dando prevalência ao interesse público sobre o interesse privado do expropriado. II - Ocupada pelas autarquia uma faixa de terreno não expropriada que ficou integrada na rua cujo alargamento foi determinativo da expropriação, em obediência a tal princípio pode ser recusa da entrega do prédio ocupado».
Ainda no mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 29.06.2006, proferido no Processo n.º 6863/2005-6, e o acórdão do TCAN, de 27.10.2011, proferido no Processo n.º 00695/06.1BEVIS, cujo sumário se transcreve parcialmente: «Dado a parcela expropriada se mostrar integrada numa via rodoviária que se encontra aberta ao público vai para 09 anos (EN 224 – Variante entre Oliveira Azeméis/Vale Cambra) a reposição da legalidade em reintegração da pretensão do demandante com “eliminação”, no plano dos factos e do direito, daquela situação perspectiva-se senão numa situação de impossibilidade pelo menos uma situação produtora dum excepcional prejuízo para o interesse público, o que obsta à procedência da pretensão e determina a modificação objectiva da instância nos termos do n.º 1 do art. 45.º do CPTA aplicável “ex vi” art. 49.º do mesmo código» (ambos os arestos se encontram acessíveis em http://www.dgsi.pt.
[29] Na sentença recorrida verifica-se alguma imprecisão relativamente ao conceito de “via de facto”. Como refere o Professor Fernando Alves Correia na obra citada (pág. 172), não se verificam os pressupostos da “via de facto” numa intervenção da Administração no património do particular, que esteja coberta pela “presunção de legalidade” de que em geral gozam os actos da administração, não obstante estar aberta a possibilidade de o particular impugnar contenciosamente a correcção jurídica do acto. A “via de facto” apenas ocorre quando a conduta da Administração enferme de uma ilegalidade “de tal modo flagrante, grave e indiscutível” que se torne “manifestamente insusceptível de ser referida ao exercício de um poder pertencente à Administração”. Trata-se em suma de uma violação grosseira das normas e princípios que vinculam a Administração, sem existir, sequer, aparência de legalidade.