OFENSAS CORPORAIS
ELEMENTO SUBJECTIVO
Sumário

Se é certo que um “empurrão” pode ofender ou molestar a integridade física ou o corpo do ofendido, não se preencherá o elemento subjectivo do crime quando o autor do facto apenas realizou uma acção natural de repulsa ou de afastamento coercivo

Texto Integral

I. – Relatório.

Em discrepância com o julgado no processo supra referido, que na improcedência da acusação impulsada pelo Ministério Público contra o A.., divorciado, electricista, filho de B... e de C..., natural de Maiorga, concelho de Alcobaça, residente em X..., Maiorga, Alcobaça, o absolveu da prática de um crime de maus tratos, p. e p. pela al. a) do n.º 1 e n.º 2 do art. 152º do Código Penal, por que fora indiciado, recorre o Ministério Público, tendo despedido as sua proficiente motivação com as conclusões que para aqui se trasladam.
“1.Vem o presente recurso interposto da douta Sentença de fls., que absolveu o arguido da prática de crime de maus-tratos a cônjuge p.p. pelo art. 152º nº 1 al. a) e 2 do Cód. Penal;
2.A douta sentença recorrida deu como assente que: "Na sequência de uma discussão, o arguido empurrou a Assistente e noutra chamou-a de “puta de estrada;
3.A douta sentença recorrida deu como não provado que o arguido tenha agido de forma deliberada, livre e consciente, querendo, magoar física e psiquicamente a ofendida;
4.O tipo legal do art. 143º nº 1 o Cód. Penal fica, deste modo, preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados, ou de uma eventual incapacidade para o trabalho;
5.Integra o crime do artigo 143º nº 1 do Cód. Penal, a agressão voluntária e consciente que se traduziu num empurrão à ofendida, ainda que este não tenha sofrido qualquer lesão, dor ou incapacidade para o trabalho;
6.O tipo legal do art. 143º do Cód. Penal, exige o dolo em qualquer das suas modalidades. O dolo de ofensas à integridade física refere-se às ofensas no corpo ou na saúde do ofendido. A motivação do agente é irrelevante sob este ponto de vista;
7.Para o preenchimento dos elementos subjectivos do crime de ofensa à integridade física, basta a existência de dolo genérico, não sendo, por isso, penalmente exigível a presença de dolo especifico;
8.Face à materialidade factual provada, não poderia a douta sentença dar como não provada a falta do referido elemento subjectivo do crime de ofensa á integridade física;
9.A acção foi voluntária e nada faz presumir que o arguido não tenha tido consciência da ilicitude do facto, porque se trata de factos cuja ilicitude é de imediata compreensão para um homem médio;
10.A douta Sentença a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, porquanto deu como provado que o arguido empurrou a assistente – elemento objectivo e integrador do crime de ofensa á integridade física simples – mas deu como não provado que o arguido tivesse agido de forma deliberada, livre e consciente, querendo, molestar a integridade física da ofendida;
11.Ao ter-se decidido como se decidiu, a douta sentença violou o disposto nos art. 14º e 143º nº 1 do Cód. Penal e 127º e 410º nº 2 al. c) do Cód. Proc. Penal.
Em conformidade,
Deverá o presente recurso ser julgado procedente e, a douta sentença a quo ser revogada e substituída por outra que condene o arguido A..., como autor material, pela prática de um crime de ofensa á integridade física p.p. pelo art. 143º nº 1 do Cód. Penal, em pena de multa, de acordo com a gravidade dos mesmos e com a exigência de prevenção geral e especial que, no caso se fazem sentir”.
Nesta instância o distinto Proc.Geral-Adjunto, conclui o diserto parecer pela forma seguinte:”Com efeito, sendo certo que não seja suficiente uma acção isolada do agente contra a vitima para poder subsumir os factos ao crime de Maus Tratos do art. 152º do C.P., (Ac. S.T.J. de 30110/2003; Col. Jur., Ac.s STJ, III-208), compreendendo-se pois que o arguido tenha sido absolvido deste crime, não significa que o arguido por esses mesmos factos, como nos autos, salienta o Ministério Público recorrente, se eles só por si constituírem, como constituem, um outro crime autónomo (Ofensas à Integridade Física Simples, p. e p. pelo art. 143º nº 1 do C.P.), ainda que com recurso ao disposto nos art.s 358º e/ou 359º do C.P.P., deixe de ser condenado ou responsabilizado por eles”.
Na economia processual ressumada das conclusões é possível extrair as sequentes questões:
A. – Erro Notório na apreciação da Prova;
B. – Materialidade típica do crime de ofensa à integridade física – Elemento Subjectivo (Dolo).
II. – Fundamentação.
II. – De Facto.
Da discussão logrou o tribunal ressumar a sequente matéria de facto:”1.o arguido viveu maritalmente com D... desde Janeiro de 1999, tendo um filho desse relacionamento;
2. na sequência de uma discussão, o arguido empurrou a Assistente e noutra chamou-a de "puta da estrada";
3. a Assistente foi assistida por psicólogas na Maternidade Bissaya Barreto, na cidade de Coimbra;
4. o arguido aufere mensalmente cerca de € 1.000,00;
5. reside em casa própria, que se encontra paga;
6. tem um filho de outra relação, pagando € 125,00 mensais a título de prestação alimentícia;
7. tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade;
8. o arguido é conhecido como pessoa amiga e trabalhadora;
9. ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais;
Afastou o tribunal, por inverificada, a facticidade que a seguir se deixa transcrita:”volvidos cerca de 6 meses depois de passarem a viver juntos, o arguido e a Assistente começaram a ter frequentes discussões por causa de outra mulher;
. numa dessas ocasiões e por causa da discussão, a arguida tentou cortar os pulsos;
. noutras ocasiões o arguido ameaçava-a com uma pistola dizendo que a matava e costumava bater-lhe com a coronha da arma na cara;
. em virtude das agressões físicas sofridas, que ocorriam de 3 em 3 semanas, várias vezes teve a Assistente de receber tratamento hospitalar;
. na sequência de tais discussões era normal o arguido desferir murros na Assistente, agarrá-la pelos cabelos e empurrá-la contra as paredes e chamar-lhe nomes, tais como “puta da estrada” e “ordinária”;
. no dia 21.06.2003, cerca das 22h00, na residência sita na Y..., Maiorga, Alcobaça, o arguido teve uma discussão com a Assistente, na sequência da qual veio a desferir-lhe bofetadas e murros na cabeça;
. agarrou-a ainda pelos cabelos e bateu-lhe com a cabeça contra a parede;
. perante este comportamento do arguido a Assistente abandonou a residência, tendo ido viver para uma Associação em Pombal e depois para Caldas da Rainha;
. o arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, querendo, reiteradamente, magoar física e psiquicamente a ofendida e causar-lhe medo, bem sabendo que punha em risco a saúde da mesma e que tal conduta não era permitida por lei.
Assoalhou o tribunal a sua convicção com a fundamentação que se deixa trasladada, na ìntegra:”Para a decisão da matéria de facto o Tribunal procedeu a uma análise global e criteriosa de toda a prova produzida, que foi interpretada, conjugada e ponderada segundo cânones de razoabilidade, adequação e sempre em observância das regras por que se pauta o processo penal.
Desde logo, atendeu aos relatórios e documentos ínsitos nos autos, nomeadamente de fls. 30 a 33, 52 e 139 e ss..
Considerou, por outro lado, as declarações do arguido, que negou a prática dos factos imputados na acusação, antes referindo que cerca ocasião terá empurrado a assistente, esta, noutra ocasião, é que bateu com a própria cabeça na parede em consequência do seu estado de nervosismo, e que, na sequência de uma discussão, a chamou de "puta da estrada". Reconheceu ainda ter uma arma que está em casa, dentro de uma gaveta, sendo que foi a própria Assistente que se cortou num pulso quando lavava uma janela.
A Assistente, por sua vez, confirmou, em termos globais, o teor da acusação.
A testemunha E... referiu que a Assistente foi a consultas suas, apresentando sinais de depressão e que fazia referência à existência de conflitos conjugais graves. Mais referiu a presença de ideias suicidas paralelamente à gravidez.
A testemunha F..., filho da Assistente, aludiu a uma situação em que o arguido bateu com o cano de aspirador na Assistente, outras batia com o cinto na mão, outra com uma mangueira, tendo-o visto bater com a cabeça da Assistente na parede e por vezes, no seio de discussões, Assistente e arguido se chamavam nomes mutuamente.
As testemunhas G..., H..., I... e J... foram abonatórias, tendo este feito alusão a um episódio em que foram a casa do arguido, encontrando a Assistente com a mão embrulhada num pano, estando a janela partida.
Cotejando toda a prova produzida, torna-se patente haver a palavra do arguido contra a da Assistente, o que acaba por ser uma situação comum neste tipo de crimes, em que as agressões sucedem entre quatro paredes e longe de olhares indiscretos.
Nas declarações do arguido não deixou de se tornar evidente o esforço de “suavizar” todas as discussões tidas, actos e palavras, o que encontrou, no contrapólo, uma pintura, com tons carregados, de todos esses eventos, por banda da Assistente, que chegou a afirmar que as discussões aconteciam de três em três semanas, para, em face de sucessivas perguntas, acabar por reconhecer que os episódios não se sucediam com intervalos tão constantes.
Por sua vez, sendo que as declarações de arguido e Assistente foram, de forma patente, parciais e, em si mesmas, inverosímeis pelo exagero, sendo que a demais prova produzida acabou por não esclarecer suficientemente a matéria factual trazida a julgamento.
Isto porque, pese embora o teor do testemunho de F..., também neste segmento não se afirmou imparcial e desinteressado, presente em todos os episódios de violência física e verbal, acabando por o Tribunal ficar na dúvida se a presença inicial do arguido estaria simplesmente a inibir a testemunha (altura em que nada revelou), ou que este, apenas na presença da mãe, estive mais à vontade para relatar factos não verídicos.
De notar que também a Sra. Psicóloga relatou as tendências depressivas da Assistente, aliadas não apenas a problemas conjugais, mas igualmente a uma infância problemática e à gravidez, não sendo despiciendo o facto de a assistência ter sido feita na maternidade, o que é demonstrativo dessa coincidência e coloca dúvidas quanto à etiologia das manifestações depressivas.
Por último, também a testemunha J... afirmou ter visto a Assistente com o pulso cortado, mas a janela partida.
Ora, para além de, a instâncias do Tribunal, a Assistente ter mostrado a cicatriz do golpe, numa só mão, em nada revelador dos normais cortes sucessivos de quem se tenta suicidar, a mesma referiu que o fez dando um murro num vidro que a testemunha em questão afirmou ser pequeno, o que não é compaginável com uma tentativa de suicídio.
Aliás, a própria prontidão e inusitado já aludido intervalo de três semanas entre cada agressão não deixaram de suscitar alguma perplexidade no Tribunal, à qual a Assistente não foi alheia, acabando por relativizar esse intervalo temporal, colocando ainda mais em crise o carácter já titubeante das suas declarações.
Sintetizando, se as declarações do arguido se afirmaram pecar por defeito, foi o próprio excesso das declarações da Assistente, não equilibrado pelo apoio na demais prova produzida, que acabou por suscitar no Tribunal sérias dúvidas sobre a verificação dos factos, que não puderam deixar de ser ultrapassadas em favor do arguido, por assim o impor o princípio in dubio pro reo, dando-se como não provados.
II. – De Direito.
II.A. – Vicio de Erro Notório na Apreciação da matéria de facto – art. 410º nº2, al.c) do Cód. Proc. Penal.
No enquadramento jurídico-processual que é feito dos vícios do artigo 410º, nº2 do CPP, estes assumem-se como erros de julgamento a relevar da contextualização interna da decisão, ou da própria estrutura da decisão, congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico – socialmente situado. [É avonde a jurisprudência do nosso mais alto tribunal (Supremo Tribunal de Justiça) quanto a esta matéria – vícios da decisão, por erro notório na apreciação da prova, insuficiência da matéria de facto para a decisão e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Por todos: Acórdãos do STJ de 1.10.1997; 22.10.1997; 27.11.1997; 4.12.1997; 14.6.1998; 20.1.1998;28.10.1998; 2.12.1999 14.3.2002; proferidos nos processos nºs 8/97; 612/97; 1127/96; 1018/97; 725/98; 690/97; 1098/98; 1046/98; 3261/01; 1748/02. Respigando (e somente quanto ao invocado vício que foi alegado pela recorrente) daqueles que nos parecem mais significativos (sem desprimor para os demais, como é óbvio), escreveu-se no Ac.de 27.11.1997 que:”A contradição insanável da fundamentação dá-se quando, analisando a matéria de facto dada como provada e não provada, se chega a conclusões contraditórias, irredutíveis, que não podem ser ultrapassadas recorrendo-se ao contexto da decisão no seu todo e com recurso às regras de experiência comum”; ou no Ac. de 4.12.1997: “só pode falar-se no vício da contradição insanável da fundamentação quando determinado facto provado seja logicamente contraditório com outro dado factual que serviu de base à decisão final, ou quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida por haver colisão entre os fundamentos”; ou, finalmente o Ac. de 2.12.1999: “A contradição insanável da fundamentação, vicio previsto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP, verifica-se quando se dá como provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão. II – O apontado vício tem de resultar do próprio texto da decisão recorrido, por si ou conjugada com as regras de experiência comum”; ou ainda, por fim, o Ac.de 3.7.2002,”I.- (…).II – O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na al. b) do nº2 do art. 410º do CPP, verifica-se quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal”.Por lidimo exemplar da situação que vem suscitada no presente processo pedimos vénia para transcrição do sumário (da parte interessante) do douto acórdão do STJ, de 18.3.2004, proferido no processo nº 3566/03-5ª secção, e de que foi relator o Exmo. Conselheiro Simas Santos: “IV. – A insuficiência a que alude a al. A) do nº2 do art. 410º do CPP decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão. V. – Ocorre este vicio quando a factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. VI. – Daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não á insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do principio da livre apreciação da prova (art.127º) que é insindicável em reexame da matéria de direito. VII. – A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue à conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras de experiência comum. VIII. – O erro notório na apreciação da prova unicamente é prefigurável quando se depara ter sido usado um processo racional e lógico mas, retirando-se, contudo, de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irrazoável, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, bem como das regras que impõem prova tarifada para determinados factos. X. – O principio in dubio pro reo encerra uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido XI. – Saber se, perante a prova produzida (e que não foi documentada), o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito á matéria de direito, mesmo que de revista alargada. XII. – O STJ só pode sindicar a aplicação do principio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127º do CPP que escapa ao poder de censura do STJ, enquanto tribunal de revista”. ]
Consubstanciando-se o erro num desvio interpretativo de uma dada situação de facto que se apresenta à leitura lógico – racional do individuo, aqui consideradas as envolventes sociais, históricas, pessoais, económicas e/ou outras, a decisão que labore em erro notório há-de expressar esse desvio interpretativo, como evidente e detectável a uma análise perfunctória, de feição intuitivo – racional, do caso em que ele se manifesta ou patenteia. O erro notório torna-se, assim, numa calamidade interpretativa à luz dos princípios da razão histórica e do padrão cognoscente prevalente e socialmente instituído, i. é, das máximas da experiência comum. Quanto ao que há-de ser entendido como máxima de experiência, seja-nos permitida uma citação do autor italiano Paolo Tonini, in “Prova Penale”, CEDAM, 2000, Verona, p. 35, “La mssima di esperianza é una regola di comportamento che esprime quello che avviene nella maggior parte dei casi (id quod plerumque accidit); piú precisamente, essa é una regola che è ricavabile da casi simili”. Ainda segundo este autor, e tendo presnte a doutrina da Corte di Cassazione “a diferença entre (tra) máxima de experiência e mera conjectura reside no facto que no primeiro caso o dado é já dado (stato), ou ainda assim vem submetido a verificação empírica e portanto (quindi) a máxima pode ser formulada sobre a provisão (scorta) do id quod plerumque accidit, enquanto que (mentre) no segundo caso tal verificação não está adquirida, nem o poderá ser, e por isso queda afiançada a um cálculo de possibilidade, do passo que (sicchè) a máxima permanece insusceptível de verificação empírica e portanto de demonstração” (tradução nossa).
Já a insuficiência da matéria de facto para a decisão se reconduz a uma ausência de materialidade substancial, isto é, uma omissão factual contextualizada que inviabiliza e impede que o tribunal possa validamente operar uma adequada e correcta subsunção à previsão ilícito – material contida no preceito incriminatório da facticidade adquirida para o teor decisório. O tribunal podia e devia ter apurado factos que lhe permitissem obter uma factualidade consistente donde fosse possível extrair um veredicto de direito ajustado ao caso.
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação ou entre esta e a decisão, tanto pode ocorrer entre a fundamentação de facto, em si, como entre esta e a fundamentação de direito ou entre esta mesma fundamentação, ou, ainda, entre todas, e cada uma, destas posições antinómicas e a decisão a que se chegou.
Do que se trata, no caso do último dos apontados vícios, é de detectar uma antinomia endógena à estrutura da decisão que torne conflituantes a argumentação de facto ou de direito explanada na parte fundamentadora da decisão com o veredicto que o tribunal assumiu no dispositivo decisório. No silogismo que é mister constituir-se entre as partes fundamentadora da sentença e o dispositivo, a contradição do operar lógico evidencia uma refracção no plano lógico-dedutivo que desconecta o sentido racional do julgado. As premissas enunciativas deixam de exercer o seu papel denotador da decisão para figurarem como desvirtuadoras do processo de formação lógico-racional conclusivo.
Para o recorrente, “a única questão objecto do presente recurso reside em saber se os factos dados como provados, – Na sequência de uma discussão, o arguido empurrou a Assistente – só por si, integra prática de crime de ofensa à integridade física, mostrando-se preenchidos os seus elementos objectivos e subjectivo, e, a ser assim, se ao decidir-se como se decidiu na douta Sentença a quo – dando como não provados o elemento subjectivo – se nela se incorreu em erro notório na apreciação da prova”.
No desenvolvimento da tese que postula, perora que:”dispõe o art. 143º nº 1 do Cód. Penal:
" Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
O bem jurídico protegido é pois a integridade física da pessoa humana, entendendo-se a integridade física como abrangendo a integridade corporal e a psíquica.
A lei distingue assim, duas modalidades de realização do tipo:
a) ofensas no corpo e,
b) ofensas na saúde.
Casos haverá assim, em que existe uma lesão no corpo sem que concomitantemente haja lesão da saúde.
O tipo legal do art. 143º nº 1 do Cód. Penal fica, deste modo, preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados, ou de uma eventual incapacidade para o trabalho.
Assim, integra o crime do artigo 143º nº 1 do Cód. Penal, a agressão voluntária e consciente que se traduziu nu empurrão à ofendida, ainda que este não tenha sofrido qualquer lesão, dor ou incapacidade para o trabalho (neste sentido cfr. Ac. da Relação o Porto de 9/6/2004 e Ac. da Relação do Porto de 6/3/2002, in www.dgsl.pt ).
Atente-se que, já antes da publicação do Cód. Penal de 1982, já vinha sendo entendido que o conceito de ofensa corporal era ético-social e podia existir sem qualquer lesão externa, entendimento esse que o Supremo Tribunal de Justiça, face a dissídio jurisprudencial que se verificava, veio a consagrar por Acórdão do plenário das secções criminais, de 18 de Dezembro de 1991, D.R. série I-A, de 8 de Fevereiro de 1992, fixando jurisprudência no sentido de que "Integra o crime do artigo 142° do Código Penal a agressão voluntária e consciente) cometida à bofetada sobre uma pessoa) ainda que esta não sofra) por via disso) lesão) dor ou incapacidade para o trabalho".
Tal doutrina permanece actual, uma vez que o art. 143º, nº 1 não introduziu alterações no segmento referente ao tipo objectivo do ilícito.”
Para, na linha de razoamento que pretende impostar, ponderar que:”face ao exposto, a conduta do arguido – empurrou a ofendida – é claramente abarcada no alcance que a dita decisão uniformizadora estabeleceu para o conceito de "ofensa no corpo ou na saúde" que integra o tipo legal do art. 143º do C. Penal.
Por outro lado, o tipo legal do art. 143º do Cód. Penal, exige o dolo em qualquer das suas modalidades. O dolo de ofensas à integridade física refere-se às ofensas no corpo ou na saúde do ofendido. A motivação do agente é irrelevante sob este ponto de vista, embora possa ser tida em conta para efeitos de determinação da medida da pena.
É reconhecido que, para o preenchimento dos elementos subjectivos do crime de ofensa à integridade física, basta a existência de dolo genérico, não sendo, por isso, penalmente exigível presença de dolo específico.
Assim sendo, forçoso é concluir que na douta sentença a quo se entendeu, a nosso ver mal:
Ora, em nosso entender empurrar alguém consubstancia a prática de um crime de ofensa à integridade física.
Assim, face à materialidade factual provada, não poderia a douta sentença dar como não provada a falta d referido elemento subjectivo do crime de ofensa á integridade física.
A acção foi voluntária e nada faz resumir que o arguido não tenha tido consciência da ilicitude do facto, por que se trata de factos cuja ilicitude é de imediata compreensão para um homem médio.
Ora, como se referiu no Acórdão da Relação do Porto de 83/02/23, in BMJ 324. Pág. 620 "dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência".
E como refere igualmente o acórdão do ST] de 25 de Setembro de 1997, in Proc. 479/99, pág. 223: "Os elementos subjectivos do crime pertencem à vida íntima e interior do agente. Contudo, é possível captar a sua existência através e mediante factualidade material que os possa inferir ou permitir divisar, ainda que por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum.
Assim, o elemento subjectivo do tipo legal de crime infere-se, por presunções naturais, dos factos materiais correspondentes à acção objectivamente considerada.
Ou seja, mesmo a existir uma eficiente descrição dos factos integradores do elemento subjectivo do ti o (dolo genérico) "é susceptível de ser integrada, em julgamento, por recurso à lógica, racionalidade e normalidade dos comportamentos humanos, donde se extraem conclusões suportadas pelas regras de experiência comum" – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 26/9/2001, proferido no Proc. nº 0075443 in www.dgsi.pt/jtrl. .
Também o Acórdão da mesma relação de 28/01/1997, proferido no Proc. nº 0001015 " O apuramento da in tenção do agente é, normalmente uma conclusão que o tribunal pode e deve fazer a partir da avaliação da conduta do arguido, na medida em que seja uma consequência ou prolongamento dos factos a este imputáveis”.
O recorrente identifica o erro de apreciação judicativa na antinomia que se deveria surpreender no facto de o arguido ter empurrado a assistente e não ter conferido a essa atitude ou acção ofensiva do corpo desta, uma intenção ou representação volitiva violadora da sua integridade física. Simplificando, no discurso impressivo do recorrente, quem empurra alguém tem que agir com vontade (assumida) de ofender (no corpo) esse alguém. Não se pode dar como provado que alguém foi empurrado e, no mesmo lanço representativo, alijá-lo de responsabilidades subjectivas, dando como não provada a intencionalidade e voluntariedade colocada no acto material em que se traduz a acção de empurrar.
Num ponto da matéria de facto provada, o tribunal deu como provado que o arguido ”na sequência de uma discussão empurrou a assistente” e no derradeiro ponto da matéria de facto não provada o tribunal não considerou que o arguido tenha agido: “sempre de forma deliberada, livre e consciente, querendo, reiteradamente, magoar física e psiquicamente a ofendida e causar-lhe medo, bem sabendo que punha em risco a saúde da mesma e que tal conduta não era permitida por lei”.
Empurrar significa “impelir com força, impulsionar com força, empuxar” – Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Impele-se ou impulsiona-se alguma coisa ou alguém, com que intenção? De afastar um perigo iminente (de agressão)? De manifestar a repulsa perante uma presença que é indesejada? De ofender (ou ter como inicio um processo de ofensa) o corpo de uma pessoa? Manifestar desagrado perante a insistência de alguém que se torna insolente e insistentemente aleivosa? Renuir, mediante acção física, um estado opressivo e constrangedor que lhe foi criado e para o qual não contribuiu ou que não pretende que se mantenha?
Poderíamos figurar tantas hipóteses quantas as situações quotidianas, inusitadas e esdrúxulas, que a vivência entre indivíduos é possível de congeminar ou conjecturar.
Não podemos, de forma linear, e porque a decisão não é pródiga no fornecimento de dados de facto que nos permitam delimitar o modo de acção, os motivos, a concreta acção e as circunstâncias em que toda a cena se desenrolou, enquadrar numa acção típica o “empurrão” que o arguido terá propinado à assistente.
“O dolo deve referir-se a todos os elementos do tipo objectivo”, e “en conexión com Binding y Mezger, es algo fuera de discussión que el mero conocimiento del substrato experimental de una realización de tipo no basta para el dolo (el conocimiento de que sobre el papel se ha escrito com tinta no implica ya el conocimiento de un documento), pêro que tampoco es necessária una subsunción en la ley de lo sucedido, subsunción de la misma classe judicial”. Es necessária una “valoración paralela en la esferadel profano”o, mejor, un enjuiciamiento paralelo en la consciência del autor, y también suficiente”.[Günther Jakobs, Derecho Penal, Parte General, Fundamentos y Teoria de la Imputación, Marcial Pons, Madrid, 1997, p.347] Para este autor na valoração da realização da acção típica “hão-de comprovar-se as afirmações de que a todo o conhecimento de factos deve acrescentar-se um conhecimento da significação e que só um conhecimento da significação sustenta o dolo” (op.loc. cit., p. 350).
À luz destes ensinamentos deveremos ter como seguro e inexorável que alguém que empurra outrem assume ou quer, com a realização da acção impulsora, ofender ou molestar a integridade física ou o corpo dessa pessoa? Preencherá o elemento subjectivo ou adquirirá inescapável significação representativa e denotativa do propósito do autor o facto de ter realizado uma acção natural de repulsão ou afastamento coercivo de alguém?
Para o tribunal julgador este propósito não resulta evidenciado da atitude que o arguido assumiu perante a assistente. Não explicita por que razão formou essa convicção, no plano da factualidade provada, deixando entrever alguma reserva de atitude na motivação da matéria de facto quando refere que o arguido tentava suavizar as tonalidades carregadas com que a assistente intentou imprimir ao relatos reportados em tribunal. Sem querermos conotar comportamentos e classificá-los psicologicamente, afigura-se-nos que as declarações da psicóloga assistente terão contribuído para que o tribunal formasse a convicção de que a assistente se votava a um impressivo questionamento da conduta extraconjugal do arguido, dando azo a discussões acesas e acerbas. A não descrição das referidas discussões e das concretas atitudes assumidas pelos intervenientes laqueiam a possibilidade de atribuir uma significação volitiva ao gesto de empurrar que o tribunal considerou ter ocorrido numa das discussões.
Dir-se-á que o tribunal, em face da defunção da materialidade fáctica que enformava a acusação pelo ilícito típico de maus tratos, deveria ter aprofundado, depois de advertir para os efeitos que tal poderia acarretar par a o arguido – cfr. art. 358º, nº3 do C.P.P. -, as circunstâncias em que se teria inscrito a cena do “empurrão”. A verdade, porém, é que nenhum dos sujeitos processuais alertou para essa situação e o tribunal ter-se-á bastado em apurar que o arguido não agiu, no despique que vinha mantendo com a assistente, de forma a querer ofendê-la na sua integridade física.
Na esteira do que vimos expondo, e porque o tribunal não desvelou na atitude do arguido, um propósito ofensivo no acto de empurrar, não ocorre o propalado vicio de erro notório com que o recorrente acoima a decisão sob impugnação.
III. – Decisão.
Na defluência do expendido, decidem os juízes nesta secção criminal, em:
- Julgar totalmente o recurso interposto e, em consequência, manter a decisão recorrida.
- Sem tributação, atenta a isenção do recorrente.