SUSPENSÃO DA SANÇÃO ACESSÓRIA
CONTRA-ORDENAÇÃO MUITO GRAVE
INCONSTITUCIONALIDADE DO ART.º 141 DO CE
Sumário

1- Nada obsta a que o legislador puna com maior gravidade um ilícito de natureza contra-ordenacional do que um outro de natureza criminal. Basta que a perspectiva politico-criminal que justifica a adopção de um ilícito contra-ordenacional punido com um nível de gravidade superior a qualquer ilícito de natureza criminal, com o séquito de sanções acessórias que se lhe acrescentem, se prefigure, em determinado momento histórico, como aquelas que de forma mais eficiente satisfaz as necessidades de segurança e tranquilidade da comunidade jurídica.
2- Não fere o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa o facto de o legislador punir com maior gravame um ilícito de natureza contra-ordenacional do que um ilícito criminal.

Texto Integral

Recorrente: A....
Recorrido: Ministério Público.

Acordam, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.
I. – Relatório.
Em dessintonia com o julgado prolatado no processo supra referido em que foi de decidido: “manter a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias”, com que havia discrepado da decisão administrativa constante de fls. 8 e 9 que, pela prática de uma contra-ordenação ao disposto no artigo 60º, nº1 do Regulamento de sinalização e Trânsito, lhe havia imposto a sanção de inibição da faculdade de conduzir veículos automóveis (especialmente atenuada, por não ter averbado no seu registo de condutor a prática de contra-ordenação grave ou muito grave) pelo período de trinta (30) dias, recorre o apenado, A..., tendo despedido a motivação com que exorna o alor recursivo, com o seguinte quadro conclusivo:
«1ª – O regime da execução da sanção acessória de inibição de conduzir é o definido no art. 139º do C. E.,
2ª – Podendo ser suspensa a sua execução, qualquer que seja o tipo de contra-ordenação em causa, grave ou muito grave, desde que reunidos os pressupostos de que a lei penal faz depender tal suspensão.
3ª – O actual art. 141º/1 do C. E. é uma norma especial que apenas respeita às contra – ordenações graves.
4ª – Nada autoriza a sua interpretação” a contrario”, no sentido de que com ele se quis excluir a possibilidade de suspensão da pena acessória nos processos de contra-ordenação, quando esteja em causa o cometimento de contra-ordenação muito grave.
5ª – Interpretado nesse sentido, o art. 141º/ 1 do Código da Estrada é inconstitucional por violação do art. 165º/1-d da Constituição da República Portuguesa e na medida em que na Lei de autorização legislativa (L. 53/04 de 04.11) não foi prevista a eliminação da suspensão mas apenas o seu condicionamento.
6ª – Incorreu o Tribunal recorrido na nulidade cominada no art. 379º/1-c) do Código de Processo Penal quando não se pronunciou sobre a matéria alegada no recurso ante si interposto e atinente à actividade profissional do recorrente, maxime, o facto de ser obrigado a percorrer diariamente dezenas ou centenas de kms. Matéria com reflexo quanto à medida concreta da suspensão da sanção acessória de inibição.
7ª – A interpretação do citado art. 141°, na medida em que impõe a aplicação efectiva da sanção acessória da inibição de condução viola, também, o princípio constitucional da igualdade, inconstitucionalidade esta que se invoca para os devidos e legais efeitos.
8ª – Provado que o arguido é empresário de profissão, tendo forçosamente de efectuar deslocações diárias de dezenas de Kms, que é tido como um condutor zeloso e cumpridor, fazendo milhares de Kms por ano e que a inibição causará forçosamente avultados prejuízos, deveria a medida da inibição ser suspensa mediante a fixação de uma caução.
Deve o presente recurso ser julgado provado por procedente, proferindo-se acórdão que acolha as conclusões formuladas, suspendendo-se a sanção de inibição, com fixação de caução de boa conduta.»
Na comarca, em diserta resposta, o Exmo. Senhor Magistrado do Ministério Público, conclui que: «Face ao exposto, entende o Ministério Público que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida».
Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto, emite munificente parecer, em que remata pela improcedência do recurso.
“Legalmente inviável se torna agora a propugnada suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir, atento o disposto no artigo 141º, no 1 do Código da Estrada, que, como é claro, apenas admite essa possibilidade em relação às contra-ordenações graves e não também às muito graves, como é o caso.
E porque acolhimento não merece também o mais impugnado, sendo como foi a sanção acessória de inibição de conduzir fixada no seu mínimo legal, o nosso parecer vai assim do mesmo passo no sentido da improcedência do recurso”.
Para a decisão impetrada a este órgão jurisdicional convoca a motivação apresentada as sequentes questões:
- Nulidade da decisão impugnada, por omissão de pronúncia – cfr. artigo 379º, n1, alínea c) do Código de Processo Penal;
- Suspensão da execução da sanção de inibição da faculdade de conduzir;
- Inconstitucionalidade da norma constante do artigo 141º do Código da Estrada, quando interpretada na dimensão normativa de que só é admissível a suspensão da sanção de inibição da faculdade de conduzir quando imposta a contra-ordenações cuja qualificação, de acordo com o prescrito no artigo 136º do mesmo livro de leis, se perfile como grave – Inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 165º da Constituição da República Portuguesa.
II. – Fundamentação.
II.A. – De Facto.
Para a decisão que proferiu cevou-se o tribunal na facticidade que a seguir se deixa transcrita.
«Da audiência de julgamento resultaram provada a seguinte factualidade:
1-No dia 2005/07/21, pelas 14H45, no local Estrada Viseu/Sátão – Viseu, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros, com matrícula 02-09-VN, o recorrente transpôs a linha longitudinal contínua marca M1 separadora de sentidos de trânsito;
2. O recorrente efectuou o pagamento voluntário da coima;
3. Não consta do registo individual de condutor do recorrente qualquer infracção;
4. A decisão proferida pela DGV, no âmbito do processo de contra ordenação 24384671197, determinou que o Arguido, ao praticar os factos descritos no auto de contra-ordenação referido supra, não actuou com o dever de cuidado a que estava obrigado, pelo que lhe imputou, os mesmos, a título de negligência, aplicando-lhe a sanção acessória de inibição de condução pelo período de 30 (trinta) dias;
5- Comercializa electrodomésticos, aparelhos de alta-fidelidade e produtos afins em vários estabelecimentos comerciais designadamente em Tondela, Gouveia, Mangualde, Sátão, Viseu e Nelas, necessitando diariamente de usar o seu veículo automóvel para se deslocar entre estes estabelecimentos;
Factos não provados:
Que a manobra em causa se deveu ao facto de ter que se desviar de um carro patrulha da BT que se encontrava encostado à berma da estrada;
Motivação:
O tribunal formou a sua convicção no depoimento da testemunha Jorge Ferreira, soldado da GNR que elaborou o auto que confirmou em audiência, referiu que seguia atrás do veículo conduzido pelo recorrente e viu que este ao ultrapassar um outro veículo na zona industrial do Mundão, área da comarca de Viseu, transpôs a linha longitudinal contínua.
As testemunhas Maria da Graça Rego e Hernâni Figueiredo, a primeira empregada do recorrente e ao segundo amigo e cliente, referiram as lojas comerciais de que aquele é proprietário e a necessidade que tem de se deslocar diariamente com a viatura de umas lojas para outras.
Depuseram as testemunhas de forma isenta, imparcial e credível.
O tribunal baseou ainda a sua convicção em todos os elementos constantes do processo, designadamente no auto de fls. 4, registo individual do condutor de fls. 7, analisados em audiência.
Quanto aos factos não provados na falta de prova.»
II.B. – De Direito.
II.B.1. – Nulidade da decisão impugnada, por omissão de pronúncia – cfr. artigo 379º, n1, alínea c) do Código de Processo Penal.
O nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal impõe que a parte da sentença crismada de “fundamentação” contenha a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Quando falte, ou não contenha, ou contenha de forma não suficientemente explicita e compreensível ou perceptível qualquer uma das exigências fundantes da estruturação e composição da sentença, a decisão proferida não cumpre o fim para que tende na sua necessária relação comunicacional com os destinatários, a saber os sujeitos processuais, em primeira linha, e o público ou a comunidade em geral, em derradeira função da administração da Justiça.
De forma lidimar escreveu-se, a este propósito, em douto acórdão do nosso mais Alto Tribunal [ Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2007; Proc. nº 24/07.], que “I – A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289).
II – A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cf. Michele Taruffo, Note sulla garanzia costituzionale della motivazione, in BFDUC, 1979, LV, págs. 31-32).
III – A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo.
IV – Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do n.º 2 do art. 374.º do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei 59/98, de 25-08), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
V – O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.
Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.
VI – O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cf., v.g., Ac. do STJ de 30-01-2002, Proc. n.º 3063/01).
VII – O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
VIII – No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto – a que se refere especificamente a exigência da parte final do art. 374º, nº2, do CPP –, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o art. 410.º, n. 2, do CPP; o nº2 do art. 374.º impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cf., nesta perspectiva, o Ac. do TC de 02-12-1998).
IX – A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência”.
Finca o recorrente a sua discrepância do julgado quanto à deficiente fundamentação com que acoima a decisão sob impugnação, no facto (sic): “o recorrente alegou ante o Tribunal recorrido que, face a sua situação familiar era o único sustento da sua mulher e netos. Trata-se de matéria com importância quer para a decisão de suspensão quer para a fixação em concreto da medida de inibição”. E procura justificar a ingente necessidade de a decisão conter os elementos de facto que inculca ter alegado perante o tribunal recorrido, porquanto “quanto à primeira porque a lei penal manda atender às condições da vida, sendo notório que, provado que a inibição implicará a perda de vários negócios, o dificultar e obstaculizar do bom andamento e execução de outros (na medida em que fica impedido de estabelecer contacto pessoal com os seus clientes), leva necessariamente à conclusão de que a mera ameaça da suspensão constitui um poderoso estímulo a que paute a sua actuação pela conformidade com as regras estradais”, “quanto à segunda porque as condições pessoais do agente e sua situação económica são um dos critérios a atender nessa fixação, por força do art. 71º/2-d) do C. Penal”.
Percorrida a peça processual em que o arguido pretendeu impugnar a decisão administrativa que lhe havia aplicado a medida de inibição de faculdade de conduzir pelo período de trinta não se lobriga onde o recorrente tenha invocado a factualidade que diz não foi tomada em consideração pelo tribunal recorrido. Nos artigos 6º e 8º da peça que formaliza a impugnação judicial impulsada pelo arguido, refere a necessidade de utilização do veículo automóvel para comercialização dos produtos do seu comércio e a imprescindibilidade do veículo para o exercício da sua actividade profissional.
Em ponto algum da peça impugnatória o recorrente alude à sua condição económica e ao facto de estar constituído como único sustento da família. Se o recorrente invocou essa qualidade não foi em peça processual constante do processo e aplicando o velho brocardo “quod non est in actiis non est in mundo” – “o que não está nos autos (no processo) não existe”.
Não tendo sido matéria alegada na peça que enformou o alor impugnatório do recorrente não se poderia constituir como alvo de prova por parte do tribunal, dado que só os factos alegados pelos sujeitos processuais nas suas exposições factuais perante o órgão jurisdicional a que dirigem uma petição para reconhecimento de um direito ou, como é o caso, de alteração de uma decisão que, em seu juízo, lhe afectou um direito poderão e deverão ser objecto de actividade probatória por parte desse órgão. Se o titular do direito não alega factos que se constituam como substanciadores do direito que pretendem ver reconhecido, “sibi imputat”. Não lhes é, no entanto, legítimo e processualmente ajustado acoimar de omissão de pronúncia uma decisão por desta não constar um facto que não deveria constar, por não invocado.
O tribunal não incluiu na decisão o facto que o recorrente aduz na sua motivação, pela singela razão de que ele não constava do elenco factual proposto pelo impugnante à consideração do tribunal para reconhecimento do direito que pretendia ver sufragado pelo órgão de recurso. A tê-lo feito, isto é, a tê-lo incluído no elenco de factos provados ou não provados, o tribunal teria, aí sim cometido uma nulidade, por excesso de pronúncia, isto é, teria excedido o âmbito de cognoscibilidade que lhe havia sido peticionada pelo sujeito processual.
A decisão tal como se encontra fundamentada abarca todos os elementos de facto alegados pelo recorrente perante o tribunal de recurso, não padecendo do vício que lhe é acoimado na motivação em que se verte o recurso para este tribunal.
II.B.2. – Suspensão da execução da sanção de inibição da faculdade de conduzir.
Tomando de empréstimo os dizeres contidos na decisão sob recurso:”[…]o recorrente preencheu a tipicidade objectiva da contra-ordenação prevista no artigo 60º, nº 1 e 65º, alínea a) do Decreto Regulamentar nº 22-A/98 de 1 de Outubro, do Código da Estrada, abstractamente punível com coima de € 49,88 a € 249,40 e com a sanção acessória de inibição de conduzir de 2 a 24 meses, conforme o disposto nos artigos 146º, alínea o) e 147º nºs. 1 e 2 do código da Estrada”, pelo que “[…]constituindo a contravenção praticada pelo arguido uma infracção muito grave, conforme se prevê no artigo 148º, nº 1, alínea b), do C.E., o arguido fica também sujeito, de harmonia com o disposto no artigo 141º do mesmo diploma legal, à sanção acessória de inibição de conduzir”.
Nos termos da legislação vigente o legislador não quis deixar ao critério do julgador a possibilidade de suspensão da execução das sanções acessórias a aplicar em alguns tipos de contra-ordenações, maxime aquelas que na perspectiva de uma politica preventiva mais rigorista e apertada se perfilassem como de maior gravame para os bens jurídicos que a legislação estradal pretende tutelar. A normação inserta no DL nº 44/2005, de 23.2, baliza e substancia as condições e estabelece os requisitos dentro dos quais o aplicador da lei pode decretar a suspensão das sanções acessórias impostas a um infractor. Só dentro dos limites que a lei impõe – art. 141º,2 e 3 do Código da Estrada – pode o Julgador movimentar-se para decretar a suspensão da execução de uma sanção acessória. As regras gerais da suspensão da execução das penas, referidas no art. 50º do Cód. Penal, só podem servir para opcionar pelo decretamento ou não da medida de suspensão, porquanto quanto ao mais, o Julgador terá que verificar se estão preenchidos os requisitos peremptórios fixados na lei para poder decretar a medida. Assim, a operação a realizar pelo Julgador deverá ser, em primeiro lugar se se encontram preenchidos os requisitos delimitadores estatuídos nos nº2 e 3 do artigo 141º do C. Estrada e só depois, poderá lançar mão do Estatuído no artigo 50º do C. Penal, para indagar se no caso concreto se justifica que ao infractor seja dada a possibilidade de ver suspensa a execução da sanção, tendo em conta os vectores orientadores que norteiam o instituto da suspensão da execução da sanções que o ordenamento sancionatório impõe. Vale por dizer que, tal como se encontra estabelecido o regime especial sancionatório do direito estradal, as regras e vectores orientadores gerais estabelecidos no ordenamento jurídico-penal principal e geral actuam subsidiariamente e só depois de verificados os requisitos legais que a legislação especial impõe.
Não pode uma sanção acessória ser decretada, ainda que se pudesse estar uma situação que poderia ser enquadrável no regime geral do art. 50º do C. Penal, se não estiverem, no caso concreto, verificados os requisitos de que a legislação especial faz, necessariamente, depender a possibilidade de suspensão da execução da sanção acessória.
No caso concreto, a lei especial não permite, como bem assinala a decisão sob impugnação, que ao arguido seja prodigalizada a possibilidade de suspensão da sanção acessória.
Permitimo-nos adir ao que fica dito, e em contramina com o alegado pelo recorrente, que a necessidade ingente do meio de transporte para a sua vida profissional e pessoal e de que diz depender, de maneira infranqueável, deveria trazer ao arguido consciência disso mesmo e inibi-lo da prática de infracções graves, como é o caso.
A suspensão da execução da sanção acessória só deve decretada se o comportamento delitivo não puser em crise a confiança que as normas devem possuir na comunidade para que regem. Para Günther Jakobs, na esteira de da concepção do Direito de Luhmann, “a vida social requer uma certa estabilidade e segurança das expectativas de cada sujeito frente ao comportamento dos demais. As normas jurídicas estabilizam e institucionalizam expectativas sociais e servem, assim, de orientação da conduta dos cidadãos no seu contacto social. Quando se produz a infracção de uma norma, convém deixar claro que esta segue em pé e mantém a sua vigência pese embora a sua infracção. O contrário poria em risco a confiança na norma e na sua função orientadora”. [Cfr. o que a este propósito vem ensinado Em “Estado, Pena e Delito”, Santiago Mir Puig, Editorial Bde f, Montevideo – Buenos Aires, 2006, p. 58.]
O tráfego rodoviário, com o feixe regulamentador que o enforma, procura criar na consciência social e na expectativa dos utentes das vias rodoviárias que aqueles que nelas circulam observam as regras contidas nas normas estradais. Esta expectativa, na perspectiva do legislador, cumpre-se criando no conspecto do regime sancionatório um feixe de punições acessórias que induzam na consciência cívica dos utentes das vias rodoviárias factores de inibição que accionem reacções de auto-controle e temor pelas consequências punitivas que as reacções legais impõem. A necessidade de accionamento de mecanismos inibidores do comportamento desregulado e desviante por parte de condutores exigem, pois, que para retoma da confiança da norma violada se puna o infractor por forma a reorientá-lo, pessoal e socialmente, tendo em conta os valores que as normas encerram e pretendem reverberar nos comportamentos dos cidadãos.
Independentemente do facto de o arguido não ter mantido até ao momento atitudes viárias que devam ser censuradas, não inviabiliza o facto de ao cometer a infracção que o legislador qualificou como muito grave lhe não possa ser imposta uma sanção acessória efectiva. O legislador ao qualificar de muito graves algumas contra-ordenações estradais ponderou as consequências que, de um modo geral, no exercício da condução, a sua infracção pode constituir para os demais utentes da via. Não aquilatou das concretas situações em que a violação da norma que impede um condutor ir além do traço contínuo assinalado no pavimento possa, eventualmente, não induzir qualquer perturbação grave para o processamento do trânsito, deixando, naturalmente, aos princípios gerais que servem na teoria geral da infracção justificar acções tipificadas no ordenamento jurídico-penal principal ou secundário. Situações que possam configurar um direito de necessidade ou estado de necessidade desculpante ou a verificação de um conflito de deveres, quando invocados no âmbito do direito contra-ordenacional, mantêm a sua atendibilidde e aptidão para justificação de condutas em que os requisitos apostos nesses institutos se encontrem presentes.
O recorrente não apresentou um quadro factual donde pudesse inferir-se uma causa de justificação, ou ainda que o tenha esboçado nem sequer um quadro atenuativo especial. Ainda que tivesse esboçado uma acção tendente a tornear um obstáculo que lhe impediria o prosseguimento da marcha – cfr. artigo 7º da impugnação – o facto é que essa situação não quedou provada como resulta da decisão de facto – cfr. item dos factos não Provados.
Nem o facto de necessitar de utilizar o seu veículo na sua actividade profissional, como alegou, se perfila como constituindo um quadro atenuativo especial ou de relevância atendível para efeitos de aferição de um critério formativo de uma especial redução ou atenuação da infracção cometida. O facto de necessitar com frequência do automóvel, ao invés do que o recorrente pretende inculcar, deveria constituir motivo de maior cuidado e factor inibidor e de adequação da condução às regras e prescrições estradais. Daí que, ainda que tal se prefigurasse como possível, o que não é, o quadro em que a infracção foi cometida e os elementos sócio-profissionais que aportou ao processo não impeliriam um quadro atenuativo significante capaz de induzir uma suspensão da execução da sanção que lhe foi imposta.
Como se deixou dito supra, o recorrente cometeu uma infracção que a legislação reputa e qualifica de muito grave não sendo legítimo, à luz do ordenamento que rege para o caso, a suspensão da execução da sanção acessória, como bem decidiu a decisão sob impugnação.
II.B.3. – Inconstitucionalidade da norma constante do artigo 141º do Código da Estrada, quando interpretada na dimensão normativa de que só é admissível a suspensão da sanção de inibição da faculdade de conduzir quando imposta a contra-ordenações cuja qualificação, de acordo com o prescrito no artigo 136º do mesmo livro de leis, se perfile como grave. Inconstitucionalidade orgânica do artigo 141º do Código da Estrada por violação do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa.
Ancora o recorrente a arguição de inconstitucionalidade orgânica do artigo 141º do Código da Estrada por o legislado haver ultrapassado a previsibilidade imposta na lei de autorização que possibilitou ao governo legislar em matéria da competência da assembleia da República.
São leis de delegação ou autorização, aqueles diplomas mediante os quais o órgão legislativo (poder legislativo) habilita ou autoriza o órgão executivo a emanar actos normativos com força de lei.
“As constituições costumam estabelecer limites materiais ao exercício das autorizações legislativas, impondo, desde logo, um conteúdo mínimo às pr6prias leis de autorização. Um destes limites materiais consiste na exigência de as leis de autorização definirem o objecto da autorização (cfr. are 165.º/2). Resta saber em que é que consiste a definição do objecto. Segundo alguns autores, «objecto definido” significaria tão-somente a proibição da concessão de plenos poderes ou de uma autorização geral a favor do Governo para legislar sobre rodas as matérias reservadas à competência do órgão parlamentar. Todavia, se as autorizações legislativas não querem limitar-se a cheques em branco, necessário se torna especificar o objecto da autorização, e não indicar apenas, de um modo vago, genérico ou flutuante (cf. Ac. Tribunal Constitucional 414/96), as matérias que irão ser objecto de decretos-leis delegados (princípio da especialidade das autorizações legislativas). […] A exigência de uma determinabilidade autorizativa através da definição do sentido e extensão da autorização pode apreciar-se manejando vários critérios: (I) o critério da autodecisão que obriga a colocar-nos sob o ponto de vista do legislador autorizante, pois este deve perguntar-se se ao definir o conteúdo e ao identificar as questões materiais está ou não a antecipar a disciplina jurídica básica a classificar pelo decreto-lei autorizado; (2) critério do programa legislativo, que desloca a questão para a perspectiva do cidadão, pois, para este, a lei de autorização deve constituir o programa normativo de que se deduza qual o sentido e quais os casos que, com base na autorização, o governo incluirá no decreto-lei autorizado; (3) o critério de previsibilidade, que se situa ainda na perspectiva do cidadão, pois este deverá reconhecer no conteúdo de lei de autorização complexo de direitos e deveres e a orientação básica da disciplina jurídica a contemplar no diploma legislativo autorizado” [Cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 6ª edição, pags. 757, 763 e 764.].
O Código da Estrada vigente resulta de uma autorização legislativa concedida pela assembleia da República ao governo para proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio.
Mediante a lei autorizante – Lei nº 53/2004, de 4 de Setembro - a assembleia da República autorizava o governo a proceder à revisão do Código da Estrada e “ainda a criar um regime especial de processo para as contra-ordenações emergentes de infracções ao Código da Estrada, seus regulamentos e legislação complementar” – cfr. artigo 1º. Na definição e determinabilidade dos limites do acto autorizante, foi contemplado: “m) A previsão de atenuação especial e de suspensão da execução da sanção acessória de Inibição de conduzir condicionadas ao prévio pagamento da colma e ao facto de o Infractor não ter praticado outras Infracções no período fixado; n) A consagração do princípio de que a suspensão da execução da sanção acessória possa ser condicionada, além da prestação de caução de boa conduta, à frequência de acções de formação ou ao cumprimento de deveres específicos previstos em legislação própria” – cfr. artigo 3º da citada Lei.
Pretende o recorrente extrair das alíneas transcritas que o legislador não estava autorizado, na estrita observância dos termos da lei autorizante, a excluir a possibilidade, que existia no regime regulamentar anterior, de suspender a execução da sanção acessória nos caos em que estivesse em julgamento uma contra-ordenação que a lei classificasse como muito grave. A interpretação que é feita do preceito contido na norma do artigo 141º do Código da Estrada, por método de exclusão negativo, inviabilizando a aplicação do regime de suspensão da execução às contra-ordenações classificadas de muito graves, violaria o artigo 165º da Constituição da República Portuguesa porquanto a alínea d) do preceito citado estabelece ser da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre os ilícitos de mera ordenação
Que a lei autorizante confere poderes ao governo para legislar em matéria contra-ordenacional é-nos atestado logo no artigo 1º quando postula que para além da revisão do Código da Estrada. Do mesmo passo no artigo 2º da citada Lei ao definir ou prospectivar o sentido e alcance do acto legislativo autorizado, a entidade autorizante concede autorização para criação de um “regime jurídico em matéria rodoviária em conformidade com os objectivos definidos no plano Nacional ele Prevenção Rodoviária, com as normas constantes de instrumentos internacionais a que Portugal se encontra vinculado e com as recomendações das organizações internacionais especializadas com vista a proporcionar índices elevados de segurança rodoviária para os utentes”.
Ao limitar e restringir o âmbito de aplicabilidade do instituto de suspensão da execução das sanções acessórias, maxime da de inibição da faculdade de condução de veículos motorizados, o legislador não operou um acto legislativo exorbitante ou exasperante dos limites materiais contidos no objecto e sentido do acto autorizante. Os limites materiais impostos pelo acto legislativo habilitante, quais sejam a revisão do anterior Código da Estrada e a sua adequação às exigências de segurança rodoviária impostas pelo plano de segurança rodoviária nacional, entretanto adaptada aos compromissos internacionais assumidos, contém-se nas alterações introduzidas pelo legislador, nomeadamente, um maior rigor no sancionamento de condutas infractoras e reveladoras de um menoscabo pelos utilizadores das rodovias. Foi dentro destes limites conceptuais e de programação normativa que o acto autorizante capacitou o governo a produzir legislação ajustada a uma realidade regulamentar que já não servia os fins definidos e que uma politica rodoviária mais cerzida às novas realidades reclamava.
A interpretação a conferir ao artigo 141º do Código da Estrada há-de ser entendida como corolário deste reforço das medidas sancionatórias indutoras de um mais apertado sistema de controlo de determinado tipo de infracções estradais, reputadas pelo legislador como sendo aquelas que maior danosidade podem causar e que se hajam, pelos factores de risco que comportam, revelado como geradoras de um perigo acrescido para os utentes das vias.
A interpretação que vem sendo feita do artigo 141º do Código da Estrada, na compreensão de que apenas as contra-ordenações qualificadas como graves são susceptíveis de beneficiar de um regime sancionatório mais benévolo, ou seja de o infractor poder beneficiar do regime de suspensão da execução da sanção que à contra-ordenação grave venha a caber, traduz uma opção do legislador pela definição positiva e vinculada a um concreto regime, excluindo e descartando outras orientações e aptidões de sancionamento. O legislador, ao estatuir de forma vinculada e cingida que o regime de suspensão era privativo e exclusivamente aplicado às contra- ordenações classificadas de graves, pretendeu excluir desse regime quaisquer outras infracções a que coubessem sanções acessórias. O facto de o regime anterior não prever idêntica situação jurídico-legal não peia o legislador de o impor no regime para que obteve autorização. A autorização não o ilaqueia, antes o consente e alenta nos termos em que vem redigido o artigo 2º da lei autorizante.
Ainda que não constando das conclusões e portanto fora da cognoscibilidade do recurso, dado que os limites objectivos dos recursos são conferidos pelas conclusões, o recorrente traz à colação a eventual disparidade que se poderão surpreender situações em a lei impõe regimes punitivos mais gravosos para condutas que são concebidas e qualificadas como meras contra-ordenações do que para ilícitos tipificados como ilícitos criminais. Seria o caso do sancionamento de crime de condução sob efeito do álcool que permitiria, dado que sujeito ao regime jurídico-penal geral, uma eventual suspensão da execução da pena e da sanção acessória, enquanto que no caso das contra-ordenações classificadas de muito graves a legislação secundária inviabiliza a aplicação do mencionado regime.
A necessidade e a justificação de punição de comportamentos não se afere pela inserção das normas de punição num ou noutro plano do direito sancionatório. A propósito da questão que parece preocupar o recorrente, qual seja a da existência de uma discrepância entre uma punição mais gravosa em casos em que uma conduta é punida como ilicito contra-ordenacional e uma outra como ilicito criminal, tivemos o ensejo de escrever em acórdão deste tribunal, o seguinte: “[…]no estrito plano dos princípios não ocorre qualquer incongruência ou acrasia sistémica. Isto é, no plano teorético, vale por dizer no plano da distinção entre ilicito de natureza criminal e ilicito de mera ordenação social, nada impede que a um ilicito de mera ordenação social ou de natureza contra-ordenacional possa ser cominada uma coima de montante superior a uma pena de multa por que um órgão jurisdicional venha a punir uma conduta integradora de um tipo de ilicito penal. São avonde os exemplos em que esta asserção se poderia cevar. Desde logo quase todos os ilícitos em que estão em causa a honra e consideração das pessoas, em que as penas de multa impostas nas decisões dos nossos tribunais são inferiores a €500,00.
Para uma melhor compreensão do que está em causa procedermos a uma, necessariamente curta, incursão pela doutrina, nesta matéria, isto é, da distinção entre ilicito de natureza criminal e de natureza administrativa.
Na doutrina portuguesa a área onde a temática definidora dos conceitos ilícito de natureza penal/ilicito de natureza administrativa, numa tentativa, epistemológica e lógico-conceptual, de pautar os limites e fronteiras entre os dois campos em que se expandia o direito sancionatório do Estado, mais foi glosado terá sido na área do chamado direito penal económico [Vejam-se a parte I do volume I do “Direito penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários. Problemas Gerais”, onde se encontram ineridos os trabalhos de Eduardo Correia, “Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social”; do Prof. Jorge Figueiredo Dias: “O movimento da Descriminalização e o ilícito de Mera Ordenação Social”; “Para uma Dogmática do Direito Penal Secundário-Um Contributo para a Reforma do Direito Penal Económico e Social Português”; “Problemática Geral das Infracções contra a Economia Nacional”, Profs. Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade; do Prof. Manuel Costa Andrade, “Contributo para o Conceito de Contra-Ordenação (A Experiência Alemã), pags. 75 a 107; do Prof. José Faria Costa, “A importância da recorrência no Pensamento Jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilicito penal e o ilicito de mera ordenação social”, pags. 108 a 143; Miguel Pedrosa Machado, “Elementos para o Estudo da legislação Portuguesa sobre Contra-ordenações; pags. 145 a 209; Frederico de Lacerda da Costa Pinto, “O Ilícito de mera ordenação e a erosão do principio da subsidiariedade da intervenção do direito Penal”, pags. 209 a 274, e finalmente Augusto Silva Dias, “Crimes e Contra-ordenações Fiscais”, volume II, da obra citada, pags. 439 a 480.] .
Sem preocupação de tratamento exaustivo, natural para o género de trabalho em que servem os ensinamentos colhidos, respigaremos os traços definidores marcantes pertinentes para o iter rector de razoamento que debuxamos para a decisão a proferir.
Para Hans-Heinrich Jescheck [Cfr. “Tratado de Derecho Penal. Parte general”, Bosch, Barcelona, volume I, 1981, pag. 80.] “por infracção administrativa entende-se a acção típica, antijurídica e reprovável cominada com uma multa. […] Para distinguir a infracção administrativa do delito há que partir do critério de ser o facto é merecedor de uma pena. A infracção administrativa coincide com o delito na medida em que também supõe um grau tão alto de perigosidade para o bem jurídico protegido ou para os interesses administrativos que é necessário para a protecção da sociedade acudir á sanção estatal repressiva, distinguindo-se deste modo do mero incumprimento contratual ou do ilicito de policia. Mas, por outro lado, o grau de perigosidade da infracção administrativa é muito menor que o do facto punível. […] O que claramente distingue a infracção administrativa do facto punível é a falta desse alto grau de reprovação da atitude interna do autor, que por si só justifica o desvalor ético-social da pena propriamente dita. Nas infracções administrativas a multa só pode servir como “admonição”, como “ mandato administrativo reforçado” ou como “especial advertência par a que se cumpram os deveres”, já que não alcança os limites da grave imoralidade”.
Já para Claus Roxin [Cfr. “Derecho penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estrutura de la Teoria del Delito”, Civitas, Madrid, 1997, pag. 53.] “os autores que pré-elaboraram cientificamente o Derecho contravencional (sobretudo James Goldschmidt, Erik Wolf e Eberhard Schmmidt) foram essencialmente codeterminados pela ideia de que o Direito Penal tem que proteger bens jurídicos previamente dados (quer dizer, principalmente o clássico cânone dos direitos individuais independentes do Estado), enquanto que as infracções das regulamentações estatais, que não protegem bens já existentes, mas que tão só se ditam ao serviço de missões públicas de ordem e bem estar, enquanto desobediências eticamente incolores, ou seja enquanto contravenções devem castigar-se com sanções não criminais”.
Para Figueiredo Dias “se como dispõe o artigo 3º-2 da Constituição, toda a actividade do Estado (incluída a actividade penal administrativa) se subordina á Constituição e se funda na legalidade democrática; e sobretudo se, como agora se afirma no texto revisto do artigo 18º-2, as restrições dos direitos, liberdades e garantias (em que sempre se traduz uma criminalização) devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»; - torna-se então indiscutível a ideia (que há muito venho defendendo) segundo a qual entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos tem de verificar-se uma qualquer relação de mútua referência: Relação que não é de identidade ou sequer de recíproca cobertura, mas de analogia material, fundada numa essencial correspondência de sentido; correspondência que deriva de a ordem axiológica constitucional constituir o quadro abstracto de referência e, ao mesmo tempo, o critério regulador da actividade punitiva do Estado. É nesta acepção, e só nela, que os bens jurídicos protegidos pelo direito penal de justiça se devem considerar concretizações dos valores constitucionais ligados aos direitos, liberdades e garantias, os protegidos pelo direito penal administrativo concretizações ligados aos direitos sociais e À organização económica”.
Para Manuel da Costa Andrade “em síntese, enquanto no direito penal «clássico» é a ilicitude material que serve de fundamento á ilicitude formal, nas Zuwiderhandlungen é a ilicitude formal da proibição normativa que serve de fundamento á ilicitude «material». O que define a contra-ordenação é, pois, em primeiro lugar, a estrutura específica da Zuwiderhandlung (transgressão) acabada de referir e, e em segundo lugar, a sanção: a coima. Esta é concebida como um aviso ao cidadão que faltou ao seu dever de colaborar na prossecução dos interesses do Estado e como medida preventiva desprovida de todo o carácter infamante”.
O traço distintivo entre ilicito criminal e ilicito contra-ordenacional não pode, pois, buscar-se na mera quantificação das sanções pecuniárias aplicadas, dada a divertida função que cada uma dessas reacções punitivas conlevam. […] Como já se tentou demonstrar não é o critério quantitativo que serve a delimitação entre ilicito penal de justiça e ilicito contra-ordenacional mas sim um critério de valoração ético-juridica das condutas, constitucionalmente referenciadas e conferidas a bens jurídicos preexistentes e independentes da mera organização societária”.
Como resulta da resenha doutrinal que deixamos, muito sumariamente, transcrita os planos de actuação legislativa e os fins prosseguidos são distintos pelo que nada obsta a que o legislador puna com maior gravidade um ilicito de natureza contra-ordenacional do que um outro de natureza criminal. Basta que a perspectiva politico-criminal que justifica a adopção de um ilicito contra-ordenacional punido com um nível de gravidade superior a qualquer ilicito de natureza criminal, com o séquito de sanções acessórias que se lhe acrescentem, se prefigure, em determinado momento histórico, como aquelas que de forma mais eficiente satisfaz as necessidades de segurança e tranquilidade da comunidade jurídica.
Não fere o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa o facto de o legislador punir com maior gravame um ilicito de natureza contra-ordenacional do que um ilicito criminal.
III. – Decisão.
Na defluência do exposto, decidem os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, em:
- Julgar o recurso interposto pelo arguido A... totalmente improcedente e, consequentemente, manter a decisão impugnada.
- Condenar o recorrente nas custas fixando a taxa de justiça em dez (10) Uc’s.

Coimbra,

(Gabriel Catarino, relator)
(Dr. Barreto do Carmo)
(Dr.ª Cacilda Sena)