SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CAUSA PREJUDICIAL
APRESENTAÇÃO
QUEIXA
CRIME
Sumário

I – Uma causa é prejudicial a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda.
II – Uma simples participação criminal ao Ministério Público ou à polícia não reveste, para fins do artº 279º do CPC, a natureza de causa e muito menos a de causa já proposta.
III – Não é de suspender a instância na acção cível, imediatamente antes da organização da especificação e do questionário, se ainda não tiver sido instaurada a acção penal considerada prejudicial e estando apenas a correr processo de inquérito, pois os prejuízos da suspensão superam as vantagens.

Texto Integral

                     Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

No Tribunal Judicial de Idanha -A-Nova nos autos de acção declarativa com forma de processo ordinário que A... Lda, move contra B... ; C... e D... a autora invocou a existência de causa prejudicial, requerendo a suspensão da instância, nos termos do artigo 279 do Código de Processo Civil.

Fundamentou tal pedido na apresentação de queixa-crime junto dos serviços do Ministério Público desta comarca, contra os réus, alegando que tal queixa tinha por objecto factos que constituem a causa de pedir nos presentes autos.

Notificada para concretizar tais factos e juntar o respectivo suporte documental, a Autora juntou cópia da aludida queixa-crime.

Apreciando então esse requerimento, o tribunal considerou inexistir fundamento legal para a suspensão da instância e indeferiu essa pretensão da autora.

Inconformada com esta decisão dela interpôs a autora recurso de Agravo, concluindo que:

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 Fundamentação

Os factos que servem a decisão são os que constam do relatório e, ainda, o teor dos articulados das partes apresentaram na acção e que constam de fls. 34 a 52;

A acta da audiência preliminar realizada na acção e cuja cópia consta de fls. 53 a 67;

O teor da queixa-crime apresentada pela autora na Delegação da Procuradoria da República na Comarca de Idanha-A-Nova cuja cópia se encontra de fls. 104 a 137.

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Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts.684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil) nem criar decisões sobre matéria nova, a questão suscitada neste Agravo é o de determinar se existem razões para que se suspenda a instância por existência de causa prejudicial.

O art. 279 do CPC estabelece:

“1- O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.

2 - Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.

3 - Quando a suspensão não tenha por fundamento a pendência de causa prejudicial, fixar-se-á no despacho o prazo durante o qual estará suspensa a instância.

4 - As partes podem acordar na suspensão da instância por prazo não superior a seis meses”.

Numa primeira formulação que parte da Lição de Alberto dos Reis, “uma causa é prejudicial a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda” – “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, Coimbra, 1946, pág. 268.

Assim, “Verdadeira prejudicialidade e dependência só existirá quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental, como teria de o ser, desde que a segunda causa não é a reprodução, pura e simples, da primeira.

Mas nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros

casos. Assim pode considerar-se como prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal” - Manuel de Andrade, in “Lições de Processo Civil”, págs. 491 e 492.

Numa mesma leitura decalcada sobre a anteriormente realizada, Lebre de Freitas sustenta que causa prejudicial será aquela que tenha por objecto, pretensão que constitua um pressuposto da formulada e acrescenta que “ se o conhecimento da questão for da competência do tribunal criminal ou administrativo, o juiz poderá suspender a instância até que o tribunal competente se pronuncie ainda que nenhuma acção nele tenha sido ainda proposta, devendo, nesse caso, a propositura seguir-se no prazo de 1 mês, sob pena de o processo prosseguir (art.97)[1].

É evidente que a situação prevista no parágrafo anterior se reporta aos casos em que as questões prejudiciais são da competência do tribunal administrativo (e fiscal) ou criminal, de conhecimento autónomo nessas sedes, conhecimento esse indispensável para a decisão da outra que constitui objecto da acção instaurada perante o tribunal judicial, e não quando essas matérias possam ser apreciadas no próprio tribunal comum, daqui se entendendo a solução legislativa de permitir (trata-se de uma simples possibilidade) a suspensão da acção ainda que a outra, para conhecimento da questão prejudicial, não tenha sido proposta, porque a atribuição da competência a um outro tribunal especializado justifica que se dê a oportunidade de tal questão aí ser discutida. Por isso mesmo a norma do art. 97 citado é excepcional e não pode ser aplicada por analogia[2].

Diferentemente destes casos, a suspensão fundada no art. 279 nº1, fora dos casos da questão da competência do tribunal administrativo ou criminal, só pode ser ordenada se a causa prejudicial estiver efectivamente proposta.

Numa primeira abordagem ao caso em decisão, retemos que a requerente da suspensão da instância com base na existência de uma causa prejudicial foi a autora/recorrente A... que em acção proposta contra os identificados Réus B..., B... e C...pedia a condenação solidária destes numa determinada quantia a título de indemnização decorrente de responsabilidade civil por facto ilícito.

A propositura dessa acção ocorreu em 3 de Agosto de 2007 (vd. fls. 34).

Ora, em 23 de Junho de 2009 autora ora recorrente apresentou na Delegação da Procuradoria da República na Comarca de Idanha - A - Nova uma queixa-crime contra os aqui réu/recorridos conforme resulta dos autos a fls. 104 a 137. E é na sequência dessa queixa, precisamente no dia subsequente a tê-la apresentado, que a autora/recorrente, em 24 de Junho de 2009, vem solicitar a suspensão da acção por existência de causa prejudicial, qual seja, nem mais que a queixa apresentada no dia anterior.  

É a própria requente da suspensão que no seu requerimento afirma que “sempre tentou por todos os meios, evitar utilizar os meios de tutela mais pesados.” (fls. 100) e que teria sido por essa razão que não apresentou a referida queixa-crime contra os requeridos.

Quer isto dizer que a autora/recorrente reconheceu que para resolver a sua demanda jurídica, na totalidade, escolheu propor a acção civil e que esta mesma acção tinha potencialidade para apreciar de todo o seu direito de ressarcimento, no que não se enganou uma vez que em audiência preliminar, em 14 de Abril de 2009, e na elaboração de despacho saneador, o tribunal recorrido reconheceu a sua competência e estarem verificados todos os pressupostos para apreciação do mérito tendo fixado os factos assentes e elaborado a Base Instrutória. Isto é, o tribunal a quo não considerou que houvesse qualquer questão da competência de outro tribunal que importasse à decisão de direito que fora chamado a proferir naquela acção.

Só posteriormente é que a autora veio a apresentar uma queixa-crime contra os réus/recorridos e a pretender que a sua apresentação determinasse, afinal, a suspensão da instância por existência de uma causa prejudicial o que foi indeferido.

A isto opõe-se agora a recorrente argumentando que, desde logo, se trata de um caso expressamente previsto no art. 97 do CPC.

Em face do anteriormente afirmado observamos que não lhe assiste razão porque a previsão dessa norma se não verifica de todo. Não estamos no âmbito de uma acção cujo conhecimento do seu mérito tenha como pressuposto o conhecimento de uma outra que seja da competência de um tribunal criminal.

A verdade do que afirmamos resume-se singelamente na circunstância de a autora ter proposta uma acção válida e competente para exercer o seu alegado direito de ser ressarcida por factos ilícitos geradores da obrigação de indemnizar pelos réus/recorridos e quando propôs essa acção não sentiu nem revelou (nem podia revelar por tal não ocorrer) que havia um pressuposto, qual fosse o de os factos constitutivos da causa de pedir por constituírem a prática de crime e terem de ser apreciados anteriormente por outro tribunal, esse sim competente, para conhecer a sua existência.

Diga-se que a autora, ao propor a acção não entendeu que houvesse qualquer causa prejudicial e menos ainda de natureza criminal, e também nós não entendemos que ela ocorra (tenha sido apresentada ou não qualquer queixa-crime), acrescentando-se até que não parece invocável no caso em apreço aquele dispositivo uma vez que não foi o juiz ou o tribunal a reconhecer ou suscitar a existência da referida causa prejudicial da que nestes autos se discute, que essa é a hipótese prevista naquele normativo, como ensina o Professor J. A. Reis em "Comentário ao Código de Processo Civil", volume III, página 267.

Mas se a situação não cabe na previsão do art. 97 também não cremos que caiba na do art. 279 nº1 do mesmo diploma.

A recorrente sustenta que se verifica esta última hipótese porque não é possível proferir decisão final neste processo sem que esteja definitivamente julgado o processo crime, uma vez que os factos neste discutidos constituem crimes públicos a julgar na acção crime que por sua iniciativa passou a correr termos na Delegação da Procuradoria - sendo, por isso, a prática de tais crimes questão prejudicial relativamente ao conhecimento da existência de facto ilícito, integrada pelos mesmos factos que constituiriam os ilícitos criminais.

Esta questão não tem novidade embora não apresente de incomum o ser a autora da acção quem vem mais tarde pedir a sua suspensão com base numa queixa-crime que entretanto, cerca de dois anos depois de acção proposta, ela mesmo veio apresentar.

Mesmo a admitir-se que seja o mesmo e único comportamento dos réus que esteve na base e na origem dos dois processos – o civil e o penal - não se vê, nem se entende que a decisão desta causa esteja dependente da que venha a ser proferida no processo crime. Trata-se de duas acções independentes, não podendo afirmar-se que a procedência da penal acarretaria necessariamente a improcedência desta acção cível, nem a procedência desta a improcedência daquela.

São diferentes as lógicas e critérios de apreciação subjacentes a uma e a outra e diferentes também os objectivos que visam alcançar. Com efeito, no processo crime está, ou estará, essencialmente em causa a qualificação jurídico criminal dos factos para efeito da punição de quem os tenha praticado, enquanto que na acção civil o que importa é averiguar se esses mesmos factos são de molde a integrar os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito à luz do conceito legal. A averiguação e apreciação dos factos na óptica da justiça pode fazer-se no tribunal de competência civil independentemente de tais factos envolveram responsabilidade criminal a apurar no foro competente o que tem abono até do normativo contido no artigo 498 nº3 do CC que, inserido precisamente no instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos estabelece que “se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável” o que c9onstitui uma inequívoca demonstração de que na acção civil por factos ilícitos se pode discutir o facto ilícito que constitua a prática de crime.

A justificação que remete para a diferente natureza e finalidade dos processos civil e crime é bastante e porque o mesmo facto pode desencadear a repressão criminal e a censura civil estamos perante duas formas distintas de repressão que são exercidas separadamente e sem que uma prejudique a outra.

Temos, pois, por indiscutível, que a decisão no processo-crime não condiciona, nem prejudica a decisão no processo civil, não estando esta, por isso, dependente daquela. As decisões nos dois processos têm lógicas e pressupostos distintos e visam objectivos também distintos: no processo civil pretende-se o enquadramento dos factos em termos de responsabilidade civil por facto ilícito e na óptica de se apurar se os mesmos inscrevem os pressupostos da indemnização pedida; no processo-crime, pretende-se averiguar se tais factos constituem crime à luz de conceitos de natureza estritamente penal, visando-se a eventual aplicação de uma pena de natureza criminal. São mundos diferentes e entre si independentes em termos de apreciação e valoração jurídica.  

Dizer-se, como o faz a recorrente, que o tribunal a quo deu precedência ao foro civil em detrimento do for criminal parece-nos um equívoco, e tanto maior, que esse vício atribuído ao tribunal a quo, a existir, teria sido praticado pela própria recorrente ao ter sido ela mesma a propor a acção civil em detrimento da criminal, numa escolha livre e lícita, advogando mais tarde uma liberdade para, por sua iniciativa, fazer parar a acção, com o argumento de que, afinal, seria a acção criminal a preferente e, apresentando quando bem lhe apetecesse queixa-crime faria parar aquela outra.

Porém, a questão não se coloca nem se resolve no domínio de uma qualquer “precedência” da acção crime sobre a civil, que têm naturezas e finalidades diversas, anteriormente referidas, mas antes se decide sabendo que os mesmos factos podem ser apreciados em duas acções diferentes, com duas ópticas jurídicas diversas sem que uma se confunda com a outra e sem que caso julgado se repita.

Invocar a força de caso julgado parece-nos um outro equívoco em que a recorrente incorre uma vez que estando proposta uma acção civil e correndo termos uma acção criminal tal não significa, como aquela pretende, que a acção civil tenha obrigatoriamente que se suspender e esperar pela prévia decisão e formação naquela outra de caso julgado.

Advertir que “a conduta processual, por parte dos réus nesta acção e nos respectivos apensos, é também objecto de queixa-crime, o que por si só, e independentemente da existência de prejudicialidade impunha a suspensão da instância nos termos do art. 279 …” (conclusão F do Agravo) é um esforço de interpretação que exorbita de todo da questão de saber se perante esta acção (só ela nos interessa) e atendendo ao que nela se discute, a apresentação da queixa-crime se constitui como causa prejudicial.

Se assim fosse o legislador teria imposto expressa e inequivocamente essa obrigação e não teria deixado em aberto, como simples faculdade concedida ao juiz, a suspensão da instância por verificação de uma causa prejudicial.

Foi na previsão dessa faculdade que o tribunal a quo, analisando a situação em apreço, decidiu que não existia causa prejudicial que pudesse provocar a suspensão da instância, não tendo aludido nem se tendo fundado em qualquer eventual princípio de precedência da acção civil sobre a penal, ou vice versa.

A fundamentação da decisão recorrida remete, exclusivamente, para a indagação de saber se existe impossibilidade de apreciar um objecto processual (esta acção proposta pela autora) sem interferir na apreciação de um outro (a acção crime iniciada pela autora com a queixa crime). E foi neste âmbito de conhecimento assim delimitado que se afirmou que a acção não poderá determinar que deixe sem razão de ser a acção civil, aqui radicando a inexistência de dependência/prejudicialidade.

Valem aqui por inteiro as razões jurisprudenciais firmadas na decisão recorrida citando o acórdão do TRL de 9-7-10992 no proc. 0061982 in dgsi.pt e no qual, num entendimento que se mantém actual, se afirmou que “ Se a questão na acção cível e na acção penal que vier a ser instaurada for a mesma e única, não há lugar a suspensão da instância nos termos do artigo 97 n. 1 do Código de Processo Civil.

 É preciso que haja uma relação de dependência ou prejudicialidade entre a questão cível e a questão criminal para se suspender a instância ao abrigo do citado preceito.

 A simples participação ao Ministério Publico ou a Policia Judiciária não reveste, para fins do artigo 279 do Codigo de Processo Civil, a natureza de causa e, muito menos a de causa "já proposta".

Não é de suspender a instância na acção cível, imediatamente antes da organização da especificação e do questionário, se ainda não tiver sido instaurada a acção penal considerada prejudicial e estando apenas a correr processo de inquérito, pois os prejuízos da suspensão superam as vantagens.”

Em resumo, esta exposição desmerece os fundamentos da recorrente, expostos nas suas conclusões de recurso, no sentido de haver uma causa prejudicial capaz de a decisão a proferir nela poder destruir o fundamento ou a razão de ser da acção e, menos ainda, que independentemente da prejudicialidade a queixa crime tenha a aptidão de determinar “tout court” a suspensão da acção.

A leitura do teor da queixa-crime esclarece que o conflito entre recorrente e recorridos transcenderá os limites desta acção. E será, porventura, a todo esse quadro de conflito, que se estenderá por várias outras acções intentadas também pelos recorridos contra a aqui recorrente, que esta se referirá quando afirma que “conduta processual dos réus foi objecto da queixa crime”, uma vez que mal se entenderia que os recorridos, enquanto réus nesta acção, por terem apresentado contestação, independentemente do seu teor, fossem passíveis de ser considerados como autores de um crime, ou que a conduta processual traduzida em terem contestado contribuísse também para a verificação da existência de uma causa prejudicial.

Do mesmo modo tem-se por infundada a invocação de inconstitucionalidade da decisão proferida pelo tribunal a quo e da interpretação que foi feita, quer do art. 97 quer do art. 279 do CPC, e isto porque, como já se disse e agora repete, mesmo a terem-se por os mesmos os factos nesta acção e na queixa crime, atendendo à natureza distinta das acções e finalidade diversas das mesmas, o conhecimento do objecto processual crime não destrói o fundamento ou a razão de ser desta acção.

Assim improcedem na totalidade as conclusões do recurso.

… …

Decisão 

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao Agravo e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Agravante.


[1] In CPC Anotado, 2ª ed.. volume 1º p 544
[2] Lebre de Freitas op. cit. p. 185.