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BOMBEIRO VOLUNTÁRIO
COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL
Sumário
Reunindo o trabalhador a dupla qualidade de bombeiro voluntário de Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários e de trabalhador subordinado dessa Associação, com quem havia celebrado contrato individual de trabalho, aplicada, pela Associação e no âmbito dessa relação laboral, sanção disciplinar de despedimento com invocação de justa causa, o tribunal do trabalho é o materialmente competente para a ação de impugnação da regularidade e licitude desse despedimento atento o disposto no art. 85º, al. b), da Lei 3/99, de 13.01 (cfr. também art. 118º, al. b), da Lei 52/2008, de 28.08).
Texto Integral
Procº nº 306/12.6TTVFR.P1 Apelação
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 623)
Adjuntos: Des. Maria José Costa Pinto
Des. António José Ramos
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B…, litigando com o benefício de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, apresentou requerimento de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento (art. 98º-C do CPT, na redação do DL 295/2009, de 13.10) contra Associação Humanitária Bombeiros Voluntários …, juntando decisão escrita do alegado despedimento com invocação de justa causa de 25.02.2012[1].
Frustrada a tentativa de conciliação que teve lugar na audiência de partes, a empregadora apresentou articulado a motivar o despedimento (art. 98º-J do CPT), invocando a exceção da incompetência em razão da matéria do Tribunal do Trabalho, mais alegando, pelos fundamentos que invoca, a existência de justa causa para o despedimento e deduzindo ainda oposição à reintegração.
Relativamente à incompetência material do tribunal, alegou que, “aos bombeiros, logo, ao contrato de trabalho que ligava o Autor e a Ré” se aplica o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, constante da Lei 58/2008, de 09.12, dispondo o seu art. 59º que os atos proferidos em processo disciplinar são judicialmente impugnáveis, nos termos dos arts. 63º a 65º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos.
Juntou o procedimento disciplinar.
O A. apresentou contestação/reconvenção.
Quanto à invocada exceção da incompetência material do Tribunal do Trabalho, dela discordando, alega em síntese que: aos 01.02.2007 celebrou com a Ré contrato de trabalho a termo certo, no qual se estabelecia que era celebrado de harmonia com o estipulado na Lei nº 99/2003 de 27 de agosto, data a partir da qual, embora desempenhando as funções de bombeiro, passou a ser trabalhador da Ré, sendo-lhe por esta paga a respetiva retribuição mensal e efetuando descontos para a Segurança Social; os bombeiros assalariados regem-se pelo Código do Trabalho, na medida em que o vínculo que está na origem da relação laboral, é um contrato individual de trabalho e não um contrato de trabalho em funções públicas; simultaneamente, e já desde 1996, passou a ser bombeiro voluntário da Ré; a esta relação de voluntariado aplica-se o Decreto-Lei nº 247/2007, de 27 de junho, bem como a Portaria nº703/2008, de 30 de julho e que os Bombeiros Voluntários têm dois vínculos com a Associação: um de direito privado, a relação laboral propriamente dita, sendo competente o Tribunal do Trabalho e a Lei Laboral; outra de direito público, enquanto voluntários, sendo em última instância, o Tribunal Administrativo o competente, concluindo que um bombeiro não pode ser punido duas vezes pela mesma conduta e que segundo o enquadramento da Ré, os factos vertidos na motivação, ter-se-ão verificado quando o Autor se encontrava a exercer as suas funções como assalariado da AHBV … e não quando integrado nas escalas de voluntariado organizadas pelo Comandante do Corpo de Bombeiros para o serviço de voluntariado; os factos imputados na nota de culpa culminaram no despedimento com invocação de justa causa, regendo-se pelo Código do Trabalho e sendo o Tribunal do Trabalho o tribunal materialmente competente para apreciação da impugnação judicial desse despedimento.
No mais, e em síntese, alega que o contrato de trabalho celebrado aos 01.06.2009 o foi quando o A. se havia tornado trabalhador efetivo, pelo que deve ser considerado “inexistente”, devendo, por maioria de razão, ser dada sem efeito a comunicação, efetuada pela Ré aos 23.02.2012, da caducidade desse contrato.
O despedimento dever ser considerado ilícito quer por nulidade do procedimento disciplinar, quer por caducidade do exercício da ação disciplinar, quer por inexistência de justa causa.
Termina formulando os seguintes pedidos:
“a) Ser declarado competente este Tribunal do Trabalho;
b) Ser declarada a ilicitude do despedimento, nos termos dos artigos 20º a 68º do presente articulado; ou caso assim não se entenda,
c) Ser declarada a ilicitude do despedimento;
d) Ser declarado inexistente, e sem nenhum efeito legal, o contrato de trabalho a termo certo celebrado entre a Ré e o A. em 01/06/2009;
e) Ser a Ré condenada a pagar-lhe, por opção do A., a indemnização por despedimento;
f) Ser a Ré condenada a pagar ao A. as retribuições que deixou de auferir desde Fevereiro de 2012 até ao trânsito em julgado da sentença, sem prejuízo do artigo 98º-N, nºs 1 a 3 do CPT;
g) A pagar ao A. as prestações pecuniárias vencidas desde 30 dias antes da data da propositura da acção no montante de € 617,40.
Ser julgado procedente por provado o pedido reconvencional e, consequentemente, ser a Ré condenada a pagar ao A.:
a) A quantia de € 7.500,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais;
b) As custas e procuradoria.”
A Ré respondeu alegando, em síntese, que: nos termos da Portaria 703/2008 e art. 37º, nº 1, do DL 241/2007, os bombeiros voluntários, ainda que com contrato individual de trabalho celebrado com a entidade detentora do corpo de bombeiros, estão no que se reporta às infrações cometidas no exercício da atividade de bombeiro, sujeitos ao Estatuto Disciplinar dos Bombeiros Voluntários, aprovado pela mencionada Portaria e subsidiariamente, ao Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas; o último contrato celebrado com o A. é o contrato válido à data da cessação da relação laboral por facto imputável ao A., sendo que o anterior cessou por acordo das partes com a celebração do contrato de Junho de 2009; o A. tinha dois vínculos com a R., um como voluntário, outro como profissional, os quais são distintos e independentes um do outro.
No mais, refuta o alegado pelo A..
Após, a Mmª Juíza proferiu decisão a declarar a incompetência material do Tribunal do Trabalho e a absolver a Ré da instância.
Inconformado, veio o A. recorrer, tendo formulado, a final das suas alegações, as seguintes conclusões:
1. Afigura-se ao recorrente que há outros factos pertinentes para a apreciação da questão em apreço, comprovados documentalmente, que são:
a) O recorrente foi admitido ao serviço da Ré em 01.02.2007 mediante a celebração de contrato individual de trabalho a termo certo, celebrado de harmonia com o estipulado na Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto (Código do Trabalho vigente à data);
b) Tendo sido atribuída ao recorrente a categoria profissional de motorista;
c) Depois de se ter tornado efectivo, em 01.06.2009 é celebrado novo contrato individual de trabalho a termo certo entre a recorrida e o recorrente, como bombeiro profissional assalariado, integrado numa EIP;
d) Na cláusula 7º do segundo contrato de trabalho consta expressamente que “o presente contrato terá o seu início no dia 01.06.2009 e terá a duração de um ano, nos termos do Código de Trabalho aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro …”.
e) Na cláusula 10º do contrato de trabalho referido em 3., consta ainda que “no omisso regem as pertinentes disposições do Código do Trabalho ..”.
f) o recorrente foi alvo de processo disciplinar enquanto voluntário - processo instruído pelo Comandante …, C… -, no âmbito do qual lhe foi aplicada pelo Comandante da Ré a pena de demissão, pelos factos constantes da nota de culpa junta aos autos;
g) pelos mesmos factos, e em simultâneo, foi instaurado ao recorrente, enquanto trabalhador assalariado e com base no vínculo laboral, instruído pelo mandatário da recorrida, outro processo disciplinar que culminou com a aplicação pela Direcção da Ré, da sanção de despedimento daquele.
2. Estabelece o artigo 118º, alínea b) da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais que compete ao Tribunal do Trabalho “as questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho”.
3. A noção de contrato de trabalho contida no artigo 1152º do CC, define-o como “um contrato pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta”.
4. Também o artigo 11º do Código do Trabalho, sob a epígrafe “noção de contrato de trabalho”, define este como sendo “aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas”.
5. Ora, de acordo com esta noção de contrato de trabalho e os factos constantes dos autos, não podem restar quaisquer dúvidas quanto à existência de uma relação laboral entre as partes, pois que se constata que o recorrente estava sob a subordinação jurídica da Ré, que exercia a sua actividade profissional por conta e sob as ordens, direcção e fiscalização daquela, mediante o recebimento de uma contrapartida pecuniária certa, prédeterminada e mensal, com períodos e horários de trabalho antecipadamente definidos, isto é, de um verdadeiro e genuíno contrato de trabalho subordinado celebrado com a Associação
humanitária dos Bombeiros Voluntários …..
6. De facto, desde 01.02.2007, o recorrente sempre exerceu funções de motorista (conduzindo viaturas e transportando pessoas e objectos) ao serviço e sob a direcção da Ré, ainda que no âmbito da sua qualidade de bombeiro profissional. Porque as funções de motorista efectivamente exercidas pelo recorrente se inseriam na sua qualidade de Bombeiro, é que se alegou na contestação, que aquele sempre desempenhou funções de Bombeiro (enquanto motorista)!
7. Sendo certo que, em momento algum se alega que o recorrente não exercia efectivamente funções inerentes à categoria profissional de motorista, ao serviço da Ré! Pretendeu-se salientar apenas que, apesar de ser motorista, o recorrente exerceu sempre funções de bombeiro! E mesmo após a celebração do segundo contrato de trabalho a termo certo, o recorrente continuou, ainda que tenha cumulado com outras tarefas, a exercer regularmente funções de motorista!
8. Fazendo o recorrente e recorrida os necessários descontos para a Segurança Social! Estando-se, pois, perante um contrato de trabalho com todas as suas características e que por esse facto, é a legislação laboral que se aplica! E mostrando-se, pois, verificada a natureza laboral do contrato, é materialmente competente o Tribunal do Trabalho.
9. Dispõe o artigo 4º, nº 2, alínea d) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas” (sublinhado nosso).
10. Assim, ainda que a recorrida seja uma pessoa colectiva de utilidade pública, e, portanto, considerada uma pessoa de direito público, sempre se estará na presença de um litígio emergente de contrato de trabalho celebrado por aquela com uma pessoa singular, com vínculo de subordinação jurídica, técnica e económica.
11. De facto, o recorrente executava o trabalho segundo instruções e sob o controle da recorrida; estava integrado na organização daquela; desenvolvia o trabalho única ou principalmente em benefício daquela; executava pessoalmente o trabalho, num horário determinado, num lugar indicado, com certa duração e continuidade, implicando o fornecimento de ferramentas, materiais e máquinas por parte da recorrida.
12. E dependia juridicamente da recorrida, ou seja, subordinava-se, na relação contratual, a esta, que detinha o poder de direcção, devendo-lhe obediência. Submetendo-se às ordens emanadas do poder directivo da recorrida, no limite do contrato.
13. Pelo que dúvidas não restam, não ter o foro administrativo competência para apreciar a questão em litígio.
14. Na própria sentença recorrida, é reconhecida a existência de um contrato de trabalho celebrado entre recorrente e recorrida.
15. Ora, não se pode confundir a natureza laboral do contrato que ligou o recorrente à recorrida com o estatuto daquele primeiro enquanto bombeiro voluntário.
16. Às relações laborais do recorrente (enquanto motorista da Recorrida) e às relações laborais de direito privado estabelecidas entre as partes, aplica-se, o Código do Trabalho, Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro e/ou anterior legislação.
17. À referida relação de voluntariado que se estabelece entre as partes, aplica-se o Decreto-Lei n.º 247/2007, de 27 de Junho, bem como a Portaria nº 703/2008, de 30 de Julho (Regulamento Disciplinar dos Bombeiros Voluntários).
18. É normalmente confundida a qualidade de assalariado e a de bombeiro voluntário. Efectivamente, coincidem na mesma pessoa do recorrente, ambas as qualidades. Porém o serviço determinado aos voluntários nada tem que ver com o serviço determinado aos trabalhadores contratados.
19. Tal determinação, não só emana de diferentes órgãos da Ré recorrida, como tem na sua génese diferentes escalas.
20. O período de trabalho referido nas escalas próprias, devidamente organizadas pelo Comandante da Ré, compreende apenas e tãosomente o serviço de voluntariado. E para que o serviço se possa considerar no âmbito do voluntariado, necessário é que as pessoas que o prestam se disponibilizem enquanto tal. A relação estabelecida entre os bombeiros e o seu comandante é meramente operacional e não laboral!
21. Por seu turno, as escalas de serviço para o trabalho subordinado, a realizar no período normal de trabalho legalmente estabelecido, emanam da Direcção da recorrida, com quem os bombeiros têm uma verdadeira relação laboral de subordinação, decorrente do vínculo contratual.
22. O que aqui se discute nestes autos – deixe-se bem claro – é a actividade prestada ao abrigo do contrato de trabalho. Deste modo e salvo o devido respeito, que é muito, não pode o Tribunal a quo equiparar as infracções cometidas no exercício das funções de bombeiro voluntário às do bombeiro trabalhador.
23. E, note-se que a entidade Recorrida, não é apenas uma associação de voluntários. A Entidade recorrida ao celebrar com o recorrente um contrato individual de trabalho, investiu-se na qualidade de empregador, o que a submete ao regime decorrente da legislação laboral.
24. Conforme se pode ler no sumário do Ac. da RP, datado de 15.07.2009, relatado pela Desembargadora Albertina Pereira, in www.dgsi.pt “ a lei não impõe que só possam trabalhar como assalariados nas associações humanitárias de bombeiros voluntários, aqueles que tenham a qualidade de bombeiro. Do mesmo modo, a lei também não impõe que a perda da qualidade de bombeiro possa implicar a impossibilidade de prestar trabalhos
nas Associações Humanitárias respectivas, ou de estas receberem o trabalho”.
25. Mas, deterá a qualidade de bombeiro voluntário alguma prevalência sobre a qualidade de trabalhador subordinado, prevalência essa que impõe o afastamento aos trabalhadores, também bombeiros voluntários, do regime legal decorrente do Contrato de Trabalho? Não se vislumbra tal prevalência no regime legal vigente!
26. O voluntário é o indivíduo que, de forma livre, desinteressada e responsável, se compromete, de acordo com as suas aptidões e no seu tempo livre, a realizar acções de uma organização promotora (art. 3º da Lei 71/98, de 3/11, denominada Enquadramento Jurídico do Voluntariado).
27. Encontra-se assim em causa, no entendimento do Recorrente, o desempenho de sua actividade profissional, pelo que não se vê como é que o estatuto do voluntário deva articular-se com a legislação laboral!
28. Chamar à colação, como faz a sentença recorrida, da equiparação da actividade de bombeiro voluntário à de bombeiro trabalhador quanto às infracções disciplinares, é fazer tábua rasa daquele que é o verdadeiro motivo desta acção – a existência de um contrato de trabalho de que muito voluntários não são titulares.
29. De facto, não se pode equiparar a prestação de serviço voluntário dos bombeiros em geral com a destes homens que actuam no exercício do contrato de trabalho e, nos seus tempos livres, isso sim, são voluntários.
30. Por seu turno, o Estatuto do Bombeiro Voluntário, constante do Decreto-Lei nº 295/00, de 17 de Novembro, nada refere sobre o assunto. Dispõe, contudo, que os direitos do pessoal dos corpos de bombeiros são regulados pelos regulamentos internos, pelo diploma em causa e pela demais legislação aplicável. Não exclui portanto a legislação laboral, antes remete para a mesma!
31. E, quando os diplomas específicos aplicáveis ao voluntariado consignam alguma preferência no estatuto de bombeiro, é para atribuir direito àquele que for bombeiro, não para lhos sonegar enquanto trabalhador. Esta é a única interpretação possível em face da Constituição da República Portuguesa que estatui no art. 53º que a garantia da segurança no emprego “implica, naturalmente, a compressão, no domínio das relações laborais, da autonomia privada, da liberdade empresarial e de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, T. I, 501).
32. Falecem, pois, os argumentos constantes na douta sentença recorrida, de fazer prevalecer o estatuto de bombeiro voluntário sobre o de trabalhador, ou, de subsumir ao voluntariado a prestação no âmbito da actividade profissional do recorrente.
33. Neste sentido, decidiu também o Tribunal da Relação de Coimbra (Ac. de 14/10/04, relatado pelo Desembargador Bordalo Lema, in www.dgsi.pt), em cuja fundamentação se pode ler que “por razões de interesse público, a valência-qualidade de bombeiro voluntário dever prevalecer sobre a de trabalhador contratado, decorrente de um contrato privado, não significa que os efeitos jurídicos da primeira anulem ou neutralizem as da segunda” e
ainda que “afigura-se incontornável que existe um contrato de trabalho plenamente eficaz e regulado por normas de carácter imperativo, como são as relativas ao trabalho”.
34. Ou seja, afirma-se neste aresto o que o recorrente defende nos presentes autos: a prestação decorrente das escalas de serviço – que não se confundem com as escalas (Piquetes), também existentes nos seio da Recorrida para o voluntariado – é levada a cabo no âmbito do contrato individual de trabalho do recorrente, e, logo, é ao abrigo deste que deve ser regulamentada.
35. Os bombeiros assalariados, como é o caso do aqui recorrente, regem-se pelo Código do Trabalho, na medida em que o vínculo que está na origem da relação laboral, é um verdadeiro contrato individual de trabalho.
36. Logo, não se aplicam aos mesmos as regras laborais do Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas (Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro).
37. Por esse facto também, qualquer pena disciplinar que tenha sido aplicada ao recorrente enquanto trabalhador assalariado, só o Tribunal do Trabalho será competente para apreciar a mesma.
38. Na verdade, está-se perante uma relação de direito privada e não pública, como resulta, aliás, do contrato de trabalho a termo certo junto pela Recorrida!
39. Simultaneamente, e desde 1996, o recorrente foi bombeiro voluntário da Ré. Sendo que, a esta relação de voluntariado que se estabelece entre as partes, aplica-se o Decreto-Lei n.º 247/2007, de 27 de Junho, bem como a Portaria nº 703/2008, de 30 de Julho (Regulamento Disciplinar dos Bombeiros Voluntários).
40. De facto, o artigo 1º, nº 3 do Estatuto Disciplinar dos Bombeiros Voluntários estatui que “ exceptuam-se do âmbito de aplicação deste diploma os bombeiros voluntários que possuam estatuto diferente resultante de contrato individual de trabalho com a entidade detentora, quando a infracção for praticada fora do exercício das funções de bombeiro”.
41. Ou seja, os Bombeiros Voluntários têm dois vínculos com a Associação: um de direito privado, a relação laboral propriamente dita, sendo competente o Tribunal do Trabalho e a Lei Laboral; outra de direito público, enquanto voluntários, sendo em última instância, o Tribunal Administrativo o competente.
42. Segundo o enquadramento da Recorrida, os factos vertidos na motivação, ter-se-ão verificado quando o recorrente se encontrava a exercer as suas funções como trabalhador assalariado da AHBV … - como, aliás, expressamente reconhece no relatório final do processo disciplinar, a fls 4 e 5 -, e não quando integrado nas escalas de voluntariado devidamente organizadas pelo Comandante daquele Corpo de Bombeiros, para o serviço de voluntariado.
43. Porque a recorrida reconhece o duplo vínculo do recorrente, pelos mesmos factos instaurou dois processos disciplinares autónomos e distintos àquele, a saber:
a) em 28/11/2011 foi entregue Nota de Culpa ao recorrente, enquanto assalariado, pelos motivos constantes do ponto 6. dos factos assentes da sentença recorrida, processo disciplinar esse instruído pelo Mandatário da Direcção da Recorrida, com decisão despedimento com justa causa do A. proferida pela referida Direcção da Ré, datada de 25 de Fevereiro de 2012, conforme documentos juntos aos autos;
b) em 13/12/2011, foi entregue Nota de Culpa ao recorrente, enquanto voluntário, pelos motivos constantes do doc. 4 junto com a contestação - e que são exactamente os mesmos da primeira Nota de Culpa - processo disciplinar esse instruído pelo Comandante dos Bombeiros Voluntários …, C…, com decisão de demissão do A. proferida pelo Comandante da Ré, da datada de 10 de Fevereiro de 2012, conforme doc. 5 junto com a contestação.
44. Ou seja: nesta data, o recorrente encontra-se duplamente despedido, seja enquanto voluntário, seja enquanto trabalhador!
45. Sendo evidente que, ao instaurar dois processos distintos, a recorrida pretendeu cessar quer o vínculo laboral do recorrente como trabalhador assalariado, quer o vínculo público daquele como bombeiro voluntário.
46. Dupla qualidade essa que a Recorrida reconhece e aceita, pois de outra forma não instauraria dois processos disciplinares autónomos!
47. Se relativamente ao segundo processo disciplinar não há dúvidas que a demissão do recorrente constitui um verdadeiro acto administrativo da recorrida, sendo competente para a apreciação da licitude do mesmo o Tribunal Administrativo, já quanto ao primeiro, porque no âmbito da relação laboral, por maioria de razão, terá de ser competente o Tribunal do Trabalho.
48. a sentença recorrida baseia-se toda ela no Ac. RP de 24.10.2011, in www.dgsi.pt, o qual, é pouco esclarecedor, pois acaba por concluir que as infracções cometidas pelos bombeiros podem ter dois tratamentos distintos, para dirimir as quais poderão ser competentes o foro administrativo ou o tribunal do trabalho.
49. Sendo certo que, decorre de tal aresto que para a questão ser subsumível à apreciação do Tribunal Administrativo, os factos imputados ao bombeiro terão necessariamente de ter sido praticados nessa qualidade e no exercício das funções que lhe estavam cometidas enquanto bombeiro. O que não sucedeu no caso concreto, não tendo sequer sido apuradas as concretas circunstâncias em que o abaixo-assinado foi subscrito pelo recorrente!
50. Na verdade, não se indagou do local, hora e em que condições tal abaixo-assinado terá sido subscrito pelo recorrente!
51. O tribunal a quo, salvo melhor entendimento, fez uma interpretação incorrecta dos diplomas legais invocados na sentença recorrida. Bem como uma errada análise e apreciação dos factos e subsunção jurídica em causa.
52. Na verdade, o Tribunal a quo fez uma análise redutora e ligeira, quer dos factos, quer do direito aplicável.
53. Não valorou a documentação junta aos autos, nomeadamente, a existência de dois contratos individuais de trabalho e os dois processos disciplinares instaurados ao recorrente (um enquanto voluntário e outro enquanto trabalhador assalariado).
54. Não se ignorando o princípio da livre apreciação das provas que se encontra consagrado no artigo 655º do CPC, aplicável subsidiariamente, o certo é que, como ensina Alberto dos Reis in CPC Anotado, 3º - 245, tal princípio (...) “significa apenas a libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas” (...).
55. Deverão considerar-se violados: o artigo nº 1152º do Código Civil, o artigo 11º do Código do Trabalho, o artigo 118º, alínea b) da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, o artigo 4º, nº 2, alínea d) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais, o artigo 1º, nº 3 do Estatuto Disciplinar dos Bombeiros Voluntários e o artigo 655º do CPC.
NESTES TERMOS E NOS DE DIREITO DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM, CONSEQUÊNCIA: revogar-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que seja considerado materialmente competente para decidir a causa, o Tribunal do Trabalho de Santa Maria da Feira. (…)”.
A Recorrida contra-alegou, pugnando pelo não provimento do recurso e tendo formulado, a final, as seguintes conclusões:
Primeira: O Autor/apelante tinha dois vínculos com a Ré/recorrida, um como bombeiro voluntário e outro como profissional. Tais vínculos são distintos e independentes um do outro.
Segunda: O apelante não foi punido duas vezes pelo mesmo facto.
Terceira: Além dos factos dados como provados na sentença colocada em crise pelo Autor/apelante, mais nenhum facto deveria ter sido dado como provado porquanto respeitam a matéria de facto controvertida ou impugnada pelas partes.
Quarta: O Autor apelante sempre desempenhou funções de bombeiro.
Quinta: O “exercício da actividade de bombeiro voluntário tem natureza pública, prosseguindo um fim de interesse público e; que, em matéria disciplinar, o regime a eles aplicável por infracções cometidas no exercício das suas funções tem natureza pública, como são exemplo o regime dos recursos hierárquico e contencioso e rege-se, subsidiariamente, por normativos de direito público, qual seja o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, hoje o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas; que a entidade competente para aplicação de sanções a cadeia hierárquica do corpo de bombeiros (…) e delas cabendo recurso hierárquico e contencioso, à semelhança do que vigora no direito público administrativo.”, consoante Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.10.2011 (www.dgsi.pt)
Sexta: A decisão disciplina baseou-se na violação do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas.
Sétima: O Tribunal do Trabalho de Santa Maria da Feira é incompetente em razão da matéria para conhecer da impugnação da sanção disciplinar aplicada pela aqui recorrida ao Autor/apelante, sendo competente o foro administrativo.
Oitava: A sentença colocada em crise pelo Autor/apelante B… aplica a lei e o direito, nomeadamente o disposto nos artigos 2.º, 3.º e 37.º do Decreto-lei 241/2007, de 21 de Junho, no artigo 1º, n.º 3, da Portaria 703/2008 e nos artigos 101.º, 102.º/1, 288.º/1/a), 493.º/2 e 494.º/1/a) do Código de Processo Civil, pelo que deve ser mantida, (…)”.
O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto junto desta Relação emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso, sobre o qual as partes, notificadas, não se pronunciaram.
Colheram-se os vistos legais.
*
II. Matéria de Facto Assente:
Na 1ª instância foi dada como assente a seguinte factualidade:
1. A Ré é uma associação que tem como escopo manter o corpo de bombeiros voluntários, socorrer feridos e doentes e proteger, por qualquer forma, vidas e bens.
2. Desde 1996 é bombeiro voluntário ao serviço da Ré.
3. Desde, pelo menos 01.06.2009, outorgou contrato de trabalho com a Ré para o exercício das funções de bombeiro.
4. O Autor, enquanto ao serviço da Ré, sempre desempenhou as funções de bombeiro.
5. O Autor, entre outro bombeiros, no dia 9 de setembro de 2011, assinou um documento denominado abaixo-assinado, que foi remetido via postal registada para a Ré.
6. O documento imputa ao Comandante da Ré de entre muitos factos, os seguintes:
a) Ser um indivíduo autoritário, prepotente e vingativo;
b) De se encontrar embriagado a quando do Quartel Aberto;
c) Ter falta de ética e conduta pois alega o Autor que os louvores devem ser dados em formatura e as punições/repreensões devem ser em privado, referindo-se a uma advertência feita a um bombeiro devido a uma alegada filmagem a um incêndio;
d) De colocar a vida dos Bombeiros em risco devido às diversas avarias que os veículos vão tendo, alegando que o Comandante da Ré era conhecedor das mesmas;
e) De colocar em primeiro lugar os seus interesses pessoais e o facto de querer agradar ao CODIS de Aveiro, enviando veículos para fora da sua AAP – área de atuação própria, colocando em risco os … e os Bombeiros;
f) De não prestar ou deixar que prestassem o devido socorro a uma criança que tinha caído a um poço;
g) De ter obrigado o piquete de serviço na Ré a levantar-se para ir á procura do telefone, de madrugada;
h) Ter usado um veículo da Ré, o …., para uso pessoal, deixando-o abandonado em local escuro.
7. Ao Autor foi aplicada a sanção disciplinar de demissão e despedimento, na sequência de processo disciplinar. (documento de fls. 3 a 15, que se dá por reproduzido)
***
O Recorrente entende que existe factualidade relevante que se encontra provada documentalmente e que não consta do elenco acima consignado, no que lhe assiste razão na medida e termos do que a seguir se aditará (o que sempre poderia e poderá ter lugar oficiosamente atento o disposto no art. 659º, nº 3, do CPC, na medida em que os factos se encontrem provados documentalmente, com força probatória plena).
Assim:
Pelas partes foram juntos aos autos os documentos de fls. 3 a 15, 40 a 43, 117 a 119, 233/234, 235, 247 a 251 os quais, e respetivas assinaturas, não foram impugnados pela parte contra a qual os mesmos foram pelas partes, pelo que fazem prova plena da emissão das declarações que deles constam.
Deste modo, adita-se à matéria de facto os nºs 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15 com a seguinte redação:
8. O A. e a Ré, aos 01.02.2007, celebraram e assinaram o denominado “CONTRATO DE TRABALHO A TERMO CERTO” que consta do documento que constitui fls. 233/234 dos autos, no qual se refere o seguinte:
“ (…)
É celebrado o presente CONTRATO DE TRABALHO A TERMO CERTO, que se regulará pelas seguintes cláusulas:
1ª
A 2ª Outorgante é admitida ao serviço da 1ª Outorgante para desempenhar funções inerentes a motorista.
2ª
A 2ª Outorgante desempenhará as funções na (…).
3ª
O presente contrato tem início no dia 1 de Fevereiro de 2007 e terá a duração de 6 (seis) meses.
4ª
Como contrapartida pelo seu trabalho, a 1ª Outorgante pagará à 2ª Outorgante a remuneração base mensal ilíquida de (…)
(…)
5ª
O horário normal de trabalho da 2ª Outorgante será de 40 horas semanais.
6ª
A 2ª Outorgante terá direito às férias remuneradas, consoante o estipulado na lei.
7ª
O presente contrato é celebrado de harmonia com o estipulado na lei 99/2003, de 27 de Agosto, artigo 129º, nºs 1 e 2, pois a 1ª Outorgante está a (…)”
8ª
O contrato caducará no termo do prazo estipulado na cláusula 3ª, ou no termo das prorrogações, se a 1ª Outorgante comunicar, por escrito, à 2ª Outorgante, até 8 (oito) dias antes do prazo expirar, a vontade de o não renovar, ou a 2ª Outorgante comunicar à 1ª Outorgante a vontade de o rescindir com a antecedência mínima de 15 8quinze) dias.
9ª
A 2ª Outorgante fica desde já informada e aceita que o contrato, se não cessar antes caducará no fim da 2ª renovação.
10ª
(…)
Santa Maria da Feira, 1 de Fevereiro de 2007”
9. O A. e a Ré, aos 01.06.2009, celebraram e assinaram o denominado “CONTRATO DE TRABALHO A TERMO CERTO” que consta do documento que constitui fls. 40 a 43 dos autos, no qual se refere o seguinte:
“ (…)
Os contratantes celebram entre si, livremente e de boa-fé, o presente contrato de trabalho a termo certo, que se rege pelas disposições gerais contratualmente aplicáveis (Código do Trabalho – anexo à Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro de 2009) e ainda pelas cláusulas seguintes:
1ª
Pelo presente contrato o 2º Outorgante passa a trabalhador por conta, a favor e sob as ordens do 1º Outorgante, com as funções de Bombeiro, incorporado na Equipa de Intervenção Permanente, nos termos definidos na Portaria nº 1358/2007, de 15 de Outubro e de acordo com o nº 5 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 247/2007, de 27 de Junho, que veio determinar o regime jurídico aplicável à constituição, organização, funcionamento e extinção dos corpos de bombeiros no território continental.
2ª
O local de trabalho do 2º Outorgante será (…)
3ª
(…)
4ª
O conteúdo das funções do 2º Outorgante são as definidas no artigo 2º da referida Portaria 1358/2007, de 15 de Outubro, e resume-se, nomeadamente, no seguinte:
(…)
5ª
1. O 1º Outorgante pagará ao 2º Outorgante a remuneração mensal ilíquida de (…)
2. (…)
3. (…)
6ª
O 2º Outorgante prestará o trabalho em regime de Trabalho por turnos conforme escalas/horário elaboradas pelo 1º Outorgante, observando-se o disposto na Portaria referida na cláusula 1ª, não ultrapassando cada um o período normal de trabalho, enm a duração de 40 horas semanais.
7ª
O presente contrato terá o seu início no dia 01/06/2009, e terá duração de 1(um) ano, nos termos do Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, cessando em 31/05/2010, sendo automática e sucessivamente renovável por igual período por mais duas vezes, caso não venha a ser denunciado por qualquer das partes, com a antecedência de 15 dias a contar do seu termo inicial ou do termo de qualquer das suas renovações, através de comunicação escrita, a vontade de o fazer cessar.
8ª
Este contrato vigorará pelo prazo estabelecido na cláusula anterior em razão do seguinte motivo: (…).
9ª
As partes acordam que para julgamento de quaisquer questões emergentes do não cumprimento deste contrato, o foro competente seja o Tribunal de Trabalho de Santa Maria da Feira.
10ª
No omisso regem as pertinentes disposições do Código do Trabalho e demais legislação específica aplicável.
(…)
Santa Maria da Feira, 01 de Junho de 2009”
10. A Ré deduziu contra o A. a nota de culpa, datada de 25.11.2011 e assinada por “O Instrutor, E…”, que consta do documento que constitui fls. 118 e 119 e que foi comunicada ao A. nos termos constantes da carta, datada de 28.11.2001 e assinada por “E…”, que consta do documento que constitui fls. 117 e na qual se encontram apostos, pelo A., os seguintes dizeres: “Declaro que recebi o original 28.11.11”.
11. Na mencionada nota de culpa, de fls. 118/119, refere-se, para além do mais que dela consta o seguinte:
“A Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários …, (…), deduz contra o trabalhador-arguido B…, a presente acusação consistente na seguinte factualidade:
1.
O arguido é empregado da arguente desempenhando a função de bombeiro de 1ª.
2.
O arguido no dia 9 de Setembro de 2011, durante o horário de trabalho, entregou na secretaria da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários …, sua entidade patronal, um documento composto por seis páginas de versos em branco, denominado abaixo-assinado, contendo a assinatura do arguido, consoante o documento que se anexa (…).
2.
O conteúdo do referido documento denominado abaixo-assinado tem como teor imputações, incriminações e suspeições sobre o comandante da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários …, Sr. F….
(…)
8.
Bem sabia o arguido que de um ponto de vista jus-laboral era grave a sua conduta e que estava vedado agir desse modo, porquanto deve respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos e demais pessoas que se relacionem com a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários …, com urbanidade, lealdade e probidade, nos termos do artigo 3º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, Lei 58/2008 de 9 de Setembro.
(…)
11.
Efectivamente, a conduta do arguido impossibilita, pela sua gravidade e consequências a manutenção da relação laboral.
12.
Á entidade patronal não é exigível ter ao seu serviço um trabalhador que (…), consoante consta do artigo 18º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, Lei 58/2008 de 9 de Setembro.
13.
Nos termos legais, nomeadamente do artigo 24º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, Lei 58/2008 de 9 de Setembro, (…).
(…)
15.
Comprometeu (…), impossibilitando a manutenção da relação laboral, devendo ser sancionado com uma pena disciplinar adequada, que será a demissão e o despedimento por facto imputável ao trabalhador.
16.
De facto, é intenção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários … proceder à demissão e despedimento por facto imputável ao arguido B….
(…)”.
12. De fls. 247 a 250 consta, em papel timbrado da Ré, nota de culpa, datada de 13.12.2011 e assinada por “O Instrutor, O Comandante, C…”, emitida contra o A. e na qual se refere, para além do mais que dela consta, o seguinte:
“Nota de culpa Processo Disciplinar Instaurado Ordem de Serviço nº 44/2011
(…)
- Vistos os autos e analisadas as provas na fase instrutória deste processo disciplinar deduzo contra o arguido B… (…), elemento do corpo de bombeiros Voluntários … a seguinte acusação:
Art. 1
- No dia 09 de setembro de 2011 foi redigido e assinado um abaixo-assinado por um grupo de treze elementos identificáveis pelas suas assinaturas, os quais solicitavam à Direcção dos Bombeiros Voluntários … a exoneração do Comandante F…;
Art. 2
- consta no documento em causa declarações relevantes contra o Comandante F…, destacando as seguintes:
(…)
Assim deduzo contra o arguido acima mencionado a seguinte pena:
Pena de Demissão, conforme alínea a) do art. 16º da Portaria nº 703/2008 de 30 de Julho, com suspensão imediata até conclusão do processo disciplinar.
Nos termos do nº 1 do art. 49º da respectiva Lei 58/2008 fixo ao arguido o prazo de (…)
(…)”.
13. De fls. 251 consta documento, em papel timbrado da Ré, datado de 10.02.2012, assinado por “O Comandante, F…, Engº” e endereçado ao Autor, em que se refere o seguinte:
“(…)
De acordo com os fundamentos e as conclusões do Relatório Final, que se adere integralmente, emitido pelo instrutor do processo disciplinar, conforme Ordem de Serviço nº .., datada de 12 de Outubro de 2011, determino a aplicação a V. Exª da Pena de Demissão, conforme previsto na alínea a) do art. 16º, da Portaria nº 703/2008 de 30 de Julho, com efeitos a partir da data da receção do presente ofício.”.
14. De fls. 3 consta, em papel timbrado da Ré, carta endereçada e enviada ao A., datada de 25.02.2012, na qual se refere o seguinte:
“Tendo-nos sido apresentado Relatório Final no processo disciplinar que lhe foi instaurado, do qual se junta cópia, e porque aderimos integralmente ao conteúdo do mesmo, somos a informar que decidimos aplicar-lhe a sanção disciplinar de demissão e despedimento por facto imputável ao arguido, nos termos dos artigos 9º e 18º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, Lei 58/2008 de 9 de Setembro.
Mais informamos que a presente decisão produz efeitos no dia seguinte a ser notificado da presente decisão, nos termos do artigo 58º do diploma acima mencionado.
Sem outro assunto de momento, subscrevemo-nos,
Atenciosamente,
[assinatura]
Anexamos: o mencionado relatório final.”
15. De fls. 235 consta carta, em papel timbrado da Ré, datada de 23.02.2012 e endereçada ao A., na qual se refere o seguinte:
“Serve a presente para comunicar a v. exª que o seu contrato de trabalho a termo certo celebrado com esta Associação cessará no dia 31 de Maio de 2012, não sendo renovado, nos termos da cláusula 7ª do contrato a termo celebrado.”
*
III. Do Direito
1. Nos termos do disposto nos artºs 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1, do CPC (na redacção introduzida pelo DL 303/2007, de 24.08), aplicáveis ex vi do disposto nos artºs 1º, nº 2, al. a), e 87º do CPT (com a redação introduzida pelo DL 295/2009, de 13.10), as conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o objecto do recurso, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
E, daí, que a única questão a apreciar consista em saber se o Tribunal do Trabalho é materialmente competente para a presente ação.
2. A decisão recorrida considerou ser o Tribunal do Trabalho materialmente incompetente, em consequência do que absolveu a Ré da instância, para tanto, e em síntese, invocando parte do Acórdão desta Relação de 24.10.2011[2], proferido no processo 751/10.1TTBCL.P1 (in www.dgsi.pt), mais se referindo o seguinte:
“(…)
Assim, resultando dos autos que o Autor sempre exerceu as funções de bombeiro e só essas, como ele próprio alega, os atos do comandante da Ré, que aplica a sanção disciplinar, por factos praticados enquanto bombeiro, no exercício das funções próprias de bombeiro e na qualidade de bombeiro, é-lhe aplicável o regime constante do Regulamento Disciplinar, supra citado, sendo a decisão disciplinar passível de recurso contencioso, perante o foro administrativo.
Mais, como consta da decisão disciplinar a mesma baseou-se na violação do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas e que, não em qualquer disposição do Código do Trabalho.
(…)”.
De tal decisão discorda o Recorrente, pelas razões explanadas no recurso, mormente nas conclusões do mesmo.
3. No acórdão citado na decisão ora recorrida estava em causa, como decorre da sua leitura, a aplicação ao então aí A., também bombeiro voluntário e, igualmente, vinculado a uma Associação de Bombeiros Voluntários por contrato de trabalho, de duas sanções disciplinares (com base na imputação dos mesmos factos): uma (suspensão por 13 dias) aplicada pelo comandante dessa corporação de bombeiros ao então A. na qualidade de bombeiro voluntário e, outra (repreensão registada), aplicada ao referido A. na qualidade de trabalhador, pela Associação de Bombeiros Voluntários, esta na qualidade de empregadora e no âmbito do contrato individual de trabalho entre ambos existente, sendo que o A., nessa ação, demandava não apenas a Associação, mas também o Comandante, e impugnava judicialmente, no Tribunal do Trabalho, a aplicação dessas duas sanções.
E, como decorre também da leitura do referido acórdão, foi aí decidido que o Tribunal do Trabalho era materialmente incompetente mas, apenas, para conhecer da aplicação, pelo comandante da corporação, da sanção (suspensão por 13 dias) aplicada ao A. enquanto bombeiro voluntário, tendo o aí Comandante sido absolvido da instância.
Todavia, nesse aresto considerou-se também que o Tribunal do Trabalho era o materialmente competente para a apreciação do pedido formulado contra a Associação de Bombeiros, na parte em que tinha como objeto a impugnação da (outra) sanção disciplinar aplicada pela referida Associação no âmbito do contrato de trabalho que vinculava as partes.
Ou seja, e desde já adiantando, a invocação do citado acórdão, rectius, de apenas uma sua parte ou excerto, à revelia do mais que nele foi considerado, não autoriza (a nosso ver, nem era essa a intenção) a interpretação, adotada na decisão recorrida, no sentido da incompetência material do Tribunal do Trabalho para conhecer do objeto da presente ação. Antes pelo contrário, já que, sendo as suas considerações, no essencial, aplicáveis ao caso em apreço, delas decorre que o tribunal do trabalho é materialmente competente para o apreciar. Com efeito, o que está em causa e é impugnado nos presentes autos é a sanção do despedimento com invocação de justa causa, aplicada pela Ré, Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários, ao A. no âmbito do contrato individual de trabalho entre ambos existente (bem como a questão da validade, ou não, do contrato de trabalho a termo certo celebrado em Junho de 2009 e a da “validade” ou “eficácia”, ou não, da declaração da caducidade desse contrato decorrente da carta referida no nº 15 dos factos assentes) e não já a sanção de demissão aplicada, pelo comandante da Corporação de Bombeiros (que não foi demandado, ao contrário do que sucedia no acórdão citado), ao A. na qualidade de bombeiro voluntário, sanção essa que não foi, nos presentes autos, impugnada.
4. Importa, pois e antes de mais, transcrever o que de mais relevante foi referido em tal aresto:
“(…) 3. Como decorre do alegado pelo A. e do que se consignou como assente, este reunia a dupla qualidade de bombeiro voluntário (de 3ª classe) e de trabalhador por conta de outrem, vinculado que se encontrava à 1ª Ré por contrato de trabalho com a categoria de motorista.
E decorre também que em causa nos autos estão, por virtude da mesma factualidade imputada ao A. (recusa do serviço e transporte de um doente) duas sanções disciplinares (como tal qualificadas pelo A.):
- A de repreensão registada, que foi aplicada pela 1ª ré;
- A de suspensão por 13 dias, que foi decidida pelo Comandante do Corpo de Bombeiros da Ré, ora 2º Réu.
3.1. O enquadramento legal das Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários e da actividade de bombeiro consta dos DL 241/2007, de 21.06[3] (Regime Jurídico dos Bombeiros Portugueses no território continental), DL 247/2007, de 27.06 (Constituição, organização, funcionamento e extinção dos Corpos de Bombeiros), Lei 32/2007, de 13.08 (Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros), Despacho nº 9915/2008 da Autoridade Nacional de Protecção Civil, publicado no DR, 2ª Série, de 04.04.2008 (Regulamento das Carreiras de Oficial Bombeiro e de Bombeiro Voluntário) e Portaria 703/2008, de 30.07 (Regulamento Disciplinar dos Bombeiros Voluntários).
Dispõe a Lei nº 32/007, de 13.08, que: as associações (de ora em diante apenas designada de associação) humanitárias de bombeiros são pessoas colectivas sem fins lucrativos que têm como escopo principal a protecção de pessoas e bens, detendo, e mantendo para o efeito, um corpo de bombeiros voluntários ou misto (art. 2º, nº 1); a associação dispõe de um orgão de administração, a quem compete, para além do mais, organizar o quadro de pessoal, contratar e gerir o pessoal contratado da associação (art. 19º, nº 1, al. e); o regime jurídico dos contratos de trabalho entre as associações humanitárias de bombeiros e o pessoal integrado no quadro de comando e no quadro activo do respectivo corpo de bombeiros que exerce funções remuneradas será definido em diploma próprio, a publicar no prazo de 180 dias após a publicação da lei (art. 35º), diploma aquele que não foi ainda publicado (ao menos que seja do nosso conhecimento, o qual também não é invocado nos articulados).
De harmonia com o DL 247/2007:
- ressalvando a autonomia das entidades detentoras de corpos de bombeiros, a tutela destes é exercida pela Autoridade Nacional de protecção Civil (art. 6º, nº 1);
- os corpos de bombeiros voluntários têm as seguintes características: pertencem a uma associação humanitária de bombeiros; são constituídos por bombeiros em regime de voluntariado; podem dispor de uma unidade profissional mínima (art. 7º, nº 4).
- Os elementos que compõem os corpos de bombeiros voluntários ou mistos integram os seguintes quadros de pessoal: quadro de comando, quadro activo, quadro de reserva e quadro de honra, sendo o quadro de comando constituído pelos elementos a quem é conferida a autoridade para organizar, comandar e coordenar as actividades exercidas pelo respectivo corpo e composta pelo comandante, 2º comandante (e adjuntos do comando); o quadro activo é constituído pelos elementos aptos para a execução das missões (arts. 9º, nºs 2, 3 e 4 e 12º).
De acordo com o regime jurídico dos bombeiros, constante do DL 241/2007:
- “Bombeiro” é “o indivíduo que, integrado de forma profissional ou voluntária num corpo de bombeiros tem por actividade cumprir as missões deste, nomeadamente a protecção de vidas humanas e bens em perigo, mediante (…)”; corpo de bombeiros, é a unidade operacional organizada, preparada e equipada para o cabal exercício das missões previstas na lei; entidade detentora do corpo de bombeiros, é a entidade pública ou privada, designadamente o município ou a associação humanitária de bombeiros que cria, detém ou mantém um corpo de bombeiros (art. 2º).
- o referido diploma dispõe, designadamente, em matéria de direitos e deveres do bombeiro, faltas e licenças, mobilidade e impedimentos, estrutura de comando, carreira de bombeiro (que é composta pelas categorias de chefe, subchefe, bombeiro de 1ª, bombeiro de 2ª. Bombeiro de 3ª e estagiário – art. 35º e cfr. também Despacho 9915/2008 da ANPC) e regime disciplinar,
- E, em matéria disciplinar relativamente aos bombeiros voluntários, dispõe que: se aplica o regulamento disciplinar próprio, aprovado por portaria, e, subsidiariamente, o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, leia-se, hoje, o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas (art. 37º); podem-lhes ser aplicadas as penas de advertência, repreensão escrita, suspensão de 10 a 180 dias e demissão (art. 38º); a pena de suspensão determina o não exercício do cargo ou função, a proibição de uso de uniforme e de entrada na área operacional do quartel, salvo convocação do comandante; a aplicação das penas de advertência e de repreensão escrita, não dependem de processo escrito, mas exigem audiência e defesa do arguido e a sua aplicação é da competência de todos os superiores hierárquicos em relação aos bombeiros que lhe estão subordinados; a aplicação das penas de suspensão e de demissão são aplicadas mediante processo disciplinar e são da competência do comandante do corpo de bombeiros (arts. 38º, 39º e 40º); das decisões disciplinares não aplicadas pelo comandante do corpo de bombeiros, cabe recurso hierárquico para este, de cuja decisão não cabe recurso gracioso; das decisões disciplinares do comandante do corpo de bombeiros misto ou voluntário, cuja entidade seja uma associação humanitária, cabe recurso hierárquico para o conselho disciplinar desta e de cuja decisão não é admissível recurso gracioso; das decisões referidas “cabe recurso contencioso nos termos gerais.”. (art. 41º)
Por fim, dispõe o Regulamento Disciplinar dos Bombeiros Voluntários, aprovado pela Portaria 703/2008 que:
- O Regulamento se aplica aos bombeiros voluntários que integram os quadros de pessoal homologados pela ANPC (art. 1º, nº 1), mas que “Exceptuam-se do âmbito de aplicação deste diploma os bombeiros voluntários que possuam estatuto diferente resultante de contrato individual de trabalho com a entidade detentora, quando a infracção for praticada fora do exercício das funções de bombeiro.” (art. 1º, nº 3) [sublinhado e realce nossos].
- O pessoal sujeito ao Regulamento Disciplinar é disciplinarmente responsável perante os seus superiores hierárquicos pelas infracções que cometa (art. 2º, nº 1).
- Os bombeiros voluntários, no exercício das suas funções, estão exclusivamente ao serviço do interesse público, de acordo com os fins prosseguidos pela entidade detentora que cria e mantém o corpo de bombeiros (art. 3º, nº 2);
- “Constitui ainda infracção a violação dos deveres gerais previstos nos nºs 5 a 12 do artigo 3º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central Regional e Local, publicado (…)”;
- em matéria de tipologia de penas disciplinares, de competência para a sua aplicação e de recurso hierárquico e contencioso, dispõe-se de forma idêntica à prevista no DL 241/2007 (cfr. arts. 8º, 13º e 28º da Port. 703/32008).
- O art. 24º preceitua ainda que quanto à forma de processo, das actas, natureza secreta do processo, obrigatoriedade de processo disciplinar, competência para a instrução, nulidades, aplica-se o disposto “nos artigos 35º a 44º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central Regional e Local, (…)”.
- Não se pode aplicar ao mesmo bombeiro voluntário mais de uma pena disciplinar por cada infracção ou pelas infracções acumuladas que sejam apreciadas num só processo (art. 12º, nº 1).
Serve a (longa) exposição para concluir: que o exercício da actividade de bombeiro voluntário tem natureza pública, prosseguindo um fim de interesse público; que, em matéria disciplinar, o regime a eles aplicável por infracções cometidas no exercício das suas funções tem natureza pública (veja-se, por exemplo, o regime dos recursos hierárquico e contencioso) e rege-se, subsidiariamente, por normas de direito público, qual seja o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, hoje o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas; que a entidade competente para aplicação de sanções a cadeia hierárquica do corpo de bombeiros (no caso de sanção de suspensão e de demissão, o comandante) e delas cabendo recurso hierárquico e contencioso, à semelhança do que vigora no direito público administrativo.
E o art. 1º, nº 3, da Portaria 703/2008, que veio dar execução ao art. 37º, nº 1, do DL 241/2007, é, a contrario, claro no sentido de que os bombeiros voluntários, ainda que com contrato individual de trabalho celebrado com a entidade detentora do corpo de bombeiros, estão, no que se reporta às infracções cometidas no exercício das funções de bombeiro, sujeitos ao Estatuto Disciplinar dos bombeiros voluntários, aprovado pela referida Portaria, e, subsidiariamente, ao Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas. Com efeito, deles apenas estarão excluídas as infracções que sejam cometidas fora do exercício de tais funções. Ou seja, cumulando o bombeiro a dupla qualidade de bombeiro voluntário e trabalhador por conta de outrém, as infracções disciplinares cometidas no exercício das funções de bombeiro estão submetidas ao Regulamento Disciplinar próprio dos bombeiros.
Concordamos, pois, com a decisão recorrida quanto refere que “Desta feita, por razões de interesse público, a valência/qualidade de “Bombeiro Voluntário” deve prevalecer sobre a de trabalhador contratado, decorrente de um contrato privado” e que, por isso, os actos do Comandante, que aplica sanção disciplinar ao AA – bombeiro de 3ª classe supranumerário -, por factos praticados por este nessa qualidade, são de considerar como consubstanciando um acto relativo ao funcionalismo público, configurador de uma relação jurídica de emprego público, caindo assim, a nosso ver, fora do alcance daquela previsão do artigo 4º, n.º 3, al. d) do ETAF.”.
3.2. Ou seja, no caso e no que se reporta à aplicação da invocada sanção de suspensão por 13 dias, ela decorreu de factos imputados ao A. que, ainda que vinculado por um contrato de trabalho e no seu horário de trabalho, foram praticados no exercício das funções (transporte de doente) próprias da actividade de bombeiro e que, na qualidade de bombeiro, lhe estavam (também) cometidas.
Era-lhe aplicável, pois, o regime constante do referido Regulamento Disciplinar, sendo que a sanção foi-lhe aplicada pelo comandante do corpo de bombeiros, decisão esta que, nos termos do regulamento disciplinar mencionado, seria passível de recurso contencioso, perante o foro administrativo, subscrevendo-se, pois e nessa parte, o entendimento da 1ª instância de que o tribunal do trabalho carece de competência em razão da matéria. E tal incompetência é extensível ao pedido, formulado contra o 2º Réu, de condenação no pagamento da quantia de €5.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais cuja causa de pedir assenta nessa suspensão, como decorre dos arts. 15º a 21º da petição inicial, bem como ao pedido de “custear a divulgação da sentença condenatória” que, porventura, venha a ser proferida “pelos quartéis de bombeiros nacionais e num dos jornais nacionais mais lidos.”
Refira-se que não colhe, a nosso ver, a tese do A. de que o 2º Réu teria actuado em representação ou como “prolongamento” dos poderes da 1ª ré, entidade empregadora, como aliás decorre do que ficou exposto. A competência disciplinar do 2ª Réu, enquanto comandante do corpo de bombeiros, é uma competência própria, que decorre dos poderes de comando sobre o corpo de bombeiros e não já da relação laboral, nem de qualquer espécie de delegação de poderes disciplinares, ainda que tácita, por parte da 1ª Ré, enquanto empregadora.
Nem esta, diga-se, ratificou a decisão, como decorre da carta de fls. 32. Com efeito, o que dela resulta é, precisamente, que a 1ª ré referiu que não é, como não é, da sua competência manter ou revogar a decisão tomada pelo Comandante do Corpo de Bombeiros da Associação, 2º Réu. Mas mesmo que, porventura, a 1ª ré, na carta de fls. 32, houvesse, como diz o A. “assumido a responsabilidade e a co-autoria da referida suspensão”, sempre se estaria no âmbito de uma sanção aplicada pelo 2ª réu, na qualidade de comandante do corpo de bombeiros voluntários, no âmbito do Regulamento Disciplinar, por virtude do exercício das funções de bombeiro voluntário e a que esse Regulamento é aplicável, cuja impugnação deve ter lugar através do “recurso contencioso”, da competência do foro administrativo.
3.3. Porém, já no que se reporta à aplicação, pela 1ª Ré, da sanção de repreensão registada, afigura-se-nos que a questão se coloca de modo diferente, pese embora a sua aplicação tenha sido motivada pela mesma factualidade.
Cumpre referir, antes de mais, que não constitui objecto do presente recurso apurar, designadamente face ao disposto no art. 1º, nº 3, da Portaria 703/2008, da competência ou da possibilidade legal de a 1ª Ré, na qualidade de empregadora e por via ou no âmbito do contrato de trabalho, aplicar ao A. a sanção disciplinar de repreensão registada, pois que esta consubstancia questão que, a colocar-se, sê-lo-ia a jusante da questão prévia da competência material do tribunal do trabalho, que é a que ora nos ocupa.
Ora, o certo é que a 1ª Ré, no âmbito do contrato de trabalho e invocando aliás as disposições do Código do Trabalho, aplicou ao A. uma sanção disciplinar de natureza laboral, pelo que, atento o disposto no art. 85º, al. b), da Lei 3/99, de 13.01 (cfr. no mesmo sentido art. 118º, al. b), da Lei 52/2008, de 28.08), afigura-se-nos que compete ao Tribunal do Trabalho conhecer da impugnação judicial dessa sanção.
Porém, já no que se reporta ao pedido de condenação no pagamento da quantia de €5.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais também formulado contra a 1ª ré, ele, como já acima mencionado,assenta na suspensão decretada pelo 2º Réu, pelo que, e face ao que já foi referido, é o foro administrativo o competente para o efeito.
3.4. Resta acrescentar que os pedidos formulados contra o 2º réu e, bem assim, o pedido, formulado contra a 1ª ré, de indemnização por danos não patrimoniais decorrente da aplicação da alegada sanção de suspensão não apresentam qualquer relação de conexão por acessoriedade, complementaridade ou dependência em relação ao pedido de impugnação da sanção de repreensão registada. Embora assentando a aplicação de ambas as sanções na imputação, ao A., dos mesmos factos, os pedidos não são nem acessórios, complementares ou dependentes um do outro; são, antes, pedidos independentes, que não decorrem ou assentam no pedido de impugnação da sanção de repreensão registada, e que visam a impugnação da aplicação, por entidades diferentes, de sanções diferentes.
3.5. Assim, e concluindo, entende-se que o Tribunal do Trabalho é materialmente incompetente para conhecer dos pedidos formulados contra o 2º Réu e, bem assim, do pedido de condenação no pagamento da quantia de €5.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais (porque assente na alegada ilicitude da sanção disciplinar da suspensão aplicada pelo 2º Réu) formulado contra a 1ª ré, pelo que, quanto aos mesmos, deverá manter-se a absolvição da instância decretada pela 1ª instância, assim e nesta parte, improcedendo as conclusões do recurso.
Já quanto ao pedido relativo à impugnação da sanção disciplinar de repreensão registada aplicada pela 1ª Ré, e custo de divulgação da eventual sentença favorável que venha a ser proferida, entende-se ser o tribunal do trabalho materialmente competente, em consequência do que, nesta parte, procedem as conclusões do recurso.
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IV. Decisão
Em face do exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso, em consequência do que se decide: A. Revogar a decisão recorrida, na parte em que considerou ser o Tribunal do Trabalho materialmente incompetente e, por consequência, absolveu a 1ª ré da instância, quanto ao pedido de “condenação” a reconhecer a ilegalidade da repreensão registada aplicada ao A. e “a custear a divulgação da sentença condenatória” que, porventura, venha a ser proferida “pelos quartéis de bombeiros nacionais e num dos jornais nacionais mais lidos.”, determinando-se à 1ª instância a sua substituição por outra que julgue o tribunal materialmente competente para esses pedidos. B. No mais, negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.”.
5. Importa acrescentar que, aos 21.11.2012, foram publicados os DL 248/2012 (retificado conforme Declaração de Retificação nº 4/2013, de 18.01) e DL 249/2012 (retificado conforme Declaração de Retificação nº 3/2013, de 18.01.2013), os quais alteraram, respetivamente, o DL 247/2007 e o DL 241/2007, alterações estas posteriores aos factos em apreço e, por consequência, sem relevância.
As considerações acima transcritas são, no essencial e devidamente adaptadas ao caso em apreço, aplicáveis a este, sendo de esclarecer que, a nosso ver, delas não resulta (nem tendo sido essa a intenção) a exclusão da competência material do tribunal do trabalho para a apreciação de uma sanção disciplinar que haja sido aplicada ao trabalhador bombeiro enquanto, e no âmbito, da sua vinculação à Associação por um contrato de trabalho por, nos termos da Portaria 703/2008, poder o mesmo, na sua qualidade de bombeiro voluntário, estar sujeito a regime disciplinar constante desse diploma.
Admitindo-se que o aduzido a propósito da interpretação do art. 1º, nº 3, da Portaria 703/2008 possa, eventualmente, não ter sido suficientemente claro, há que referir que subjacente a essa interpretação estava a definição das situações em que o bombeiro, porque voluntário, está sujeito à responsabilidade disciplinar prevista nesse diploma e, nesse âmbito, à competência do foro administrativo – afirmando-se a competência deste para a apreciação da sanção aplicada pelo comandante ao bombeiro, enquanto voluntário e no âmbito desse Regulamento Disciplinar-, e não a eventual exclusão da responsabilidade disciplinar, da competência do tribunal do trabalho, prevista no Código do Trabalho, no âmbito da relação laboral que mantém com a Associação [o que, aliás e a nosso ver, decorre do mais referido e decidido no acórdão que, considerando embora ser o tribunal do trabalho materialmente incompetente para conhecer da impugnação da sanção aplicada, nos termos dessa Portaria, pelo comandante e no âmbito da vertente do bombeiro como bombeiro voluntário, considerou, todavia, ser o tribunal do trabalho materialmente competente para conhecer da outra sanção, também aplicada pelos mesmos factos, mas pela Associação no âmbito do contrato individual de trabalho].
No caso, o A., bombeiro, reunia a dupla qualidade de trabalhador por conta de outrem, vinculado por contrato individual de trabalho (como manifestamente decorre, designadamente, dos contratos celebrados entre as partes) e de bombeiro voluntário. E é naquela qualidade que lhe foi aplicada, pela Ré, Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários, a sanção disciplinar de despedimento, a qual não se confunde com a de demissão, como aliás terá sido, também, o entendimento da Ré na medida em que ao A. foram aplicadas as duas sanções (a de despedimento, enquanto trabalhador por conta de outrem, aplicada pela própria Associação, ora Ré; e a de demissão de bombeiro voluntário, aplicada pelo comandante da corporação).
A sanção de despedimento com invocação de justa causa está prevista para os trabalhadores vinculados por contrato de trabalho (seja contrato individual de trabalho – arts. 328º, nº 1, al. f), e 351º e segs. do Código do Trabalho de 2009 –, seja contrato de trabalho de trabalhadores que exercem funções públicas – cfr, art. 10º, nº 6, da Lei 58/2008, de 09.09); a de demissão está reservada para trabalhadores com vínculo constituído por nomeação (cfr. art. 10º, nº 5, da citada Lei 58/2008), sendo também aplicável ao bombeiro voluntário ex vi do Regulamento Disciplinar dos Bombeiros Voluntários, aprovado pela Portaria 703/2008.
Ora, o que, na situação em apreço, é impugnado é a sanção disciplinar de despedimento com invocação de justa causa aplicada ao A. no âmbito do contrato individual de trabalho, de direito privado, que mantinha com a Ré (e não, como já referido, a de demissão aplicada ao A., enquanto bombeiro voluntário, pelo comandante da corporação), pelo que, nos termos do art. 85º, al. b), da Lei 3/99, de 13.01 (cfr. no mesmo sentido art. 118º, al. b), da Lei 52/2008, de 28.08) é o Tribunal do Trabalho materialmente competente para conhecer da ação, assim como o é para conhecer das demais questões suscitadas, designadamente do pedido de indemnização por danos não patrimoniais que assenta, segundo o A., nesse despedimento, e da questão de saber se o contrato individual de trabalho do A. era a termo certo ou sem termo.
Esclareça-se que, como manifestamente decorre dos contratos individuais de trabalho outorgados entre as partes, o que foi celebrado foi um contrato individual de trabalho, de direito privado, e não um contrato de trabalho para o exercício de funções públicas, para além de que a Ré não se enquadra em nenhuma das entidades públicas que se vinculam por este tipo de contratação – cfr. art. 3º da Lei 12-A/2008, de 27.02 e 3º da Lei 58/2008, de 11.09.
Assim sendo, como é, não procede a alegação da Recorrida (para fundamentar a exceção da incompetência material) constante do articulado motivador do despedimento “de que ao contrato de trabalho que ligava o Autor e a Ré” se aplica o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, constante da Lei 58/2008, de 09.12. Nem o A. mantém com a Ré qualquer contrato de trabalho para o exercício de funções públicas, nem a sanção disciplinar do despedimento com invocação de justa causa está prevista, ou foi aplicada, nos termos da Portaria 703/2008. O que foi aplicado ao A., na qualidade de bombeiro voluntário, nos termos desta Portaria e, subsidiariamente, da Lei 58/2008, foi a pena de demissão (aplicação essa decidida não pela Ré, Associação, mas pelo comandante) e não a sanção de despedimento com justa causa, sanções estas, como referido, que são diferentes.
E também não se mostra correta a afirmação constante da sentença recorrida em que se refere: “Assim, resultando dos autos que o Autor sempre exerceu as funções de bombeiro e só essas, como ele próprio alega, os atos do comandante da Ré, que aplica a sanção disciplinar, por factos praticados enquanto bombeiro, no exercício das funções próprias de bombeiro e na qualidade de bombeiro, é-lhe aplicável o regime constante do Regulamento Disciplinar, supra citado, sendo a decisão disciplinar passível de recurso contencioso, perante o foro administrativo.” [sublinhado nosso]. O que está em causa nos autos não é o ato do comandante da Ré, que aplicou a sanção da demissão, mas sim o ato da própria Ré, Associação, que, no âmbito do contrato individual de trabalho e ainda que desempenhando o A. as funções de bombeiro, lhe aplicou a sanção de despedimento com invocação de justa causa. E, para além da competência do Tribunal do Trabalho decorrente do art. 85º, al. b), da Lei 3/99, de 13.01, dispõe também o art. 4º, nº 3, al. d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei nº13/2002 de 19.02, com a redação introduzida pelo art. 10º da Lei 59/2008, que “ficam excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contrato de trabalho em funções públicas”.
Nem se diga, como se diz na decisão recorrida, que a decisão disciplinar se baseou “na violação do Estatuto disciplinar dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas e que, não em qualquer disposição do Código do Trabalho”.
Com efeito, a competência material do Tribunal do Trabalho não está, nem pode estar, condicionada ao enquadramento jurídico, porventura incorreto, que a Ré entendeu fazer na nota de culpa e na decisão do despedimento com invocação de justa causa. Como se refere no art. 664º do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. No caso, o A. não mantinha com a Ré qualquer contrato de trabalho para o exercício de funções públicas (mas sim um contrato individual de trabalho, de direito privado, sujeito ao Código do Trabalho), nem a sanção de despedimento com invocação de justa causa se confunde com a de demissão prevista no Regulamento Disciplinar dos Bombeiros Voluntários, aprovado pela Portaria 703/2008.
Assim sendo, é o Tribunal do Trabalho o materialmente competente para a apreciação da presente ação, procedendo, pois, o recurso.
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IV. Decisão
Em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, que é substituída pelo presente acórdão em que se decide julgar o Tribunal do Trabalho competente em razão da matéria para conhecer da presente ação.
Custas, em ambas as instâncias, pela Ré/Recorrida.
Porto, 25-02-2013
Paula Alexandra Pinheiro Gaspar Leal Sotto Mayor de Carvalho
Maria José Pais de Sousa da Costa Pinto
António José da Ascensão Ramos
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[1] O legislador, no processo especial denominado de “Ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento” introduzido pelo DL 295/2009, de 13.10 (que alterou o CPT) e a que se reportam os arts. 98º-B e segs, não definiu ou indicou a posição processual dos sujeitos da relação material controvertida; isto é, não indicou quem deve ser considerado, na estrutura dessa ação, como Autor e Réu, recorrendo, para efeitos processuais, à denominação dos sujeitos da relação material controvertida (trabalhador e empregador) – cfr., sobre esta questão Albino Mendes Batista, in A nova ação de impugnação do despedimento e a revisão do Código do Processo de Trabalho, Coimbra Editora, págs. 96 e segs. e Hélder Quintas, A (nova) ação de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, in Prontuário do Direito do Trabalho, 86, págs. 144/145, nota 25. De todo o modo, e por facilidade, quando nos referirmos a Autor (A.) e Ré (R.) estaremos a reportar-nos, respetivamente, ao trabalhador e ao empregador.
[2] Relatado pela ora relatora e onde, como 1º Adjunto, interveio o ora 2º Adjunto.
[3] Alterado pela Lei 48/2009, de 04.08, alteração esta, contudo, sem relevância para o caso.
______________ SUMÁRIO
Reunindo o trabalhador a dupla qualidade de bombeiro voluntário de Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários e de trabalhador subordinado dessa Associação, com quem havia celebrado contrato individual de trabalho, aplicada, pela Associação e no âmbito dessa relação laboral, sanção disciplinar de despedimento com invocação de justa causa, o tribunal do trabalho é o materialmente competente para a ação de impugnação da regularidade e licitude desse despedimento atento o disposto no art. 85º, al. b), da Lei 3/99, de 13.01 (cfr. também art. 118º, al. b), da Lei 52/2008, de 28.08).
Paula Alexandra Pinheiro Gaspar Leal Sotto Mayor de Carvalho