I – Em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel foi preocupação do legislador nacional, determinado pelo direito comunitário, proteger os lesados por acidente de viação ocorrido em Estado membro da União Europeia, v. g., permitindo a sua regularização plena dentro do seu espaço jurídico;
II – Assim, a “representante para sinistros” em Portugal de seguradora estrangeira responsável pelo acidente é dotada de legitimidade passiva para ser judicialmente demandada na correspondente acção de indemnização.
1. Relatório
“A..., Lda.” propos, no Tribunal Judicial de Ansião, acção com forma de processo ordinário emergente de acidente de viação contra “B... – Companhia de Seguros, C... – Sucursal em Portugal”, “D..., Companhia de Seguros, SA” e “E...– Le Assicurazioni D`Italia, C...”, pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 154.754,19, acrescida de juros de mora vencidos desde a data do acidente, em 16 de Dezembro de 2008, e vincendos, a título de indemnização pelos danos sofridos em consequência de acidente ocorrido em território italiano em que intervieram um veículo pesado de mercadorias com semi-reboque, sua pertença e um veículo pesado de mercadorias com reboque, italiano, segurado na 3.ª Ré, representada em Portugal pela 1.ª, ambas as sociedades constituídas em relação de grupo, uma com a outra, do qual foi exclusivo responsável e que ressarciu já parcialmente a A., a qual, ainda, tinha transferida para a 2.ª Ré a responsabilidade civil por danos próprios, que reparou, também já, alguns dos danos sofridos.
Na contestação a Ré “ B...” arguiu, além do mais, a excepção dilatória da sua ilegitimidade, já que, assumindo a posição de representante em território nacional da Ré “ E...” e porque demandada também esta, não se justifica o prosseguimento dos autos contra si.
A A., antes da citação da Ré “ E...”, relativamente a esta demandada desistiu da instância, desistência que foi homologada por decisão transitada em julgado.
Na réplica a A. respondeu à excepção de ilegitimidade, no sentido da sua improcedência.
Proferido despacho saneador e além do mais apreciada a deduzida excepção de ilegitimidade, veio o tribunal a quo julgar improcedente a excepção e concluir pela legitimidade da Ré “ B...”, com fundamento em que, verificando-se uma relação de litisconsórcio voluntário entre essa seguradora e a sua representada “ E...”, a legitimidade fica assegurada com a demanda, apenas, de um dos interessados em contradizer.
Inconformada, recorreu aquela seguradora, apresentando alegações que rematou com as seguintes conclusões:
a)– O sinistro em apreço configura um típico sinistro da 4.ª Directiva Automóvel 2000/26/CE, do Parlamento e do Conselho, de 16.5, transposta para o DL n.º 72-A/2003, de 14.4, que alterou os DL n.ºs 94-B/98, de 17.4 e 522/85, de 31.12, por sua vez revogado pelo DL n.º 291/2007, de 21.8;
b) – Trata-se de um sinistro ocorrido em Itália com um veículo habitualmente estacionado e segurado numa companhia de seguros italiana, sendo o autor lesado um português;
c) – A definição do representante em território nacional obedece às regras do art.º 67.º do DL n.º 291/2007, que prevê a designação pelas empresas de seguros, em cada um dos Estados membros da União Europeia de um representante para sinistros, para tratamento e regularização no país de residência da vítima dos sinistros ocorridos num Estado distinto do da residência desta;
d) – Estabelece o n.º 3 desse preceito dever o mesmo dispor de poderes suficientes para representar a seguradora junto da pessoas lesadas e satisfazer plenamente os seus pedidos de indemnização, esclarecendo o n.º 7 que tal designação não equivale, por si, à abertura de uma sucursal, não devendo o representante para sinistros ser considerado um estabelecimento para efeitos de determinação do foro, nomeadamente para a regularização judicial de sinistros;
e) – Em consequência, a recorrente é parte ilegítima a favor da “ E...”, por ser ela quem tem interesse directo em contradizer os factos contra si aduzidos, pelo que deve ser revogada a decisão recorrida.
Não houve lugar a respostas.
Dispensados os vistos cumpre decidir, sendo questão a apreciar:
- Se a seguradora “representante para sinistros” em Portugal de seguradora italiana é parte legítima para ser demandada em acção emergente de acidente de viação ocorrido em território italiano e de que é lesada e autora empresa portuguesa.
2.1. De facto
O quadro factual relevante é o que acaba de ser descrito e ainda, por confissão, e prova documental junta a fls. 195 a 206, que a Ré “ B...” juntamente com a “ E...” fazem parte do mesmo grupo segurador “Assicurazioni B...”.
A recorrente fundamentou a excepção da sua ilegitimidade passiva na circunstância de ser assumidamente representante em Portugal da demandada seguradora italiana “ E...”, mas porque esta está também em Juízo “não se justifica” que os autos prossigam também contra si, ademais porque se trata de uma situação de litisconsórcio voluntário, bastando a intervenção de uma das rés para garantir a legitimidade, cabendo em 1.ª linha à representada (italiana) o interesse directo em contradizer, uma vez demandada directamente.
Face à desistência da instância da A. relativamente à Ré italiana “INA”, mediante decisão transitada em julgado, entendeu o tribunal a quo que uma vez que essa seguradora deixou de ser parte nos autos, quanto a ela se tendo extinto a instância, está prejudicado aquele fundamento, sendo que somente a Ré “ B...” é parte na acção, só ela tem interesse directo em contradizer (art.º 26.º, n.º 1, do CPC).
Nas alegações de recurso, contudo, a recorrente abandonou, aparentemente pelo menos, aquele entendimento, para cingir a defesa da sua ilegitimidade ao disposto nos n.ºs 3 e 7 do art.º 67.º do DL n.º 291/07, de 21.8, para concluir (sem clara fundamentação) que “desta feita considera-se prejudicada a ilegitimidade da aqui recorrente nos presentes autos, posto que judicialmente deverá ser a “INA” a estar presente em Juízo, por ter interesse directo em contradizer os factos contra si aduzidos, nos termos do n.º 7 do art.º 67.º do DL n.º 291/2007”.
Ora, independentemente de a recorrente se apresentar em relação de grupo com a inicialmente demandada “ E...” – Grupo Assicurazioni B... – e daí que enquanto sucursal pudesse ser directamente demandada (art.ºs 488.º e ss do CSC e 7.º, n.º 2, do CPC), certo é que a questão que nos vem submetida respeita à sua (i)legitimidade enquanto representante em Portugal para regularização de sinistros automóveis designada por aquela empresa seguradora.
Mais concretamente, se pode ser judicialmente demandada pela reparação integral dos danos alegados pela lesada, dado que alguns deles foram já, entrementes, por ela ressarcidos.
A propósito da prestação de serviços em Portugal por empresas com sede em território de outros Estados membros da União Europeia dispõe o n.º 1 do art.º 66.º do DL n.º 94-B/98, de 17.4 que “as empresas de seguros que pretendam cobrir, em livre prestação de serviços, no território português, riscos cuja cobertura seja obrigatória, nos termos da lei, deverão comunicar ao Instituto de Seguros de Portugal o nome e a morada de um representante residente em Portugal que reúna todas as informações relacionadas como os processos de indemnização e a quem devem ser conferidos poderes suficientes para representar a empresa junto dos sinistrados que possam reclamar uma indemnização, incluindo o respectivo pagamento, e para a representar ou, se necessário, para a fazer representar perante os tribunais e autoridades portuguesas no que respeita aos mencionados pedidos de indemnização”.
A designação do legalmente denominado “representante para sinistros” em cada um dos Estados membros constitui, mesmo, um dos requisitos de concessão de autorização para a actividade seguradora (n.º 2, alín. f) do art.º 13.º do DL n.º 94-B/98, com a redacção dada pelo DL n.º 72-A/2003, de 14.4).
Por seu turno, dispõe o n.º 3 do art.º 76.º do DL n.º 29/07, de 21.8 (Regime do Sistema de Seguros Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) que o “representante para sinistros deve ainda dispor de poderes suficientes para representar a empresa de seguros junto das pessoas lesadas nos casos referidos no n.º 1 e satisfazer plenamente os seus pedidos de indemnização e, bem assim, estar habilitado a examinar o caso na língua ou línguas oficiais do Estado membro de residência da pessoa lesada”, o n.º 4 que “o representante para sinistros deve reunir todas as informações necessárias relacionadas com a regularização dos sinistros em causa e, bem assim, tomar as medidas necessárias para negociar a sua regularização” e o n.º 7 que “ a designação do representante para sinistros não equivale, por si, à abertura de uma sucursal, não devendo o representante para sinistros ser considerado um estabelecimento para efeitos de determinação de foro, nomeadamente para a regularização judicial de sinistros”.
O quadro legal relevante assim exposto exprime claramente uma preocupação de protecção dos lesados por acidentes de viação ocorridos no estrangeiro e sua regularização e resolução dentro do seu espaço jurídico, isto a partir da transposição da 4.ª Directiva sobre o seguro automóvel (Directiva n.º 2000/26/CE, de 16.5, do Parlamento Europeu e do Conselho) para o DL n.º n.º 522/85, de 31.12 pelo DL n.º 72-A/03, de 14.4, regime esse constante, hoje, dos art.ºs 65.º a 68.º do DL n.º 291/2007, de 21.8.
Daí que não distinga entre regularização de sinistros pela via extrajudicial ou judicial, apontando a letra do citado n.º 1 do art.º 66.º do DL 94-B/98 para qualquer uma dessas formas.
Por outro lado, não está nas mãos do lesado, cidadão comum, vítima de acidente de viação em país estrangeiro, conhecer as condições contratuais da representação das respectivas seguradoras, rectius, da extensão do mandato do denominado “representante de sinistro”, sempre ao demandado representante cabendo, afigura-se-nos e se for caso disso, a alegação e prova de não dispor de poderes bastantes para regularização do sinistro pela via judicial.
No caso em apreço, em que a recorrente indemnizou já parte dos danos, sustentar-se a carência de legitimidade para eventualmente ser obrigada pela via judicial a ressarcir a parte em falta, é algo bizarro, s.d.r. e desconforme ao espírito do legislador.
E nem se diga que à legitimidade passiva para o representante ser directamente demandado em acção de indemnização obstam os n.ºs 3 e 7 do art.º 67.º do DL n.º 281/07 acima transcritos, como sem grande fundamentação a recorrente alinhavou o recurso.
Do n.º 3 retira-se, apenas, que o representante para sinistros deve dispor dos poderes bastantes para representar a seguradora responsável perante o lesado para satisfazer plenamente (sic) os seus pedidos de indemnização, não restringindo essa satisfação à via extrajudicial, inculcando que fazê-lo plenamente abrangerá também, se disso for caso, a via judicial.
Do n.º 7 somente resulta que a designação de representante apenas não equivale, por si só, a abertura de sucursal para efeitos de determinação de foro, nada impedindo que o seja para efeitos de legitimidade processual!..
Daqui se conclui que, estando a representante mandatada para pagamento, em Portugal, da indemnização pelo sinistro em causa, ocorrido em território italiano, à lesada firma portuguesa, pagamento que parcialmente já efectuou, habilitada a mesma estará para ser demandada judicialmente para reparação dos demais danos ainda em falta, caso logrem comprovação, uma vez que a causa prosseguiu entretanto e vai continuar a prosseguir, sem prejuízo de eventualmente vir a ser ressarcida em direito de regresso pela representada seguradora responsável.
É esta, de resto, a resposta que tem vindo a ser dada à questão em causa, da legitimidade passiva do “representante para sinistros” em acção de indemnização emergente de acidente de viação.[1]
I – Em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel foi preocupação do legislador nacional, determinado pelo direito comunitário, proteger os lesados por acidente de viação ocorrido em Estado membro da União Europeia, v. g., permitindo a sua regularização plena dentro do seu espaço jurídico;
II – Assim, a “representante para sinistros” em Portugal de seguradora estrangeira responsável pelo acidente é dotada de legitimidade passiva para ser judicialmente demandada na correspondente acção de indemnização.
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
[1] V. Acs. STJ de 11.1.11, Proc. 2357/08.6TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt e, ainda que com reporte à similar figura de “correspondente” da seguradora estrangeira, os casos paralelos apreciados no Ac. STJ de 18.12.03, Proc. 03B3010, in www.dgsi.pt e o Ac. desta RC de 15.5.12, proferido na Apel. n.º 349/08.4TBCDN.C1, de que foram Relator e 1.º Adjunto, respectivamente, os Ex.mos Desembargadores António Magalhães e Ferreira Lopes, subscritores do presente acórdão.
Em sentido contrário ao sustentado vai a nota 1 ao art.º 67.º do cit. DL n.º 291/07, do “Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel – Anotado e Comentado”, pág. 274, (Almedina, 2008), de Adriano Garção Soares e Maria José Rangel de Mesquita.