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ERRO NA FORMA DO PROCESSO
ACÇÃO DECLARATIVA
PROCESSO DE INVENTÁRIO
Sumário
Não existe erro na forma de processo quando o cabeça-de-casal de uma herança indivisa, mesmo antes da instauração do processo de inventário para a respectiva partilha, se socorre de uma acção declarativa com processo comum intentada contra outros herdeiros, pedindo a sua condenação a restituirem à herança uma quantia em dinheiro da qual os mesmos se teriam apropriado.
Texto Integral
PROC. N.º 3655/12.0TBVFR.P1
Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira – 3º J. Cível
REL. N.º 89
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Henrique Araújo
Fernando Samões
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
1 - RELATÓRIO
I - Relatório:
B…, viúva, residente na Rua …, n.º .., freguesia …, Santa Maria da Feira, intentou a presente acção em processo comum, sob a forma ordinária, contra as suas irmãs e cunhados C… e marido, D…, residentes na Rua …, n.º .., freguesia …, concelho de Santa Maria da Feira; e E… e marido, F…, residentes na Rua …, n.º ../.., freguesia …, Santa Maria da Feira, pedindo a condenação das Rés a reconhecerem que o montante de €43.500,00 que a segunda ré transferiu para a conta de ambas as rés faz parte das heranças ilíquidas e indivisas por óbito dos pais G… e H…; a restituírem às heranças dos finados pais o montante pertencente à herança de que se apropriaram e a pagarem à herança os juros remuneratórios que o dinheiro produzia na conta de que foi transferido, até efectiva entrega.
Alegou, para tanto, que iria requerer inventário para partilha dos bens das heranças aceites e ilíquidas dos finados pais, heranças ainda ilíquidas e indivisas e que dessas heranças faz parte o saldo de uma conta bancária que identifica. No dia 22 de Maio de 2009, a mãe da A. e RR. pediu o resgate da quantia de €43.500,00, a cair na conta à ordem titulada pela viúva e filhos. Em 01.06.2009, data em que caiu na conta o numerário, tal quantia foi transferida para uma conta das aqui RR., por ordem da Ré E…, sendo que tal valor pertence à herança do pai da A. e RR. e após o decesso da mãe, às heranças de ambos, sendo que a A. da herança não dispôs do dinheiro transferido para a conta das RR., nem o podia fazer, por o mesmo pertencer à herança aberta por óbito do marido.
A acção foi distribuída na 1.ª espécie e obteve contestação e réplica. Na réplica, a A. informou já estar pendente o processo de inventário, por óbito dos pais, a correr termos sob o nº 3654/12.1TBVFR, no mesmo tribunal e juízo da presente acção, encontrando-se o processo na fase de citação dos interessados.
Foi, então, proferida decisão que concluiu pela nulidade de todo o processo e absolveu os RR da instância, por a questão dever ser dirimida no próprio processo de inventário. Aí se decidiu: “Na ausência de acordo e possibilidade de realização da partilha extrajudicial (o que, conforme decorre dos autos, é, por ora, evidente), considerando a natureza daquele, devem as todas as questões suscitadas nesta lide ser objecto de conhecimento no âmbito do processo de inventário já instaurado e sendo esse um processo especial (cfr o disposto no art. 460.º, n.ºs 1 e 2, do CPC e o disposto Título IV do Livro III do CPC), não pode a Autora recorrer ao processo declarativo. Existe, pois, erro na forma de processo (o qual ocorre quando o autor indica para a acção uma forma processual inadequada ao critério da lei). Como é sabido, “o erro na forma de processo não envolve, necessariamente, a inutilização de todos os actos praticados, mas, apenas, a adaptação do processado à forma prescrita na lei, com a eliminação limitada aos actos inaproveitáveis e com a prática dos actos necessários ao ajustamento, contanto que do aproveitamento dos actos realizados não resulte diminuição das garantias de defesa do réu (art. 199.º, n.º2).” Quando, porém, o aproveitamento dos actos praticados se traduzir numa diminuição das garantias do réu, há quem sustente que deve o juiz, com base nesse facto e no erro sobre a forma de processo cometido pelo autor, pura e simplesmente anular todo o processo, absolvendo o réu da instância. Parece, porém, que o erro na forma de processo só origina a anulação de todo o processo, dando lugar à absolvição do réu da instância (nos termos do art. 288.º, n.º1, alínea b), do CPC), de não se poder aproveitar, sequer, a petição inicial”. O erro na forma de processo cometido pela Autora, ao empregar a forma de processo ordinária em lugar do processo de inventário implica que a petição inicial apresentada não possa ser utilizada. Tanto basta para que não possam ser aproveitados os actos processuais posteriores à petição inicial (art. 199.º, n.º 2, do CPC).”
É desta decisão que vem interposto recurso pela autora, que considera ser admissível e devida a apreciação dos pedidos formulados num processo comum, como este que instaurou.
Formulou, neste recurso, as seguintes conclusões:
“1ª- A douta sentença, ao admitir que a questão do inventário relativa à relacionação ou não do dinheiro objecto destes autos, pode ser remetida para os meios comuns, que é o meio usado nesta acção, acabando por decidir que esta acção foi proposta sob a forma de processo comum, quando devia ter seguido a forma de processo especial de inventário, fundamenta a douta sentença, em oposição com a decisão.
2ª- Ao sustentar que as partes do processo de inventário podem ser remetidas para os meios comuns, se a questão prejudicial do inventário for complexa e não puder ser decidida sumariamente, e decidir que esta acção só pode ser intentada depois da decisão do inventário da remessa para os meios comuns, deixou de, neste processo, conhecer se a questão desta acção é complexa e só pode ser resolvida nos meios comuns.
3ª- A douta sentença decidindo que esta acção segue erro de forma de processo, e que deveria seguir o processo de inventário, sem justificar que a questão desta acção deve ser decidida de forma sumária e incidental, omite os fundamentos que justificam a decisão.
4ª- A douta sentença é nula nos termos previstos nas alíneas b), c) e d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
5ª- O pedido formulado pela autora nesta acção não corresponde a forma de processo especial prevista na lei, designadamente ao processo de inventário, pelo que está correctamente usado o processo comum ordinário.
6ª- A presente acção visa o reconhecimento e a restituição de bens das heranças nela mencionadas, com a finalidade de serem todos seus os bens que as integral partilhados no inventário instaurado para prosseguir os seus fins específicos.
7ª- A questão suscitada nestes autos, pela sua complexidade não pode ser resolvida nos autos de inventário, e, por isso, deve ser decidida com as garantias dos meios comuns e do processo ordinário, dado o seu valor.
8ª- A autora propôs a presente acção comum na dupla qualidade de cabeça-de-casal e de herdeira, com a finalidade do reconhecimento e restituição do dinheiro, seu objecto, às heranças para nele ser partilhado.
9ª- Propôs o inventário com o fim específico de partilhar as heranças, com todos os actos previstos no processo especial, tendentes à igualação e partilha dos bens.
10ª- A Instauração do inventário não obsta que a cabeça-de-casal intente as acções da sua competência, mesmo contra os herdeiros, nem que proponha as acções que entender adequadas a defender os direitos da herança e os seus direitos como herdeira.
11ª- A lei não proíbe que a cabeça de casal e os herdeiros proponham livremente, cada um por si, as acções que visem a defesa dos direitos de cada um na herança.
12ª- As duas acções propostas podem e devem coexistir e seguirem os seus trâmites normais.
13ª- Na lei velha do inventário as partes podem propor as acções que bem entenderem necessárias para resolver questões do inventário que não possam ser decididas de forma sumária e incidental.
14ª- Perante a lei nova do inventário, as partes podem e devem propor, por sua iniciativa, as acções destinadas a solucionar as questões prejudiciais do inventário que não podem nele ser provadas documentalmente.
15ª- A questão dos autos, dada a sua complexidade e falta de prova documental, deve ser decidida com as garantias do processo comum ordinário.
16ª- A lei não proíbe a instauração da presente acção, nos termos propostos.
17ª- A douta sentença faz errado julgamento da acção.
18ª- Viola o disposto na legislação referida nas alegações, além de outras disposições legais, nomeadamente as dos artigos 2º, 26º, 264º, 494º, 497º, 498º, 655º n.º 1 do Código de Processo Civil, e 2024º do Código Civil.
TERMOS EM QUE e nos de direito, com o douto suprimento que se roga, deve o presente recurso de apelação obter provimento, revogando-se a douta sentença, e proferindo-se douta decisão que ordene o prosseguimento dos autos.”
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Não foram juntas contra alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo. Foi depois recebido nesta Relação, considerando-se o mesmo devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Cumpre decidir.
2- FUNDAMENTAÇÃO
O objecto de cada um dos recursos sucessivamente interposto é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1 e 2 do CPC (agora reproduzidos nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do novo CPC).
Assim, as questões a resolver são as seguintes:
- se ocorre a nulidade da sentença, por falta de fundamentação;
- se é admissível o conhecimento dos pedidos formulados (determinação de que uma quantia em dinheiro integra uma herança e de que a esta deve ser restituída para ali ser partilhada) no âmbito de uma acção ordinária, ou se tal só pode ocorrer se o processo de inventário para tal se revelar insuficiente.
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Para a apreciação das questões supra identificadas, devemos ter presentes os elementos dos próprios autos, respeitantes aos termos e circunstâncias do seu processado, que constam do próprio relatório, sem prejuízo da sua melhor concretização quando tal se revele oportuno.
De resto, a este propósito, torna-se útil ter presentes os concretos termos do pedido que a autora deduziu na acção: “(…) serem as rés condenadas: a) A reconhecerem que o montante de € 43.500,00 que a segunda ré transferiu para a conta de ambas as rés faz parte das heranças ilíquidas e indivisas por óbito dos pais G… e esposa, H…; b) A restituírem às heranças dos finados pais o montante em dinheiro pertencente à herança de que se apropriaram ilicitamente; e c) A pagarem, à herança, os juros remuneratórios que o dinheiro produzia na conta de que foi transferido, até efectiva entrega.”
Por outro lado, tal como se considerou na decisão recorrida e resulta do documento de fls. 50 e ss., pende no mesmo 3º J. Cível do Tribunal de Sta. Mº da Feira, inventário por óbito de G… e de H…, em que são interessados a ora autora, que aí exerce as funções de cabeça-de-casal, as ora rés e ainda I….
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Alega a apelante que a sentença é nula, nos termos das als. b), c) e d) do art. 668º do C.P.C., porquanto não qualificou a questão a decidir como simples, o que seria pressuposto da sua decisão no âmbito de um processo de inventário, parecendo apenas que exclui a sua qualificação como complexa, assim prevenindo a sua discussão num processo comum.
O artigo 668º, no seu nº 1, sanciona com nulidade a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b); os fundamentos estejam em oposição com a decisão (c); O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (d).
Não tem, no entanto, razão, a apelante ao imputar qualquer destes vícios à decisão recorrida. E isso porquanto a solução prescrita na decisão recorrida é outra que não a pressuposta nesta argumentação do recurso, situando-se a montante da interpretação que pressupõe.
Na decisão recorrida não está colocada a hipótese de a questão não ser complexa e, por isso, de não haver fundamento para a sua decisão nos meios comuns; o mesmo é dizer-se, não está admitido que a questão seja simples e a decidir por actividade probatória sumária, cabendo a sua decisão ao processo de inventário já instaurado. Por isso, não é relevante que o tribunal não tenha explicado as razões pelas quais consideraria tal questão simples e passível de fácil demonstração. O que o tribunal afirmou é que tal decisão – sobre a complexidade da questão - só pode ser proferida no próprio processo de inventário e que a respectiva discussão e sentenciamento numa acção comum depende, não da vontade das partes, mas de uma decisão habilitante, a ser proferida no próprio processo de inventário.
O erro na forma de processo, que foi declarado pela decisão recorrida, consiste, assim, na colocação da questão sobre a propriedade da verba de 43.500€ e sobre a obrigação da sua restituição à herança numa acção de processo comum, sem que o juiz do processo de inventário tenha decidido que essa questão é complexa e não pode ser devidamente instruída e decidida no processo de inventário.
Esta solução, cuja bondade constitui o objecto essencial do presente recurso, mostra-se perfeitamente explicada e aparece devidamente fundamentada, quer por referência aos preceitos legais que o tribunal entendeu justificarem-na, maxime os arts. 1350º, nº 1 e 460º, nºs 1 e 2, do CPC, quer por referência a doutrina que, na sua perspectiva, aconselha a interpretação e aplicação de tal regime processual nesses termos. Nos seus precisos termos, essa solução é coerente e fundada na lei, não estando em contradição com quaisquer dos seus pressupostos ou despedida de matéria factual que a sustente, nem, sequer, omitindo a consideração de qualquer questão a conhecer, designadamente nos termos apontados pela apelante.
Inexiste, pois, o vício apontado à decisão recorrida.
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Importará, então, passar ao conhecimento da questão principal, que é a de indagar sobre se tal asserção da sentença é válida – necessidade de decisão prévia, em processo de inventário, da remessa para os meios comuns de questão sobre a propriedade de um bem – ou se, pelo contrário, está na disponibilidade de um qualquer interessado discutir tal questão numa acção comum, à margem (prévia ou paralelamente) de um tal processo de inventário.
Antes de mais, importa ter presente que o regime jurídico do processo de inventário pertinente para a resolução do problema é o constante do C.P.C. revogado desde 1/9/2013, não obstante essa revogação. E isso deve ser assim face às vicissitudes que afastaram a vigência da Lei nº 29/2009, de 29 de Junho, prejudicando que alguma vez tenha entrado em vigor [1], e perante a circunstância de a Lei n.º 23/2013, de 5/03, que entretanto já revogou essa Lei 29/2009, não ser aplicável ao caso em apreço.
Com efeito, apesar de essa Lei nº 23/2013 ter entrado em vigor em 2/9, (o seu art. 8º determina esse início no primeiro dia útil de Setembro de 2013), o respectivo art. 7º exclui a aplicação do seu regime às situações em que já se encontre pendente um processo de inventário. No presente caso, a questão põe-se, precisamente, em razão da pendência de um processo especial de inventário no qual, entendeu a decisão recorrida, a questão deve ser primeiro debatida, só podendo sê-lo numa acção comum no caso de assim ser decidido nesse mesmo inventário. Por isso, perante a pendência de um tal processo, tem de ser afastada a aplicação do novo regime constante da Lei nº 23/2013. E isso acarreta a aplicação do anterior regime do CPC, não obstante a sua superveniente revogação.
Em tal enquadramento legal, temos que o processo de inventário é um processo especial destinado “a pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de realizar-se partilha judicial, a relacionar os bens que constituem objecto de sucessão e a servir de base à eventual liquidação da herança.” – art. 1326º, nº 1 do C.P.C.
Trata-se de um processo especial, que, nos termos do art. 460º, nº 2 CPC, deve ser utilizado nos casos em que se identifique o objecto específico para o qual o legislador prescreveu um tal regime procedimental diferente do comum, adaptado às particularidades de um determinado tipo de situações jurídicas.
No caso do processo de inventário, esse regime processual deve ser utilizado para as situações de superação de uma comunhão hereditária.
Porém, são facilmente configuráveis situações que, no âmbito desse objectivo de repartição de um património, são elas próprias verdadeiras premissas das tarefas a realizar. A elas se pode subsumir, por exemplo, o caso dos presentes autos: a discussão e decisão sobre se um bem que foi dos inventariados foi doado antes do respectivo falecimento, se foi legado ou em que termos deve integrar a herança a partilhar.
Ora o próprio regime do processo de inventário admitiu tais hipóteses e, no art. 1335º do C.P.C., estabeleceu:
“1 - Se, na pendência do inventário, se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, o juiz determina a suspensão da instância, até que ocorra decisão definitiva, remetendo as partes para os meios comuns, logo que os bens se mostrem relacionados.
2 - Pode ainda ordenar-se a suspensão da instância, nos termos previstos nos artigos 276.º, n.º 1, alínea c), e 279.º, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata algumas das questões a que se refere o número anterior.”
O art. 1336º estabelece a resolução tendencial de todas as questões no processo de inventário, nos seguintes termos:
"1 - Consideram-se definitivamente resolvidas as questões que, no inventário, sejam decididas no confronto do cabeça-de-casal ou dos demais interessados a que alude o artigo 1327.º, desde que tenham sido regularmente admitidos a intervir no procedimento que precede a decisão, salvo se for expressamente ressalvado o direito às acções competentes.
2 - Só é admissível a resolução provisória, ou a remessa dos interessados para os meios comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes."
Por sua vez, e já numa fase adiantada do processo de inventário, o artigo 1350.º do CPC prevê uma solução coerente, nos seguintes termos:
1 - Quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente, nos termos do n.º 2 do artigo 1336.º, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns.
2 - No caso previsto no número anterior, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou e permanecem relacionados aqueles cuja exclusão se requereu.
3 - Pode ainda o juiz, com base numa apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente as reclamações, com ressalva do direito às acções competentes, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 1336.º
Compulsando este regime, constata-se a convivência de hipótese tendentes à resolução de questões no âmbito do próprio processo de inventário com outras de resolução fora de tal processo, sem prejuízo da preferência pelas primeiras.
O recurso às segundas está previsto para os casos em que a natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente aconselhem que não devam ser incidentalmente decididas, i. é, quando a sua solução no processo de inventário, observando os termos de um incidente, se torna inconveniente face à redução das garantias das partes. Por outro lado, a discussão de tais questões num processo comum tanto pode determinar a suspensão desse inventário, como o seu prosseguimento para a resolução das demais questões aí pendentes, consoante a respectiva natureza.
Note-se, de resto, que a solução prescrita no novo regime do processo de inventário (Lei nº 23/2013), cuja tramitação se prevê que decorra perante o notário, é semelhante mas ainda mais assertiva: o art. 16º prevê a suspensão do inventário quando nele se suscitem questões que, pela sua natureza ou complexidade, não devam ali ser decididas, e a remessa dos interessados para os meios comuns.
No caso dos autos, constata-se ser perfeitamente possível - aliás como foi ponderado na decisão recorrida - que o processo de inventário instaurado para partilha venha a ser considerado inadequado para a resolução da questão que constitui o objecto deste processo, quer atenta a natureza da questão e a definição da situação factual subjacente - apurar sobre se determinado capital foi doado, total ou parcialmente legado ou como deve integrar a herança a partilhar - quer em atenção à prova a produzir com esse objectivo. Tal probabilidade é tão mais significativa quanto se constate o nível de conflitualidade entre as partes sobre a questão, que já sobressai dos termos da presente acção. Assim, instalando-se um tal conflito no próprio processo de inventário, é perfeitamente possível que dali venha a ser excluído, com fundamento no disposto no art. 1350º do CPC, remetendo o juiz a sua resolução para os meios comuns, onde, com superiores garantias para os intervenientes, pode ser dirimido.
Perante um tal quadro, desde logo se constata a inconveniência da solução decretada na sentença recorrida: ela corresponde a impedir os interessados de usarem um expediente processual que escolheram, sabendo-se que mais tarde poderão ser determinados a usarem esse mesmo expediente processual para a solução do seu litígio. Julgar inadmissível um processo comum e extinguir a respectiva instância, a fim de que o seu objecto seja decidido num outro processo, mas no âmbito do qual se admite que as partes venham a ser remetidas, para a solução do mesmo litígio, para um processo igual àquele que fora instaurado e que foi julgado extinto é claramente adverso a um interesse de economia processual, bem como ao interesse de criação de confiança dos cidadãos na acção do sistema judicial. Uma decisão formal como a proferida, dificilmente é aceite como razoável pela comunidade
Mas nem só por isso deve ela ser afastada.
A resolução da questão antes do processo de inventário permite simplificar e abreviar a tramitação do próprio processo de inventário. Evita desde logo que, mais tarde, os interessados sejam remetidos para os meios comuns, ao abrigo do art. 1350º, nº 1, do CPC, como provavelmente aconteceria se uma questão com os contornos da que constitui o objecto deste processo pela A. vier a ser introduzida no inventário. Ainda que este tenha potencialidades para integrar a discussão e decisão desta questão, podem existir ganhos de celeridade quando essa discussão se processe antecipadamente numa acção declarativa com processo comum.
Por outro lado, a apreciação da questão no âmbito de uma acção com processo comum dá a todos os interessados superiores garantias de segurança, atenta a maior solenidade que rodeia o processo comum, em comparação com o processo especial de inventário, onde a mesma haveria de ser resolvida segundo os termos procedimentais de um incidente processual. Conseguida, por essa via, uma sentença com trânsito em julgado, a mesma produz efeitos vinculativos para as partes, que não podem ser questionados no processo de inventário.
Tenderão ainda a ocorrer ganhos ao nível da justiça material, pois que a imediata discussão da questão numa acção especialmente votada a esse permitirá atenuar os efeitos erosivos que o decurso do tempo provoca ao nível de determinados meios probatórios, como ocorre com os depoimentos testemunhais que porventura intervenham para dilucidar a questão, além de que proporciona a produção em termos mais eficientes dos próprios meios probatórios (cfr. neste sentido, apontando as razões que se enunciaram, entre outras aqui não relevantes, o Ac. do TRL de 3-1-2011, proferido no proc. 899/10.2TVLSB.L1-7, em dgsi.pt).
Por outro lado, se é certo que se reconhecem as potencialidades de um processo de inventário para, internamente, resolver uma questão idêntica à que constitui o objecto deste processo, verifica-se que esta pode ser um dos elementos do litígio a dirimir por via do inventário (a superação da comunhão hereditária), mas que com ele se não confunde. Assim, inexiste fundamento para impedir a sua discussão e resolução no âmbito de um processo comum.
Por todo o exposto, concluímos não assistir razão ao tribunal recorrido ao cominar com nulidade absoluta, por erro na forma de processo, a instauração da presente acção em processo comum, sob a forma ordinária, com a causa de pedir e o pedido que apresenta. Haverá, por isso, de revogar-se tal decisão, o que implicará o prosseguimento do processo, para os seus ulteriores termos.
Sumariando (art. 713º, nº 7 do C.P.C.)
1 - Não existe erro na forma de processo quando o cabeça-de-casal de uma herança indivisa, mesmo antes da instauração do processo de inventário para a respectiva partilha, se socorre de uma acção declarativa com processo comum intentada contra outros herdeiros, pedindo a sua condenação a restituirem à herança uma quantia em dinheiro da qual os mesmos se teriam apropriado.
3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente a apelação e revogar a douta decisão recorrida, em razão do que a presente acção haverá de prosseguir os seus termos.
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Sem custas, por não lhes terem dado causa os apelados.
Porto, 10 /09/2013
Rui Manuel Correia Moreira
Henrique Luís de Brito Araújo
Fernando Augusto Samões
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[1] Cfr. Ac. do TC de 6/7/2011, nº 327/2011, proferido no proc. n.º 111/11, publicado em www.tribunalconstitucional.pt: “Na verdade, pese embora o artigo 87.º, n.º 1, da Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, na redacção da a Lei n.º 1/2010, de 15 de Janeiro, ter estabelecido que a entrada em vigor daquele diploma que transferia a competência para a tramitação dos processos de inventário dos tribunais para as conservatórias e cartórios notariais, ocorreria em 18 de Julho de 2010, a Lei n.º 44/2010, de 3 de Setembro, veio alterar a determinação da data da entrada em vigor do referido diploma, modificando a redacção do referido 87.º, n.º 1, o qual passou a prever que ele apenas produziria efeitos “90 dias após a publicação da portaria referida no n.º 3 do artigo 2.º”, retroagindo a eficácia desta modificação à referida data de 18 de Julho de 2010. Ao determinar que o novo regime do inventário só produz efeitos 90 dias após a publicação de uma portaria, o legislador adiou, mais uma vez, a sua efectiva entrada em vigor, mantendo-se entretanto aplicável aos processos de inventário o regime anterior à Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, o qual atribui aos tribunais judiciais, rectius, aos tribunais de família onde os haja instalado, a competência para tramitar os processos de inventário.”