COISA DEFEITUOSA
PRAZO DE DENÚNCIA
DEFEITOS
CADUCIDADE
Sumário

I – É sobre o comprador que impende o dever de examinar a coisa, daí que o prazo, de seis meses, deva ser contado, não da data da descoberta efectiva, mas daquela em que o defeito deveria ter sido descoberto, caso o comprador tivesse agido diligentemente.
II – O prazo de caducidade vale ainda que o vendedor tenha agido dolosamente, na medida em que o dolo só torna desnecessária a denúncia, mas não altera os prazos dos arts. 916.º e 917.º, do CC.
III - Constitui requisito específico da relevância do dolo a dupla causalidade, que se verifica quando o dolo seja causa do erro e este, por seu turno, seja causa do negócio.
Assim, só há dolo relevante quando o declarante tenha caído em erro por efeito da conduta artificiosa de outrem (art. 254º, n.º 1).

Texto Integral


Sumário do acórdão : (art. 663.º n.º 7, do CPC):
I – É sobre o comprador que impende o dever de examinar a coisa, daí que o prazo, de seis meses, deva ser contado, não da data da descoberta efectiva, mas daquela em que o defeito deveria ter sido descoberto, caso o comprador tivesse agido diligentemente.

II – O prazo de caducidade vale ainda que o vendedor tenha agido dolosamente, na medida em que o dolo só torna desnecessária a denúncia, mas não altera os prazos dos arts. 916.º e 917.º, do CC.
III - Constitui requisito específico da relevância do dolo a dupla causalidade, que se verifica quando o dolo seja causa do erro e este, por seu turno, seja causa do negócio.
Assim, só há dolo relevante quando o declarante tenha caído em erro por efeito da conduta artificiosa de outrem (art. 254º, n.º 1).

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ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório
E intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra J pedindo que seja declarado anulado o negócio de compra e venda referidos nos artigos 1 a 5 da petição inicial, celebrado entre autora e ré, e, em consequência, seja o veiculo entregue à ré e esta condenada a restituir à autora a quantia recebida de € 10.800,00 acrescida de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento, a quantia de € 5000,00 acrescida de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento a titulo de restituição da quantia do veiculo entregue pela Autora, a quantia de € 30,00 diária, desde Janeiro de 2015, até efectiva resolução da acção, a título de paralisação do veiculo que à data da propositura da acção se cifrava em € 6.200,00, bem como a quantia de € 2.000,00 a titulo de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento.
Alega, em síntese e no essencial, que no dia 18 de Setembro de 2012, adquiriu à ré, pelo preço de € 15.800,00, o veículo automóvel usado de matrícula NG, marca Renault, modelo Megane, de cor preta, preço aquele que a autora pagou em numerário no valor de € 10.800,00 e ainda mediante a entrega de um veiculo de marca Renault, modelo Clio, de 2005, com a matricula AV, que a ré avaliou em € 5.000,00.
Invoca que apenas adquiriu tal veiculo porque a ré lhe garantiu que o aludido veículo, apesar de usado, estava em muito bom estado de conservação e funcionamento, sem qualquer acidente e a quilometragem de 63.000 km que o mesmo apresentava era real e verdadeira, bem sabendo a ré que tal veículo se destinava a ser utilizado pela autora diariamente no exercício da sua actividade comercial, nomeadamente para leccionar aulas de condução, bem como para se deslocar para outros locais, transporte de alunos aos exames a Braga ou Penafiel.
Aduz que a autora apenas circulou com o veículo cerca de 3000 km quando veio a descobrir, no início do ano de 2015 que o mesmo veículo já tinha feito três revisões em França, datadas de 3/11/2010, 3/06/2011 e 23/01/2012 em que apresentava, respectivamente, 29.175Km, 60.277Km e 89.933Km e que em 15 de Outubro de 2012, fez a revisão completa, onde foi mudada a corrente de distribuição, pelo que o carro já tinha mais de 120.000 km quando foi vendido, sendo certo que, aquando da sua venda, apresentava no respectivo contador apenas 63.000Km, e que a Ré garantiu à A. que eram reais e verdadeiros, daí a A. ter aceite pagar o preço de 15.800.00€.
Mais refere que a Ré sabia perfeitamente que a A. só comprava o veículo por estar convencida de que o carro tinha a quilometragem real de 63.000 Km, pois, se assim não fosse, nunca a A. teria adquirido o veículo nem pago o preço de €15.800.00, e que a desconformidade entre a quilometragem efectiva do veículo e aquela que o mesmo registava, decorreu de alteração do respectivo instrumento de medição dos quilómetros, levada a cabo pela Ré ou por ordem desta, para que o mesmo, quando fosse alienado, aparentasse ter um valor superior ao seu valor real, empregando sugestões e artifícios, com a intenção, consciência de induzir e manter em erro a A., sendo a vontade desta de negociar e aceitar o negócio determinado por tais sugestões e artifícios, pois se esta se tivesse apercebido do erro, não faria o negócio com a Ré.
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A ré contestou, impugnando os factos e invocando a caducidade do direito, alegando, em síntese, que o negócio foi precedido de várias conversações entre o sócio gerente da autora, o filho do sócio gerente da ré e este, e que aquele teve oportunidade de experimentar a viatura por várias vezes, nunca tendo sido decisivo nas negociações havidas, a quilometragem da viatura, mas sim o ano da mesma, as condições em que a mesma estava ao nível da chapa, pintura e motor e ainda o preço.
Refere que não enganou a A., por ter sido o veículo vendido no mesmo estado em que fora adquirido.
Por outro lado, ainda que se admitisse que os quilómetros eram um elemento essencial, decisivo na aquisição do veículo, o certo é que não se poderá anular o negócio porquanto a autora não intentou a acção nos seis meses subsequentes ao conhecimento nos termos do artigo 917.° do C.Civil, pelo que o direito da autora caducou.
Pugna, assim, pela improcedência da acção.
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Foi realizada audiência prévia, tendo sido fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova que não sofreram qualquer reclamação.
Após instrução procedeu-se a audiência final, a que se seguiu a sentença que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu a ré J do pedido formulado pela autora E.
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II-Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida veio a A. interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:

1- Ao contrário do decidido pelo Tribunal de 1.ª Instância, a aqui recorrente/autora logrou provar que os quilómetros reais do conta-­quilometros eram essenciais para a compra do veículo;
2- Da conjugação da matéria dada como provada, designadamente, dos pontos 5, 6, 9 e 10, resulta claramente que a Ré agiu como dolo;
3- Do depoimento supra transcrito, de F resulta que o número de quilómetros foi essencial para a aquisição do veículo aqui em causa e que o preço do veículo foi de 15.800.00€, pois a A. entregou à troca um outro veículo no valor de 5.000.00€;
4- É manifestamente evidente que na aquisição de um veículo automóvel o número de quilómetros real, é essencial e imprescindível para a realização do negócio;
5- Foi dado como provado no ponto 4 dos factos dados como provados que “o documento respeitante ao veiculo referido em 2. ostenta que o mesmo já fez três revisões em França, datadas de 3.11.2010, 3.06.2011. e 23.01.20.2 em que apresentava, respectivamente, 29.175km, 60. 277km e 89.933 km. ",
6- Foi também dado como provado no ponto 9 dos factos dados como provados que “A Declaração Aduaneira do Veículo (DAV) para a circulação do veículo referido em 2. foi emitida no dia 15 de Outubro de 2012. ";
7- E que "Na Declaração Aduaneira do Veículo (DAV) constam como quilómetros do veículo referido em 2. 63.316km." - ponto 10 dos factos provados;
8- Ora, podemos concluir que em 23.01.2012 o veículo tinha 89.933km e que em 15.10.2012 constava da DAV apenas 63.316km;
9- O que significa que foi alterada a quilometragem do veículo, pela Ré, para que a Autora o adquirisse, por aquele preço;
10- Tal elemento que foi ocultado e adulterado pela compradora, a Ré, sabendo que era condição essencial para a aquisição do veículo;
11- Foi referido pela testemunha F, (Minuto 19:44- 19:50)
Adv. da A.: Era condição essencial para comprar o carro, a quilometragem? Testemunha: Sim. Sim.
Adv. da A.: Isso não tem dúvidas? Testemunha: Sempre foi.
12- Perante este depoimento que foi prestado de uma forma isenta, natural, e com conhecimento dos factos em causa, impõe-se a alteração da matéria de facto;
13- Deve ser dado como PROVADO que:
“A ré sabia perfeitamente que a autora só comprava o veículo por estar convencida de que o carro tinha a quilometragem real de 63.000 km, pois, se assim não fosse, nunca a autora teria adquirido o veículo nem pago o preço de € 15.800,00." - ponto 7, dos factos não provados.
14- Deve ser dado como PROVADO que:
“A autora comprou o veículo na convicção de que este havia rodado apenas 63.000,00 km, pois, nunca o teria adquirido caso soubesse que o mesmo, na realidade, já possuía mais de .120.000,00." - ponto 8 dos factos não provados;
15- E o ponto 2 dos factos provados que o preço do veículo foi de 15.800.00€, pois a A. entregou, à troca, um veículo no valor de 5.000.00€;
16- Conjugando a matéria de facto dada como provada e a que agora se pede a alteração impõe-se concluir que a Ré agiu com dolo ao ocultar a real quilometragem do veículo automóvel, vendendo-o por um preço que seria superior ao seu valor real;
17- Estamos aqui perante uma compra e venda defeituosa porquanto o vendedor usou de artifícios para enganar o comprador e ocultar-lhe os quilómetros do veículo.
18- “A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas pelo vendedor (. . .) Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas torna-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira refere-se aos vícios da coisa e a segunda à falta de qualidades, enquanto a terceira abrange estas duas situações";
19- O defeito da coisa com relevância para a dinâmica contratual não se circunscreve apenas ao vício que desvalorize a coisa ou que impeça a realização do fim a que se destina ou à falta de qualidades necessárias à realização do fim a que a coisa é destinada, como supõe a tese da ré (nunca em momento algum, se justificou em que medida tal diferença de quilometragem afectou o estado, o uso, ou a manutenção do veículo, argumentou) podendo resultar autonomamente da falta de qualidades asseguradas pelo vendedor; se a coisa se mostra desconforme com as especificações e características supostas pelo contrato, a lei considera-a coisa defeituosa independentemente de afectada por vício material que a desvalorize ou que impeça a realização, total ou parcial, do fim a que é destinada. É o que também ensina Calvão da Silva, “(...) Esta concepção subjectiva do defeito supõe que as partes tenham determinado no contrato (...) as características fundamentais da coisa e o fim a que se destina;
20- Pelo que, o vício da coisa recebida apreciar-se-á em concreto, por comparação com as precisões ou especificações do contrato, devidamente contextualizado na fase negociatória, traduzindo-se numa desconformidade com estas."
21- A fiabilidade de um determinado veículo usado está indissociavelmente ligada aos quilómetros percorridos, sendo a partir deles que o comprador determina o risco do seu investimento numa prognose de durabilidade, assistência e manutenção futuras; como se acentuou na decisão recorrida, os quilómetros percorridos pelo veículo traduzem "(...) um elemento relevante para a fixação do preço do veículo e, como tal, um argumento comercial para quem vende e de um factor de decisão para quem compra" (não será por acaso que o veículo indica menos quilómetros do que os realmente percorridos) e daqui a subsunção do caso concreto ao regime da venda de coisas defeituosas; ao dizer isto, que temos por certo, porém, estamos a valorar a falta das qualidades asseguradas à coisa pelo vendedor e a apreciar a relevância desta para a economia do contrato, mais apropriadamente para a decisão de contratar o que, em bom rigor, nem é necessário.
22- A falta de qualidades asseguradas pelo vendedor integra, por si só, ou seja, independentemente de considerações sobre a maior ou menor perturbação causada na economia do contrato, uma venda de coisa defeituosa, a falta decorre objectivamente da desconformidade entre as qualidades asseguradas pelo vendedor e as qualidades concretas da coisa, independentemente da relevância destas para a realização do fim a que se destina; pode a coisa ter as qualidades asseguradas pelo vendedor e revelar-se inapta para o fim a que é destinada, como pode ter as qualidades necessárias ao fim a que é destinada e não ter as qualidades asseguradas pelo vendedor, ambos os casos traduzem uma venda de coisa defeituosa.
23- Da conjugação do disposto nos arts. 913.° n.º 1 a 915.° do CC, decorre que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor a reparação da coisa; de anulação do contrato, do direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo;
24- No caso concreto ficou provado que a Ré adulterou o número de quilómetros no veículo, tendo a intenção de enganar a compradora e obter a aceitação da compra do veículo pelo Autor e a obter um preço maior do que aquele que seria obtido por parte da A. caso lhe tivesse sido referido que o veículo tinha mais de 120.000 km e não metade, como apresentava o conta-quilómetros;
25- O que demonstra que a Ré agiu com dolo e má-fé ao mandar retirar quilómetros do veículo e depois ao vende-lo afirmando que o mesmo tinha os 63.000 km;
26- Por outro lado, a diferença apontada de quilómetros tratando-se de veículos usados, configura uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, pois não estava conforme com a descrição que dele foi feita pela Ré, a vendedora, sabendo que esse elemento é essencial na determinação da vontade do comprador e do preço, o mesmo é dizer que a viatura não tinha as qualidades que a Ré assegurou.
27- Assim, face à factualidade dada como provada, em particular os pontos 5, 6, 9 e 10 dos factos provados, e os pontos cuja alteração se peticiona (pontos 7 e 8) só podemos concluir que a Ré agiu com dolo;
28- A Ré não podia desconhecer que a Autora não compraria o veículo nas condições em que o fizeram se soubessem da real quilometragem do mesmo, além de que sendo a Ré experiente na venda de veículos não deixa de ser anormal o desconhecimento da viciação para quem trabalha no negócio de carros usados;
29- E neste caso o legislador confere ao comprador a possibilidade de anular o contrato por dolo, o que afasta o regime previsto no artigo 916.° do CC, pois o dolo afasta o prazo para a denúncia, não tendo caducado o direito da Autora.
30- Por todo o exposto, alterando-se a matéria de factos nos termos anteriormente referidos e peticionados, (os pontos 2, 7 e 8 da lista dos factos não provados - devem merecer a resposta de PROVADOS), deve a sentença ser revogada e substituída por outra que declare a anulação do contrato e compra e venda, atenta a actuação dolosa da Ré e ocultação de um aspecto essencial para a realização do negócio;
31- Ao decidir como decidiu, sentença recorrida violou, entre outros os artigos 254.°, 879.°,913.° e 916.° todos do CC e o artigo 615.° n.º 1, aI. c) do CPC.
Termos em que pede seja dado provimento ao presente recurso, e, em consequência, seja revogada a sentença recorrida e a sua substituição por outra que declare a anulação do contrato de compra e venda.

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A Ré apresentou contra-alegações, em que conclui que nada nos autos indicia a existência de um erro notório no julgamento de facto e que nenhuma razão assiste à Recorrente para impugnar a matéria de facto dada como provada e não provada, por a sentença se afigurar clara, coerente e suficiente, não padecendo de qualquer contradição, pelo que não se mostrando violado o art.º 254.º, 879.º, 913.º e 916.º, do Código Civil e art. º 615.º, n.º 1, c), do Código de Processo Civil, não merece qualquer censura, termos em que pede seja negado provimento ao recurso da Autora, mantendo-se em consequência na íntegra a sentença nos seus precisos termos e com as legais consequências.

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Os recursos foram recebidos como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

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Foram colhidos os vistos legais.


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IV- O Direito

Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.

Para esse efeito há que se atentar na seguinte:

Ø Fundamentação de facto:
Os factos provados
1. A autora é uma sociedade que se dedica a administrar aulas de condução, a fim de submeter os respectivos alunos a exames.
2. Em data não concretamente apurada, mas em Setembro de 2012, a autora adquiriu à Ré um veículo automóvel usado de matrícula NG, marca Renault, modelo Megane de cor preta, por preço não concretamente apurado, mas pelo menos de € 10.800,00.
3. O veículo referido em 2. destinava-se a ser utilizado pela autora diariamente no exercício da sua actividade comercial, nomeadamente para leccionar as aulas de condução, bem como para se deslocar para outros locais, transporte dos alunos aos exames a Braga ou Penafiel.
4. O documento respeitante ao veículo referido em 2., ostenta que o mesmo já fez três revisões em França, datadas de 3/11/2010, 3/06/2011 e 23/01/2012 em que apresentava, respectivamente, 29. 175Km, 60.277Km e 89.933Km.
5. O veículo referido em 2., procedente de França, foi reparado na Carclass, ainda em França, apresentando, à data, 117.324Km, sendo que foi legalizado em Portugal a 4 de Outubro de 2012, em nome de François da Cruz Magalhães.
6. O veículo referido em 2. fez revisão completa a 15 de Outubro de 2012, onde foi mudada a correia de distribuição.
7. A autora tomou conhecimento do referido em 4. a 6. em data não concretamente apurada, mas nunca depois de Janeiro de 2015.
8. Aquando da sua venda à autora referida em 2. dos factos dados como provados, o veiculo referido em 2. apresentava, no respectivo contador, cerca de 63.000Km.
9. A Declaração Aduaneira do Veiculo (DAV) para circulação do veículo referido em 2. foi emitida no dia 15 de Outubro de 2012.
10. Na Declaração Aduaneira do Veiculo (DAV) constam, como quilómetros do veículo referido em 2.,63.316 km.
11. A presente acção deu entrada no dia 01.09.2015.

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Matéria de facto não provada
1. Que o negócio celebrado entre autora e ré e referido no ponto 2. dos factos dados como provados ocorreu no dia I8.
2. Que o preço pago pela autora para aquisição do veículo foi de €I5,800,00, sendo que pagou a quantia de 10.800.00€ em numerário e os restantes € 5000,00, a autora entregou à Ré um veículo de marca Renault, modelo Clio, de 2005 e com a matrícula AV, que esta avaliou naquele montante.
3. A ré garantiu à autora que o aludido veículo, apesar de usado, estava em muito bom estado de conservação e funcionamento, sem qualquer acidente e a quilometragem de 63.000Km, que o mesmo apresentava, era real e verdadeira, garantia que foi determinante na aquisição do dito veículo.
4. Que a autora circulou com o veículo cerca de 3.000km.
5. A Ré garantiu à autora que os quilómetros que o veiculo referido em 2. ostentava, eram reais e verdadeiros.
6. A desconformidade entre a quilometragem efectiva do veículo e aquela que o mesmo registava, decorreu de alteração do respectivo instrumento de medição dos quilómetros, levada a cabo pela Ré ou por ordem desta, para que o mesmo, quando fosse alienado, aparentasse ter um valor superior ao seu valor real.
7. A ré sabia perfeitamente que a autora só comprava o veículo por estar convencida de que o carro tinha a quilometragem real de 63.000 Km, pois, se assim não fosse, nunca a autora teria adquirido o veículo nem pago o preço de € 15.800.00.
8. A autora comprou o veículo na convicção de que este havia rodado apenas 63.000 km, pois, nunca o teria adquirido caso soubesse que o mesmo, na realidade, já possuía mais de 120.000 Km.
9. A autora, face ao referido em 4. a 6. dos factos dados como provados, viu-se forçada a solicitar a outras empresas congéneres, que lhe emprestassem veículo do género e nem assim conseguiu obter o provento que retiraria com o uso do veiculo referido em 1.
10. Houve dias em que teve de adiar aulas com alunos e mesmo recusar novos alunos e, por isso, teve prejuízos superiores a 30.00€, além de não satisfazer pedidos dos clientes.
11. A autora sofreu transtornos, incómodos e arrelias por não poder utilizar o aludido veículo e ter sido enganada pela Ré, que nada fez.
12. A autora, na pessoa do sócio e gerente, ficou muito vexado pela humilhação e sofreu enorme desgosto.
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· Perante esta factualidade, importa, em primeira linha, importa apreciar e decidir sobre a nulidade da sentença suscitada nas conclusões de recurso pela apelante, por violação do disposto na alínea c), do artº 615º do CPC.
Vejamos.
Como tem sido entendido, os vícios determinantes de nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença e provocam dúvida sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia) — als. a) a e) do n.º 1 do art.º 615.º, do CPC.
São sempre vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada.
No tocante à al. c) do artº 615/1, a nulidade ocorre se se verificar oposição entre a decisão e os fundamentos em que assenta.
A sentença enfermará deste vício se na fundamentação o juiz seguir uma determinada linha de raciocínio, que aponta para uma determinada conclusão, mas acaba por decidir em sentido oposto ou, pelo menos, divergente.
Situação esta que, manifestamente, não se verifica na sentença proferida, na medida em que os fundamentos dela constantes vão de encontro à decisão proferida, dado que, em suma, aí se considerou não verificados os pressupostos da venda de coisa defeituosa, pelo escrutínio feito perante os factos e requisitos respeitantes ao instituto em causa, o mesmo se tendo considerado verificar-se quanto ao alegado erro, assim se tendo afastado a responsabilidade do vendedor, por não verificado o dolo, concluindo-se pela improcedência da acção a cujo resultado sempre se chegaria por via da procedência da excepção de caducidade do direito da A., alegada e concretamente demonstrada.
Diferente do vício apontado é já a discordância da apelante quanto ao decidido, tanto mais e na medida em que, apesar de arguir tal nulidade, acabar por não apontar especifica e concretamente quais os fundamentos em que se baseia para concluir pela nulidade arguida.
Resulta, assim, inequivocamente, do exposto, e sem necessidade de outras considerações, não enfermar a sentença do vício que lhe aponta a Apelante (deficiência e contradição), tendo, pois, de improceder a arguição da nulidade referida.
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· Já quanto à reapreciação da matéria de facto, através do art.º 662º. do actual C.P.C. veio instituir-se o poder/dever de investigação oficiosa, com vista ao apuramento da verdade material dos factos.
Assim, as regras de julgamento a que deve obedecer a Relação são as mesmas que devem ser observadas pelo tribunal da 1ª. Instância: tomar-se-ão em consideração os factos admitidos por acordo, os que estiverem provados por documentos (que tenham força probatória plena) ou por confissão, desde que tenha sido reduzida a escrito, extraindo-se dos factos que forem apurados as presunções legais e as presunções judiciais, advindas das regras da experiência, sendo que o princípio basilar continua a ser o da livre apreciação das provas, relativamente aos documentos sem valor probatório pleno, aos relatórios periciais, aos depoimentos das testemunhas, e agora inequivocamente, às declarações da parte – cf. Artºs. 466º., nº. 3 e 607º., nº. 4 e 5 do C.P.C., que não contrariam o que acerca dos meios de prova se dispõe nos artºs. 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.).
Deste modo, é assim inequívoco que a Relação aprecia livremente todas as provas carreadas para os autos, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua convicção.
Como dispõe o art.º 341º., do Código Civil (C.C.), as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
E, como ensina Manuel de Andrade, aquele preceito legal refere-se à prova “como resultado”, isto é, “a demonstração efectiva (…) da realidade dum facto – da veracidade da correspondente afirmação”.
Não se exige que a demonstração conduza a uma verdade absoluta ir) mas tão-só a “um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida” - in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 191 e 192
Quem tem o ónus da prova de um facto tem de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como escreve Antunes Varela - in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420.
Sendo admitida prova testemunhal é igualmente permitido o recurso às presunções judiciais, de acordo com o disposto no art.º 351º., do C.C., que são ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – cf. art.º 349º., ainda do C. C.
O julgador, usando as regras da experiência comum, do que, em circunstâncias idênticas normalmente acontece, interpreta os factos provados e conclui que, tal como naquelas, também nesta, que está a apreciar, as coisas se passaram do mesmo modo.
Como ensinou Vaz Serra “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência, ou de uma prova de primeira aparência” - in B.M.J. nº. 112.º, pág. 190.
Assim, o juiz, provado um facto e valendo-se das regras da experiência, conclui que esse facto revela a existência de outro facto.
Se se instalar a dúvida sobre a realidade de um facto e a dúvida não possa ser removida, ela resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, de acordo com o princípio plasmado no art.º 414º., do C.P.C., que, no essencial, confirma o que, sobre a contraprova, consta do art.º 346º., do C.C.
Ora, no caso em apreço, a apelante invoca que, como alegado, a quilometragem que o veículo apresentava no visor, que julgava ser a real, foi para si determinante/essencial na formação da sua vontade de contratar, concretamente de querer adquirir a viatura.
Nesse sentido, como prova do alegado, indica o depoimento da testemunha Flávio Rodrigues que é afilhado do legal representante da A., onde trabalhou entre 2013 e Agosto/2015, atestando que, apesar disso, acompanhou o seu padrinho, em 2012, aquando das negociações para aquisição da viatura, sem que, contudo, tenha assistido à sua conclusão, com a respectiva formalização, explicando a importância que a imagem do veículo tem para o ramo desenvolvido pela autora, mas atestando, também, a relevância da quilometragem da viatura, tendo em conta que se destinava a ser utilizado como veículo ao dispor da escola de condução, o que implicaria fazer muitos quilómetros, não compensando a aquisição de uma viatura com muitos quilómetros, face ao seu desgaste e porque assim compensaria comprar uma viatura nova.
Parte, no entanto, do pressuposto de que o preço acordado foi de 15.800,00€, com retoma de uma viatura pelo valor de 5.000,00€.
Acontece que a testemunha Brás Fernandes, contabilista da Ré, que emitiu a respectiva factura correspondente ao valor da transacção da viatura em causa nos autos, refere que foi indicado na presença do legal representante da A., como sendo de 10.800,00€, nele sendo incluído já o quantitativo de 3.000,00€ correspondente a uma viatura tomada de retoma, como pagamento parcial do preço acordado para aquisição do Renault Megane de matrícula NG, sem que aquele tenha dito o que quer que seja, concretamente, que tal assim não era, contrapondo que o valor era de 15.800,00€ e não de 10.800,00€, como estava a ser indicado na factura.
Pelo contrário, nada disse, o que permite concluir, por falta de outro elemento que abale o atestado, que esse foi o preço da aquisição e não outro, tanto mais que da factura junta aos autos a fls. 10/39, consta o valor de apenas de € 10.800,00.
Assim sendo, face à diferença do valor, tal importa uma alteração da avaliação dos factos, na medida em que, sendo um valor mais baixo, diz-nos a experiência e a normalidade das coisas que, a ser assim, é porque o carro ou tem mais quilómetros ou mais anos ou não está em tão bom estado quanto um outro carro que tem um valor bem mais elevado.
Daqui decorre que não pode ser dada como provada a factualidade que consta do ponto 2, dos factos não provados, por a A. não ter logrado demonstrar que o preço fixado e pago por si, pela aquisição da viatura, foi de 15.800,00€, e na estrita medida em que, pela parte contrária, foi produzida prova em contrária, em conformidade com o ora exposto.
Assim, partindo-se desse pressuposto, caí pela base a conclusão de que a A. não o compraria por 15.800,00, caso soubesse que a viatura tinha quase o dobro dos quilómetros, tendo em conta que o valor apurado foi tão só de 10.800,00€.
A tudo isto acresce o facto de ser bastante insólito o facto de, só passados mais de dois anos, o legal representante da A. se ter apercebido de que, no veículo, se encontravam documentos respeitantes às anteriores revisões, em que se constatava que a quilometragem que aparecia no visor não correspondia, assim, à real.
Acontece que, a ser assim, se tivesse sido a Ré a proceder a essa ‘sabotagem’ com toda a certeza não iria deixar ficar esses documentos na viatura, antes os teria de lá retirado, por forma a encobrir a sua actuação e não deixar qualquer indício ou rasto dessa desconformidade.
Por outro lado, tem igualmente de se atentar no facto do legal representante da A. ser uma pessoa bastante experiente no ramo, não sendo a primeira vez que adquiria uma viatura, tal como o confirmou a testemunha F, sendo, como tal, de estranhar não ter levado a viatura a nenhuma oficina para previamente apurar do seu estado e dos quilómetros que tinha, se isso para si fosse assim tão essencial, tal como o fez posteriormente.
Tanto mais que, quando a foi conduzir, antes da concretização do negócio, sabia que se tratava de uma viatura importada, pois, como o referiu ainda a indicada testemunha, tinha matrícula estrangeira a essa data, o que pressupunha um acréscimo de cautelas.
Não é, ainda, de desprezar o facto da mesma testemunha ter referenciado, a determinada altura do seu depoimento, que a viatura foi comprada para ele (seu padrinho) e que só depois é que a meteu na empresa, acabando, após pedido de esclarecimentos pela Sr.ª Juiz, por dar uma explicação para essa sua afirmação.
É que, a ser assim, o peso da importância dos quilómetros seria bem diferente e não tão relevante.
A tudo isto é de somar o facto pouco compreensível atestado pela mesma testemunha que a A. não pretendia, desde logo, colocar a viatura ao serviço da escola de condução, dado que preferiam sempre usar os veículos que tinham até ao fim de vida dos mesmos, e só após é que começariam a dar uso ao veículo adquirido à ré, o que veio a suceder em finais de 2014/ inícios de 2015.
Ora, a ser assim, pouco congruente e lógico se tornava a aquisição da viatura, com a inerente desvalorização, se não fosse para ser utilizada a breve prazo, a não ser que efectivamente outra fosse a intenção visada.
De qualquer das formas, o facto é que, à data da declaração aduaneira do veículo, já desse documento constavam os 63.316kms, sem que tivesse sido produzida qualquer outra prova susceptível de afirmar ter sido a Ré ou alguém a mando do seu legal representante a alterar a quilometragem que constava do visor da viatura.
Nem sequer, aliás, se veio aos autos demonstrar qual o valor que, à data da sua aquisição, teria uma viatura com aquelas características aparentes e uma outra com a quilometragem que os documentos encontrados atestavam.
Assim, não tendo a A. logrado, como se constata, provar a factualidade que alegava, em conformidade com a convicção formada pelo tribunal da 1.ª instância, coincidente com a deste tribunal, é de manter nos factos não provados a matéria que deles consta nos seus pontos 2, 7 e 8.
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Ø Perante a manutenção dos factos dados como provados e não provados, cumpre apreciar e decidir se deve ser revogada a sentença proferida em 1.ª Instância, em conformidade com o defendido pela recorrente.
Peticionou a recorrente, em sede de petição inicial, a anulação do negócio celebrado com a Ré, com base no disposto nos arts. 251.º, 253.º e 254.º, do Cód. Civil.
Para tal, não nos podemos esquecer que estamos perante um contrato de compra e venda de coisa móvel que alegadamente padece de defeito.
E, embora a A. tenha feito, na formulação do pedido, expresso apelo ao erro-vício, porque o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, apesar de só se poder servir-se dos factos por elas articulados - art.5.º do CPC - é mister ver se os factos apurados não integrarão o conceito de dolo ou se eventual erro não terá sido provocado por dolo relevante.
Ora, é defeituosa a coisa vendida se estiver afectada de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou as necessárias para a realização daquele fim.
Os vícios a que a lei se reporta são, pois, os defeitos intrínsecos das coisas, integrantes da sua essência ou substância, e não os elementos meramente extrínsecos, ou seja, os meramente acessórios ou incidentais.
Assim, o conceito de defeito abrange, por um lado, as deficiências de fabrico ou de construção e a falta de qualidades asseveradas explícita ou implicitamente pelo vendedor, e, por outro, as necessárias à realização do fim a que as coisas se destinam.
Verificado o defeito, é aplicável o que se prescreve na secção anterior que não contrarie o disposto nos artigos seguintes (artigo 913º, n.º 1, do Código Civil).
Ao remeter para o disposto na secção precedente adaptado e a título subsidiário, confere a lei ao comprador de coisas defeituosas, no confronto com o vendedor, o direito de:
- anulação do contrato por erro ou por dolo se verificados os requisitos a que acima se fez referência;
- redução do preço se as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, ele teria adquirido a coisa por preço inferior;
- indemnização relativa ao prejuízo decorrente da celebração do contrato, cumulável com a referida anulação e com a redução do preço;
- reparação da coisa ou, se necessário e ela tiver natureza fungível, a sua substituição não desconhecendo o vendedor, sem culpa, o vício ou a sua falta de qualidade (artigos 247º, 251º, 254º, 905º, 908º, 909º, 911º, 913º, n.º 1, 914º, n.º 1 e 921º, n.º 1, do Código Civil).
Por sua vez, o erro-vicio traduz-se numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio. Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância - se tivesse exacto conhecimento da realidade, o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou.
Esta caracterização evidencia uma das condições gerais da relevância do erro: a essencialidade ou causalidade.
Por outro lado, há que ter em conta, desde logo, que, nos termos gerais, incumbe ao comprador a prova do defeito (art. 342.º, n.º 1, do Cód. Civil) e se presume a culpa do vendedor, padecendo a coisa entregue de defeito (art.799.º, n.º 1, do Cód. Civil) – neste sentido, entre outros, apontam-se os Acs. STJ de 3.3.98, CJT.I, pg. 107 e Romano Martinez, in ‘Cumprimento defeituoso’, pg. 273 e segs.
Posto isto, vejamos, pois, se o veículo automóvel estava, ou não, ao tempo da sua alienação, afectado de defeito nos moldes referenciados.
Para o efeito, na apreciação dos elementos normativos e na sua intersecção com a matéria de facto provada não se pode ignorar as circunstâncias específicas do negócio, concretamente que a autora é uma sociedade que se dedica a administrar aulas de condução, a fim de submeter os respectivos alunos a exames, tendo adquirido o veículo automóvel usado de matrícula NG, marca Renault, modelo Megane de cor preta, pelo valor mínimo de €10.800,00, destinado a ser utilizado pela autora diariamente no exercício da sua actividade comercial, nomeadamente para leccionar as aulas de condução, bem como para se deslocar para outros locais, transporte dos alunos aos exames a Braga ou Penafiel e que, aquando da sua venda à autora, o dito veiculo apresentava, no respectivo contador, cerca de 63.000Km, apesar de, quando reparado na Carclass, ainda em França, apresentar, a essa data, 117.324Km.
Por outro lado, para a aferição dos elementos que integram o vício é indiferente o elemento subjectivo acerca do aspecto negocial sobre que incidiu o erro. Apesar de não estar demonstrado que foi a R. quem viciou o conta-quilómetros do veículo que vendeu à A. ou que nessa data tinha conhecimento de que a viciação havia ocorrido, o que importa é que o erro em que a A. incorreu tenha incidido sobre aspectos essenciais para a sua vontade de contratar e que o R. conhecesse ou, pelo menos, não devesse ignorar.
Como refere Antunes Varela, no CC anot, à margem do art. 913º, são as deficiências de carácter objectivo que anteriormente enuncia, “mais do que o erro do comprador ou o acordo negocial das partes – que servem de real fundamento aos direitos concedidos por lei ao comprador e que justificam, pela especial perturbação causada na economia do contrato, os desvios contidos nesta secção ao regime comum do erro sobre as qualidades das coisas”.
Ora, o vendedor, ao apresentar para venda um veículo com uma quilometragem diferente da que tem, cria a convicção no comprador de que o veículo apenas tem essa quilometragem.
Acresce que o valor comercial dos veículos (maxime de veículos usados importados do estrangeiro) é directa e essencialmente influenciado pelo seu estado de conservação e ainda, numa escala elevada, pela idade e pela quilometragem percorrida, pelo que a divergência entre o que o contador mostrava e a quilometragem efectiva constitui objectivamente um factor essencial para quem adquire uma viatura, tanto mais para quem a destina a ser utilizada diariamente no exercício da sua actividade comercial, nomeadamente para leccionar as aulas de condução.
Não oferece dúvidas de que a diferença de quilómetros, seguramente para quase o dobro, no veículo, tratando-se de carro usado, configura uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, pois não estava conforme com a descrição que dele foi feita pelo vendedor.
Está, assim, afectado de defeito, para efeitos do disposto no artigo 913.º do Código Civil, o veículo automóvel que, ao invés do que dele consta visualmente, tinha cerca do dobro da quilometragem.
Contudo, o direito à anulação do negócio por erro ou dolo (art. 905º) concedido ao comprador, exige que se verifiquem os respectivos requisitos de relevância do erro sobre o objecto do negócio (art. 251º) - quer as condições gerais da essencialidade e da propriedade, quer as condições especiais da essencialidade para o comprador do elemento sobre que incidia o erro e o seu conhecimento ou cognoscibilidade para o vendedor (art. 247º, ex vi do art. 251º) - ou do dolo (art. 254º) - dolus malus, essencial ou determinante, intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o adquirente -, e dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento (art. 287º, n.º 1) ou sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção, enquanto o negócio não estiver cumprido pela não entrega da coisa e/ou não pagamento do preço (art. 287º n.º 2).
Pois, constitui requisito específico da relevância do dolo a dupla causalidade, que se verifica quando o dolo seja causa do erro e este, por seu turno, seja causa do negócio.
Assim, só há dolo relevante quando o declarante tenha caído em erro por efeito da conduta artificiosa de outrem (art. 254º, n.º 1).
Acontece que, para haver responsabilidade por cumprimento defeituoso, em caso de compra e venda de coisas defeituosas, é necessário que previamente seja feita a denúncia do defeito (art. 916.º CC), cujo ónus impende sobre o comprador.
Só assim não é, se o vendedor tiver agido com dolo (art. 916.º, n.º 1, do CC), na medida em que, nesse caso, ele já sabe que a coisa é defeituosa.
Pois, como decorre do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 916º do CC, constitui ponto de partida para o exercício dos vários direitos que em sua protecção a lei fixou, a denúncia, pelo comprador ao vendedor, do vício da coisa, no prazo de trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa.
Entende-se, assim, que é sobre o comprador que impende o dever de examinar a coisa, daí que o prazo, de seis meses, deva ser contado, não da data da descoberta efectiva, mas daquela em que o defeito deveria ter sido descoberto, caso o comprador tivesse agido diligentemente (cfr. nestes sentido Romano Martinez, in ‘Cumprimento defeituoso’, pg. 375 e segs. e, entre outros, Ac. STJ de 26/1/99, BMJ483, pg. 235).
Contudo, as razões que motivaram os prazos curtos em nome da segurança e em desfavor muitas vezes da justiça só não têm razão de ser face ao dolo – cfr. Ac. do STJ (Pinto Monteiro), de 26.6.2001, na Col. Jur. (STJ), 2001-II-134.
Sob este prisma tem sido entendido que da ressalva do n.º 1, do art. 916º, do Cód. Civil, resulta que «havendo dolo (como se o vendedor insinuou a existência infundada de certa qualidade na coisa ou dissimulou o erro em que o adquirente visivelmente se encontrava quanto a determinada propriedade da coisa), o comprador pode intentar a acção de anulação no prazo de um ano a contar do momento em que teve conhecimento do vício ou da falta de qualidade (art. 287º, n.º 1), independentemente de denúncia, na medida em que o art. 917º, do mesmo diploma se refere apenas à acção de anulação fundada no simples erro.
Contudo, não se pode deixar, mesmo nessas situações, de ter em conta que o art. 917.º, do Cód. Civil, fala em caducidade da “acção de anulação”, impondo a unidade do sistema jurídico a sua aplicação a todas as pretensões, tal como defendido por Romano Martinez obra cit., pg. 367 e segs. e no Assento do STJ de 4.2.96, I Série de 30.1.97, entre outros.
Defende-se, assim, que esse prazo de caducidade vale ainda que o vendedor tenha agido dolosamente, na medida em que o dolo só torna desnecessária a denúncia, mas não altera os prazos dos arts. 916.º e 917.º, do CC.
Assim, sopesando todos os factos apurados, que se restringem a uma diferente quilometragem entre a aparente e a real, de cerca do dobro, dado que nenhuma outra factualidade logrou a A. provar quanto à concreta actuação da Ré, não é possível afirmar-se ter a mesma visado induzir em erro a compradora ou dissimular qualquer erro desta, nem ter determinado aquele concreto negócio, pelo que não se pode, assim, concluir integrar dolo relevante, susceptível de fundamentar anulação da declaração negocial da A., como expresso nos art. 253º e 254º do CC.
Acontece que, este desfecho apenas à A. é imputável, na medida em que não actuou por forma a proceder ao examine da coisa no prazo que a lei considera como razoável para o efeito, antes tendo deixado decorrer mais de dois anos para o fazer, ao apenas ter inspeccionado a viatura decorrido esse período temporal, quando, como referido, todos os elementos que lhe permitiam apurar a desconformidade apontada se encontravam na própria viatura, que o levavam a que tivesse, como o fez, a proceder às demais diligências para apurar o histórico da viatura quanto aos quilómetros percorridos efectivamente.
De qualquer das formas, o facto é que a acção foi proposta muito para além dos seis meses contados da entrega da coisa, na medida em que se considera que esse prazo vale tanto para efeitos de simples erro como de dolo.
Contudo, mesmo que outro fosse o entendimento, o certo é que, por não verificados os pressupostos susceptíveis de fundamentar a anulação em conformidade com o exposto, também não poderia beneficiar do prazo mais alargado de um ano, a contar do momento em que teve conhecimento do vício ou da falta de qualidade, nos termos do art. 287º, n.º 1, do CC.
Caducado estaria, assim, sempre o direito de anulação - e os de indemnização que a este direito andam ligados, aqui subsidiariamente pedidos -, tudo nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 916º, 917º e 921º, n.º 4, do CC, e 576º, n.os 1 e 3, do CPC.
Tem, pois, de improceder totalmente o recurso interposto pela A./recorrente.
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V – Decisão

Pelo exposto, os Juízes da 2ª Secção Cível, deste Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela A./Recorrente, confirmando a sentença proferida.
Custas do recurso pela recorrente.
Notifique.

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TRG, 23.02.2017

(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária)

Relatora - Maria dos Anjos S. Melo Nogueira

1º Adjunto - José Carlos Dias Cravo

2º Adjunto - António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida