APLICAÇÃO DE MEDIDA DE COAÇÃO
EXTINÇÃO DA MEDIDA
COACÇÃO
NÃO AUDIÇÃO DO ARGUIDO
IRREGULARIDADE
Sumário

I - Sendo aplicada medida de coação em substituição da primitiva, que se extinguiu, não se exige a aplicação, na sua integralidade, do disposto no artº 194º CPP.
II - Devendo o arguido ser ouvido quanto à medida de coação a aplicar, a preterição constitui mera irregularidade.
III - É de equiparar o despacho que aplica nova medida de coação, por extinção da anterior, ao despacho de substituição de medidas de coação por outras menos gravosas por ser consequência, não de atenuação das exigências cautelares, mas de extinção da medida mais gravosa, que por esta via se lhe deve equiparar na sua regulamentação.

Texto Integral

Rec nº539.11.2PBMTS-E.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferencia os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. nº539.11.2PBMTS a correr no 3º Juízo do Tribunal Instrução Criminal do Porto em que entre outros é arguido
B…

Foi por despacho do Mº JIC, decidido que o arguido aguardasse os ulteriores termos processuais sujeito às seguintes medidas coactivas:
“proibição de se ausentarem para o estrangeiro (artº 200º al.b) do CPP)
obrigação de apresentação semanal (aos sábados entre as 8 h e as 20 h) na esquadra das áreas das suas residências – artº 198º do CPP, tudo nos termos dos artigos 191º a 193º e 204º als. a) e b) do CPP”

Recorre o arguido o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
“1 - Ao recorrente foram-lhe aplicadas as medidas de coacção de apresentações periódicas e proibição de ausência para o estrangeiro.
2 - Na aplicação destas medidas não foi observado o princípio do contraditório, na medida em que o recorrente não foi ouvido, nem lhe foram comunicados quaisquer factos ou elementos do processo que foram considerados para as fundamentar.
3 - Deste modo, o douto despacho em apreço é manifestamente ilegal por violação das normas contidas nos n.ºs 4 e 7 do art. 194 do C.P.P..
4 - Inexistem e não foram invocados pelo douto despacho factos e elementos de prova que, quanto ao recorrente, consubstanciem e justifiquem os receios de perturbação da prova (riscos para a aquisição e conservação), e de fuga.
5 - Não estão, pelo exposto, reunidas as condições legais que justifiquem as medidas de coacção impostas ao recorrente, pelo que o douto despacho deve ser revogado, como revogadas devem ser as medidas que lhe foram aplicadas”.

O MºPº respondeu pugnando pela manutenção da decisão;
Foi proferido despacho de sustentação;
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da procedência do recurso
Foi cumprido o artº 417º2 CPP

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência
Cumpre apreciar.
Consta do despacho recorrido (transcrição):
Quanto ao mais, concordamos também com o doutamente promovido.
Assim, atenta a complexidade da investigação, a situação pessoal dos arguidos, verificando-se, em concreto, os perigos de fuga e perigo para a aquisição e conservação da prova, determino que os arguidos C…, B… e D…, aguardem os ulteriores termos processuais sujeitos às seguintes medidas coactivas:
- proibição de se ausentarem para o estrangeiro (artº 200º al.b) do CPP)
- obrigação de apresentação semanal (aos sábados entre as 8 h e as 20 h) na esquadra das áreas das suas residências – artº 198º do CPP, tudo nos termos dos artigos 191º a 193º e 204º als. a) e b) do CPP”

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São as seguintes as questões suscitadas:
- nulidade do despacho decorrente da não audição do arguido, e de não lhe terem sido comunicados quaisquer factos e elementos do processo nem invocados factos relativos aos perigos de fuga ou para aquisição e conservação da prova;
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O âmbito dos recursos é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98), e são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar (Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª ed., pág. 335), sem prejuízo das de conhecimento oficioso, que no caso não se suscitam nem ocorrem.
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Pese embora o modo como o recorrente se insurge contra o despacho, afigura-se-nos que a questão principal e a solucionar se traduz em saber se extinguindo-se a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação pelo decurso do prazo, as medidas de coacção que venham a ser impostas ao arguido estão sujeitas às mesmas regras do artº 194º CPP.

Assim e para a correcta apreciação da questão suscitada importa efectuar o seu enquadramento processual, tal como ele resulta ou é expresso nos autos:
a)- Ao arguido foi-lhe aplicada a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, por haver indícios da prática dos seguintes crimes:
- Um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299, n.ºs 1 e 3, do C.P.;
- Dois crimes de burla, p. e p. pelo art. 217, n.ºs 1 e 2, do C.P.;
- Dois crimes de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217, n.º 1, 218, n.º 2, a), com referência ao art. 202, b), todos do C.P.;
- Quatro crimes de burla na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22, 23, 73, 217, n.º 1, do C.P.;
- Um crime de burla qualificada na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22, 23, 73, 217, n.º 1 e 218, n.º 2, a), do C.P.;
- Dezoito crimes de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo art. 258, n.ºs 1, b), e c), e 2, do C.P.;
- Vários crimes de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255 e 256, n.º 1, a), e 3, todos do C.P.;
- Dezoito crimes de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103 e 104, n.º 1, d), e e), do RGIT; e
- Um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelos artigos 3º, n.ºs 2, e 3, e 4º, a), da Lei n.º 5/2006, de 23/02,
b)- despacho esse de 31/10/2012 e
c)- por despacho de 29/4/2013 procedeu-se ao reexame dessa medida que foi mantida;
d)- tal medida extinguiu-se pelo decurso do prazo, e foi declarada extinta pelo acórdão desta Relação de 25/7/2013;
e)- na sequência desse acórdão e ainda de antes de ter transitado em julgado em 30/7/2013 o MºPº promoveu a aplicação das medidas de coacção em causa
f)- e o Mº JIC por despacho de 31/7/2013 proferiu o despacho sob recurso;
g) - como se vê dos autos antes da prolação do despacho em crise, o arguido não foi ouvido nem teve oportunidade de se pronunciar sobre a promoção do MºPº antes da decisão (tendo o contraditório sido mandado observar posteriormente conforme despacho de fls. 6972 e foi determinante para a admissão do recurso, ao mesmo tempo que foi renovado o despacho anterior);

Apreciando:
As medidas de coacção aplicadas no processo estão sujeitas a modificação em face das circunstancias que em cada momento se verificam sobre a sua necessidade e adequação (condição rebus sic stantibus - art. 212, n.ºs 1, b), e 3, do C.P.P) podendo e devendo ser revogadas ou substituídas por outras se deixarem de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação ou se tiver ocorrido uma alteração das exigências cautelares.
Pese embora tal facto e porque se trata de medidas restritivas mais gravosas impõe a lei quanto à prisão preventiva e à obrigação de permanência na habitação (OPH) à sua apreciação trimestral (artº 213º CPP) e por essa razão lhes fixa igualmente um prazo máximo de vigência, findo o qual tais medidas extinguem-se pelo decurso do prazo (artºs 215º 1 e 2 a), 218º CPP), e
nesse caso dispõe o artº 217º 2 CPP aplicável à medida de coacção da OPH que extinta essa medida de coacção “o juiz pode sujeitar o arguido a alguma ou algumas das medidas previstas no s artigos 197º s 200º inclusive”
Foi em cumprimento imediato deste comando normativo que foi aplicada ao arguido recorrente as medidas de coacção em causa de proibição de se ausentar para o estrangeiro, e obrigação de apresentação semanal na autoridade policial.
Como é bom de ver não estamos perante uma primeira medida de coação aplicada no processo mas perante a aplicação de medida substitutiva por extinção da primitiva e extinta.
Como tal não lhe é aplicável na sua integralidade o disposto no artº 194º CPP que por norma o deve ser na sequencia do 1º interrogatório judicial de arguido onde o mesmo deve ser ouvido com as formalidades do artº141º CPP, e se traduz na primeira aplicação das medidas de coação a que o arguido fica sujeito no decurso do processo;
Não estando perante a situação do artº 194º CPP, nem por isso deve deixar de permitir-se que ao arguido seja dada a possibilidade de se pronunciar, a situação que não pode deixar de ser equiparada ao reexame dos pressupostos da medida de coação de prisão preventiva e OPH ou à sua alteração / revogação por alteração dos pressupostos da sua aplicação e da sua admissibilidade (por estando extinta tornou-se legalmente inadmissível).
Assim por aplicação do artº 212º4 CPP devia o arguido ser ouvido quanto à aplicação dessas medidas, de igual modo o seria por aplicação do principio do contraditório que enforma todo o processo penal.
Não o tendo sido, qual a consequência?
Dado que não se trata de uma nulidade, pois como tal não é cominada na lei – artº 118º1 CPP - estamos perante uma irregularidade que não foi arguida em tempo no tribunal recorrido e não afecta o valor do acto praticado com vista às sua reparação e até pode considerar-se sanada face à notificação posterior da promoção do MºPº para aplicação de tais medidas de coacção, e que por essa via possibilitou a admissão deste recurso como tempestivo.
Mas mesmo que se considere aplicável o artº 194º CPP e não tendo o arguido sido ouvido, tal configura de igual modo uma irregularidade -art. 118.º, n.º 1 e n.º 2 CPP - que devia ser arguida nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do art. 123.º do CPP., e não o tendo, e embora o tribunal possa ordenar a sua reparação, o mesmo não se justifica nos termos apreciados. cf. Ac. RL de 30/03/2011, in www.dgsi.pt

Não sendo obrigatória a audição do arguido nos termos insertos no artº 194º no caso concreto, e logo não aplicável o artº 141º 4 CPP (cf. Ac RE de 9/10/2012, in www.dgsi.pt: “1. A obrigatoriedade de audição prevista no art. 194º, nº 3 do CPP visa fazer preceder a decisão judicial sobre a medida de coacção da audição do sujeito processual nela mais directa e pessoalmente interessado – o arguido –, mas nada impondo na lei que seja presencial. 2. A audição não presencial – audição por escrito, no processo, através do defensor – não compromete o exercício do contraditório, na vertente de direito de audiência, e não restringe as garantias de defesa”, ou sendo-o estaríamos perante uma mera irregularidade, já que não lhe é assacada pela lei o vicio da nulidade, sendo que no caso concreto e visto os factos não importa a sua sanação por não influir na decisão da causa.

Invoca o recorrente ainda a falta de fundamentação do mesmo despacho por não conter quaisquer factos imputados e elementos probatórios do processo nem invocados factos relativos aos perigos de fuga ou para aquisição e conservação da prova;
O dever de fundamentar as decisões judiciais é imposto pelo artº 205º CRP, e surge no processo penal também como decorrência das garantias de defesa do arguido expressas no artº 32º1 CRP, e encontra consagração legislativa no artº 97º CPP quanto aos despachos, e especificamente quanto ao despacho judicial que aplicar medidas de coacção no artº 194º 5 CPP que estabelece o seguinte:
“5 - A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
Visto o despacho verifica-se que na essência e directamente assim acontece quanto a todos os itens enunciados o que nos termos do artº194º5 CPP constitui nulidade.
Tal nulidade todavia dependente de arguição (pois não faz parte do elenco das nulidades insanáveis, do artº 119º CPP) - artº 120º 1 e 2 a) CPP) e como tal devia ser arguida no prazo geral de 10 dias perante o tribunal que proferiu a decisão, a contar da sua notificação (dado que não foi proferido na presença do arguido), o que não ocorreu e só em recurso foi suscitada. cf. Ac da RG de 10/3/2011, in www.dgsi.pt: “I- A nulidade decorrente da inobservância do disposto no n.º 5 do artigo 194º do CPP deve ser arguida perante o tribunal de 1ª instância, só havendo recurso da decisão que conhecer da arguição de tal nulidade. (…)”
Ac TRP de 20/10/2010 in www.dgsi.pt: “(…) II - No despacho que aplica medida de coação, a omissão ou insuficiência de fundamentação quanto à referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida [art. 194.º, n.º 4, al. d), do CPP] constitui nulidade dependente de arguição e deve ser arguida/suscitada antes que o acto esteja terminado ou, se a este não tiverem assistido, nos 10 dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados [art. 194.º, n.º 4 e 120.º, n.º 3, al. a), do CPP].(…)”

Assim com estes fundamentos e em face da intempestividade da arguição das nulidades havidas haverá de improceder o recurso.
Todavia cremos que por outras razões o deve ser, na medida em que não podemos deixar de considerar que o despacho em crise se insere no desenrolar normal do processo, e por isso de equiparar na sua integralidade ao despacho de substituição de medidas de coação por outras menos gravosas, em resultado não de atenuação das exigências cautelares mas de extinção da medida mais gravosa, que por esta via se lhe deve equiparar na sua regulamentação, pois diverge apenas a causa do despacho decisório.
Sendo assim, e convirá lembrar que o despacho de aplicação da primitiva medida de coação – OPB – fora já objecto de reexame não havendo noticia de algum deles ter sido posto em crise através de recurso ou pedido de alteração, o despacho recorrido assume em si toda a factualidade e elementos dos despachos anteriores, que não sofreram alteração, pelo que como se refere o Ac RC 16/12/2009 in www.dgsi.pt o dever de fundamentação deverá reportar-se “ao objecto da decisão: a superveniência de circunstâncias que possam levar à alteração da anterior decisão, transitada em julgado” pelo que “a decisão assumida no processo e transitada em julgado deve manter-se, no âmbito do processo, salva a alteração, superveniente, dos seus pressupostos”, pressupostos estes que no caso não sofreram alteração, questão que nunca sequer é suscitada, e nesta perspectiva não lhe pode ser assacada falta de fundamentação, mais ainda ao assumir e fazer seus os argumentos constantes da promoção do MºPº com qual concorda como é expresso no despacho;
Improcede assim o recurso
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Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e em consequência confirma o despacho recorrido;
Condena o arguido recorrente no pagamento da taxa de justiça de 4 Uc e nas demais custas.
Notifique.
Dn
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Porto, 29/1/2014
José Carreto
Paula Guerreiro