LOCAÇÃO DE ESTABELECIMENTO
NORMAS QUE REGEM O CONTRATO
FALTA DE LICENÇA DO ESTABELECIMENTO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
CONDENAÇÃO
PRESSUPOSTOS DA CONDENAÇÃO
Sumário

I - O contrato de locação de estabelecimento rege-se, em primeiro lugar, pelas cláusulas acordadas pelas partes, de harmonia com a liberdade contratual e, subsidiariamente, pelas normas do contrato típico de estrutura mais próxima, ou seja, pelas que disciplinam o contrato de arrendamento comercial e, na sua falta, pelas regras comuns dos contratos.
II - A excepção do não cumprimento não legitima o incumprimento definitivo do contrato, mas tão só o seu cumprimento dilatório como forma de coagir o contraente faltoso a cumprir aquilo que tem que cumprir; o exercício de tal excepção não extingue o direito de crédito de que é titular o outro contraente, apenas o paralisa temporariamente.
III - A locatária do estabelecimento [que, apesar da falta da licença, continua a funcionar, embora precariamente] pode opor aquela excepção ao locador quando o que almeja não é que se declare que não tem que lhe pagar as rendas em falta [que deixou de pagar por o segundo não ter diligenciado pela obtenção, que estava a seu cargo, da licença/alvará de utilização/funcionamento do estabelecimento objecto do contrato], mas apenas e só que se reconheça que tem direito a não efectuar - melhor, a retardar - o respectivo pagamento enquanto o locador não cumprir o dever de diligenciar pela obtenção da licença.
IV - Legitimada a recusa [o retardamento] da locatária em pagar [pontualmente] as rendas a que estava obrigada, daí decorre que, por essa falta, não se constituiu em mora e que o locador não pode obter a resolução do contrato com esse fundamento [falta de pagamento das rendas de diversos meses].
V - A condenação no que se liquidar após a sentença só é possível, no caso da responsabilidade contratual, quando tenham ficado provados todos os seus pressupostos legais, incluindo a existência de danos/prejuízos sofridos pelo credor, e que apenas não se tenha conseguido apurar o exacto montante desses danos/prejuízos.

Texto Integral

Pc. 583/11.0TBPVZ.P1 – 2ª Sec.
(apelação)
____________________________
Relator: M. Pinto dos Santos
Adjuntos: Des. Francisco Matos
Des. Maria João Areias

* * *
Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

B…, com sede na Póvoa de Varzim, instaurou a presente acção declarativa com processo comum ordinário, contra C…, Lda. e D…, aquela sediada e esta residente, igualmente, na referida cidade, pedindo que:
● se declare a resolução do contrato de locação de estabelecimento que celebrou com a 1ª Ré, por falta de pagamento das rendas relativas aos meses de Agosto a Dezembro de 2010, Janeiro e Fevereiro de 2011;
● a 1ª ré seja condenada a entregar-lhe o estabelecimento locado;
● e ambas as rés - a 2ª ré enquanto fiadora - sejam condenadas a pagar-lhe, solidariamente, as rendas mensais vencidas e não pagas, no valor de 7.000,00€, bem como das que se venceram até à entrega do estabelecimento, tudo acrescido de IVA às taxas sucessivamente em vigor.
Alegou, para tal, que locou à 1ª ré, por contrato escrito celebrado em 31/10/2009, o estabelecimento de snack-bar melhor caracterizado na p. i., pelo prazo de cinco anos, com início a 01/11/2009 e termo a 31/10/2014, renovável por períodos sucessivos de três anos se nenhuma das partes o denunciasse, mediante a contrapartida de 12.000,00€/ano, a pagar, pela 1ª ré, em duodécimos mensais de 1.000,00€, acrescidos de IVA à taxa legal, no primeiro dia útil do mês a que respeitasse; que a 1ª ré deixou de pagar os montantes mensais relativos aos meses de Agosto a Dezembro de 2010, Janeiro e Fevereiro de 2011, no montante global de 7.000,00€; que ela e a 2ª ré são solidariamente responsáveis pelo pagamento deste valor e dos duodécimos vincendos, por esta última ter intervindo no dito contrato como fiadora da locatária; que o não pagamento dos referidos duodécimos lhe confere o direito de pôr termo ao mencionado contrato.

As rés contestaram e deduziram reconvenção.
Ali, alegaram que a autora lhes garantiu, aquando da outorga do contrato de locação, que o estabelecimento dispunha de licença de utilização, o que vieram a comprovar, em Agosto de 2010, não corresponder à verdade; que perante esta situação a 1ª ré deixou de pagar as rendas desde então, direito que entende assistir-lhe ao abrigo do disposto pelo 428º do CCiv. – excepção do não cumprimento do contrato -, até que o autor lhe faculte a licença do estabelecimento.
Na reconvenção, alegaram que mantêm interesse na continuação da vigência do contrato e pediram que o autor seja condenado a desenvolver todas as actividades necessárias para a obtenção da licença de utilização do estabelecimento.
Subsidiariamente, para o caso de tal se não revelar possível, pediram a resolução do contrato e a condenação do autor a indemnizá-las dos danos resultantes do não gozo do locado pelo período contratado, designadamente, por perda de clientela e lucros cessantes, a liquidar em momento posterior à sentença.
Pediram ainda a condenação do autor no pagamento de 4.291,47€, mais juros, a título de reparação de prejuízos sofridos pela 1ª ré em consequência de avaria na instalação eléctrica do imóvel que servia o estabelecimento e obrigou ao seu encerramento durante 4 dias.
Concluíram pugnando pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção.

O autor replicou, alegando que a falta de licença de utilização nunca impediu a 1ª ré de explorar o estabelecimento, pelo que não lhe assiste o direito de não pagar as rendas enquanto não obtiver o alvará de utilização e que existiria abuso de direito na invocação da excepção do não cumprimento do contrato, na medida em que a ré, apesar da falta de licença, continua-a a explorar o estabelecimento e a obter proventos da sua actividade, não podendo eximir-se a pagamento da respectiva renda.
Concluiu pela improcedência da reconvenção e pela condenação das rés como litigantes de má fé.

As rés responderam ao pedido de condenação por litigância de má fé deduzido pelo autor na réplica, sustentando a sua improcedência.

Proferido despacho saneador, fixado o valor da causa e admitida a reconvenção, foram seleccionados os factos assentes e os controvertidos, estes formando a base instrutória, sem reclamação das partes.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, no termo da qual, após produção da prova, foi proferido despacho de resposta aos quesitos/pontos da base instrutória, mais uma vez sem reclamação das partes.

Seguiu-se a prolação da sentença que decidiu:
“Julgar a acção procedente e consequentemente:
- Declarar a resolução do contrato de locação de estabelecimento celebrado entre o autor B… e as rés, C…, Lda. e D… em 31 de Outubro de 2009.
- Condenar a Ré C…, Lda. a entregar ao autor B… o estabelecimento locado descrito em 1. dos factos provados, livre de pessoas e bens, com excepção dos que nele se encontravam quando lhe foi entregue pelo autor na sequência da outorga do referido contrato de locação.
- Condenar as rés, C…, Lda. e D… a pagarem solidariamente ao autor B…, a quantia de €7.000,00 (sete mil euros) correspondente ao valor das rendas mensais de €1.000,00, cada, vencidas desde Agosto de 2010 até à data da instauração da acção, assim como da quantia correspondente ao valor das rendas mensais vencidas desde então e vincendas até à entrega do locado, tudo acrescido de IVA às taxas legais sucessivamente em vigor.
Julgar a reconvenção parcialmente procedente e consequentemente:
- Condenar o reconvindo B… a pagar à reconvinte C…, Lda. a quantia que em liquidação de sentença se apure como correspondente aos supra referidos prejuízos sofridos pela reconvinte a título de perda de bens consumíveis; de cancelamento de jantares já agendados e à quebra perda de lucros relativos ao período de 4 dias em que o estabelecimento locado esteve encerrado.
- Condenar as rés no pagamento das custas da acção.
- Condenar, provisoriamente, autor e rés no pagamento em partes iguais das custas da reconvenção, sendo a percentagem final do pagamento das custas fixada em conformidade com o grau de sucumbência que vier a ser revelado na liquidação executória”.

Inconformada com o sentenciado, interpôs a 1ª ré o recurso de apelação em apreço, cuja motivação culminou com as seguintes conclusões:
“I. Quanto ao pedido formulado na petição inicial:
1) Ao invés do que sucede nos contratos de arrendamento, no âmbito do contrato de cessão de exploração a circunstância de o cessionário deixar de pagar a renda não constitui critério objectivo de perda de interesse no contrato por parte do concedente.
2) O regime dos contratos de arrendamento não á aplicável, sequer por analogia, aos contratos de cessão de exploração, os quais se regem pelas regras gerais das obrigações e pela disciplina dos contratos inominados.
3) No âmbito da cessão de exploração de um estabelecimento comercial, o sinalagma das obrigações estabelece-se entre de um lado a obrigação de proporcionar o gozo pleno e legal do estabelecimento, enquanto universalidade de bens, direitos, alvarás e licenças, clientela, aviamento, etc., e do outro lado a correspectiva obrigação de pagamento do preço, sendo a obrigação de proporcionar o gozo do imóvel onde o estabelecimento funciona apenas uma das muitas obrigações principais do concedente.
4) É essencial para o gozo do estabelecimento que o mesmo se mostre legalizado e licenciado para a actividade comercial respectiva, cabendo ao dono do estabelecimento o ónus do licenciamento.
5) Se o dono do estabelecimento não providencia o seu licenciamento e não faculta ao concessionário o alvará de utilização, está a incorrer ele próprio em mora, ao não praticar acto necessário ao cumprimento da sua obrigação – artº 813º do Cód. Civil – mora essa que ocorre ab initio, porque desde a data da celebração do contrato.
6) Como tal, é legítimo ao concessionário escusar-se a pagar a renda, invocando a excepção dilatória de não cumprimento, enquanto o concedente não se aprestar a licenciar o estabelecimento e como forma de o compelir a fazê-lo.
7) Tanto mais quanto ficou provado que a existência de licença de exploração do estabelecimento foi condição determinante para o cessionário se determinar a contratar.
8) Sendo a exceptio meramente dilatória, não existe abuso na circunstância de o cessionário continuar na detenção do locado enquanto aguarda o seu licenciamento.
II. Quanto ao pedido reconvencional e sua apreciação simultânea:
9) Uma vez que ambas as partes imputaram incumprimento contratual à outra, o pedido reconvencional insere-se no estatuído na alínea c) do nº 1 do artº 274º do então vigente CPC e, como tal, ambas as pretensões deveriam ter sido apreciadas conjuntamente, para se avaliar se houve incumprimento, qual das partes incumpriu e, se porventura incumpriram ambas, se alguma delas tem direito à resolução do contrato.
10) Se o concedente reconvindo omitiu na celebração do negócio condições essenciais para a determinação da ré em contratar; se o concedente induziu a concessionária em erro; se o concedente não agiu de boa-fé, conforme podia e devia; se a exploração era precária; se o estabelecimento estava na iminência de ser encerrado; ou seja, se o autor incumpriu as suas obrigações contratuais, que eram contrapartida do pagamento da renda (como o Mmº Juiz concluiu e exarou na sentença), então é forçoso concluir que era à concessionária que assistia o direito de resolver o contrato com base no incumprimento continuado e grave do concedente e de pedir a inerente indemnização pelos danos causados.
11) No domínio de um contrato cujo regime não se encontra tipificado no Código Civil nem em diploma avulso, como é o caso do contrato de cessão de exploração, a simples mora não dá ao credor direito à resolução do contrato, que só pode obter se lançar mão do preceituado no artº 808º do Código Civil.
12) A apreciação conjunta de todos os incumprimentos teria permitido ao Ilustre Julgador, ao debruçar-se sobre a perda objectiva de interesse na manutenção do contrato, apreciar – como apreciou – a circunstância de a ré não estar a pagar as rendas, mas sopesá-la com as circunstâncias – que nesse momento não apreciou – relativas ao incumprimento do próprio autor, alcançando desta forma a conclusão, inelutável, de que ao autor não assistia o direito de resolver o contrato com base na perda objectiva de interesse.
13) Acresce que, não sendo a concessão de exploração, sequer conceptualmente, uma verdadeira e própria locação e, portanto, sendo-lhe aplicável o regime geral dos contratos, não poderia o tribunal substituir-se à parte, ainda que a pedido desta, declarando o tribunal a resolução, ou seja, manifestando uma vontade que só a parte contratante poderia manifestar.
III. Quanto ao pedido de indemnização por danos da reconvinte:
14) A reconvinte alegou que se o estabelecimento vier a encerrar por determinação das autoridades competentes, ou se vier a verificar, no decurso da acção, que o autor não irá, ou não conseguirá, de todo licenciar o estabelecimento, o Autor será obrigado a reparar os danos causados, que consubstanciou na perda de clientela e na perda dos lucros que auferiria até à data final do contrato.
15) Sendo tais danos objectivos, embora ainda não quantificados, por absoluta impossibilidade de os quantificar antecipadamente, uma vez encerrado o estabelecimento e reconhecida a culpa do contraente reconvindo, assiste à reconvinte o direito a ser indemnizada por tais danos, sérios, efectivos, reais, alegados e emergentes do desfecho da lide, mas que é mister relegar para liquidação em sede de execução de sentença, por antes não serem quantificáveis.
IV. Quanto às normas jurídicas aplicadas e aplicáveis:
16) Ao decidir de forma contrária à por nós propugnada, relativamente a todas as questões elencadas nas antecedentes conclusões, a sentença recorrida, apesar de douta, terá aplicado indevidamente as normas atinentes aos contratos de locação e arrendamento, que não são aplicáveis sequer de forma extensiva ou analógica ao contrato de cessão de exploração.
17) Ao concitar a disciplina da locação propriamente dita para a solução dum diferendo emergente dum contrato de cessão de exploração, o Mmº Juiz a quo terá utilizado e aplicado indevidamente, pelo menos, as normas dos artºs 1022º, 1031º e 1038º do Código Civil.
18) Muito em especial, ao utilizar o critério do artº 1083º nº 3 do Cód. Civil para aferir da perda do interesse objectivo do contraente duma cessão de exploração, o Mmº Juiz a quo terá lançado mão de instituto inaplicável ao caso dos autos.
19) Mostra-se ainda incorrectamente valorada e aplicada no caso dos autos a norma do artº 428º do Cód. Civil, que prevê a exceptio non adimpleti contractus, assim como não foi correctamente apreciada a perda objectiva de interesse no cumprimento do contrato, estatuída no artº 808º do Cód. Civil.
20) Ao não considerar alegados os danos que sustentam a indemnização peticionada pela reconvinte e por isso não relegar a sua liquidação para execução de sentença, terá o Mmº Juiz a quo desaplicado indevidamente o comando normativo do artº 661º nº 2 do CPC então vigente.
21) Ao declarar a resolução do contrato de cessão de exploração, substituindo-se assim à parte a quem cabia previamente ter feito tal declaração, porque o regime da locação do Código Civil não é aplicável ao instituto da cessão de exploração, o Mmº Juiz a quo terá conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento, incorrendo assim na nulidade ao artº 668º nº 1, al. d) do então vigente CPC.
Nestes termos e nos melhores de Direito, (…), deverá a douta sentença final ser revogada, no que concerne à procedência do pedido principal e à parcial improcedência do pedido reconvencional, devendo ser julgado inteiramente improcedente o pedido principal e serem julgados procedentes os pedidos reconvencionais subsidiariamente formulados de indemnização e condenação do autor nas custas”.

O autor contra-alegou em defesa da confirmação da sentença recorrida.
* * *
II. Questões a apreciar e decidir:

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente e não podendo este Tribunal, em princípio, conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não ocorrem, as questões que importa apreciar e decidir consistem em saber:
● Que contrato celebraram as partes e seu regime legal;
● Se a 1ª ré pode opor ao autor a excepção do não cumprimento do contrato, como fundamento/justificação da recusa no pagamento das rendas;
● Se o autor pode obter a resolução do contrato;
● Se a 1ª ré tem direito a ser indemnizada pelos danos que reclamou na reconvenção [na parte desatendida na sentença].
* * *
III. Factos provados:

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos [que não vêm postos em causa; aditam-se agora, nos locais próprios, as partes relevantes dos documentos que vêm indicados]:
1. A Autora é dona e legítima proprietária de um estabelecimento de snack-bar sito na sede das suas instalações na Rua …, sem número de polícia, na Póvoa de Varzim.
2. A 1ª Ré é a locatária do estabelecimento acima melhor identificado destinando-se tal locação à exploração e funcionamento do snack-bar aí existente.
3. A 2ª Ré é a fiadora da 1ª Ré na locação de estabelecimento celebrada entre Autora e 1ª Ré.
4. Na qualidade invocada no item 1, a Autora, na pessoa do seu representante legal, locou à 1ª Ré, também na pessoa do seu representante legal, que assim o tomou, o aludido snack-bar, por contrato escrito celebrado em 31 de Outubro de 2009.
5. Incluíram-se neste contrato, a utilização pela 1ª Ré de todos os móveis, máquinas e utensílios que compunham o aludido estabelecimento, intervindo como outorgante neste contrato, a 2ª Ré que se obrigou na qualidade de fiadora perante todas as obrigações da 1ª ré decorrentes do contrato, e expressamente renunciou ao princípio da excussão prévia - vide cláusula sétima do referido contrato de locação de estabelecimento.
6. Tal contrato de locação de estabelecimento, foi celebrado pelo prazo de cinco anos, com início no dia 1 de Novembro de 2009, e termo em 31 de Outubro de 2014, renovável por períodos sucessivos de três anos, se nenhuma das partes entretanto o denunciasse.
7. A contrapartida monetária contratualmente acordada pela referida locação de estabelecimento foi convencionada em € 12.000,00 (doze mil euros) anuais, repartidos em duodécimos mensais de € 1.000,00 (mil euros), valores estes a que acresce o IVA à taxa legal, a pagar no primeiro dia útil do mês a que respeitar, na sede da Autora, contra recibo.
8. Pelo contrato em causa, acordaram as partes no ponto nº 2 da cláusula primeira, que caberia, ainda à Ré o pagamento das despesas dos consumos que faz de água, luz e gás.
9. A renda convencionada não sofreu, ainda, até ao momento, qualquer actualização.
10. A 23 de Agosto de 2010, a 1.ª Ré foi surpreendida com a recepção de uma carta registada enviada pela Câmara Municipal …, cujo assunto é (a) proposta de cessação de utilização referente ao estabelecimento comercial do qual é locatária, cfr. documento 1, junto com a contestação - fls. 61, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais [Consta deste documento, designadamente, que “A ordem de cessação da utilização, nos termos e com os efeitos previstos no nº 1 do art. 109º do Decreto-lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, fundamenta-se no facto de, no local em referência se encontra instalado, em funcionamento e aberto ao público um estabelecimento de restauração e bebidas, sem que possua a devida licença”].
11. A Autora enviou as Rés a declaração emitida pela Câmara Municipal … na qual o estabelecimento em causa se encontra dispensado de licença municipal, cfr. documento 2, junto com a contestação - fls. 62, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais [Das als. B. e C. de tal declaração, datada de 26/03/2009, consta, respectivamente, “que o imóvel construído no âmbito desta empreitada incluía um espaço destinado à instalação de um estabelecimento de bebidas” e “que, uma vez que a obra de construção do imóvel vindo de identificar foi levada a efeito por esta autarquia, esteve a mesma dispensada de licenciamento municipal, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro), pelo que a sua utilização não está igualmente sujeita a licenciamento nos termos do mencionado diploma legal”].
12. A 2ª Ré solicitou ao Presidente da Câmara Municipal … fotocópia simples do processo relativo ao estabelecimento comercial, cfr. documento 5, junto com a contestação - fls. 64 [e não 63 como, por manifesto lapso, consta da sentença], cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais [O teor deste documento é o seguinte: “Exmo. Senhor, venho pelo presente solicitar fotocópia simples do processo D/1096/08 – Not. 4416/10”].
13. Em finais de Fevereiro de 2011, a 1.ª Ré enviou uma carta registada com aviso de recepção ao Autor, na qual dava conhecimento ao mesmo dos danos sofridos, resultantes do corte de abastecimento de energia, no período de 6 de Dezembro de 2010 a 9 de Janeiro de 2011.
14. Desde Agosto de 2010 as Réus não pagaram à Autora as rendas.
15. A 1ª Ré obrigava-se a efectuar as obras indispensáveis à conservação e manutenção, bem como à limpeza do locado.
16. O mesmo sucedendo em relação à 2ª Ré.
17. Sendo a Autora B… conhecida como pessoa colectiva de utilidade pública, tem de satisfazer os seus compromissos mensais de pagamento de salários a atletas, treinadores, professores, funcionários e pagamentos a fornecedores, bem como continuar a prestar o serviço que há mais de 60 anos presta à comunidade local.
18. Tornando-se essencial o pagamento das rendas pelas Rés.
19. Não fosse o pagamento das rendas pela Ré, não teria a Autora celebrado tal contrato, atento o facto desse espaço poder ser-lhe útil para outros fins mais adequados e adaptados à sua finalidade social.
20. A falta do recebimento do valor das rendas tem causado ao Autor dificuldades no pagamento dos seus encargos, cuja situação financeira se tem vindo a agravar.
21. Aquando da celebração do contrato de cessão e exploração / locação, o Autor informou as Rés através da sua direcção que o imóvel onde se encontra o estabelecimento comercial locado tinha sido construído pelo Município e, nessa medida, não tinha carecido de quaisquer licenças.
22. E informou as rés de que, por ser um edifício construído por entidade pública, se encontrava dispensado de licenciamento municipal.
23. A 1ª Ré outorgou o contrato, enquanto locatária, convicta de que o locado se encontrava licenciado para o exercício da actividade a que contratualmente se destinava, o que foi determinante para a celebração do contrato.
24. A 1ª ré, logo que iniciou a laboração no estabelecimento, afixou no mesmo, de forma bem visível, o documento junto a fls. 62 assinado pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal …, cujo teor se dá por reproduzido, que lhe foi fornecido pelo autor.
25. Quando o contrato foi celebrado entre Autora e Ré, o estabelecimento já estava em funcionamento há muitos anos.
26. A 1ª Ré tomou conhecimento da falta de licença de utilização do estabelecimento locado, pelo menos, desde a recepção da carta referida na al. J) [ora no nº 10].
27. Foi nessa sequência que a 1ª Ré solicitou ao Presidente da Câmara Municipal … a documentação referida em M) [ora nº 12] relativa ao estabelecimento comercial locado.
28. Pelo menos, desde aí a 1ª Ré ficou a saber que a C. M. … instado o autor a legalizar o estabelecimento para a pretendida utilização como estabelecimento de restauração, nomeadamente através da carta datada de 29.8.2008 que constitui o documento junto a fls. 352 a 353 cujo teor se dá por reproduzido, e havia comunicado ao autor a intenção da autarquia em proceder ao encerramento do estabelecimento locado por falta de licença de utilização, nomeadamente através das cartas que constituem os documentos juntos a fls. 356, 370 e 264, cujo teor se dá por reproduzido, datadas de, respectivamente, 21.1.2009, 24.3.2010 e 23.8.2010 [Do doc. de fls. 352-353 destacam-se os seguintes excertos: “… cumpre informar que: 2.1. as obras de construção do edifício foram promovidas pela autarquia – (…) – e estão, de acordo com o disposto na alínea a) do nº 1 do art. 7º do DL 555/99, de 16.12, (…), isentas de licença administrativa; 2.2. o alvo da pretensão – emissão de alvará de utilização de estabelecimento de restauração – carece de licenciamento específico para a instalação, pelo que o requerente deverá apresentar um pedido de licença de obras de instalação do estabelecimento, em conformidade com o definido no art. 9º do DL 555/99 (…), devidamente instruído com os elementos definidos no art. 11º da Portaria 232/2008, de 11.03 e em cumprimento do disposto no Regime Jurídico da Instalação e do Funcionamento dos Estabelecimentos de Restauração ou de Bebidas (DL 234/2007, de 19.06)”. Do doc. de fls. 356 consta, nomeadamente, que “fica V. Exa. notificado para, querendo, no prazo de dez dias, a contar da recepção do presente ofício, dizer o que se lhe oferecer acerca da projectada ordem de cessação de utilização (…) do estabelecimento sito na Rua …, s/n, nesta cidade” e que “caso não se pronuncie no prazo supracitado, a ordem de cessação de utilização assume carácter definitivo”. No doc. de fls. 370 diz-se, designadamente, que “notifico V. Exa. a cessar a utilização do estabelecimento (…), devendo a mesma ocorrer no prazo de 15 dias” e que “caso não cesse a utilização do estabelecimento, no prazo fixado, será determinado o despejo administrativo (…)”. O doc. de fls. 264 é igual ao de fls. 61, já referido no nº 10 supra].
29. Pelo menos a partir da consulta de tal documentação referida em M) [ora nº 12], a 1ª Ré ficou a saber que o estabelecimento poderia ser encerrado compulsivamente pela autarquia ou por outras entidades competentes, a qualquer momento.
30. A 1.ª Ré deixou de efectuar o pagamento das rendas desde Agosto de 2010, invocando para o efeito que a autora não lhe facultava a licença de utilização do estabelecimento locado.
31. Autora e 1ª Ré acordaram que os atletas do B… fariam as suas refeições que são custeadas pelo B…, no estabelecimento comercial locado e, em contrapartida, o valor destas mesmas refeições seria mensalmente descontado no valor da renda mensal estipulada, o que ocorreu até Agosto de 2010.
32. A partir de Setembro de 2010, os atletas do B… deixaram de fazer as suas refeições no estabelecimento comercial locado.
33. O autor ainda não emitiu nem apresentou às RR. as facturas correspondentes às mensalidades de Agosto de 2010 em diante.
34. O estabelecimento comercial explorado pela 1.ª Ré recebe a energia eléctrica a partir de um quadro eléctrico que alimenta energeticamente todo o edifício do Autor, o qual se encontra na sala das máquinas das piscinas do B… e no mesmo Edifício.
35. O quadro eléctrico servia tanto o Autor como a 1.ª Ré.
36. O quadro eléctrico em questão deixou de funcionar durante cerca de 30 dias situados entre os meses de Dezembro de 2010 e Janeiro de 2011, em consequência do que o estabelecimento locado deixou de receber energia eléctrica, o que lhe causou a perda de bens consumíveis susceptíveis de deterioração em valor não apurado.
37. Em consequência do referido na resposta aos artigos 27º e 28º, a 1ª ré teve de cancelar diversos jantares já agendados, com o que teve uma perda de rendimentos em montante não apurado; teve uma quebra de facturação de montante não apurado pelo período de 1 mês, devido ao encerramento das piscinas do B… e sofreu uma perda de lucros, em valor não apurado, relativos ao período de 4 dias em que o estabelecimento locado esteve encerrado.
38. À data de 31 de Outubro de 2009, a 2ª Ré, D…, participava, na qualidade de directora, nas reuniões da direcção do autor, as quais se realizavam semanalmente.
* * *
IV. Apreciação jurídica:

1. Qualificação do contrato que as partes celebraram e seu regime legal.
A recorrente não questiona a natureza do contrato que está em causa nos autos, pois aceita que se trata de um contrato de cessão de exploração de estabelecimento, também designado de contrato de locação de estabelecimento, tal como o definiu a douta sentença ao exarar que “a qualificação jurídica de «contrato de locação de estabelecimento» dada pelas partes ao contrato formalizado pelo documento junto a fls. 17 a 19 que ambas outorgaram em 31.10.2009, não merece reparo, e poder-se-á, sinteticamente, definir como o contrato pelo qual uma pessoa transfere, temporária e onerosamente, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial, industrial ou de serviços nele instalado – art. 1109º do Código Civil”.
Não há dúvida que foi este o contrato que o B… autor e a 1ª ré [a 2ª ré também nele outorgou, mas como fiadora da co-ré] celebraram, já que:
● o 1º era o titular do estabelecimento em causa, já então existente – um snack-bar [o conceito de estabelecimento vem sendo definido como estrutura material e jurídica em regra integrante, em regra, de uma pluralidade de coisas corpóreas e incorpóreas – coisas móveis e ou imóveis, incluindo as próprias instalações, direitos de crédito, direitos reais e a própria clientela ou aviamento – organizados com vista à realização do respectivo fim [cfr. Aragão Seia, in “Arrendamento Urbano – Anotado e Comentado”, 7ª ed., pgs. 649-650, Pinto Furtado, in “Manual de Arrendamento Urbano”, vol. II, 4ª ed. actual., pgs. 759-760, Januário Gomes, in “Arrendamentos Comerciais”, 2ª ed. remodelada, pgs. 61 e segs., Mendes de Almeida e Amândio Canha, in “Negociação e Reivindicação do Estabelecimento Comercial”, 1993, pgs. 7-11 e Acs. do STJ de 28/06/2007, proc. 07B1532, de 08/05/2008, proc. 08B1182 e de 20/03/2012, proc. 1903/06.4TVLSB.L1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj];
● foi acordada no contrato, além da transferência do gozo do imóvel, a cedência, à 1ª ré, da exploração do estabelecimento comercial que nele funcionava;
● esta cedência foi feita com carácter temporário, devidamente delimitado [pelo prazo de cinco anos, prorrogável por períodos sucessivos de três anos enquanto nenhuma das partes o denunciasse];
● e foi também feita a título oneroso [a 1ª ré obrigou-se a pagar ao autor uma determinada renda mensal.

O que a recorrente questiona é o regime jurídico de tal contrato, ou seja, as normas por que se rege [cfr. conclusões 1) e 2) das alegações].
Se alguns, no passado [até à entrada em vigor do NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27/02], consideraram o contrato de locação de estabelecimento como contrato nominado e típico - embora insuficientemente regulado [assim, Coutinho de Abreu, in “Da Empresarialidade – As Empresas no Direito”, 1996, pgs. 309-310], outros, a grande maioria, entendiam-no como contrato inominado e atípico [cfr. Aragão Seia, obr. e loc. cit., Acs. do STJ de 18/03/2004, proc. 04B627 e desta Relação do Porto de 03/04/2008, proc. 0830206, disponíveis, respectivamente, in www.dgsi.pt/jstj e www.dgsi.pt/jtrp].
Hoje, porém, face ao que consta, designadamente, dos arts. 1109º e 1110º do CCiv. [actual redacção], parece prevalecer o primeiro entendimento, já que se trata de contrato legalmente previsto/definido e minimamente regulado, na medida em que o nº 1 daquele primeiro preceito estabelece que se rege “pelas regras da presente subsecção, com as necessárias adaptações” e do nº 1 do segundo decorre que, pelo menos, “as regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação” do contrato “são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação”.
Esta consagração legal – de que o disposto quanto ao arrendamento para habitação se aplica subsidiariamente [à falta de convenção das partes] aos contratos enquadráveis na previsão dos arts. 1108º e segs. do CCiv., onde se inclui o contrato de locação de estabelecimento, pelo menos nas matérias indicadas no nº 1 do art. 1110º - veio afastar algumas vozes que, no regime anterior [antes da entrada em vigor do NRAU], defendiam que aos contratos da natureza do dos autos não eram aplicáveis as normas do contrato de arrendamento [pelo carácter vinculístico destas] e leva à constatação de que não assiste razão à recorrente quando, peremptoriamente, afirma que actualmente [e face à data da celebração do contrato dos autos não há dúvida que se aplica «in casu» o regime decorrente do NRAU, com as alterações que introduziu no CCiv.] “o regime dos contratos de arrendamento não é aplicável, sequer por analogia, aos contratos de cessão de exploração” [conclusão 2) das doutas alegações]; esta alteração de paradigma [no regime jurídico da locação de estabelecimento] não é estranha à redução [quase exclusão] do carácter vinculístico nas normas que hoje regem o contrato de locação, decorrente das alterações introduzidas pelo NRAU [Pinto Furtado, na obra supra citada, vol. II, pg. 761, diz, a propósito da parte final do nº 1 do art. 1109º do CCiv., que “no Anteprojecto explicado, do Projecto da frustrada Reforma de 2004, tinha-se anotado que, se antes se pretendia excluir esta locação do vinculismo, com a extinção deste só haveria agora que «reconstituir a harmonia do sistema» - e é certamente o mesmo objectivo que preside à disposição ora em vigor, que praticamente o reproduziu com ligeira adaptação”.
Aliás, mesmo ao abrigo do RAU [que vigorou até à entrada do NRAU] o entendimento da recorrente não era defensável nos termos absolutos em que o apresenta.
Na doutrina havia quem entendesse que as causas de extinção do contrato de arrendamento previstas no RAU, à excepção do art. 68º, eram subsidiariamente aplicáveis ao contrato de locação de estabelecimento [assim, Fernando Cardoso, in “Reflexões Sobre o Estabelecimento Comercial ou Industrial e Respectivo Contrato de Aluguer”, 1991, pgs. 93 e segs.] e quem defendesse que este contrato era “um contrato de tipo locativo, abrangido pela ampla descrição tipológica do art. 1022º do Código Civil, sendo-lhe, portanto, aplicáveis as disposições gerais da locação”, acrescentando, porém, que não lhe eram aplicáveis o “regime de actualização de rendas” ou o disposto nos “arts. 47º a 49º, 50º a 73º ou 110º a 116º do RAU”, mas que lhe era aplicável o “disposto no nº 2 do art. 1037º do Cód. Civil”, no “art. 1051º” [“mas já não, em relação à situação da al. a), dos arts. 1054º e 1055”], “dos arts. 1032º a 1035º, e em geral de todos os dispositivos da locação que não se mostrem em concreto incompatíveis com o facto de a locação de estabelecimento constituir (…), dentro do tipo locativo, um novo tipo contratual – rectius, sub-tipo, no confronto com a locação em geral” [assim, Januário Gomes, obr. cit., pg. 72 e, em parte, também Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed., pg. 352 e Pinto Furtado, in “Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos”, 2ª ed., pg. 397].
Na jurisprudência predominou o entendimento de que os contratos de locação de estabelecimento se regiam, em primeiro lugar, pelas cláusulas acordadas pelas partes, de harmonia com a liberdade contratual e, subsidiariamente, pelas normas do contrato típico de estrutura mais próxima, considerando-se como tal o de arrendamento comercial e, na sua falta, pelas regras comuns dos contratos [neste sentido, i. a., Acs. do STJ de 18/03/2004 e de 08/05/2008, supra citados e da Relação de Lisboa de 04/03/2010, proc. 348/08.2TBPDL.L1-6, disponível in www.dgsi.pt/jtrl].

«In casu» está, primordialmente, em questão a resolução do contrato e mais concretamente se a falta de pagamento de rendas é causa dessa resolução.
Sem entrarmos, ainda, na análise desta concreta questão, diremos, por ora, que à falta de estipulação no contrato que as partes celebraram [nada convencionaram sobre este assunto] e não integrando esta matéria o que se encontra previsto no nº 1 do art. 1110º do CCiv., a respectiva solução terá de ser encontrada por recurso às regras que regulam o arrendamento comercial ou, na sua falta, às regras gerais dos contratos.
*
*
2. Se a 1ª ré pode opor ao autor a excepção do não cumprimento do contrato, como fundamento/justificação da recusa do pagamento das rendas.
Nas conclusões 3) a 8) das doutas alegações, a recorrente discorda do segmento da sentença que considerou inoponível ao autor a excepção do não cumprimento do contrato que invocou [com a co-ré] na contestação.
Sem questionar que deixou de efectuar o pagamento das rendas desde Agosto de 2010, aquela excepcionou, chamando à colação o disposto no art. 428º do CCiv., que lhe assistia/assiste o direito à recusa do pagamento dessas rendas, por o autor não lhe ter entregue a licença de utilização do estabelecimento e enquanto tal se mantiver, tanto mais que sem essa licença não lhe é permitido o exercício da actividade que leva a cabo no estabelecimento dentro dos parâmetros da lei, podendo, a qualquer momento, ver o mesmo encerrado por determinação das autoridades competentes.
Há, então, que verificar se ocorrem os pressupostos da invocada «exceptio» que legitime a provada falta de pagamento das rendas, por parte da recorrente, desde Agosto de 2010.

Tal excepção, conhecida pelo brocado latino «exceptio non adimpleti contractus» [quando reportada ao incumprimento parcial ou defeituoso é designada por «exceptio non rite adimpleti contractus»], encontra-se [genericamente] prevista e regulada nos arts. 428º a 431º do CCiv., dispondo o nº 1 do primeiro destes preceitos que “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
Trata-se de figura que tem o seu campo de aplicação nos contratos sinalagmáticos, permitindo que uma das partes recuse a realização da sua prestação enquanto a outra não cumprir a contraprestação respectiva.
Constitui excepção dilatória de direito material, na medida em que, por um lado, se funda em razões de direito material ou substantivo e, por outro, não exclui definitivamente o direito da parte contra quem é oposta, paralisando-o apenas temporariamente - o «excipiens não nega o direito da parte contrária nem põe em causa o dever de cumprir a prestação; pretende tão-só realizar a sua prestação quando o outro contraente levar também a cabo a respectiva contraprestação. Ou, dito de outro modo, tal «exceptio» não legitima o incumprimento definitivo do contrato, mas tão só o cumprimento dilatório daquele como forma de coagir o contraente faltoso a cumprir também aquilo que tem que cumprir; tal meio de defesa tem como efeito principal a dilação do tempo de cumprimento da obrigação de uma das partes até ao momento do cumprimento da obrigação da outra: o exercício da excepção não extingue o direito de crédito de que é titular o outro contraente. Apenas o neutraliza, ou melhor, apenas o paralisa temporariamente. Trata-se, pois, de uma medida de efeitos temporários, que não destrói o vínculo contratual, apenas produz uma suspensão dos seus efeitos.
E não é de conhecimento oficioso, tendo de ser invocada expressamente pela parte que dela se quer aproveitar.
Justifica-se por razões de boa fé, de equidade e de justiça, uma vez que visa evitar que uma das partes tire vantagens sem suportar os encargos correlativos. Para que não seja contrária à boa fé, a «exceptio» só pode operar quando se verifique uma tripla relação entre o incumprimento [total, parcial ou defeituoso] do outro contraente e a recusa de cumprimento por parte do excipiente: uma relação de sucessão, uma relação de causalidade e uma relação de proporcionalidade. A primeira significa que não pode recusar a prestação, invocando a «exceptio», a parte no contrato que primeiramente caiu em incumprimento. A segunda significa que deve haver um nexo de causalidade ou de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação do excipiente. A terceira significa que a recusa do «excipiens» deve ser equivalente ou proporcionada à da contraparte que reclama o cumprimento, de tal modo que, se a falta for de pouca relevância, não será legítimo o recurso à «exceptio».
Esta desempenha uma dupla função: de garantia e de coerção. No primeiro caso, porque permite ao «excipiens» garantir-se com as consequências, presentes ou futuras, do não cumprimento; no segundo, porque constitui também um meio de pressão sobre o inadimplente, já que este só terá direito a haver do outro a contraprestação se e quando cumprir a prestação a seu cargo [sobre todas estas características de ordem genérica, vejam-se Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., pgs. 408 a 414; Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed. revista e actualizada, pgs. 405 a 407; Calvão da Silva, in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 1987, pgs. 329 a 338 e José João Abrantes, in “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português – Conceito e Fundamento”, 1986, pág. 128].

Não vem questionado e está provado que o estabelecimento cuja exploração foi cedida pelo autor à recorrente se destinou à actividade de restauração [snack-bar], que o alvará ou licença de utilização era e é necessário para o exercício dessa actividade [é imposição do art. 10º do DL 234/2007, de 19/06, que aprovou o regime de instalação e funcionamento dos estabelecimentos de restauração ou de bebidas que ainda vigora] e que o autor [a quem competia diligenciar pela obtenção dessa licença e a quem a competente Autarquia a vinha exigindo desde finais de Agosto de 2008, quando o estabelecimento era ainda explorado por ele] não diligenciou pela obtenção do respectivo alvará de utilização [e, consequentemente, não o entregou à recorrente], nem antes, nem depois da celebração do contrato aqui em apreço, ou sequer mesmo depois de ter sido interpelado pela ré locatária/cessionária para esse efeito, na sequência da missiva que esta recebeu da Câmara Municipal …, em 23/08/2010, mencionada no nº 10 dos factos provados.
Porque foi devido a este circunstancialismo que a recorrente deixou de pagar as rendas a partir, precisamente, de Agosto de 2010, conforme decorre, nomeadamente, dos nºs 14 e 30 do ponto III, questiona-se então se o mesmo é ou não suficiente para justificar a recusa da prestação que estava a cargo daquela, permitindo-lhe opor ao B… autor a «exceptio» em apreço?
Na douta sentença respondeu-se negativamente a esta questão, exarando-se o seguinte:
“Conforme resulta do teor deste normativo [art. 428º do CCiv.], a exceptio non adimpleti contractus nele estatuída exige a reciprocidade entre as prestações dos contraentes - A. Varela e P. de Lima in Código Civil. Anot. vol I pg. 405.
Assim e como se refere no ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11-10-2007, proc. 07B2934 - www.dgsi.pt - «Não basta que o contrato seja bilateral para que se possa invocar a excepção de não cumprimento do contrato; necessário se torna ainda que entre as obrigações haja correspectividade, que uma seja a causa da outra. Mais aí se refere, citando Antunes Varela - Das Obrigações em Geral, 9.ª Ed., pág. 407 - que ‘a obrigação de pagar a renda, imposta ao locatário, faz parte do sinalagma contratual, na medida em que se contrapõe à obrigação fundamental, imposta ao locador, de proporcionar o gozo da coisa (…) o sinalagma liga entre si as prestações essenciais de cada contrato bilateral, mas não todos os deveres de prestação dele nascidos’».
Conclui-se assim no citado aresto que, em face desta doutrina, se tem entendido que no contrato de arrendamento o pagamento da renda tem como correspectivo a cedência do arrendado.
No caso em apreço resulta da matéria apurada que apesar da falta de licença de utilização a 1ª ré continuou a gozar/explorar o locado depois de ter deixado de pagar as rendas em Agosto de 2010, dele continuando a retirar os correspondentes proveitos/benefícios.
É certo que a exploração do locado se poderá considerar como precária na medida em que, devido à falta de tal licença, a 1ª Ré ficou a saber que o estabelecimento poderia ser encerrado compulsivamente pela autarquia ou por outras entidades competentes, a qualquer momento.
Todavia nada resulta da matéria provada no sentido de que a ré tenha sido privada de explorar/gozar o locado por tal falta de licenciamento, caso em que lhe assistiria, então, o invocado direito ao não pagamento da renda.
Poderia assistir à ré nos termos gerais - artigos 798º e 801º do Código Civil - o direito a resolver o contrato assim como a ser indemnizada pelos prejuízos daí resultantes, com fundamento no referido incumprimento do autor.
Poder-lhe-ia ainda assistir, na medida em que nada permite concluir pela impossibilidade da obtenção da licença de utilização em apreço, o direito a exigir do autor a realização das obras e diligencias necessárias para a sua obtenção, com a consequente manutenção do contrato, desde que cumprisse igualmente com a contraprestação de pagamento das rendas porquanto que optou por continuar a explorar o estabelecimento apesar de ter ficado a saber que o mesmo não dispunha de tal licença.
Já não poderá, em nosso entendimento, continuar a usufruir da exploração do locado que lhe é concedida pelo autor/locador, daí retirando os inerentes benefícios, e simultaneamente recusar o pagamento da renda convencionada por tal exploração, sob pena de se permitir que a manutenção da ilegalidade resultante da exploração comercial não licenciada aproveite e interesse ao locatário/explorador, que assim passaria a usufruir do património do locador de forma gratuita e por tempo indeterminado, o que, a nosso ver, constituiria um verdadeiro locupletamento injusto e injustificado à custa de património alheio.
Assim e concluindo se dirá que no que toca ao contrato de locação em apreço, a reciprocidade/correspectividade de prestações pressuposto da excepção de não cumprimento do contrato prevista e estatuída pelo citado art. 428º do Código Civil, existe entre a prestação do autor em proporcionar à ré o gozo do estabelecimento locado e a obrigação desta em pagar-lhe a renda convencionada, pelo que não assistirá ao locatário o direito à recusa do pagamento da renda, nomeadamente por falta de licenciamento, enquanto continuar a usufruir da exploração do locado.”

Divergimos, com o devido respeito, desta fundamentação do Tribunal «a quo», por nos parecer que não atentou no ponto fulcral da figura jurídica em apreço, nem no que, verdadeiramente, as rés visaram com a sua invocação.
Efectivamente, ao chamarem à colação a «exceptio» em referência, não pretenderam aquelas, nem agora a recorrente, a declaração da extinção da obrigação do pagamento das rendas a seu cargo, nem mesmo das que a 1ª ré deixou de pagar [desde Agosto de 2010], nem a consequente extinção do correspondente direito de crédito do autor; visaram apenas neutralizar temporariamente aquela obrigação e este direito. Ou seja, o que as rés e agora a recorrente almejam com a invocação da dita «exceptio» não é que se declare que não têm que pagar ao autor as rendas que estão em falta [que a recorrente deixou de pagar por este não ter diligenciado pela obtenção da licença/alvará de utilização/funcionamento do estabelecimento objecto do contrato], mas apenas e só que se reconheça que têm direito a não efectuar – melhor, a retardar - o pagamento das rendas enquanto o demandante não cumprir o dever a que está obrigado: o de diligenciar pela obtenção daquela licença. Assim que este cumprir esta obrigação, a recorrente volta a estar obrigada não só ao pagamento das rendas que se vencerem a partir daí, como das que deixou de pagar - ou cujo pagamento retardou - desde Agosto de 2010. Que isto é assim decorre, não só, da leitura da contestação-reconvenção [essencialmente dos seus arts. 25 e 51], como também do que consta do corpo das doutas alegações, onde se diz que “não está a ocorrer um verdadeiro desequilíbrio das contraprestações sinalagmáticas, posto que a devida pelo excipiente só não está, de momento, a ser cumprida, com o fito de compelir a contraparte a cumprir a sua” e que “o pagamento não é realizado, mas é meramente diferido”.
Ora, encarada assim a realidade apurada nos autos e a pretensão da ora recorrente, surge cristalino que se mostram verificados os pressupostos de funcionamento da «exceptio» em apreço e que não ocorre a objecção salientada na douta sentença: que não se verificaria a relação de equivalência ou proporcionalidade entre o não cumprimento da obrigação a cargo do autor [diligenciar pela obtenção da licença de utilização do estabelecimento] e o não cumprimento [esta expressão é aqui e ali utilizada em sentido amplo e não no seu sentido técnico] da obrigação a cargo da recorrente [não pagamento, no sentido de retardamento, das ditas rendas]. Sendo verdade que esta continua a usufruir da exploração do estabelecimento [tem estado aberto ao público e em funcionamento, apesar da falta da referida licença e das «ameaças» de encerramento por parte do Município] e a obter, fazendo-os seus, os proventos dessa actividade, verdade é também que não se exime definitivamente ao pagamento das rendas vencidas e não pagas e apenas vê legitimado o direito em retardar o respectivo pagamento até que o recorrido providencie pela obtenção da licença em falta [quando isso acontecer e se o contrato não se extinguir por outros motivos, terá, não só, que pagar as rendas que se vencerem a partir daí, como as que agora estão em causa], não se vislumbrando, assim, a desproporcionalidade a que alude a decisão recorrida.
Deste modo, o recurso procede nesta parte.
*
*
3. Se o autor pode obter a resolução do contrato.
Nas conclusões 9) a 13), a recorrente insurge-se contra o deferimento do pedido de resolução do contrato formulado pelo autor, com fundamento no não pagamento das apontadas rendas; fá-lo com base em dois argumentos: que quem estava em mora, desde o início do contrato, era o autor, por inobservância do dever de licenciamento da utilização do estabelecimento, e que, por isso, não tinha o direito de resolver [ou ver resolvido a seu pedido] o contrato; e que, quando muito, incorreu em simples mora, pelo não pagamento nas rendas, o que não confere ao recorrido aquele direito que só poderia ser exercido depois da conversão da mora em incumprimento definitivo, por não ter aqui aplicação o regime previsto no CCiv. para a resolução do contrato de arrendamento.
O Tribunal «a quo», apesar de ter constatado que “Da matéria exposta resulta assim que o autor sabia à data da outorga do contrato - 31.10.2009 -, que o estabelecimento locado não dispunha de licença para a contratualmente pretendida utilização como estabelecimento de restauração, e ainda assim omitiu tal facto à ré, convencendo-a que o mesmo se encontrava dispensado de licenciamento municipal, confundindo assim, dolosa ou negligentemente, o licenciamento das instalações do edifício - dispensado de licenciamento para a prática desportiva do B… autor - com o licenciamento da actividade de restauração a exercer no bar do edifício cuja exploração cedeu/locou à sociedade comercial ré” e que “o autor, ao omitir e mesmo induzir em erro a ré quanto à falta de licenciamento do locado, não agiu de boa-fé conforme podia e devia”, concluiu que “Resultando provado que a 1ª ré/locatária não paga, de forma injustificada, as rendas contratualmente previstas desde Agosto de 2010, constitui(u)-se a mesma em mora e consequentemente em incumprimento contratual, o qual justifica plenamente a perda de interesse na manutenção do contrato invocada pelo autor, até porque o tempo da mora ultrapassou já em muito o período de 3 meses tidos pelo legislador - art. 1083º nº 3 do Código Civil - como prazo razoável para a perda do interesse do locador na manutenção do contrato em caso de locação de prédios para habitação, critério objectivo este que não vemos razão para deixar de aplicar na apreciação - nos termos previstos pelo art. 808º nº(s) 1 e 2 do Código Civil - da perda do interesse na prestação por parte do locador do estabelecimento comercial em apreço nos autos”, pelo que “se conclui que a 1ª Ré incumpriu culposa - art. 799º do Código Civil - e definitivamente o contrato de locação em apreço celebrado com o autor, ao qual assiste assim o direito - arts. 801º nº 2 e 808º nº 1 do Código Civil - à peticionada resolução de tal contrato de locação, o que se declara”.

Também não acompanhamos, neste segmento, o sentenciado. São dois os motivos para tal:
● por um lado, o não pagamento – no sentido de retardamento – das rendas encontra-se justificado/legitimado;
● por outro, quem incorreu desde o início em mora foi o autor que não cumpriu a totalidade da(s) obrigação(ções) que estava a seu cargo, na qualidade de locador do estabelecimento [ou cedente da respectiva exploração].
Relembremos que, conforme resulta dos factos provados:
● está em causa a cedência da exploração / locação de um estabelecimento comercial;
● o funcionamento deste – um snack-bar – exige licença ou alvará de utilização [nos termos impostos pelo art. 10º do DL 234/2007, de 19/06] para que o exercício da actividade nele desenvolvida seja lícita;
● à data da celebração do contrato, o autor sabia da necessidade da obtenção dessa licença para o funcionamento daquele, mas, erradamente [e sabendo disso], informou a recorrente [e a 2ª ré, fiadora] que, pelas razões indicadas nos nºs 21 e 22, o estabelecimento não carecia de licença e que estava dispensado de licenciamento municipal;
● o funcionamento do estabelecimento é ilegal e precário, podendo ser encerrado a todo o tempo, por determinação das competentes autoridades administrativas, por falta daquela licença;
● a recorrente só deixou de proceder ao pagamento das rendas a partir do momento em que ficou a saber da necessidade dessa licença [na sequência da missiva que recebeu da Câmara Municipal, de que já se deu notícia].
Como do estabelecimento comercial faz, necessariamente, parte a licença ou alvará exigidos pelo DL atrás referenciado, pois só com a sua concessão “é configurável a aptidão de funcionamento desse mesmo estabelecimento, e correspondente fruição”, por se tratar de “elemento essencial da sua própria estrutura orgânica e funcional”, pois sem ela “não é legalmente admissível a laboração”, daí decorre que “a cedência de um estabelecimento comercial destinado à restauração envolve sempre a entrega dos respectivos títulos legitimadores de tal actividade” [assim, Acórdão da Relação de Lisboa de 14/12/2010, proc. 619/08.1TVLSB-8, disponível in www.dgsi.pt/jtrl] que
Sendo o autor o proprietário do estabelecimento à data da celebração do contrato com as rés e sabendo que tal era legalmente exigido, competia-lhe proceder às diligências necessárias, junto das entidades públicas competentes, com vista à obtenção da licença/alvará de utilização do mesmo, para que ele pudesse vir a laborar plena e legalmente.
O não cumprimento de tal dever [associado e interligado ao dever de cedência do estabelecimento em consequência da celebração do contrato com as rés], indispensável à concretização plena e perfeita da prestação principal, colocou o autor numa situação de mora «creditoris».
Esta mora do autor legitimou, por sua vez e como já vimos, a recusa da recorrente em continuar a pagar as rendas pelo [ilegal e precário] funcionamento/utilização do estabelecimento [e até que a licença seja obtida pelo recorrido].
Legitimada a recusa [no sentido de retardamento, atrás indicada] da recorrente em pagar [pontualmente] as rendas a que estava obrigada, evidente se apresenta que o não pagamento destas não a constituiu «in casu» em mora [que é a forma vestibular do incumprimento definitivo, pois, excluídos os casos em que a lei equipara a mora ao próprio incumprimento «stricto sensu», aquela transforma-se em incumprimento mediante a observância de algum dos caminhos facultados pelo art. 808º do CCiv.: demonstração da perda do interesse pelo credor na prestação em consequência daquela mora, ou interpelação admonitória do devedor para realizar a prestação num prazo razoável], diversamente do que entendeu o Tribunal «a quo»; mora «debitoris» só ocorrerá se e quando o autor obtiver a referida licença e se, ainda assim, a ré locatária mantiver a recusa no pagamento das rendas, recusa que então passará a ser ilegítima e infundada, não coberta pela «exceptio» atrás analisada. Isto porque, de acordo com o nº 2 do art. 804º do CCiv., o devedor só se considera constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido [itálico nosso].
Nesta conformidade, não podendo configurar-se a mora na relatada actuação da ora recorrente, afastado tem que estar o direito de resolução do contrato que o autor pretendia ver e viu declarado na douta sentença recorrida. Inexistindo verdadeira e própria mora «debitoris», tal resolução não podia, nem pode, ser declarada, quer por recurso às regras do arrendamento comercial, supletivamente aplicáveis aos contratos de locação de estabelecimento [«ex vi» do disposto na parte final do nº 1 do art. 1109º do CCiv. e de acordo com o que já antes constituía a jurisprudência maioritária dos Tribunais Superiores, como atrás se assinalou; a norma que, a existir efectiva mora «debitoris», seria aplicável era a do nº 3 do art. 1083º do CCiv., podendo a resolução ser judicialmente declarada, como é hoje, pelo menos, maioritariamente reconhecido – na doutrina, vejam-se, i. a., Gravato Morais, in “Novo Regime do Arrendamento Comercial”, 2ª ed., pgs. 213 a 222 e Paulo Soares do Nascimento, in “O incumprimento da obrigação do pagamento da renda ao abrigo do novo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano - Resolução do contrato e acção de cumprimento”, Estudos em Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa ao Prof. Inocêncio Galvão Telles, 2007, pgs. 1016 e segs; na jurisprudência, i. a., Acs. do STJ de 06/05/2010, proc. 438/08.5YXLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj e desta Relação do Porto de 17/10/2013, proc. 2541/11.5TBOAZ.P1, in www.dgsi.pt/jtrp], quer, muito menos, por apelo às regras gerais dos contratos, na medida em que os arts. 801º e 802º do CCiv. só permitem a resolução em caso de incumprimento/impossibilidade culposo/a do contrato.
Impõe-se, assim, nesta parte, a procedência do recurso e a revogação da sentença na parte em que decretou a resolução do contrato celebrado entre as partes e, bem assim, nos segmentos em que, por via dessa declarada resolução, condenou a ré/recorrente a entregar/restituir ao autor o aludido estabelecimento e ambas as rés a pagarem-lhe as rendas em dívida, vencidas até à propositura desta acção, e as que se vencerem até à entrega daquele [como atrás se disse, apesar destas rendas serem devidas, as rés só terão que pagá-las quando o autor cumprir a obrigação de obtenção da licença de utilização em falta].
*
*
4. Se a 1ª ré tem direito a ser indemnizada pelos danos que reclamou na reconvenção, na parte desatendida na sentença.
Nas conclusões 14) e segs., a recorrente discorda, ainda, da sentença por não ter condenado o autor a pagar-lhe uma indemnização, a liquidar em momento posterior, “pelos danos resultantes do não gozo do locado pelo período contratado, em virtude da falta de licença de utilização, designadamente perda de clientela e lucros cessantes”.
Fundamentou-se ali a improcedência deste pedido reconvencional [formulado a titulo subsidiário] do seguinte modo:
“Resulta assim que também o autor incumpriu, nos moldes referidos, a sua obrigação contratual, assistindo, também a este título, à 1ª ré o direito a ser ressarcida pelos danos que resulte ter sofrido em consequência de tal incumprimento contratual, ou seja, por prejuízos que tenha sofrido na exploração do estabelecimento resultantes do facto de este não se encontrar licenciado.
Sucede porém que a título de prejuízos sofridos a este respeito, ou seja, resultantes da falta de licença de utilização, as reconvintes limitaram-se - arts. 63º a 66º da contestação/reconvenção - a afirmações genéricas, não concretizadas, de terem sofrido prejuízos avultados inerentes à perda de clientela e de lucros cessantes, cuja liquidação pediram que fosse remetida para liquidação em execução de sentença.
Consequentemente da matéria provada nada resulta no sentido de que as reconvintes tenham sofrido algum prejuízo decorrente da falta de licenciamento do estabelecimento locado, sendo que os únicos danos que resultou apurado terem sido sofridos pela 1ª ré dizem respeito a uma falta de fornecimento de energia eléctrica, pelo que nada têm que ver com a falta de licenciamento do locado.
É certo que nos termos previstos pelos arts. 471º nº 1 al. b) e 661º nº 2 do Código de Processo Civil, é possível apresentar pedido genérico quando não seja possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, assim como condenar em montante a liquidar em execução de sentença se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade.
Tal faculdade não dispensa, todavia, o demandante de provar, cujo ónus lhe incumbe, a efectiva ocorrência do dano, que como é sabido constitui um dos pressupostos da obrigação de indemnização seja por incumprimento contratual ou extracontratual, permitindo-lhe tão só remeter para posterior liquidação a fixação definitiva do quantum desse dano.
Assim sendo e na medida em que não resultou provado que os reconvintes tenham sofrido algum dano seja em resultado da omissão, na negociação do contrato, da falta de licenciamento do locado ou a título de prejuízos resultantes do facto de o estabelecimento não se encontrar licenciado, resulta forçosa a conclusão da improcedência do pedido reconvencional neste ponto.”

À data da propositura da acção, da dedução da contestação e da prolação da sentença vigorava o CPC que veio a ser alterado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, que aprovou o Novo CPC.
Releva, portanto, o que dispunha o art. 661º do CPC, cujos três números são, aliás, iguais aos do actual art. 609º do Novo CPC.
Depois de afirmar no nº 1 que “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”, acrescentava o nº 2 daquele normativo que “se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”.
A interpretação deste nº 2 gerou, durante algum tempo, divergências na jurisprudência, conforme dão notícia diversos Autores:
“(…) há quem entenda que o tribunal só pode condenar no que se liquidar em «execução de sentença» (ou «no que vier a ser liquidado») quando o pedido tenha sido ou pudesse ter sido formulado em termos genéricos; nos demais casos – que constituem a regra geral -, em que o pedido seja ou devesse ter sido deduzido em termos específicos, o tribunal deverá julgar improcedente a acção sempre que não venha a alcançar os elementos necessários para fixar o objecto ou a quantidade da condenação.
Para outros, sem recusar a validade do confronto entre os dois preceitos, haverá que reflectir, ainda assim, sobre a «ratio» de ambos e sobre o seu enquadramento sistemático.
O art. 471º regula a petição inicial e, situando-se na fase inicial da acção – em que imperam proeminentes razões de disciplina processual -, percebe-se que imponha, como regra, a dedução de um pedido específico.
O art. 661º, nº 2, por sua vez, já disciplina uma fase adjectiva final, subsequente à instrução e discussão da causa, e previne a situação em que se provou a existência do direito, sucedendo apenas que o tribunal se encontra impossibilitado de proferir decisão específica por não ter logrado alcançar o objecto e (ou) a quantidade que corporizam esse já conhecido direito.
Neste caso – segundo a mesma tese – é de aceitar, por evidentes razões de justiça, que o tribunal se abstenha de absolver o réu – porque demonstrada a existência da obrigação –, muito embora se perceba também a inconveniência – porque arbitrária – de uma condenação quantificada; será então de accionar (também aqui) a regra do falado art. 661º. nº 2.
De todo o modo, consoante já foi ponderado, e bem, o funcionamento dessa regra pressupõe necessariamente, em qualquer situação, o reconhecimento de um direito – a favor do credor – e a existência de uma obrigação – a onerar o devedor” [assim, Abílio Neto, in “Código de Processo Civil Anotado”, 21ª ed., pgs. 918-919, anotação B-3; idem, Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, 1984, pgs. 70-71, anotação 6, com referência à redacção então vigente do art. 661º, e Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2001, pgs. 648-650, anotação 3].
Os tribunais vêm, por larga maioria, adoptando a tese referida em segundo lugar, no sentido de que ainda que o autor, ou o reconvinte, tenha(m) formulado na acção, ou na reconvenção, um pedido líquido, o facto de não ter(em) logrado provar o exacto montante do seu direito [este tem que ficar demonstrado] não obsta à condenação do réu, ou do reconvindo, em quantia a liquidar posteriormente à sentença - a anteriormente designada «liquidação em execução de sentença», expressão que constou do nº 2 do art. 661º até às alterações introduzidas pelo DL 38/2003, de 08/03 [assim, i. a., os Acórdãos do STJ de 27/01/1993, in CJ-STJ ano I, 1, 89, de 29/01/1998, in BMJ 473/445, de 03/12/1998, in BMJ 482/179, de 03/03/2005, proc. 05B002, de 23/01/2007, proc. 06A4001, de 05/07/2007, proc. 07B210 e de 16/01/2008, proc. 07B2713, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
Também nós temos como certa esta orientação, ou seja, que a condenação no que vier a ser posteriormente liquidado é possível tanto no caso de pedido específico como no de pedido genérico; mas pressupõe, em qualquer deles, que os elementos integradores da pretensão do autor ou do reconvinte tenham resultado provados - por ex., no caso da responsabilidade contratual, que é a que aqui interessa, que tenham ficado provados todos os seus pressupostos, incluindo a existência de danos/prejuízos sofridos pelo credor [autor ou reconvinte] - e que apenas não se tenha conseguido apurar o exacto montante desses danos ou prejuízos.
Mas se não se apurar a existência de danos, ainda que fiquem demonstrados os demais pressupostos – no caso da responsabilidade contratual, o incumprimento do contrato e a culpa do devedor –, já não haverá lugar à aplicação do disposto no citado nº 2 do art. 661º, impondo-se, sim, a absolvição do devedor [réu ou reconvindo].

Ora, no caso em apreço os danos reclamados pela reconvinte/recorrente seriam os que ocorreriam “se o estabelecimento vier a encerrar por determinação das autoridades competentes, ou se vier a verificar, no decurso da acção, que o autor não irá, ou não conseguirá, de todo licenciar o estabelecimento”.
Trata-se, portanto, de danos que apenas poderão ocorrer se se verificar alguma das condições acabadas de indicar, ou seja, danos incertos dependentes de condições igualmente incertas quanto à sua verificação. Não só não ocorreram ainda esses danos, como não se sabe sequer quando se verificarão e, principalmente, se se concretizarão.
Em suma, não estão provados quaisquer danos resultantes do referido circunstancialismo, como nem sequer está provada a verificação de alguma das causas em que a recorrente assentou o ressarcimento daqueles [embora a quantificar em posterior liquidação].
Consequentemente, bem andou o Mmo. Julgador «a quo» ao ter julgado improcedente este segmento do pedido reconvencional.
Nesta parte, improcede o recurso.
*
*
Síntese conclusiva:
● O contrato de locação de estabelecimento rege-se, em primeiro lugar, pelas cláusulas acordadas pelas partes, de harmonia com a liberdade contratual e, subsidiariamente, pelas normas do contrato típico de estrutura mais próxima, ou seja, pelas que disciplinam o contrato de arrendamento comercial e, na sua falta, pelas regras comuns dos contratos.
● A excepção do não cumprimento não legitima o incumprimento definitivo do contrato, mas tão só o seu cumprimento dilatório como forma de coagir o contraente faltoso a cumprir aquilo que tem que cumprir; o exercício de tal excepção não extingue o direito de crédito de que é titular o outro contraente, apenas o paralisa temporariamente.
● A locatária do estabelecimento [que, apesar da falta da licença, continua a funcionar, embora precariamente] pode opor aquela excepção ao locador quando o que almeja não é que se declare que não tem que lhe pagar as rendas em falta [que deixou de pagar por o segundo não ter diligenciado pela obtenção, que estava a seu cargo, da licença/alvará de utilização/funcionamento do estabelecimento objecto do contrato], mas apenas e só que se reconheça que tem direito a não efectuar - melhor, a retardar - o respectivo pagamento enquanto o locador não cumprir o dever de diligenciar pela obtenção da licença.
● Legitimada a recusa [o retardamento] da locatária em pagar [pontualmente] as rendas a que estava obrigada, daí decorre que, por essa falta, não se constituiu em mora e que o locador não pode obter a resolução do contrato com esse fundamento [falta de pagamento das rendas de diversos meses].
● A condenação no que se liquidar após a sentença só é possível, no caso da responsabilidade contratual, quando tenham ficado provados todos os seus pressupostos legais, incluindo a existência de danos/prejuízos sofridos pelo credor, e que apenas não se tenha conseguido apurar o exacto montante desses danos/prejuízos.
* * *
V. Decisão:

Face ao que fica exposto, os Juízes desta secção cível da Relação do Porto acordam em:
1º) Julgar parcialmente procedente o recurso e alterar a sentença recorrida nos seguintes termos:
a) Declaram-se improcedentes os pedidos de resolução do contrato celebrado entre as partes e os de condenação das rés – nos termos enunciados supra – na entrega ao autor do estabelecimento locado e no pagamento ao mesmo das quantias atinentes às rendas vencidas desde Agosto de 2010 e das que se vencerem até entrega daquele, com a consequente absolvição das rés de tais pedidos;
b) Mantém-se a improcedência do segmento do pedido reconvencional apreciado no item 4 do ponto IV;
c) Mantém-se [porque não vinha sequer posto em causa no recurso] o que ali se decidiu quanto à outra parte da reconvenção.
2º) Condenar o autor nas custas da acção, pelo total decaimento da sua pretensão nesta 2ª instância, mantendo-se quanto às custas da reconvenção o que se decidiu na sentença recorrida.
* * *
Porto, 2014/02/25
M. Pinto dos Santos
Francisco Matos
Maria João Areias