PENSÃO DE ALIMENTOS
Sumário

A medida dos alimentos não deverá ser concretizada no caso de inexistir matéria factual, quer das necessidades do alimentando, quer das possibilidades do obrigado, pois, de acordo com as regras básicas do nosso sistema jurídico processual, em caso algum o tribunal pode decidir sem base sólida no que concerne à factualidade consubstanciadora do direito a tutelar.

Texto Integral

Proc. 743/12.6TBVNG.P1 – 3ª Secção (Apelação)
Alteração da RRP – Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia - Família e Menores
Rel. Deolinda Varão (825)
Adj. Des. Freitas Vieira
Adj. Des. Madeira Pinto

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
O MINISTÉRIO PÚBLICO, em representação do menor B…, nascido em 03.12.96, instaurou acção de alteração da regulação das responsabilidades parentais contra os seus pais C… e D….
Pediu que fosse fixada a residência do menor junto da respectiva avó materna, E…, à qual competirá o exercício das responsabilidades parentais do mesmo, sendo as questões de particular importância da vida do menos exercidas, em conjunto, por ambos os progenitores.
Na conferência efectuada não foi possível obter o acordo dos pais, dada a sua falta.
O Mº Pº deu parecer no sentido de ser fixada a residência do menor junto da avó materna, com a atribuição das responsabilidades parentais em matéria de particular importância à avó e mãe, regime de visitas livre e fixação de € 75,00 mensais a cargo de cada pai a título de pensão de alimentos.
Procedeu-se aos inquéritos constantes de fls. 87 e seguintes e obteve-se a informação de fls. 97 e 99.
De seguida, foi proferida sentença que alterou o regime da regulação do exercício das responsabilidades parentais e residência habitual em relação ao menor, bem como o regime de visitas e pensão de alimentos, nos seguintes termos:
A) O menor B… fica a residir habitualmente junto da sua avó E…, que exercerá as responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente do menor;
B) As decisões relativas aos actos de particular importância cabem em conjunto à avó e à mãe, D…;
C) A mãe e o pai C…, poderão visitar o menor sempre que o entenderem, sem prejuízo das suas actividades e descanso;
D) Os progenitores não contribuirão com qualquer valor a título de pensão de alimentos.

O Mº Pº recorreu, formulando, em síntese, as seguintes

CONCLUSÕES
1ª – A sentença recorrida não fixou qualquer pensão com que os pais contribuíssem para as despesas decorrentes dos alimentos do seu filho porque, pesem todas as averiguações possíveis que se desenvolveram no decurso do processo, não se detectou a existência de quaisquer rendimentos que auferissem, não apresentando quaisquer descontos na Segurança Social nos últimos anos.
2ª – O Mº Pº vem recorrer da sentença apenas quanto à não fixação da pensão de alimentos a pagar pelos pais, por se entender que nessa vertente não foram acautelados convenientemente os interesses, presentes e futuros deste, a pretexto de uma indeterminação factual no que toca aos rendimentos dos seus progenitores; ao decidir assim, a Srª Juíza, salvo o muito e devido respeito, inviabilizou a possibilidade futura de se fazer recair a obrigação de pagar a pensão de alimentos a cargo dos pais sobre o FGADM, sendo que as necessidades básicas do menor B… postulam a fixação de uma pensão de alimentos pois a obrigação parental de suprir o direito à alimentação dos filhos menores como decorrência do direito à vida constitucionalmente consagrado não deve recair apenas sobre o seu “guardião”, que no caso é, até, a avó materna.
3ª – A sentença recorrida reconheceu e fundamentou que não tendo sido possível, após recurso aos meios de averiguação disponíveis, demonstrar que os pais do menor gozavam de uma qualquer espécie de rendimentos, também não era possível nem legalmente defensável obrigá-los ao pagamento dessa pensão alimentar ao filho.
4ª – A Srª Juíza a quo seguiu a orientação de parte da jurisprudência, da qual é exemplo relevante o Ac. da RP de 11.12.12. As duas razões básicas em que se estriba tal orientação são essencialmente a redacção do artº 2004º, nº 1, do CC, e a dificuldade "substantiva" de se estabelecer um valor de pensão apenas a partir da consideração das necessidades do menor beneficiário sem tomar em conta, também, as possibilidades do obrigado, apenas para depois se poder accionar o FGADM.
5ª – Contudo, o Ac. do STJ de 22.05.13, da 1ª Secção, proferido no processo nº 2485/10.8 TBGMR.G1.S1, depois de uma análise exaustiva de variada jurisprudência e doutrina sobre esta matéria concluiu: “O Tribunal deve (como lhe é pedido) definir se o menor tem direito a alimentos e de acordo com as respectivas necessidades, atribuir um montante tendo em consideração, com ponderação e recurso a critérios de equidade. Se o obrigado à prestação tem ou não possibilidade de proceder à prestação alimentar fixada é questão a apurar em execução de sentença e que poderá depois desencadear o recurso ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores. A fixação em concreto do quantitativo a atribuir a título de alimentos deverá ser equacionada e ponderada pelas instâncias que, como se disse supra, deverão recorrer a critérios de oportunidade que escapam à competência deste Supremo Tribunal de Justiça”.
6ª – A orientação do citado aresto do STJ permite ultrapassar a objecção de que não havia como fixar de forma justa a medida da pensão de alimentos a pagar por progenitor não guardião, a quem se desconhecessem rendimentos, apenas com base nas necessidades do filho beneficiário da pensão: essa medida buscar-se-á, assim, por critérios de equidade, assumindo-se desde logo que a fixação da pensão, além do reconhecimento concreto do direito a alimentos do menor beneficiário, é também o preenchimento do pressuposto formal que permitirá demandar o FGADM se, em futura instância de cobrança coerciva da pensão de alimentos eventualmente não paga continuar a não ser possível detectar a existência de rendimentos do progenitor-devedor que permitam concretizar essa cobrança coerciva.
7ª – O recurso deverá, assim, proceder, alterando-se a sentença recorrida por violação do disposto nos artºs 1878º, nº 1, 1905º e 2004º do CC (neste último caso interpretado da forma que o fez o aresto do STJ supra citado), na parte em que não estabeleceu a obrigação dos pais do menor pagarem ao filho uma pensão de alimentos. E fazendo-se apelo a juízos de equidade e normalidade e ponderando-se as necessidades normais de um menor de dezassete anos, que frequentava o 9º ano de escolaridade na Escola … quando a Segurança Social elaborou o Inquérito previsto no artº 177º, nº 2, da OTM, a situação de modéstia financeira do agregado onde está inserido, residente em apartamento de tipologia T3 pelo qual é paga uma renda mensal de € 300,00 e composto pelo menor B…, um irmão uterino, menor, que beneficia de uma pensão de alimentos de e 120 mensais, um tio que aufere um salário de € 600,00 mensais, o avó materno que aufere um salário de € 900,00 mensais, e a avó materna que recebe € 419,10 de subsídio de desemprego, sendo à custa de tais rendimentos que vive essa família, deverá fixar-se a dita pensão de alimentos a cargo do progenitores do B… em € 150,00 mensais, sendo € 75,00 por cada um.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

*
II.
O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. No âmbito do processo de regulação do poder paternal que correu no Tribunal de Espinho, foi inicialmente regulado o exercício do poder paternal em relação ao menor em causa, conforme fls. 5 a 8.
2. Em Setembro de 2011, a progenitora “entregou” o filho aos cuidados da avó materna (tal como um seu irmão uterino), tendo-se deslocado para Moçambique.
3. A mãe manteve contactos, o pai já antes os havia cessado.
4. O agregado onde se integra o menor é composto pela avó e avô, um tio materno maior e o seu irmão uterino menor.
5. Vivem num T3 da bisavó materna.
6. Por referência a Junho de 2013, a avó recebe € 419,10 de subsídio de desemprego, o avô € 900,00 de rendimento de trabalho, o tio € 600,00 de rendimento de trabalho; o irmão uterino tem uma pensão de alimentos de € 120,00.
7. Pagam € 300,00 de renda, têm despesas com consumos domésticos, € 70,00 do Centro de Estudos de cada menor, € 15,00 do futebol de cada menor, aproximadamente € 80,00 da cantina de ambos.
8. A avó tem um papel educativo activo junto do menor, bem como do menor, com a colaboração do tio materno.
9. Mantém a sua disponibilidade para assumir os cuidados com o neto.
10. A progenitora, que em Junho estava grávida, pediu auxílio (nomeadamente habitacional) temporário à avó, pretendendo retomar a sua actividade como cabeleireira após o nascimento do bebé.
11. O menor sente-se bem integrado no actual contexto, mantém laços de afecto (recíprocos) com os seus elementos, denotando-se um sentimento de protecção em relação ao irmão.
12. Manteve contacto esporádico com o pai via “facebook”, tendo-se afastado há cerca de um ano e meio da família (avós) paterna.
13. A avó procura o sucesso escolar do menor, cooperando com o director de turma, embora o menor denote desinvestimento, mostrando antes competências para a prática do futebol, e oportunidades nesse contexto.
14. O progenitor não tem registo de remunerações na S.S..
15. A progenitora tem o último registo em Agosto de 2010.
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III.
A questão a decidir – delimitada pelas conclusões da alegação do apelante – é a seguinte:
- Se deve ser fixada pensão de alimentos a pagar ao menor pelos seus pais, apesar de não se ter apurado que os mesmos tenham qualquer rendimento.

Como é sabido, a questão a apreciar é controvertida na jurisprudência.
No sentido de que é possível fixar pensão de alimentos a menor nos casos de impossibilidade do obrigado e/ou nos casos de desconhecimento do seu paradeiro ou da sua situação económica, pronunciaram-se, entre outros, o Ac. do STJ de 29.03.12, 08.05.13 e 22.05.13 (este citado pelo MºPº nas suas alegações), desta Relação de 22.04.04 e 29.01.13, da RC de 06.06.06, 17.06.08 e 21.06.11 e da RL de 23.10.03, 13.10.05 e 05.07.07.
No sentido de que tal fixação não é possível, pronunciaram-se, entre outros, os Acs. desta Relação de 28.10.03, 11.12.12 (citado na sentença recorrida) e 25.03.10 (relatado pelo 2º-Adjunto do presente), da RE de 18.12.90 e da RL de 18.01.07, 04.12.08, 17.09.09 e 05.05.11[1].

Adiantamos já que perfilhamos esta segunda orientação, que foi acolhida na sentença recorrida, pelas razões aduzidas nos arestos citados, que, sumariamente, passamos a expor, seguindo de perto, no essencial, a fundamentação dos Acs. desta Relação de 11.12.12 e da RL de 18.01.07.

Diz o artº 36º, nº 5, da CRP que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.
Por seu turno, diz o artº 1878º, nº 1, do CC, que compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros e administrar os seus bens.
O dever de sustento, consubstanciado em tudo o que é indispensável ao sustento, habitação, vestuário, instrução e educação do menor (cfr. artº 2003º do CC), mantém-se mesmo se o progenitor for inibido do exercício das responsabilidades parentais (artº 1917º do CC).
Havendo desacordo dos pais quanto ao exercício das responsabilidades parentais, designadamente no que a alimentos concerne, cabe ao tribunal decidir de acordo com o interesse do menor (artigo 1905º, nº 2 do CC), critério constante também do artigo 180º da OTM, e que constitui um pilar fundamental do direito dos menores.
No artº 2004º, nº 1 do CC, estabelece-se que os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los.
A este quadro legal há que acrescentar o artº 1º da Lei 75/98, de 19.11 que determina que quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do DL 314/78, de 27.10, e ao alimentando não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início efectivo do cumprimento da obrigação.
O citado artº 2004º, nº 1 do CC estabelece uma correlação entra as necessidades e as possibilidades, pressupondo o conhecimento dos dois termos da equação: necessidades do alimentando e possibilidades do obrigado. Da mesma forma que não há fixação de alimentos sem necessidade do alimentando, também não pode haver em caso de falta de possibilidades do obrigado.
O principal argumento a favor da fixação de alimentos mesmo em caso de desconhecimento total do paradeiro e situação do obrigado é de natureza pragmática: é necessária a fixação prévia de alimentos para, face ao (altamente previsível) incumprimento, ser possível recorrer ao Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores.
Afirma-se que, nos termos do disposto no citado artº 1º da Lei 75/98, o Estado não pretendeu distinguir as situações em que o obrigado se ausenta, passando a desconhecer-se o seu paradeiro, após a decisão judicial de fixação de alimentos, daquelas em outras em que o obrigado se ausenta ou se mostra insolvente antes da decisão.
Resulta do disposto naquele preceito, que o dever de prestar do Estado depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- existência de sentença que fixe alimentos ao menor (pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos);
- residência do devedor em território nacional;
- que o menor não beneficie na mesma quantidade de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre;
- falta de pagamento total ou parcial, por parte do devedor, das quantias em dívida através de uma das formas previstas no artº 189º da OTM.
Pressupõe-se assim que tenha sido fixada uma pensão alimentar, e que o obrigado a não cumpra por qualquer dos meios previstos no artigo 189º da OTM.
Quer dizer, para que o Estado assuma a obrigação do progenitor faltoso, constitui condição sine qua non, que tenha já sido fixada uma prestação alimentar, segundo os requisitos legais para o efeito.
As duas situações acima descritas são, pois, completamente diferentes e é apenas a primeira que corresponde à letra e espírito do preceituado na Lei 75/98, em especial no seu artº 1º.
Ora, inexistindo matéria factual que nos permita concluir, quer pelas necessidades do alimentando, quer pelas possibilidades do obrigado, não se pode fixar qualquer quantia a titulo de alimentos e, acrescentamos, fazê-lo seria, não só uma temeridade como, também, um verdadeiro atentado às regras básicas enformadoras do nosso sistema jurídico-processual, que não permitem, em caso algum, que o Tribunal decida sem uma base sólida no que tange à factualidade consubstanciadora do direito a tutelar: fixar-se uma prestação de alimentos sem qualquer suporte factual, constituiria uma decisão completamente aleatória violadora, além do mais, do disposto nos artigos 664º e 1410º do CPC, pois não obstante neste tipo de decisões o Tribunal não esteja sujeito a critérios de legalidade, mas antes de conveniência e oportunidade, isso não quer dizer que lhe seja permitido decidir sem factos e que ignore em absoluto as normas em vigor.
A fixação da pensão de alimentos não é obrigatória nas decisões que regulam as responsabilidades parentais, pois não obstante o dever de contribuir com alimentos para o sustento dos filhos menores seja um dever parental, este dever não poderá ser imposto se o obrigado não tiver quaisquer meios para o cumprir, a decidir-se desta forma, estar-se-ia a ignorar o preceituado no artigo 2004º, nº1 do CC.
Por outro lado, não se vislumbra em que medida a não fixação de alimentos possa obrigar o progenitor relapso a assumir as suas responsabilidades parentais, nem que a não fixação surja como um prémio para o progenitor relapso, porquanto logo que lhe sejam conhecidos meios procede-se à fixação dos alimentos.
Fixando uma pensão de alimentos quando se desconhece a situação social e profissional do obrigado, apenas com o intuito de abrir caminho para a substituição, pelo Estado, no cumprimento da satisfação de tal prestação, ao abrigo do artº 1º da Lei 75/98, seria à partida, estar a aplicar analogicamente este preceito, a situações diversas, o que não nos permite o artº 11º do CC, já que se trata de uma norma excepcional.
Aquela interpretação excede o pensamento legislativo, tendo em atenção as regras insertas no artigo 9º do CC no que à interpretação da lei concerne, uma vez que não tem no texto um mínimo de correspondência: uma coisa é a fixação de uma prestação de alimentos, tendo em atenção os critérios legais para o efeito (artº 2004º, nº 1 do CC) e esta não ser paga pelo obrigado numa das formas prevenidas pelo sistema (artº 189º da OTM), podendo então ser desencadeado o mecanismo a que alude a Lei 75/98, e outra coisa é o Tribunal fixar um montante de prestação de alimentos, sem ter qualquer conhecimento sobre a situação patrimonial do obrigado a alimentos.
Como se escreveu no citado Ac. desta Relação de 25.03.10, fixar pensão de alimentos a pagar pelo progenitor para que, posteriormente, possa ser condenado o FGADM no seu pagamento, traduz subversão das regras do direito e pretensão de realização de política social que não cabe ao poder judicial.
Do exposto se conclui que, em caso de desconhecimento da situação económica do obrigado ou obrigados a alimentos ou de comprovada insuficiência de meios, não é possível proceder à fixação de alimentos a menor que deles careça – tal como sucede no caso dos autos em que não foi possível apurar a concreta situação económica dos requeridos, progenitores do menor.

Improcedem, assim, as conclusões do apelante, restando confirmar a sentença recorrida.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência:
-Confirma-se a sentença recorrida.
Sem custas.
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Porto, 29 de Maio de 2014
Deolinda Varão
Freitas Vieira
Madeira Pinto
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[1] Todos em www.dgsi.pt, com excepção do Ac. da RE de 18.12.90, que está publicado em BMJ 402º-650.