ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
Sumário

- Uma interpretação actualista do artigo 505º do Código Civil não exclui a possibilidade de concorrência com a responsabilidade objectiva, associada ao risco inerente à circulação do outro veículo também interveniente no acidente de viação.
- Essa concorrência, porém, não se configura quando o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do próprio lesado, constituindo esta uma circunstância excludente da responsabilidade do outro interveniente no acidente.

Texto Integral

Processo nº 4008/11.2TBSTS.P1
Tribunal Judicial de Santo Tirso
1º Juízo Cível

Relatora: Judite Pires
1ª Adjunta: Des. Teresa Santos
2º Adjunto: Des. Aristides de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO
1. B… propôs acção declarativa de condenação, com processo ordinário, para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, contra C…, Companhia de Seguros, SA.
Alega, em síntese, que sofreu danos, cuja indemnização peticiona, em consequência de um acidente de viação culposamente causado pelo condutor do veículo automóvel, cuja circulação estava coberta por contrato seguro válido e eficaz, celebrado com a Ré Seguradora.
Pede que seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de € 75.000,00, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento.
Contestou a Ré e, impugnando a versão do acidente apresentada pelo A. e os danos alegados, pugna pela sua absolvição.
Deduziu ainda incidente da intervenção principal provocada da Companhia de Seguros D…, SA, por se ter tratado de um acidente de trabalho e esta ter ficado sub-rogada nos direitos do A. relativamente às quantias com ele despendidas, caso proceda a versão do A.
Foi admitida a intervenção principal da Companhia de Seguros D…, SA, que peticionou a condenação da Ré no pagamento da quantia de 34.099,47€, acrescida de juros de mora desde a notificação, bem como no que vier a liquidar-se em ampliação do pedido ou execução de sentença.
Saneado o processo, procedeu-se à selecção dos factos assentes e elaborou-se base instrutória.
Posteriormente, veio a Companhia de Seguros D…, SA, requerer a ampliação do pedido inicialmente formulado, na quantia de 46.402,04€, o que foi admitido.
O processo seguiu os seus ulteriores trâmites, tendo-se procedido a julgamento, após o que foi proferida sentença que apreciou a matéria de facto a ele submetida, e conheceu do mérito da acção, que julgou improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos contra ela formulados.
2.1. Inconformado com tal decisão, dela interpôs o Autor recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
“1. A decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada atendendo à analise conjugada dos depoimentos das testemunhas E… e F…, das fotografias juntas aos autos com a p.i. e da participação elaborada pela GNR de … junta com a contestação da ora Recorrida.
2. Assim, e ao abrigo do disposto do disposto no artigo 662.º, do Código de Processo Civil, devem ser alteradas as respostas aos quesitos 1.º, 4.º, 12.º, 17.º e 18.º.
3. Na verdade, face aos depoimentos das testemunhas E… e F…, às fotografias juntas com a p.i. e a participação do acidente elaborada pela GNR a resposta:
Ao quesito 1.º: deve ser alterada para provado com o esclarecimento que sobre a terra era colocada ou pedrinha, ou areão ou arreia (vide depoimento testemunha E…).
Ao quesito 18.º: provado apenas o que consta da resposta ao quesito 1.º (vide depoimento da testemunha E…).
Ao quesito 4.º: provado que quem circula no arruamento referido no quesito 1.º não tem visibilidade para a Rua … em virtude do matagal existente na margem do arruamento e dos 3 depósitos de recolha de lixo existentes na Rua … junto ao entroncamento e do seu lado direito atento o sentido do A. (vide depoimento testemunha E… e fotografias juntas com a p.i.).
Aos quesitos 12.º e 17.º: Provado que quando o veiculo automóvel de matricula ..-..-SG acabava de sair do arruamento referido no quesito 1.º (Rua …) e começava a atravessar o entroncamento da Rua … foi embatido no guarda lamas esquerdo da frente (por cima do rodado dianteiro esquerdo) pelo motociclo ..-GJ-.. conduzido pelo Autor (vide depoimentos da testemunha F…, fotografias juntas com a p.i. e participação do acidente junta com a contestação da seguradora).
4. Independentemente das alterações à matéria de facto dada como provada face às respostas aos quesitos 2.º e 11.º (este quanto à velocidade de 40/50 km/h) e 12º (o motociclo embateu no guarda lamas esquerdo da frente do veículo seguro na recorrida) apontam inequivocamente para a violação do n.º 2, do artigo 29.º, do Código da Estrada e envolvem a atribuição à condutora do veiculo seguro na Recorrida de, nunca menos de 50% da culpa na produção do acidente.
5. Pressupondo, como se espere confiadamente, a alteração aos quesitos nos termos da 3.ª conclusão, a culpa na produção do acidente, por clamorosa violação do artigo 29.º, n.º 2, do Código da Estrada, deve ser atribuída in totum (100%) à condutora do veiculo seguro na Recorrida condenando-se esta a indemnizar o Recorrente nos montantes peticionados.
6. Assim, deve ser alterada a douta sentença em conformidade com o exposto.
7. Foram violados os artigos 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, e artigo 29.º, n.º 2, do CE.
Termos em que atento o douto suprimento de V. Excias., deve ser dado provimento ao recurso”.
2.2. Também a interveniente processual “Companhia de Seguros D…, S.A” não se conformou com a sentença proferida e dela veio igualmente a interpor recurso de apelação, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A decisão que sobre a matéria de facto deve ser alterada, atendendo à análise conjugada dos depoimentos das testemunhas E… e F…, das fotografias juntas aos autos com a petição inicial do demandante e da participação elaborada pela GNR de … junta com a contestação da demandada.
2. Assim, ao abrigo do disposto no artigo 662º do Código de Processo Civil, devem ser alteradas as respostas aos quesitos 1º, 4º, 12º, 17º e 18º.
3. Face aos depoimentos das testemunhas E… e F…, às fotografias juntas com a petição inicial do demandante e a participação elaborada pela GNR junta com a contestação da demandada, a resposta:
Ao quesito 1º: deve ser alterada para provado com o esclarecimento que sobre a terra era colocada ou pedrinha, ou areão ou areia (vide depoimento da testemunha E…).
Ao quesito 18º: provado apenas o que consta da resposta ao quesito 1º (vide depoimento da testemunha E…).
Ao quesito 4º: provado que quem circula no arruamento referido no quesito 1º não tem visibilidade para a Rua … em virtude do matagal existente na margem do arruamento e dos 3 depósitos de recolha de lixo existentes na Rua … junto ao entroncamento e do seu lado direito atento o sentido do A. (vide depoimento da testemunha E… e fotografias juntas com a p.i.).
Aos quesitos 12º e 17º: provado que quando o veículo automóvel de matrícula ..-..-SG acabava de sair do arruamento referido no quesito 1º (Rua …) e começava a atravessar o entroncamento da Rua … foi embatido no guarda lamas esquerdo da frente (por cima do rodado dianteiro esquerdo) pelo motociclo ..-GJ-.. conduzido pelo A. (vide depoimento da testemunha E… e fotografias juntas com a p.i. e participação do acidente junta com a contestação da seguradora).
4. Independentemente das alterações à matéria de facto dada como provada face às respostas aos quesitos 2º e 11º (este quanto à velocidade 40/50 Km/h) e 12º(o motociclo embateu no guarda lamas esquerdo da frente do veículo seguro na Recorrida) apontam inequivocamente para a violação do n.º 2 do artigo 29º, do Código da Estrada e envolvem a atribuição à condutora do veículo seguro na Recorrida de, nunca menos de 50% da culpa na produção do acidente.
5. Pressupondo, como se espera confiadamente, a alteração aos quesitos nos termos da 3ª conclusão, a culpa na produção do acidente, por clamorosa violação do artigo 29º, n.º2, do Código da Estrada deve ser atribuída in totum (100%) à condutora do veículo seguro na Recorrida condenando-se esta a indemnizar o Recorrente nos montantes peticionados.
6. Assim, deve ser alterada a douta sentença em conformidade com o exposto.
7. Foram violados os n.ºs 4 e 5 do artigo 607º do Código de Processo Civil, bem como o n.º 2 do artigo 29º, do Código da Estrada.
Nestes termos, dando provimento ao recurso e, por conseguinte, alterando a Douta Sentença recorrida no sentido da procedência do peticionado pela interveniente, V. Exªs estarão a fazer, como aliás é costume, inteira Justiça”.
A apelada contra-alegou, pugnando pela rejeição dos recursos na parte em que impugnam a decisão sobre a matéria de facto, por não cumprimento do disposto no artigo 640º do Código de Processo Civil, e, em todo o caso, pela improcedência dos recursos e confirmação do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente se:
- Ocorreu erro na apreciação da matéria de facto;
- Mérito do julgado quanto à culpa na produção do acidente.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
1) No dia 22 de Julho de 2009, cerca das 11:00 horas, na Rua … em … –Santo Tirso, ocorreu um embate, no qual foram intervenientes o motociclo de matrícula ..-GJ-.., propriedade do A. e por este conduzido no sentido Rua … – Rua … e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-SG que saía da Rua …, seguindo em direcção a EN ….
2) No local do embate confluem a Rua … (designada no croqui de fls. 36 como Rua …), a Rua …, a Rua … e a EN ….
3) A Rua …, atento o sentido do A., é entroncada do seu lado direito pela Rua ….
4) Aquando do descrito em 1) chovia intensamente.
5) No dia e hora referidos em 1), F… conduzia o seu veículo automóvel com a matrícula ..-..-SG pela Rua … no sentido da Rua …, pela sua metade direita da faixa de rodagem, com velocidade de cerca de 40-50 Kms/hora.
6) O veículo de matrícula ..-..-SG saiu da Rua … e entrou no entroncamento, sem parar ou diminuir a marcha.
7) Quando o veículo automóvel de matrícula ..-..-SG tinha saído já da Rua … e atravessava o entroncamento da Rua … foi embatido na parte lateral esquerda, junto à roda dianteira, pelo motociclo ..-GJ-.., conduzido pelo Autor.
8) O A. circulava pela Rua … e pretendia mudar de direcção para o seu lado direito e passar a circular pela Rua ….
9) (…) e não cedeu a prioridade, como devia, ao veículo automóvel SG, apesar deste se lhe apresentar pela direita.
10) O embate ocorreu fora da faixa de rodagem da Rua … e já na zona do entroncamento da Rua … com a Rua ….
11) Após o embate o A. e o motociclo ficaram prostrados no solo.
12) O piso da faixa de rodagem da Rua … é de macadame.
13) A largura da Rua … é de 3,90m. e a da Rua … é de 4,40m.
14) Em consequência do embate, o A.:
a) sofreu rotura do tendão supra-espinhoso, rotura da coifa dos rotadores, contusão do dorso lombar, fractura da omoplata;
b) esteve internado 2 vezes no Hospital … – Vila Nova de Gaia durante 6 dias;
c) foi submetido a 2 intervenções cirúrgicas;
d) esteve acamado na residência durante 45 dias;
e) foi submetido a múltiplos e dolorosos tratamentos que ainda persistem;
f) esteve doente com total impossibilidade para o trabalho até 18 de Novembro de 2010, data da alta da seguradora por acidente de trabalho; e,
g) posteriormente, esteve de baixa pela Segurança Social, por incapacidade para a sua actividade profissional, desde 3/4/2011 a 01/07/2011.
15) Apesar de clinicamente curado, apresenta uma incapacidade permanente para o trabalho de 14%.
16) (…) E as seguintes sequelas, no membro superior direito: cicatriz cirúrgica com 12 centímetros na face anterior do ombro; rigidez do mesmo em que a flexão é possível até aos 60º, na extensão possível até aos 50º e na rotação externa é possível até aos 30º, com potência muscular enquadrável entre os 4/5, observando-se uma diminuição ligeira quando comparada com o membro superior esquerdo, sequelas que são impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual e compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional.
17) O embate, mormente o susto, e as lesões sofridas causaram ao Autor dores e abalo psíquico.
18) O que o levou a frequentar a consulta psiquiátrica.
19) O Autor era aparentemente saudável.
20) Nasceu a 30/07/1965.
21) É Beneficiário nº. ……….. da Segurança Social.
22) Mediante contrato de seguro, titulado pela apólice nº. ……., o proprietário do veículo automóvel com a matrícula ..-..-SG havia transferido para a Ré a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação.
23) A Interveniente, Companhia de Seguros D…, S.A., celebrou com G…, S.A., um contrato de seguro, titulado pela apólice n° ……., através do qual assumiu a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho que sofressem os empregados daquele, incluindo o risco de percurso, independentemente do meio de transporte.
24) O A., B…, era empregado dos G… e executava a sua tarefa de distribuição de correio ao serviço daquela sua entidade patronal aquando do embate descrito em 1).
25) A Interveniente, Companhia de Seguros D…, S.A., no cumprimento das obrigações assumidas através do contrato mencionado em 23) fez despesas em salários, hospitais, médicos, transportes, hospedagem, remissão da pensão e outros, tudo no total de 80.501,51 €.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Reapreciação da matéria de facto
1.1. Questão prévia: admissibilidade do recurso interposto da decisão que conheceu da matéria de facto.
Dispunha o artigo 712º, nº1 do Código de Processo Civil, na versão introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto podia ser alterada pela Relação nos casos aí expressamente especificados, ou seja:
“a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”.
O NCPC, aprovado pela Lei nº 41/2003, de 26 de Junho introduziu significativas alterações no domínio dos poderes de reapreciação da matéria de facto consentidos à Relação, procedendo ao alargamento e reforço dos mesmos.
Dispõe hoje o nº1 do artigo 662º do novel diploma: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Por sua vez, os nº1 e 3 do artigo 640º do novo diploma reproduzem os nºs 1 e 5 do artigo 685º-B da anterior lei processual civil, correspondendo o nº2, com aperfeiçoamento da redacção e da sistematização, aos anteriores nºs 2 e 3 do normativo em causa do antecedente diploma, tendo neste sido amputado o respectivo nº4.
Deste modo, de acordo com o nº1 do citado artigo 640º, “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
E de acordo com o nº 2 do mesmo dispositivo, “no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens de gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante”.
Tendo os recorrentes impugnado a decisão que apreciou a matéria de facto, pugna a apelada pela rejeição, nessa parte, dos recursos interpostos com fundamento na inobservância dos imperativos contidos no artigo 640º do Código de Processo Civil, com o argumento de que os mesmos não indicam os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, nem indicam onde poderá ser encontrado o depoimento das testemunhas E… e F….
Contrariamente ao que sustenta a apelada, as recorrentes identificam claramente os pontos da decisão a que imputam erro de julgamento, e apontam o sentido em que, nas suas perspectivas, deveriam ter sido julgados, indicando os meios probatórios nos quais amparam essa sua divergência.
Constando entre esses meios prova testemunhal produzida em audiência e objecto de gravação, omitem os recorrentes, todavia, qualquer indicação das passagens da gravação em que fundam a impugnação deduzida à apreciação da matéria de facto, não o fazendo nem nas conclusões do recurso, que balizam o seu objecto, nem tão pouco no corpo das alegações, onde se limitam a incluir apontamentos dispersos de alguns testemunhos.
Como esclarece Abrantes Geraldes[1], “a rejeição do recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conc1usões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda, quando tenha sido correctamente executada pela secretaria a identificação precisa e separada dos depoimentos;
e) Falta de apresentação da transcrição dos depoimentos oralmente produzidos e constantes de gravação quando esta tenha sido feita através de mecanismo que -não permita a identificação precisa e separada dos mesmos;
f) Falta de especificação dos concretos meios probatórios oralmente produzidos e constantes de gravação quando, tendo esta sido efectuada por meio de equipamento que permitia a indicação precisa e separada, não tenha sido cumprida essa exigência por parte do tribunal;
g) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos para que possa afirmar-se a exigência de algum dos elementos referidos nas anteriores alíneas b) e c)”.
E acrescenta o mesmo autor: “importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2ª instância. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”[2].
Já no preâmbulo do Decreto - Lei n.º 39/95, de 15/02, que introduziu o artigo 690º-A do Código de Processo Civil, na versão anterior à do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, se fazia constar: a consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto não deverá redundar na criação de factores de agravamento da morosidade na administração da justiça civil. Importava, pois, ao consagrar tão inovadora garantia, prevenir e minimizar os riscos de perturbação do andamento do processo, procurando adoptar um sistema que realizasse o melhor possível o sempre delicado equilíbrio entre as garantias das partes e as exigências de eficácia e celeridade do processo... A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”.
Tal orientação foi claramente reafirmada na última reforma legislativa de 2007, como expressamente decorre do artigo 685º-B, já referido, tendo sido até reforçada pelo novo Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2003, de 26 de Junho[3].
Como é afirmado por Abrantes Geraldes[4], “com o art. 640º do novo CPC o legislador visou dois objectivos: sanar dúvidas que o anterior preceito suscitava e reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a decisão alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova”.
Das normas em causa ressaltam essencialmente duas conclusões a reter:
A primeira reporta-se ao âmbito da impugnação da matéria de facto: só é possível uma impugnação delimitada, discriminada, não sendo admissível uma oposição genérica, indiferenciada do decidido. Como salienta Lopes do Rego[5], «…o alegado “erro de julgamento” normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo “facto”, mas apenas sobre determinado e específico aspecto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente».
A segunda refere-se à indicação dos meios probatórios que suportam a divergência quanto ao julgamento da matéria de facto: o recorrente deve indicá-los, de forma precisa e individualizada, reportando-os ao concreto segmento da decisão impugnada, pois que não é mister da segunda instância proceder à reapreciação da globalidade dos meios de prova produzidos.
No caso específico da prova testemunhal, o cumprimento desse ónus não se satisfaz com a mera identificação das testemunhas cujos depoimentos servem de suporte à discordância traduzida nas alegações de recurso, e com a remissão para a transcrição, integral ou parcial, dos mesmos depoimentos.
Exige-se que o recorrente identifique, de forma precisa e concreta, qual a parte decisória que pretende impugnar e que indique, de forma individualizada, com referência a cada um dos factos ou grupo de factos impugnados, os meios de prova que suportam a divergência.
O ónus específico que o anterior artigo 685º-B do Código de Processo Civil e actualmente o artigo 640º do NCPC faz recair sobre o recorrente mais não é do que uma manifestação de princípios processuais fundamentais como o da cooperação, da lealdade e da boa-fé, assegurando a seriedade do próprio recurso interposto, evitando que o mesmo seja usado com fins meramente dilatórios, com o único propósito de protelar o trânsito da decisão[6].
De acordo com as “linhas orientadoras da nova legislação processual civil”[7], um dos objectivos essenciais da reforma do processo civil consistia em assegurar a “efectiva existência de um segundo grau de jurisdição na apreciação de questões de facto, em articulação com o princípio do registo das audiências e da prova nela produzida”, mas para que tal não constituísse um factor de acentuada morosidade na segunda instância, ressalva-se a necessidade de alteração do “ónus de alegação e formulação de conclusões pelo recorrente que impugne a matéria de facto, incumbindo-lhe a indicação precisa, clara e determinada dos concretos pontos de facto em que diverge da apreciação do tribunal, devendo fundamentar a sua divergência com expressa advertência às provas produzidas - procurando-se, por esta via, tornar praticável uma verdadeira reapreciação dos concretos pontos de facto controvertidos, sem custos desmedidos em termos de morosidade na apreciação dos recursos”.
O legislador fulmina com a rejeição do recurso, relativamente à impugnação da matéria de facto, a falta de cumprimento de qualquer dos ónus impostos pelo nº1 do artigo 685º-B do Código de Processo Civil, ou nºs 1 e 2 do artigo 640º da novel lei processual civil, sem possibilidade sequer de correcção dessa omissão na sequência de despacho de aperfeiçoamento, que não tem de ser proferido para sanar tais situações[8].
No caso concreto, esse ónus de identificação concreta e exacta das passagens da gravação em que os apelantes fundam o seu recurso não se mostra minimamente cumprido, não os desonerando do dever desse cumprimento o facto de haverem parcialmente transcrito algumas passagens de depoimentos prestados em audiência, como claramente resulta da redacção da alínea a) do nº1 do artigo 640º do Código de Processo Civil.
Mesmo concebendo de forma mais flexível a exigência das condições de preenchimento daquele ónus por parte dos recorrentes – admitindo que a deficiência do seu cumprimento nas conclusões recursivas possa ser suprida no corpo das alegações -, no caso aqui em análise também nessa sede não se mostra integralmente cumprido aquele ónus específico.
Desta forma, e pelas razões expostas, decide-se rejeitar o recurso na parte em que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, que, deste modo, se mantém inalterada.
2. Do mérito do julgado
2.1. Da responsabilidade
Incidindo ambos os recursos interpostos sobre a questão da responsabilidade (sua existência, natureza e medida) por razões de coerência metodológica passar-se-á, na sua análise, à indagação do conjunto de questões suscitadas por ambos os recorrentes.
Dispõe o artigo 483º, nº 1 do Código Civil: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Da simples leitura do preceito, resulta que, no caso de responsabilidade por facto ilícito, vários pressupostos condicionam a obrigação de indemnizar que recai sobre o lesante, desempenhando cada um desses pressupostos um papel próprio e específico na complexa cadeia das situações geradoras do dever de reparação.
Reconduzindo esses pressupostos à terminologia técnica assumida pela doutrina, podem destacar-se os seguintes requisitos da mencionada cadeia de factos geradores de responsabilidade por factos ilícitos: a) o facto; b) a ilicitude; c) imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Assim, antes de mais, para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário que o agente tenha actuado com culpa, pois a responsabilidade objectiva ou pelo risco tem carácter excepcional, como se depreende da disposição contida no nº 2 do citado preceito legal.
Com efeito, a responsabilidade civil, em regra, pressupõe a culpa, que se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente para com o facto. Aqui operam as fundamentais modalidades de culpa: a mera culpa (culpa em sentido estrito ou negligência) e o dolo, traduzindo-se aquela no simples desleixo, imprudência ou inaptidão, e esta na intenção malévola de produzir um determinado resultado danoso (dolo directo), ou apenas aceitando-se reflexamente esse efeito (dolo necessário), ou ainda correndo-se o risco de que se produza (dolo eventual).
Em termos de responsabilidade civil consagra-se a apreciação da culpa em abstracto, ou seja, desde que a lei não estabeleça outro critério, a culpa será apreciada pela diligência de um bom pai de família (in abstracto), e não segundo a diligência habitual do autor do facto ilícito (in concreto)[9]. Como sustenta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.01.2008[10], “a lei ficciona um padrão ideal de comportamento que seria o que um homem medianamente sensato e prudente adoptaria se estivesse colocado diante das circunstâncias do caso concreto – critério do “bonus pater familias”; irreleva a diligência normalmente usada pelo agente”.
A culpa define-se, para este efeito, na circunstância de uma determinada conduta poder merecer reprovação ou censura do direito, ou seja, importará sempre avaliar se o lesante, face à sua capacidade e às circunstâncias concretas do caso em que actuou, podia e devia ter agido de outro modo[11].
Causa de um acidente é a acção ou omissão normalmente idónea a produzi-lo. Tem tais características, a acção ou omissão que, no consenso da generalidade das pessoas medianamente prudentes, colocadas nas circunstâncias do caso, e segundo um juízo de prognose póstumo e de acordo com as regras da experiência comum ou conhecida do agente, é apta a produzir o evento danoso[12].
Via de regra, e segundo o disposto no artigo 487º do Código Civil, incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão[13], mas casos há em que a lei estabelece presunções de culpa do responsável.
Nas acções de indemnização por facto ilícito, embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, essa sua tarefa está aliviada com o recurso à chamada prova de primeira aparência (presunção simples). Em princípio procede com culpa o condutor que, em contravenção aos preceitos estradais, cause danos a terceiros, ideia que pacificamente encontra eco na jurisprudência dos tribunais portugueses.
Ou seja: “sob pena de tornar-se excessivamente gravoso ou incomportável, o ónus probatório instituído no art. 487.º C.Civ. deverá ser mitigado pela intervenção da denominada prova prima facie ou de primeira aparência, baseada em presunções simples, naturais, judiciais, de facto ou de experiência - praesumptio facti ou hominis, que os arts. 349º e 351º C.Civ. consentem, precisamente enquanto deduções ou ilações autorizadas pelas regras de experiência - id quod plerumque accidit (o que acontece as mais das vezes) (…) Como assim, e dum modo geral, a ocorrência de situação que em termos objectivos constitua contravenção de norma(s) do Código da Estrada importa presunção simples ou natural de negligência, que cabe ao infractor contrariar, recaindo sobre ele o ónus da contraprova, isto é, de opor facto justificativo ou factos susceptíveis de gerar dúvida insanável no espírito de quem julga…”[14].
Do acervo factual apurado em julgamento resulta demonstrado que o veículo ..-..-SG, seguro na Ré, provinha da Rua … e, sem parar ou diminuir a velocidade a que seguia, entrou no entroncamento formado por aquela Rua, pela Rua …, pela Rua … e pela E.N. ….
Quando já havia saído da Rua da Ribeira e atravessava o aludido entroncamento, o veículo ..-..-SG foi embatido na parte lateral esquerda, junto à roda dianteira, pelo motociclo ..-GJ-.., conduzido pelo Autor, que, proveniente da Rua …, pretendia mudar de direcção para o seu lado direito e passar a circular pela Rua ….
O embate verificou-se fora da faixa de rodagem da Rua …, já na zona do entroncamento da Rua … com a Rua ….
A Rua …, atento o sentido do Autor, entronca, do seu lado direito, com a Rua …, não tendo o Autor cedido a passagem ao veículo ..-..-SG, que se lhe apresentava pela direita.
Segundo o nº1 do artigo 30º do Código da Estrada, “nos cruzamentos e entroncamentos o condutor deve ceder a passagem aos veículos que se lhe apresentem pela direita”, determinando o nº1 do artigo 29º do mesmo diploma legal que “o condutor sobre o qual recaia o dever de ceder a passagem deve abrandar a marcha, se necessário parar, ou, em caso de cruzamento de veículos, recuar, por forma a permitir a passagem de outro veículo, sem alteração da velocidade ou direcção deste”.
Não subsistem quaisquer dúvidas que este comportamento infractor do Autor, ao violar o dever de ceder a prioridade ao veículo automóvel que se lhe apresentava pela direita, foi causal do acidente em que ele próprio se viu envolvido.
Resta ainda assim indagar se concorre alguma outra causalidade para a produção do acidente, quer a título de culpa, quer mesmo a título de risco.
Já no Acórdão Relação do Porto, 16.03.73[15] se defendia: “não podendo atribuir-se culpa no acidente a qualquer dos condutores dos veículos colidentes, não obstante a responsabilidade civil brotar, como regra geral, dos factos ilícitos culposos (artº 483º do Código Civil), há que atender à chamada responsabilidade civil objectiva ou pelo risco, a qual se reveste, na nossa lei, de natureza excepcional (artigos 483º, nº2, 499º, e 503º do Código Civil)”.
Defende, sem oscilação, a jurisprudência, ser possível a convolação para a responsabilidade pelo risco do pedido de indemnização fundado apenas na culpa, não provada[16].
Como esclarece o Acórdão da Relação de Évora, de 02.07.75[17]: “o risco em matéria de acidente de viação provém do perigo que os veículos em marcha representam para a circulação rodoviária e para as pessoas”.
Tem sido largamente debatido na jurisprudência e na doutrina a questão de se saber se, perante a existência de culpa, mas não exclusiva, do lesado no acidente de viação de que foi vítima, e ausência de culpa, pelo menos demonstrada, do condutor do outro veículo automóvel interveniente no mesmo acidente, é admissível o concurso entre culpa e risco, na linha do entendimento da mais recente jurisprudência e doutrina, ou se, como é sustentado pela mais tradicional jurisprudência, a existência de culpa do lesado, ainda que não exclusiva, afasta a possibilidade de concurso com a responsabilidade do titular da direcção efectiva do veículo, assente no risco.
Esta última posição ancora nos ensinamentos do Prof. Antunes Varela para quem o artigo 505º do Código Civil coloca um inultrapassável problema de causalidade: sempre que ocorra uma das circunstâncias nele contempladas (acidente imputável ao lesado, por facto culposo ou não, ou a terceiro, ou quando o acidente tenha resultado de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo) ocorre uma quebra do nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano, afastando a possibilidade de responsabilidade objectiva do detentor do veículo por risco inerente à sua utilização.
A tese defendida pelo Prof. Vaz Serra, nos trabalhos preparatórios do Código Civil, no sentido da admissibilidade de concorrência entre responsabilidade pelo risco do detentor ou condutor do veículo e responsabilidade emergente de culpa do próprio lesado, não logrou então obter vencimento, não tendo sido acolhida no texto definitivo do aludido diploma a sua proposta de consagração de preceito enunciador dessa possibilidade.
Mas não obstante a sucumbência dessa sua proposta, mesmo após publicação do Código Civil continuou este Professor a defender a tese favorável à admissibilidade da aludida concorrência, argumentando, por um lado, que a expressão “acidente imputável ao lesado” inserida no artigo 505º do Código Civil deve ser entendida com o significado de acidente devido unicamente a facto do lesado, e, por outro, havendo similitude entre a situação de concorrência entre risco e culpa e a situação contemplada no artigo 570º do mencionado diploma, deve este ser aplicado por analogia, o que leva à aplicação das regras gerais sobre a conculpabilidade do lesado.
Também o Prof. Calvão da Silva vem pugnando pela tese da admissibilidade de concorrência entre culpa do lesado e risco inerente ao veículo, quando ambos os factos em causa contribuem para a produção do dano. Na análise interpretativa que faz do artigo 505º do Código Civil, sustenta este Autor que a ressalva consagrada na parte inicial do preceito (“sem prejuízo do disposto no artigo 570º”) reporta-se à responsabilidade objectiva fixada no nº1 do artigo 503º do citado diploma, pelo que a concorrência entre a culpa do lesado do artigo 570º e o risco da utilização do veículo do artigo 503º resulta do disposto no artigo 505º, só sendo excluída a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável, ou seja exclusivamente devido, com ou sem culpa, ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando ele resulte, também exclusivamente, de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Isto é, para este Autor, sem prejuízo do concurso com a culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando a acidente se dever unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando o mesmo resulte exclusivamente de causa de força maior alheia ao funcionamento do veículo.
Também Brandão Proença[18] se tem pronunciado, a propósito da questão em debate, pela necessidade de introdução de uma interpretação mais actualista e harmoniosa dos preceitos em análise, que não exclua liminarmente a possibilidade de concurso entre responsabilidade decorrente do perigo da utilização do veículo e a que deriva de facto (culposo ou não) imputável ao lesado: “numa época em que a relação pura de responsabilidade, nos domínios do perigo criado por certas actividades, se enfraqueceu decisivamente, não parece compreensível, a não ser por preconceitos lógico-formais, excluir liminarmente o concurso de uma conduta culposa (ou mesmo não culposa) do lesado, levando-se a proclamada excepcionalidade do critério objectivo às últimas consequências”[19].
Pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.10.2007[20]: “a este entendimento doutrinal mais moderno, de afirmação da concorrência do risco com a culpa da vítima – para cujo desenvolvimento é de justiça salientar também o papel dos estudos desenvolvidos por JORGE SINDE MONTEIRO desde há quase 30 anos Cfr. “Responsabilidade civil”, in RDEc., ano IV, n.º 2, Jul./Dez. 1978, pág. 313 e ss., e “Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguro de acidentes, in RDEc., ano V, n.º 2, Jul./Dez. 1979, pág. 317 e ss. e ano VI/VII, 1980/1981, pág. 123 e ss. – têm aderido outros prestigiados juristas, como ANA PRATA Cfr. o estudo intitulado “Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela”, in Estudos em comemoração dos cinco anos da Fac. de Direito da Univ. do Porto, 2001, pág. 345 e ss., merecendo referência o actual posicionamento do Prof. ALMEIDA COSTA, que, tendo seguido, durante muito tempo, a posição tradicional, na esteira de A. VARELA, se mostra agora sensível à argumentação de BRANDÃO PROENÇA e dos demais arautos da tese da concorrência “Se um facto do próprio lesado, (...) concorrer com a culpa do condutor, a responsabilidade poderá ser reduzida ou mesmo excluída, mediante aplicação do artigo 570º. E, de igual modo, existindo concorrência de facto de terceiro, quanto à repartição da responsabilidade. Ora, valerá esta doutrina para o caso de haver concurso de facto da vítima ou de terceiro, já não com a culpa do condutor, mas com o risco do veículo? Respondem afirmativamente VAZ SERRA, (...), PEREIRA COELHO, (...), SÁ CARNEIRO, (...), e por último BRANDÃO PROENÇA, (...). Afiguram-se-nos ponderosas as considerações aduzidas, designadamente na perspectiva da tutela do lesado” (Direito das Obrigações, 10ª ed. reelaborada, Almedina, Setembro/2006, pág. 639, nota 1..
Entre os práticos do direito tem sido o Juiz Desembargador AMÉRICO MARCELINO, com argumentação consistente, um estrénuo defensor deste entendimento Cfr. “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 8ª ed. revista e ampliada, pág. 309 e ss.”.
E acrescenta o mesmo acórdão: “…não podemos deixar de ponderar a justeza da crítica, que à corrente tradicional tem sido dirigida, de conglobar, na dimensão exoneratória da norma do art. 505º, tratando-as da mesma forma, situações as mais díspares, como sejam os comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por um medo invencível ou por uma reacção instintiva, os eventos pessoais fortuitos (desmaios e quedas), os factos das crianças e dos (demais) inimputáveis, os comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, o descuido provocado pelas más condições dos passeios, uniformizando, assim, “as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidentes de viação”, “desvalorizando a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária”, e conduzindo, muitas vezes, a resultados chocantes.
Tal corrente mostra, ademais, na sua inflexibilidade e cristalização, uma insensibilidade gritante ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário – e tendo por escopo a garantia de uma maior protecção dos lesados – do âmbito da responsabilidade pelo risco, que tem tido tradução em vários diplomas (a que faremos alusão mais adiante) cujo relevo maior radica, por um lado, na exigência, como circunstância exoneratória, de culpa exclusiva do lesado, e, por outro, na expressa consagração, no sector da responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos, da hipótese de concorrência entre o risco da actividade do agente e “um facto culposo do lesado” (art. 7º/1 do Dec-lei 383/89, de 6 de Novembro).
Esta evolução legislativa não pode, a nosso ver, ser ignorada, e dela devem ser retiradas “as devidas consequências para uma actualização interpretativa da rigidez normativa do Código Civil, tanto mais que a partir de meados da década de 80 passaram a coexistir dois regimes diferenciados, ou seja, o rígido sistema codificado e uma série de subsistemas imbuídos de um escopo protector e direccionado para os lesados” Autor e loc. cits. na nota anterior, pág. 29.
Como não deve ser ignorado o papel das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e a sua influência no direito da responsabilidade civil do próprio Código Civil. Sendo embora certo que, como é entendimento do Tribunal de Justiça, “na falta de regulamentação comunitária que precise qual o tipo de responsabilidade civil relativa à circulação de veículos que deve ser coberta pelo seguro obrigatório, a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-Membros”, não deixa de ser igualmente verdade que as soluções decorrentes da interpretação das disposições das directivas ou do seu efeito útil penetram (ou devem penetrar) as legislações nacionais nesse domínio; e a sua influência no direito português é visível, quer na erradicação, do texto do art. 504º, dos limites aí estatuídos para a responsabilidade do transportador a título gratuito, quer na alteração dos limites máximos indemnizatórios do art. 508º.
A corrente jurisprudencial tradicional é igualmente insensível à filosofia que dimana do regime, estabelecido no Código do Trabalho, para os acidentados laborais, onde se estabelece que o dever de indemnização do empregador só é excluído se o acidente “provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.
Estas são razões com força suficiente, a nosso ver, para pôr de remissa a interpretação jurisprudencial a que vimos aludindo”.
A propósito do acórdão citado, a cuja fundamentação também adere, esclarece o acórdão da Relação de Coimbra de 03.06.2008[21]: “está em causa neste aresto a interpretação que parte significativa da nossa doutrina vinha adiantando, com base na crítica ao entendimento tradicional de referir o sentido exoneratório do artigo 505º do CC a todas as situações de culpa do lesado ou de causalidade exterior ao lesante”.
Explica o recente acórdão da mesma Relação de 29.05.2012: “A doutrina dominante[…] era (…) a de uma interpretação estritamente causalista da norma contida no artº 505 do Código Civil que enfatizava o primado da culpa, não admitindo qualquer solução ponderativa: a concepção, mais preocupada com a função reparadora da responsabilidade civil e com a tutela da vítima e que, em coerência rejeitava a visão absorvente da culpa do lesado, era nitidamente minoritária.
Simplesmente, é claro que o entendimento, doutrinaria e jurisprudencialmente dominante, do problema – assente numa solução extremista de tudo ou nada[…] – uniformiza as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidentes de viação e desvaloriza a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária, conduzindo, por vezes, a resultados chocantes, formalmente exactos mas materialmente inexplicáveis[…].
Sensível ao irrecusável desamparo do lesado que decorre de uma leitura da norma considerada à luz estrita da causalidade – sobretudo nos casos em que o dano é atribuído exclusivamente a uma falta leve do lesado e à conduta inesperada de pessoas desadaptadas ao tráfego[…], em atenção à pouca mobilidade e à dificuldade de percepção da pessoa idosa ou deficiente e à normal imprudência da criança que se atravessa de repente na via ou que corre atrás de uma bola – e impressionada pelo nada indemnizatório como preço de pequenos descuidos, a doutrina mais recente orienta-se para a admissibilidade da concorrência do riso com a culpa do lesado, ou mais exactamente, do concurso do risco com o facto, culposo ou não, da vítima, só excluindo a responsabilidade objectiva do detentor do veículo quando o acidente seja devido, com ou sem culpa, unicamente ao próprio lesado ou a terceiro[…].
E a jurisprudência não deixou de se mostrar permeável a esta evolução doutrinária. Exemplo acabado disso mesmo é, decerto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 2007[…] que – de forma não inteiramente acorde – concluiu que o artº 505 do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso a culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veiculo”.
Entendendo ser cada vez mais defensável uma interpretação actualista do artigo 505º do Código Civil, que não exclui a possibilidade de concorrência com a responsabilidade objectiva resultante do risco subjacente à utilização de veículo interveniente em acidente de viação, de acordo com os fundamentos espelhados na doutrina citada e jurisprudência mais recente, designadamente no mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.10.2007, sempre, no caso concreto, se afigura inaplicável tal entendimento, por se concluir que foi a actuação negligente do Autor/lesado, a única a concorrer para a produção do acidente.
Com efeito, tal como ficou demonstrado, a condutora do veículo ..-..-SG, F… antes do embate circulava na Rua … em direcção à Rua …, fazendo-o pela metade direita da faixa de rodagem, e a uma velocidade de cerca de 40/50 Km/h.
É certo que ao sair da Rua … e ao entrar no entroncamento não parou, nem abrandou a marcha, mas nada lhe impunha comportamento distinto, uma vez que gozava de prioridade de passagem em relação ao trânsito que se lhe apresentava pela sua esquerda.
Ao invés, o Autor, provindo de uma via situada à esquerda da Rua … quando nela entronca, desrespeitou o dever de ceder a passagem aos veículos vindos da Rua …, como o conduzido por F…, que gozam de prioridade para entrarem no entroncamento, tendo sido esta sua conduta infractora a causadora exclusiva do acidente, que, de resto, ocorreu quando o veículo ..-..-SG já havia saído da Rua … e atravessava o entroncamento.
Deve, assim, concluir-se que a produção do acidente ficou a dever-se em exclusivo a culpa do próprio lesado – o Autor -, o que constitui circunstância excludente da responsabilidade da demandada pela reparação dos danos por ele sofridos.
Improcedem, consequente, as conclusões de recurso, impondo-se a manutenção do decidido.

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Síntese conclusiva:
- Uma interpretação actualista do artigo 505º do Código Civil não exclui a possibilidade de concorrência com a responsabilidade objectiva, associada ao risco inerente à circulação do outro veículo também interveniente no acidente de viação.
- Essa concorrência, porém, não se configura quando o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do próprio lesado, constituindo esta uma circunstância excludente da responsabilidade do outro interveniente no acidente.
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, julgando improcedente a apelação, confirmar a sentença recorrida
Custas pelos apelantes.

Porto, 12 de Junho de 2014
Judite Pires
Teresa Santos
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, págs. 146, 147.
[2] Cfr. ainda acórdão da Relação de Coimbra de 11.07.2012, processo nº 781/09.6TMMGR.C1, www.dgsi.pt.
[3] Artigo 640º do novo diploma; cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2013, pág. 123 a 130.
[4] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 126.
[5] “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, pág. 608.
[6] Cfr. citado Preâmbulo.
[7] Ministério da Justiça e revista Sub Judice, 1992, IV.
[8] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 142, Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª ed., pág. 466, Lopes do Rego, ob. cit., pág. 150; cfr. ainda, entre outros, acórdãos da Relação de Coimbra de 14.02.2012, processo nº 1110/08.1TBILH.C1, de 20.03.2012, processo nº 21/09.8TBSRE.C1, de 15.05.2012, processo nº 285/09.7TBAVR.C1, todos em www.dgsi.pt.
[9] Acórdão do STJ, 18.05.2006, procº nº 06B1644, www.dgsi.pt.
[10] www.dgsi.pt.
[11] cf. Antunes Varela, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 102º, pág. 8 e ss.
[12] Neste sentido, Acórdão Relação do Porto, 14/3/89, BMJ 385º, 603.
[13] O que, de resto, se coaduna com as regras gerais da repartição do ónus da prova, plasmadas no artigo 342º do Código Civil, já que a culpa, sendo um dos pressupostos que integra e fundamenta o dever de indemnizar, é um facto constitutivo do direito a que o lesado se arroga; cf. ainda, neste sentido, entre outros, Acórdãos do STJ, 12.07.2005, 21.11.2006, 13.11.2008, Acórdão desta Relação, de 21.09.2004, todos em www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2009, Processo n.º 04B2638, www.dgsi.pt.
[15] BMJ 226º-271; cfr. ainda Acórdão Relação de Coimbra, 25.07.75, BMJ 251º-213, Acórdão Relação de Coimbra, 02.02.82, Colectânea de Jurisprudência 1982, 1, 95.
[16] Entre outros, Acórdão Relação de Lisboa, 09.05.78, Colectânea de Jurisprudência 1978, 3, 921; Acórdão Relação de Coimbra, 18.02.76, Colectânea de Jurisprudência 1976, 1, 33; Acórdão Relação Évora, 02.07.75, BMJ 250º- 219; Acórdão Relação de Lisboa, 03.07.74, BMJ 239º-255.
[17] BMJ 250º-219.
[18] “A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual”, Almedina, Coimbra, 1997.
[19] Ob. cit., pág. 276.
[20] Processo nº 07B1710, www.dgsi.pt.
[21] Processo nº 801/2002.C1, www.dgsi.pt.