DESPEJO
EMBARGOS DE TERCEIRO
CÔNJUGE
Sumário

Tendo a acção de despejo sido proposta e corrido termos contra o arrendatário habitacional, com fundamento em falta de residência no locado, não goza o cônjuge da faculdade de deduzir embargos de terceiro contra a execução da respectiva acção condenatória.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1 - No Tribunal Cível da comarca de Lisboa, com distribuição à 1 secção do 17 Juizo, (A) propôs acção de despejo contra (B), para resolução de um contrato de arrendamento segundo o qual o réu era inquilino habitacional do 2 andar esquerdo do prédio urbano sito na Calçada do Monte, n. 86 e 86-A, em Lisboa.
Transitada em julgado a sentença que julgou a acção procedente e condenou o réu a despejar imediatamente o local arrendado, requereu o senhorio a passagem do competente mandado de despejo.
Então, (C), na qualidade de esposa do arrendatário, veio deduzir embargos de terceiro, alegando não ter intervindo na acção e o local despejando ser a casa de morada da sua família e do Réu.
Os embargos foram rejeitados com o fundamento de a embargante não ser titular de qualquer posse sobre o andar em causa, visto que só o seu marido é que assinou o contrato de arrendamento habitacional e a posição do arrendatário habitacional não se comunica à esposa deste.
Inconformada, traz a embargante o presente recurso de agravo, pedindo a revogação do despacho recorrido.
Os embargados sustentam a posição contrária.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - A agravante remata a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. O douto despacho recorrido reconheceu à embargante a qualidade de terceiro, nos termos e para os efeitos do art. 1037 do CPC.
2. A embargante é casada com o réu na acção de despejo, sob o regime de comunhão geral de bens.
3. Quando seu marido tomou de arrendamento em 1 de Outubro de 1961 a casa dos autos, instalaram aí a casa de morada da família.
4. A embargante coabitou sempre com o seu marido
- arrendatário, pelo que "o contacto material do cônjuge com a coisa justifica a extensão da tutela apesar da incomunicabilidade do arrendamento".
5. A defesa da posse do arrendatário é facultada tanto ao arrendatário como ao seu cônjuge quando está em causa, como era o caso, a casa de morada da família.
6. O direito ao arrendamento da casa de morada da família, não obstante a sua incomunicabilidade ao cônjuge não arrendatário, faz parte do património comum do casal.
7. A posse do cônjuge do arrendatário pode ser defendida por meio de embargos de terceiro, como de resto é reconhecido pela jurisprudência e doutrina.
8. Por último, o douto despacho recorrido não especifica qual "o motivo susceptível de comprometer o êxito dos embargos" pelo que, ressalvando o devido respeito foi violado o art. 1041 do CPC.
3 - Vem provado:
- A embargante contraíu casamento com (B) em 22-08-49 (fls. 4).
- Em 01-10-61 (B) tomou de arrendamento, para habitação, o 2 andar esquerdo do prédio urbano sito na Calçada do Monte n. 86,
Lisboa (fls. 8 do apenso).
- Em acção de despejo proposta por (A) contra o dito arrendatário, este invocou na contestação, a sua ilegitimidade por se encontrar desacompanhado da sua esposa e tratar-se da casa de morada da sua família (fls. 17 do apenso).
- Aquela excepção foi julgada improcedente por despacho transitado em julgado (fls. 30 e 94 do apenso).
- Por sentença de 17-05-91, tansitada em julgado, provou-se que há mais de dois anos (considerada a data da sentença) que o arrendatário não habita no arrendado e há mais de dois anos que ele e a sua mulher habitam e têm instalada a sua vida familiar no n. 52 da Rua C do Bairro da Silveira, em Sobreda da Caparica (fls. 64 e seguintes do apenso).
- Na mesma sentença foi declarada a resolução do contrato e ordenado o despejo imediato do local arrendado por falta de residência permanente, nos termos da alínea i) do n. 1 do art. 1093 do CC (fls. 64 e seguintes do apenso).
- Tal sentença foi confirmada, naquela parte, por acórdão desta Relação de 02-07-92 (fls. 94 e seguintes do apenso).
4 - Invoca a embargante a sua qualidade de terceiro e a função de casa de morada da sua família do local despejando.
Desde já se avança que carece de razão.
5 - Nos termos do art. 1038 do CPC, o cônjuge do executado pode deduzir embargos de terceiro quando seja terceiro e tenha a posse sobre os bens atingidos pela diligência judicial ofensiva dessa posse.
A nossa jurisprudência entende, maioritariamente, que, tendo a acção de despejo corrido termos tão só contra o arrendatário habitacional, o seu cônjuge, não arrendatário, não goza da faculdade de se servir dos embargos de terceiro, na execução da respectiva sentença condenatória. Aduz-
-se que, no arrendamento habitacional, o cônjuge não arrendatário não tem acesso aos meios possessórios porque o disposto no n. 2 do art.
1037 CC é excepcional, a posição do arrendatário habitacional não se comunica ao seu cônjuge (art.
1110-1 CC, actualmente art. 83 RAU aprovado pelo
DL n. 321-B/90, de 15 de Outubro), é meramente adjectiva a norma do n. 1 do art. único da Lei n. 35/81, de 27 de Agosto, segundo o qual devem ser propostas contra o marido e a mulher as acções que tenham por objecto directa ou indirectamente a casa de morada da família, e nos arts. 1682-A e 1682-B do CC não se previne o caso de o cônjuge arrendatário ser demandado com vista à resolução do contrato de locação.
É o que decorre dos doutos acórdãos do STJ de 06-03-86, 15-04-86, 28-05-86 e 29-06-89 (BMJ ns.
355, 356, 357 e 388, págs. 346, 291, 345 e 467, respectivamente) e ac. Relação de Lisboa de 15-11-90 (Col. Jur. ano XV, tomo 5, pág. 117).
Na corrente minoritária daqueles que sustentam a tese contrária e, portanto, entendem que o cônjuge do arrendatário habitacional que não tenha sido parte na acção de despejo tem a faculdade de deduzir embargos de terceiro na execução da respectiva sentença condenatória, figuram os acórdãos desta Relação de 13-11-81, 14 de Julho de 1987 e 09-02-88 (Col. Jur. anos VI, tomo 5,
XII tomo 4 e XIII tomo 1, págs. 137, 134 e 125 respectivamente). O primeiro entende que, com o acrescentamento dos arts. 1682-A e 1682-B do CC, se procurou defender o direito à habitação do cônjuge não proprietário ou não arrendatário e respectivo agregado familiar e que o cônjuge do arrendatário tem a posse material sobre o local arrendado. O segundo entende que a reforma de 1977 do CC e a Lei n. 35/81 estenderam ao cônjuge a situação do arrendamento para habitação celebradao pelo outro cônjuge. O terceiro, acusando a corrente maioritária de conceitualista, vai mais longe: partindo do princípio de que a "CRP erigiu o direito à habitação em princípio constitucional", que "o DL n. 496/77 não se limita a satisfazer o imperativo constitucional em termos formais", que "foi posto em crise, nas suas consequências, o art. 1110 n. 1", conclui que "é manifesto que relativamente à casa de morada da família o legislador considera tão relevante a situação do arrendatário como a do respectivo cônjuge".
6 - Estamos com a orientação predominante na nossa jurisprudência.
A introdução, no CC, dos arts. 1682-A e 1682-B pelo DL n. 496/77, de 25 de Novembro, não visou a protecção do direito à habitação consagrado no art. 65 da CRP. Como resulta do seu n. 2, o direito à habitação pressupõe uma relação jurídica que tem como sujeitos, pelo lado activo o cidadão e pelo lado passivo o Estado. O Estado, não o senhorio, é que está obrigado a assegurar o direito à habitação dos cidadãos, através de uma política global e integrada, desenvolvida com a promulgação de normas de direito público, as quais nunca teriam assento no CC, compilação de normas de direito privado.
O DL n. 496/77 visou adaptar o CC aos novos pricípios consagrados no art. 36 da CRP, dos quais sobressai, pela sua novidade, o do n. 3:
"Os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto
à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos".
Deste modo foi substituido o princípio do poder marital pelo princípio de igualdade jurídica dos cônjuges.
Daí o disposto no art. 1671 CC, na redacção do
DL n. 496/77.
Ora, como notam Pires de Lima e Antunes Varela
(CC Anotado, IV, pág. 254), o princípio da igualdade jurídica dos cônjuges foi desdobrado no
CC em duas direcções: por um lado, "no plano interno da relação conjugal, prescreveu-se que são iguais os direitos e deveres do marido e da mulher; sob outro ângulo, olhando aos poderes do marido e da mulher relativamente à família que constituem através do casamento, a lei desdobra o princípio constitucional da igual capacidade civil dos cônjuges em dois corolários sucessivos: a direcção conjunta da família e o dever dos cônjuges em acordarem sobre a orientação da vida em comum, pondo em linha de conta não só a conciliação dos interesses pessoais de um e outro mas também as necessidades dos filhos e de outros parentes que vivam com eles".
Há, assim, que distinguir os poderes do marido e da mulher relativamente à família, nascidos com o casamento - poderes-deveres ou funcionais - dos direitos pessoais de um e outro - verdadeiros direitos subjectivos.
Ora, quando, no art. 1673 CC, se determina que os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família, a lei refere-se, obviamente, aos poderes funcionais dos cônjuges, dentro do princípio da direcção conjunta da família, só indirectamente protegendo o seu interesse pessoal.
Igualmente a exigência, contida no n. 2 do art.
1682-A, do consentimento de ambos os cônjuges para a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família é um corolário do princípio da direcção conjunta da família.
O mesmo vale para o art. 1682-B, exigindo o consentimento de ambos os cônjuges, quando se trate de casa de morada da família, para a resolução ou denúncia do contrato de arrendamento pelo arrendatário, ou para a revogação do arrendamento por mútuo consentimento (do arrendatário e do senhorio), ou para a cessão da posição do arrendatário, ou nos casos de subarrendamento ou empréstimo, total ou parcial.
Exigindo o mútuo consentimento dos cônjuges para a validade daqueles actos e, consequentemente, a possibilidade de anulação dos mesmos a pedido do cônjuge que não lhes deu o seu consentimento, a norma protege a estabilidade da casa de morada da família, em benefício, portanto, de todo o agregado familiar e, indirectamente, de cada um dos seus membros.
Se tivesse havido o propósito de atribuir ao cônjuge não arrendatário um direito subjectivo, então não se compreenderia por que razão não foi reconhecido o mesmo aos demais elementos do agregado familiar, designadamente os filhos.
Aliás, tal direito nunca poderia ter a natureza de direito real, como tem a posse, visto que o art. 1682-A, na alínea a) do n. 1 e no n. 2, expressamente se refere ao direito do arrendatário como um direito pessoal de gozo, não direito real.
Também não corresponde à realidade que o art. 1110-1 CC tenha sido posto em crise. Muito pelo contrário, visto que passou integralmente para o art. 83 do RAU de 1990. Certamente porque continua a entender-se, como em 1966, em relação ao disposto nos ns. 2 a 4 do art. 1110, que o regime descritivo no art. 84 é bastante para a protecção da casa de morada da família. Neste sentido, Pereira Coelho, Rev. Leg. Jur., ano 122, pág. 136.
De resto, como nota o mesmo autor (local citado, pág. 140), "a comunicabilidade do direito ao arrendamento significa apenas que a posição do cônjuge arrendatário se comunica ao outro, ou seja, que este também é arrendatário, para todos os efeitos daí decorrentes. Mas não significa mais do que isto. Não significa que a lei veja no direito de arrendamento habitacional um "elemento patrimonial comum" como qualquer outro, sujeito, por isso, às regras gerais da partilha".
E acrescenta:
"Qualquer que seja a opção do legislador sobre a comunicabilidade ou incomunicabilidade do direito ao arrendamento para habitação, a lei não pode desconhecer a singularidade deste direito, o qual, embora tenha conteúdo patrimonial, é constituído "intuitus personae" e, dada a sua finalidade, reveste um carácter pessoal que marca decisivamente importantes aspectos do seu regime".
Mas no art. 1682-b não se prevê a hipótese de resolução ou denúncia do contrato de arrendamento habitacional pelo senhorio contra a vontade do arrendatário. Tal direito do senhorio só pode ser exercido através da correspondente acção judicial - arts. 63-2 e 70 do RAU (correspondente aos arts.
1047 e 1097 do CC).
Pode suceder, todavia, na prática, que uma resolução ou denúncia aparentemente forçadas, por decretadas judicialmente, encubra uma resolução ou denúncia por mútuo consentimento do senhorio e do inquilino, devido a conluio entre ambos ou a deliberado desinteresse do réu em organizar a sua defesa. Em tais hipóteses, verifica-se uma fraude
à lei, a todos os títulos condenável.
A fim de evitar a fraude à lei substantiva (art.
1682-B do CC) e como corolário do princípio da direcção conjunta da família, a Lei 35/81 veio exigir que as acções que tenham por objecto directa ou indirectamente a casa de morada da família sejam propostas contra ambos os cônjuges, ainda que um deles não seja arrendatário.
Estabelecendo, em tais casos, um litisconsórcio necessário passivo, pressuposto da legitimidade passiva, a lei possibilita ao cônjuge não arrendatário, como co-dirigente familiar, fiscalizar a conduta processual do outro cônjuge, evitando possíveis conluios e desleixos, em benefício da estabilidade da casa de morada da família. E nada mais. Como refere o douto acórdão do STJ de 06-03-86, acima citado, a Lei 35/81 não concede qualquer direito de natureza substantiva. O cônjuge não arrendatário intervém na acção de despejo apenas na sua qualidade de co-dirigente da família, em defesa, portanto, da família, e, só indirectamente, de cada elemento do agregado familiar.
Se acaso a acção de despejo tem por objecto a casa de morada da família do réu e não foi demandado o seu cônjuge, que não foi parte no contrato de arrendamento, deve a acção ser indeferida in limine, nos termos da alínea b) do n. 1 do art. 474 do CPC. Não o tendo sido e a acção seguiu seus termos, tendo o réu oferecido a sua contestação sem haver suscitado tal questão e, efectuado o julgamento, foi proferida sentença condenatória, que transitou em julgado, ao cônjuge do réu nada mais resta do que acatar a decisão, embora não tenha intervindo na acção. Pois é de presumir que, vivendo com o réu na casa de morada da família, não desconhecia a pendência de tal acção de despejo, visto que não há segredos entre os cônjuges. Por isso, se não interveio na acção foi porque não quis manifestar vontade para tal.
Mas, se o cônjuge do arrendatário, não tendo intervindo na acção, suspeita de conluio entre as partes, então tem ao seu dispor o recurso de oposição de terceiro, regulado nos arts. 778 e seguintes do CPC.
Invocando o arrendatário a sua ilegitimidade por violação daquele litisconsórcio necessário, ou tendo o autor requerido a intervenção principal do cônjuge do arrendatário, e se em qualquer dos casos recaíu decisão de indeferimento transitada em julgado, por maioria de razão os embargos de terceiro são inadmissíveis, pois não seria justo sujeitar o senhorio aos mesmos por causa devida a acto do Juiz. No mesmo sentido, (D), A acção de despejo, pág. 81 e 82.
Ora, prova-se que, na acção de despejo em que foi proferida a sentença dada à execução, o réu invocou na contestação a sua ilegitimidade por se encontrar desacompanhado da sua esposa, e tal excepção foi julgada improcedente por despacho que transitou em julgado.
Assim, é de presumir que a embargante estava a par do que se passava e, se não interveio na acção, foi por tal não lhe ter sido admitido por decisão judicial. Logo, não há razão para que o senhorio seja surpreendido com os embargos de terceiro.
7 - Num ponto todos estão de acordo: a intervenção do cônjuge do arrendatário habitacional na acção de despejo só é legalmente necessária quando se trata da casa de morada de família, pois só nesse caso se encontra em perigo a estabilidade do lar.
Ora, geralmente, as acções de despejo propostas com o fundamento de falta de residência permanente não têm por objecto a casa de morada de família do réu ou do seu cônjuge. Com efeito, na maioria dos casos, a falta de residência permanente do inquilino no local arrendado significa que esse local deixou de constituir a casa de morada de família do arrendatário e do seu cônjuge.
E foi o que sucedeu no caso "sub judice", pois provou-se que o arrendatário deixou de habitar o local arrendado e passou a viver com a sua esposa, a embargante, há mais de dois anos (considerada a data da sentença) em outro local.
8 - Assim, para assegurar a legitimidade do réu, não se tornava necessária a intervenção de sua esposa.
E porque não se verificam os requisitos do art.
1038 CPC, os embargos de terceiro eram inadmissíveis.
9 - Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo por improcedente.
Custas pela agravante.
Lisboa, 15 de Dezembro, de 1993.