DESOBEDIÊNCIA
EMBARGO DE OBRA
BILHETE DE IDENTIDADE
Sumário

I – É punível como crime de Desobediência [art. 348º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal] a continuação de obra embargada pelo Município, ainda que o dono dela não tenha sido identificado no auto e na notificação através do bilhete de identidade.
II – O bilhete de identidade constitui documento bastante para provar a identidade civil do seu titular, mas a identificação dos cidadãos não tem obrigatoriamente de ser feita por referência ao bilhete de identidade.

Texto Integral

Processo n.º 54/11.4TABAO.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Baião

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório.
B… recorreu da sentença proferida no processo em epígrafe que o condenou, como autor material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, por referência ao disposto no artigo 100.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º555/99, de 16 de Dezembro, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, o que perfaz um total de €1.200,00, pedindo que a mesma seja revogada e o recorrente absolvido do crime de desobediência pelo qual foi acusado ou, para o caso de assim não se entender, deve levar-se em conta os factores atenuantes que referiu, os quais diminuem substancialmente a medida da pena de multa, ajustando-se a mesma à medida da culpa, concluindo a motivação com as seguintes conclusões:
1.ª Constitui condição objectiva de punibilidade do crime de desobediência, que a ordem ou o mandato legítimos, emanados de autoridade ou funcionário competente, sejam regularmente notificados ao destinatário respetivo.
2.ª No caso de suspensão de obra de urbanização em curso sem a necessária licença (como foi o caso), deve a ordem respectiva ser notificada, nomeadamente, a quem se encontre a executá-la, devendo constar do respectivo auto de embargo, obrigatória e expressamente, a identificação, também, do notificado.
3.ª Sendo que é o bilhete de identidade o documento idóneo a fazer prova da identidade civil do titular perante quaisquer entidades públicas ou privadas.
4.ª Ora, do auto de embargo junto aos autos a folhas 6, não consta a identificação do destinatário da notificação respectiva, que aí surge como sendo o arguido.
5.ª Resulta do exposto que a condenação do recorrente significou a violação ou o desrespeito pelos comandos dos artigos 348.º, n.º 1 do Código Penal, 102.º, números 2, 3 e 6, do DL n.º 555/99, de 30 de Março e 3.º, n.º 1 da Lei n.º 33/99, de 18 de Maio.
Sem prescindir do exposto:
6.ª A pena de multa aplicada ao recorrente não reflecte a medida da sua culpa, em violação do comando do artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal.
7.ª Com efeito, tendo qualificado a sua culpa e determinado a medida da sua pena nos seus limites máximos, o Tribunal recorrido desconsiderou, pelo menos, duas circunstâncias fortemente atenuantes, nomeadamente, o facto de o recorrente ter assumido (como o próprio Tribunal recorrido admite) uma postura colaborante em audiência de julgamento e o facto de ter posteriormente promovido o licenciamento da obra embargada.
8.ª Parece-nos óbvio que se o recorrente foi condenado por alegadamente ter desobedecido a uma ordem de embargo de uma obra não licenciada, o licenciamento posteriormente encetado só pode significar que interiorizou o desvalor da sua conduta e assimilou o juízo de censura respectivo.
9.ª Factos que têm de ter reflexos na aferição do grau de culpa respectivo.
10.ª Tendo o Tribunal recorrido desconsiderado factores atenuantes, violou, por omissão, os artigos 71.º n.º 1 e 2 al. a), b) e e) e 72.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando para que se negue provimento e se mantenha a douta sentença recorrida, para tanto alinhando as seguintes razões:
O arguido entende que não foi regularmente notificado da ordem emanada e, por isso, não praticou o crime.
Não podemos concordar com o arguido.
Atendendo às declarações prestadas em audiência de julgamento pelos fiscais da Câmara Municipal - que afirmaram que tal notificação foi feita -, conjugada com toda a prova documental junta aos autos, não subsistiu qualquer dúvida de que o arguido foi regularmente notificado da proibição de prosseguir com a obra, por entidade competente, que, para além do mais, ficou bem ciente de tal proibição e que, ainda assim, prosseguiu com a obra.
O artigo 348.º, n.º 1, alínea a) pune “Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente (...)se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples;”
Assim sendo, tendo em conta o que ficou provado, tem o arguido que ser condenado, uma vez que não se verificaram quaisquer causas de exclusão da culpa ou de justificação da ilicitude.
Isto dito e sem mais delongas, porque concordamos integralmente com o teor da douta sentença agora recorrida, inclusive no que diz respeito à medida da pena aplicada — e, por este motivo, escusamo-nos de repetir todos os argumentos, remetendo, desta forma, para o seu teor -, urge concluir que o tribunal a quo realizou de forma plenamente satisfatória as exigências de objectividade, lógica e motivação que o princípio da livre apreciação postula, pelo que, o concreto uso que fez do material probatório posto à sua disposição, de forma a atingir uma dada convicção, não é susceptível de censura.

Nesta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da não procedência do recurso, para o que se louvou no seguinte:
Afigura-se-nos que não assiste razão ao arguido.
Com efeito, são elementos objectivos do crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 1 do CP:
a) A existência de urna ordem ou mandado;
b) A legalidade substancial e formal da ordem ou mandado, que tem que se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente;
c) A competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão, isto é, que aquilo que pretendam impor caiba na esfera das suas atribuições;
d) A regularidade da sua transmissão ao destinatário, de modo a que tenha conhecimento do que lhe é imposto ou exigido;
e) E o incumprimento da ordem.
Quanto ao elemento subjectivo, exige-se a verificação do dolo, em qualquer das suas modalidades (directo, necessário ou eventual).
“A dignidade penal da conduta exige que o dever de obediência que se incumpriu tenha uma de duas fontes: ou um disposição legal que comine, no caso, a sua punição; ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado”
Ora, no caso sub judice, perante os factos provados e não provados (que o (arguido não impugna nos termos legais), ficou demonstrado que ele teve conhecimento da ordem de embargo emanada pelo Vereador do Ambiente e Urbanismo da Câmara … (entidade competente para o fazer) e que à mesma devia obediência, bem assim, do crime em que incorreria caso não acatasse o embargo.
Não estando no local da obra, quando os fiscais se deslocaram á mesma e verificaram a infracção, foi ele convocado para comparecer na Câmara, onde se deslocou no dia 6/0 1/2011, e aí foi notificado do embargo, tendo-se recusado a assiná-lo.
Não arguiu, nesse momento, que não era ele o responsável pela obra ou que não estivesse na posse do prédio embargado, nem ser a pessoa aí identificada.
A comunicação do embargo foi-lhe feita e ficou inteirado, de facto, do seu conteúdo.
Tendo resultado provada a validade formal da notificação da ordem e que o arguido tornou conhecimento do seu teor e de que era obrigado a acatá-la e que, voluntária e conscientemente, a desrespeitou, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei — estão verificados todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência pelo qual foi condenado.
Quanto à medida da pena de multa aplicada, e porque o arguido já sofreu condenação anterior pelo mesmo tipo de crime, e por outros, não se nos afigura que a mesma seja desajustada, face à sua culpa elevada e demonstrada.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem qualquer sequela por parte da recorrente.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.

***
II - Fundamentação.
1. Da decisão recorrida.
1.1. Factos julgados provados:
2.1. Da acusação pública
1 - No dia 27 de Dezembro de 2010, a Câmara Municipal … determinou o embargo da obra de construção de uns anexos na C…, sito no …, na freguesia …, em Baião, em virtude de a mesma estar a ser executada sem a necessária licença municipal.
2 - O arguido, por se encontrar na posse do prédio e ser o responsável pela obra, foi pessoalmente notificado de tal embargo, no dia 6 de Janeiro de 2011, pelas 14h50.
3 - Neste acto, foi o arguido devidamente advertido da proibição de prosseguir com a obra e da obrigação de suspender, de imediato, os trabalhos, sob pena de, não o fazendo, incorrer num crime de desobediência, nos termos do disposto no artigo 100.º do DL 555/99 de 16/12.
4 - Nesse dia e no acto da notificação pessoal efectuada, ficou o arguido bem ciente do teor da decisão.
5 - Apesar da advertência que decorre da própria lei e que, não obstante, lhe foi devidamente comunicada, em data não concretamente apurada, porém situada entre o dia 6 de Janeiro de 2011 e o dia 17 de Fevereiro de 2011, o arguido continuou com a obra nos anexos identificados em 1, designadamente procedeu ao revestimento das paredes exteriores e colocação de portadas.
6 - O arguido sabia que a referida ordem emanava de autoridade competente, no exercício das suas funções, que lhe devia obediência e que o seu não cumprimento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.
7 - Não obstante, o arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito único e concretizado de não obedecer à ordem legítima que lhe fora regularmente comunicada, pondo em causa a autoridade que lhe estava subjacente, o que representou.
8 - Sabia, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
2.2. Da contestação
9 - O arguido recebeu um primeiro contacto telefónico do Fiscal Municipal, D…, no dia 21 de Dezembro de 2010, dando-lhe conta, informalmente que não deveria continuar com os trabalhos.
10 - No dia 04 de Abril de 2011, foram ao arguido lidos os conteúdos dos ofícios da Câmara Municipal … números …/2011 e …./2011, cujos conteúdos já não recorda.
11 - O arguido já providenciou pelo licenciamento das obras que a Câmara Municipal … decidiu embargar.
12 - Encontrando-se o respectivo processo em curso, com o número LE-ACS-../2011.
2.3. Das condições pessoais de vida do arguido
13 - O boletim de registo criminal do arguido apresenta as seguintes condenações:
i) Processo n.º 11/03.4TAGDM, que correu termos no Tribunal Judicial de Gondomar, 2.ª secção, pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), o que perfaz o total de € 700,00 (setecentos euros), pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, no dia 01 de Dezembro de 2002, sentença transitada em julgado a 09 de Maio de 2005, pena extinta por cumprimento a 11 de Fevereiro de 2010;
ii) Processo n.º 51/03.3TAGDM, que correu termos no Tribunal Judicial de Gondomar, 2.ª juízo criminal, pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), o que perfaz o total de € 900,00 (novecentos euros), pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, no dia 16 de Dezembro de 2002, sentença transitada em julgado a 12 de Dezembro de 2006, pena extinta por cumprimento a 24 de Setembro de 2010;
iii) Processo n.º4196/08.5TAGDM, que correu termos no Tribunal Judicial de Gondomar, 1.ª secção, pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), o que perfaz o total de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), pela prática de um crime de abuso de confiança à segurança social, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, em Setembro de 2002, sentença transitada em julgado a 19 de Dezembro de 2009.
14 - O arguido é professor e empresário no ramo da restauração, explorando um restaurante na C…, onde faz eventos.
15 - O arguido aufere cerca de € 700,00 (setecentos euros) mensais.
16 - O arguido é casado, sendo que a sua esposa trabalha como farmacêutica, auferindo cerca de € 1.200,00 (mil e duzentos euros) mensais.
17 - O arguido tem um filho de 15 anos, que estuda, vive em casa própria pela qual paga cerca de € 470,00 (quatrocentos e setenta euros) de crédito.
18 - O arguido tem um veículo automóvel de marca Audi, modelo .., de 1999 e uma carrinha comercial.

1.2. Factos julgados não provados:
A - O embargo da obra a que os autos se reportam, determinado pela Câmara Municipal … em 27 de Dezembro de 2010, nunca foi comunicado ao arguido, muito menos regularmente.
B - O arguido não foi notificado pessoalmente do embargo no dia 06 de Janeiro de 2011.
C - No dia 06 de Janeiro de 2011, o arguido não contactou pessoalmente com qualquer funcionário municipal.

1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto:
O Tribunal deu por provados os factos constantes da acusação por força da conjugação da prova documental junta aos autos, as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento.
Assim, antes de mais, cumpre aqui referir que atendendo à defesa apresentada pelo arguido e consequentes declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, o ponto mais complexo a avaliar no presente processo é se, efectivamente, o arguido foi notificado dos embargos no dia 06 de Janeiro de 2011, conforme resulta do auto junto a fls. 6 do processo.
Com efeito, defendendo que só foi notificado a 04 de Abril de 2011 da decisão de embargos proferida pela Câmara Municipal …, o arguido admite que entre o 06 de Janeiro de 2011 e o dia 03 de Fevereiro de 2011, terá continuado com as obras, uma vez que, alegadamente, não tinha sido regularmente notificado para parar com a construção.
Ora, analisados todos os depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, incluindo os de defesa e ponderando a sequência com que os factos ocorreram, entendemos que o arguido deslocou-se no dia 06 de Janeiro de 2011 à Câmara Municipal …, na sequência de uma conversa telefónica com o funcionário D… e onde se recusou a assinar os autos de embargo.
Com efeito, em primeiro lugar, não obstante a defesa ter tentado abalar a credibilidade dos depoimentos prestados pelos funcionários da câmara, não foi trazido ao tribunal nenhum argumento que levasse a justificar o acto pelo qual um fiscal de obras produzisse um auto de embargos falso e, na sequência do mesmo e por constatar o incumprimento da ordem realizada, levantasse a informação de desrespeito ao embargo, a 03 de Fevereiro de 2011 (fls. 15).
Assim sendo, não existindo motivos para duvidar da isenção profissional de D… e E… (que também assinou os autos de embargo), o Tribunal atribuiu total credibilidade a esses depoimentos prestados.
Mais a mais, na sequência da informação prestada, foi produzido um ofício dirigido ao arguido, no dia 28 de Fevereiro de 2011, segundo o qual seria denunciada a prática do crime de desobediência ao Tribunal, o que veio a acontecer a 14 de Março de 2011 (fls. 2 dos autos).
Posto isto, verifica-se que na data da denúncia ao Tribunal, a Câmara Municipal … considerou a notificação dos embargos devidamente realizada a 06 de Janeiro de 2011, independentemente de ofícios posteriormente enviados (fls. 11) ou a notificação efectuada a 04 de Abril de 2011 (fls.130) no momento em que o arguido se deslocou à Câmara Municipal … por força do processo de contra-ordenação que estava a correr contra o mesmo – sendo que F… é/era a jurista encarregue dos processos de contra-ordenação.
Tais notificações posteriores, ainda que desnecessárias, foram realizadas por excesso de formalidade ou de zelo por parte daquela entidade, não invalidando que, no dia 06 de Janeiro de 2011, foi levantado o auto de embargo e de suspensão de obras particulares de fls. 6 dos autos.
Quanto à comunicação dos embargos nesta data, resultou claro dos participantes nesta diligência, que o arguido se deslocou ao edifício do Câmara Municipal … e que depois de ter sido notificado dos embargos, D… realizou alterações no auto, a computador e, uma vez regressado junto do arguido, este recusou-se a assinar o documento.
Tal versão relatada pelas testemunhas acima referidas são confirmadas pelo facto de todo o auto se encontrar redigido a computador, o que não acontece quando efectuado no local da obra.
Resulta ainda do auto e dos depoimentos desta testemunha D… que naquele mesmo dia ou na véspera, se deslocou ao local onde constatou o estado da obra e onde não encontrou o arguido, tendo combinado a deslocação à Câmara Municipal com o mesmo, via telefone.
Ora, atendendo à postura colaborante que o arguido demonstrou em sede de audiência de discussão e julgamento, tal facto não choca com as regras da experiência comum.
Disse ainda a testemunha que leu o auto ao arguido, fazendo a legal advertência da prática de um crime de desobediência em caso de desrespeito dos embargos.
Tais factos foram confirmados por E….
No que respeita à testemunha G…, o depoimento da mesma não foi valorada nesta parte uma vez que não assistiu aos factos, limitando-se a repetir aquilo que lhe foi comunicado pelos funcionários da Câmara.
Quanto aos depoimentos das testemunhas de defesa, os mesmos não invalidam tudo quanto acima se expôs.
H…, irmão do arguido, disse que no início do mês de Janeiro de 2011, talvez dia 05/06 de Janeiro de 2011, D… deslocou-se à obra, onde tirou fotografias e falou com o arguido ao telefone (não tendo ouvido a conversa), sendo que naquela data defende não lhe terem sido dado ordens para suspender as obras.
Ora, o facto de D… ter falado com o arguido ao telefone foi confirmado por aquele (momento em que combinou a deslocação à Câmara Municipal …) e o próprio arguido admitiu ter mantido algumas conversas telefónicas com o fiscal de obras. Assim, o depoimento de H… não impossibilita o facto do arguido poder ter-se deslocado a Baião, naquele dia ou no dia seguinte.
Quanto ao resto do depoimento, existem incongruências e hesitações que não permitem concluir no sentido das convicções que tal testemunha quis defender em julgamento. Com efeito, em primeiro lugar, as fotografias existentes no processo da Câmara datam de 21 de Dezembro de 2010 e 02 de Fevereiro de 2011 - fls. 9 e ss e 16 e ss, respectivamente – e não de 05/06 de Janeiro como afirma a testemunha, sendo certo que a mesma confirma que houve mais do que uma visita do fiscal à obra.
Em segundo lugar, H… defende que dois ou três meses depois quiseram que ele assinasse um papel, no local da obra, que acha que era para embargar.
Ora, nessa data (Março de 2011), o desrespeito já tinha sido comunicado ao Tribunal, pelo que aquela alegada deslocação ao local não poderia ter sido para notificar do despacho de embargos, uma vez que, conforme já aludido, naquela data, a Câmara Municipal … já tinha levantado a notícia do desrespeito pela ordem dada a 06 de Janeiro de 2011.
Quanto a I…, o mesmo não assistiu a nenhuns factos relevantes, não viu fiscais na obra, pois também não estava todos os dias no local. Deste modo, o seu depoimento não apresentou nenhum facto relevante para a defesa do arguido. Pelo contrário, I… acabou por confirmar que o arguido não acatou a ordem dada a 06 de Janeiro de 2011, uma vez que esta testemunha disse ter realizado serviços de instalação eléctrica e de água no princípio de 2011, na obra em causa nos presentes autos.
Por todo o exposto, deram-se por provados os factos descritos de 1 a 5, sendo que as obras entretanto efectuadas resultam de fls.15 dos autos, informação confirmada pela testemunha E…, que tirou as fotografias de fls. 16 e 17.
Os factos descritos de 6 a 8 resulta de tudo quanto acima se expôs, com as declarações prestadas pelo próprio arguido que demonstrou total capacidade de entendimento da situação em causa nos presentes autos, pelo que se conclui que desrespeitou a ordem dada a 06 de Janeiro de 2011, de forma voluntária e consciente, tendo sido devidamente advertido que ao continuar com as obras incorreria na prática de um crime de desobediência, infracção esta com a qual já se encontrava familiarizado por condenação penal anterior.
Os factos da contestação dados como provados em nada contradizem os factos provados da acusação e resultam dos documentos juntos aos autos, designadamente, participação de fls. 8 e requerimento de fls. 138 a 141, bem como das declarações do próprio arguido.
Quanto aos antecedentes criminais do mesmo, resultaram da certidão de registo criminal junta a fls. 164 e ss dos autos.
As condições pessoais de vida do arguido resultaram das suas próprias declarações que, por não chocarem com as regras da experiência comum e não terem sido contrariadas por mais nenhum elemento junto aos autos, foram dados como provadas.
***
2. Poderes de cognição desta Relação e objecto do recurso.
2.1. O âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado.[1] Às quais acrescem as questões que são de conhecimento oficioso desta Relação enquanto Tribunal de recurso, como no caso dos vícios ou nulidades da sentença a que se reporta o art.º 410.º, n.os 2, alíneas a), b) e c) e 3 do Código de Processo Penal.[2] Tendo isso em conta e uma vez que se não detecta qualquer vício ou nulidade na douta sentença recorrida de entre os que se devesse conhecer ex officio, as questões a apreciar neste recurso são as seguintes:
1.ª Não é punível como crime de desobediência a continuação de obra embargada por um Município se o dono dela for não for identificado no auto e na notificação através do bilhete de identidade?
2.ª Sendo, a pena de multa em que foi condenado é excessiva por o grau de culpa não se situar nos limites máximos, como foi considerado?
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2.2. Vejamos então as questões atrás enunciadas, começando, naturalmente, pela primeira delas.
Na parte que aqui interessa, o art.º 348.º do Código Penal reza assim:
«1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples.
(…)».

Por sua vez, para apreciar a questão sub iudicio importa ter presente, além do mais que não releva, o que nos diz o art.º 102.º-B do Decreto-Lei n.º 555/99, de 30 de Março:
«1. Sem prejuízo das competências atribuídas por lei a outras entidades, o presidente da câmara municipal é competente para embargar obras de urbanização, de edificação ou de demolição, bem como quaisquer trabalhos de remodelação de terrenos, quando estejam a ser executadas:
a) Sem a necessária licença ou comunicação prévia.
(…)
2. A notificação é feita ao responsável pela direcção técnica da obra, bem como ao titular do alvará de licença ou apresentante da comunicação prévia e, quando possível, ao proprietário do imóvel no qual estejam a ser executadas as obras ou seu representante, sendo suficiente para obrigar à suspensão dos trabalhos qualquer dessas notificações ou a de quem se encontre a executar a obra no local.
3. Após o embargo, é de imediato lavrado o respectivo auto, que contém, obrigatória e expressamente, a identificação do funcionário municipal responsável pela fiscalização de obras, das testemunhas e do notificado, a data, a hora e o local da diligência e as razões de facto e de direito que a justificam, o estado da obra e a indicação da ordem de suspensão e proibição de prosseguir a obra e do respectivo prazo, bem como as cominações legais do seu incumprimento.
4. O auto é redigido em duplicado e assinado pelo funcionário e pelo notificado, ficando o duplicado na posse deste.
(…)
6. O auto de embargo é notificado às pessoas identificadas no n.º 2 e disponibilizado no sistema informático referido no artigo 8.º-A, no prazo de cinco dias úteis.
(…).»

Ainda dentro desta temática cumpre considerar que o art.º 100.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 30 de Março estabelece o seguinte:
«O desrespeito dos actos administrativos que determinem qualquer das medidas de tutela da legalidade urbanística previstas no presente diploma constitui crime de desobediência, nos termos do artigo 348.º do Código Penal».

Por fim, considerando a linha argumentativa do recorrente, importa ter em conta o teor do art.º 3.º, n.º 1 da Lei n.º 33/99, de 18 de Maio, que é este:
«O bilhete de identidade constitui documento bastante para provar a identidade civil do seu titular perante quaisquer autoridades, entidades públicas ou privadas, sendo válido em todo o território nacional, sem prejuízo da eficácia reconhecida por normas comunitárias e por tratados e acordos internacionais».

É indubitável que a obra levada a cabo pelo recorrente, que era o dono dela, sem que para tal estivesse licenciado pelo Município … foi objecto de embargo por parte do Vereador do pelouro, o qual, portanto, tinha legitimidade para o fazer, que foi lavrado auto do embargo, que o embargado ali foi identificado sem que tivesse sido feita qualquer referência ao seu bilhete de identidade ou cartão de cidadão e que, pretendo o funcionário camarário notificá-lo ao recorrente, este se recusou assinar a notificação.
A lei que especialmente regula o embargo municipal de obras não estabelece os termos em que o embargado deve ser identificado. Isso temos por evidente da simples leitura do art.º 102.º-B, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 30 de Março, do qual apenas estabelece que o auto de embargo deve conter, inter alia que ao caso não interessa, «obrigatória e expressamente, a identificação … do notificado…».
A identificação de uma pessoa é feita, primeiramente, pelo seu nome, o qual, de resto, é legalmente protegido do uso ilícito por terceiros.[3] Assim sendo, uma vez que a norma apenas exige que no auto de embargo seja efectuada, de resto obrigatória e expressamente, a identificação do notificado, naturalmente que do auto basta constar o seu nome. Não quer isto dizer que não possam constar outros elementos identificativos do embargado, mas a verdade é que a lei não o exige.

E se é certo que o art.º 3.º, n.º 1 da Lei n.º 33/99, de 18 de Maio, refere que o bilhete de identidade constitui documento bastante para provar a identidade civil do seu titular mas isso apenas significa que a prova da identidade se basta com esse documento mas não que a identificação dos cidadãos tenha obrigatoriamente que ser feita por referência ao mesmo. Uma coisa é a identificação, vale dizer, descrever a identidade de uma pessoa e, outra bem diferente, a prova dela. Aquela, consiste em descrever quem é e, esta, a provar quem é.
De resto, nem sempre a lei exige que a prova da identidade seja feita desse modo. Assim, a identificação de suspeito por parte dos órgãos de polícia criminal em processo penal pode ser feita pela exibição de bilhete de identidade, é certo, mas também de passaporte ou pode mesmo ser feita por uma outra pessoa que possa comprovar a sua própria identidade.[4]

Sendo as coisas assim e uma vez que o recorrente foi identificado no auto de embargo da obra de que era proprietário e que se recusou a assinar a respectiva notificação, outra conclusão não resta que considerá-lo efectivamente notificado. Admitir o contrário seria validar a sua conduta abusiva, ofensiva da boa fé, quando em todas as relações jurídicas e, portanto, também nas estabelecidas entre a administração e os administrados, impera a regra venire contra factum proprium non valet.[5]

Destarte, tendo o recorrente continuado a obra depois de embargada e de ter sido advertido da proibição de prosseguir com ela e da obrigação de suspender, de imediato, os trabalhos, sob pena de, não o fazendo, incorrer num crime de desobediência, não restam dúvidas de que cometeu o crime de desobediência a que se reportam o citado art.º 348.º do Código Penal, por referência ao art.º 100.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 30 de Março. Daí que nesta parte o recurso terá que naufragar.

2.3. Finalmente, pretexta o recorrente que a pena de multa em que foi condenado é excessiva por o grau de culpa se não situar nos limites máximos, como foi considerado na sentença recorrida. É que, pretexta o recorrente, o Tribunal recorrido desconsiderou duas circunstâncias fortemente atenuantes, nomeadamente, o facto dele ter assumido uma postura colaborante em audiência de julgamento e o de ter posteriormente promovido o licenciamento da obra embargada.
Vejamos.

É verdade que o recorrente já providenciou pelo licenciamento das obras que a Câmara Municipal … decidiu embargar, encontrando-se o respectivo processo em curso, com o número LE-ACS-../2011. Porém, já não corresponde à verdade que tenha assumido uma postura colaborante em audiência de julgamento. Aliás, o que se constata é que procurou, a outrance, defender o contrário, pois que fez crer que havia prosseguido com a realização dos trabalhos depois e não antes de ter sido notificado do embargo da obra. De resto, foi isso mesmo que foi considerado na sentença em dissídio e não o seu contrário, como o recorrente quis fazer crer a esta Relação do Porto.[6] A isso acresce ser máximo o grau do dolo, pois que directo, plena a consciência da ilicitude dos factos e, por fim, evidentes as necessidades de prevenção neste tipo de crime, quer a geral, dada a frequência com que é praticado em contramão com a necessidade de fazer valer a autonomia intencional do Estado, lato sensu, quer especial, uma vez que o recorrente é professor e, portanto, com especial responsabilidade na formação de jovens e anteriormente já fora condenado, por três vezes, entre 09-05-2005 e 19-12-2009, por sentenças transitadas em julgado, pela prática de outros tantos crimes, um dos quais de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, sempre em penas de multa.
Assim sendo, não será tanto a medida da pena de multa que poderá suscitar reparos mas antes a opção por esta tipo de pena, pois que parece evidente que não será por aí que será sensibilizado a arrepiar caminho e a determinar-se pelo respeito das normas comummente aceires na sociedade. Pelo que também nesta parte o recurso não merece ser provido.
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III - Decisão.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC (art.os 513.º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa).
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Porto, 19-11-2014.
Alves Duarte
Castela Rio
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[1] Art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Na linha, aliás, do que desde há muito ensinou Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil, Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, página 359: «Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.»
[2] Que assim é decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão do Plenário das Secções Criminais, de 19-10-1995, tirado no processo n.º 46.680/3.ª, publicado no Diário da República, série I-A, de 28 de Dezembro de 1995, mantendo esta jurisprudência perfeita actualidade, como se pode ver, inter alia, do acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 18-06-2009, consultado em www.dgsi.pt, assim sumariado: «Continua em vigor o acórdão n.º 7/95 do plenário das secções criminais do STJ de 19-09-1995 (DR I Série - A, de 28-12-1995, e BMJ 450.º/71) que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.» Na Doutrina e no sentido propugnado, vd. Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, página 1049.
[3] Art.º 72.º, n.º 1 do Código Civil.
[4] Art.º 250.º, n.os 3 a 6 do Código de Processo Penal.
[5] Art.º 266.º, n.º 2 da Constituição da República.
[6] O que a sentença disse foi, ispis verbis, o seguinte: «… pese embora o arguido tenha diligenciado pela legalização da obra e que tal comportamento demonstra uma vontade cooperante, tal factor é relevante para efeitos de contra-ordenação e não para o crime pelo qual vai condenado, até porque o pedido de legalização data de largos meses após a prática dos factos.».