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CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário
I – O crime de condução sem habilitação legal p.p. pelo artº 3º nº1 e 2 DL 2/98 de 3/1, não viola o artº 18º2 CRP não sendo por isso inconstitucional. II – A elevada sinistralidade rodoviária e os elevadíssimos custos para a comunidade a ela inerentes, pela sua gravidade justificam a incriminação de tal conduta.
Texto Integral
Processo nº 119/14.0PGGDM.P1
Gondomar
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
(2ª secção criminal)
I. RELATÓRIO
No processo sumário nº 119/14.0PGGDM, do extinto 1º Juízo Criminal, do Tribunal Judicial de Gondomar, foi submetido a julgamento o arguido B…, com os demais sinais dos autos.
A sentença, proferida oralmente a 7 de agosto de 2014 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo totalmente provada a acusação pública e, em consequência:
a) Condeno o arguido B…, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 300,00 (trezentos euros);
b) Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UCs.
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Após trânsito, remeta boletins ao registo criminal.”
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Inconformado, o arguido interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:
“1° - Foi o Arguido condenado pelo crime de condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias à taxa diária de € 5,00, perfazendo o valor global de € 300,00.
2° - O Arguido, ora recorrente, não se conforma com a douta Sentença proferida.
3º - As penas parcelares impostas ao ora recorrente são excessivas e devem ser reduzidas para medidas que se aproximam dos respectivos limites mínimos.
4º - O digno Tribunal a quo apurou os seguintes factos, com maior relevo para a presente questão: "Que no dia 19 de Julho de 2014, por volta das 15h30, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula..-..-FL, na …, em …".
5º - "Que o arguido não era titular de carta de condução que o habilitasse a conduzir aquele veículo na via pública".
6° - Que o arguido «agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não se encontra habilitado para conduzir na via pública o veículo que conduzia."
7º - O Arguido encontra-se inscrito na escola de condução desde 19 de Maio de 2014."
8º - Que relativamente ao Arguido "Não existem antecedentes criminais registados".
9º - Que «A convicção do tribunal assentou no depoimento da testemunha indicada pela Acusação, o agente da PSP, que testemunhou de forma cristalina e directa".
10º - Que "acresce ainda que o depoimento da testemunha oferecida pelo Arguido, a única que esteve no local, não depôs de modo a infirmar o depoimento da testemunha indicada pela acusação, tanto mais que o seu depoimento foi pautado pela fragilidade das suas afirmações, já que não conseguiu apresentar uma justificação plausível para o facto de o Arguido, pretendendo dirigir-se para um café com a testemunha, ter saído do lugar do passageiro, sentar-se no lugar do condutor e acionar o motor, sendo que o argumento da curiosidade não colhe, já que o expectável é que a curiosidade não joga a favor do arguido e levasse a que para além de acionar o motor, iniciasse a condução."
11º - Por outro lado, também a versão dos factos dada pelo Arguido carece de razoabilidade, já que a curiosidade, como já indicamos, por si só não justifica nem pode justificar os factos."
12º - Qualquer que seja a decisão, relativamente à apreciação que vier a ser feita às questões infra alegadas, bastariam estes factos supra enunciados, para tirar ilações relativamente ao ilícito criminal preenchido pela conduta do recorrente.
13º - Impondo ao venerando Tribunal ad quem, atentar, in casu para com a sempre eterna e recorrente questão da eventual inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato.
14º - Recordando, se bem que seja possível descortinar um bem jurídico protegido por esta incriminação cuja determinação e precisão são constitucionalmente aceitáveis ao ponto de permitir esta restrição da liberdade - esse bem é, necessariamente, a segurança rodoviária -, aceitando-se ainda, de uma outra perspectiva, um grau razoável de antecipação de proteção de bens singulares - bens pessoais e o património -, a verdade é que falece a relação necessária entre a proteção ora referida e a incriminação em causa.
15º - Os crimes de perigo abstrato, quando se apresentem como um «bem jurídico intermédio especializado», ou de referente individual, admitem o fortalecimento da sua legitimidade democrática por poderem ser apreendidos como crimes de lesão desses bens intermédios.
16º - No entanto, a proibição de que aqui se trata devia estar remetida ao Direito de Mera ordenação Social porque o «substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal».
17º - Desta forma o ilícito em causa aparece como meramente formal, sem a preexistência de um bem jurídico-penal que apresente o referente axiológico juridico-constitucional que permita a sua validade.
18º - Não deve ser esta a técnica de fundamentação de bens jurídicos protegidos em Direito Penal pois, independentemente do acolhimento de bens de natureza mais ou menos precisa, de tutela mais ou menos antecipada, não é possível punir criminalmente alguém com base em raciocínios formais, meras lógicas de títulos ou autorizações administrativas, que apenas se entendem segundo critérios de ordenação social.
19º - A inconstitucionalidade material é a consequência desta apreciação, por aferição com o art.º 18.º, n.º 2 da CRP quo exige um fundamento de valor essencial para permitir restrições de direitos, liberdades e garantias.
20º - Desta forma importará suscitar a questão da inconstitucionalidade do art.° 3.º, nºs 1 e 2 do DL nº 2/98 de 3/2 com fundamento na sua inconstitucionalidade, ao abrigo do art° 207.º da Constituição.
21° - A questão de constitucionalidade que importará averiguar no presente processo consiste em apurar se existe um fundamento de valor essencial para se proceder à incriminação da condução sem habilitação legal - prevista no art.º 3.º n.º 2. do Decreto-Lei nº 2/98 de 3 de janeiro - e, assim, tendo por parâmetro o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, proceder a uma constrição do direito do sujeito a julgamento criminal por aquele ilícito, sabido como é que, num Estado de direito democrático e social, o Direito Penal deverá ter um caráter fragmentário, cumprindo uma função de ultima ratio.
22º - Isto conduz a que é mister saber se o estatuído no art.º 3.º, n°2, do Decreto-Lei em causa viola o princípio da congruência ou da analogia substancial entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal.
23º - Do exposto resulta que se haverá de concluir que a norma em apreço poderá não apresentar aquele mínimo de ressonância ética que expressa os valores da coletividade consequentemente não se mostrando, ao desenhar como ilícito criminal a conduta nela tipificada, como desproporcionada, excessiva de uma justa medida e, por isso, se afigurando como incompatível com a dignidade humana o sancionamento criminal que leva a efeito.
24º - A tal solução, salvo melhor entendimento, se deverá chegar quando se confronta a situação em apreço com aquela a que se reportam os casos em que somente é sancionado com uma contraordenação.
Sem prescindir,
25º - Caso o entendimento supra referido não colha entendimento, sempre se dirá que estaremos perante um caso de verificação do princípio "in dubio pro reo".
26º - Uma vez que se verificam, no caso em apreço, a existência de duas versões completamente contraditórias, suscitando-se, desta forma, uma dúvida razoável que deveria ter assolado o espírito do julgador.
27º - Com efeito, o princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.
28º - Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
29º - Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2. 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
30º - O que não foi o caso.
Ademais,
31º - Condenou o tribunal a quo, o recorrente numa pena de multa.
32º - Não tendo sequer sido formulado um juízo de prognose favorável, condição sine quo non para se recorrer à pena de admoestação.
33º - Uma vez que inexistem antecedentes criminais, o recorrente encontra-se inserido social, familiar e profissionalmente, bem como se encontrava já, desde Maio de 2014, inscrito numa escola de condução.
34º - Fundamentos que deveriam ter assumido preponderância para o juízo de prognose desfavorável que deveria ter sido efectuado nos termos e para os efeitos do artigo 60º do CP.
35º - Assim sendo, somos de opinião que a pena aplicada ao recorrente poderia e deveria ter sido diferente, e deveria ter-se traduzido, em último caso, numa pena de admoestação.
36º - Pelo que, com a sentença proferida foi violado o disposto nos artigos 60º do CP e 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.”
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O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho datado de 23 de setembro de 2014.
Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, igualmente no sentido do não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida.
Foi cumprido o artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
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1. Questões a decidir
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, as questões a decidir são: A. Inconstitucionalidade material do artigo 3º, nºs 1 e 2 do D.L. nº 2/98, de 3 de janeiro; B. Erro de julgamento de determinados pontos da matéria de facto provada, por errada apreciação e valoração da prova; o princípio in dubio pro reo. C. Aplicação de pena de admoestação.
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2. Factos Provados
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação:
(Transcrição a partir da reprodução, gravada, da sentença, proferida oralmente):
“No dia 19 de julho de 2014, por volta das 15h30, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-FL, na …, em ….
O arguido não era possuidor de habilitação legal que o autorize a conduzir veículos ligeiros na via pública.
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não se estava habilitado para conduzir na via pública o veículo que conduzia.
O Arguido encontra-se inscrito na escola de condução desde 19 de maio de 2014.
Não existem antecedentes criminais registados.
É estudante.
Vive com o seu tio e a sua avó.
Estando habilitado com o 9º ano de escolaridade. Factos Não Provados
Que o arguido, no dia 19 de julho de 2014, não conduziu o veículo automóvel, com a matrícula ..-..-FL, já que o mesmo se encontrava no lugar de estacionamento e estacionado na ….
Que o arguido apenas acionou o motor do veículo, não tendo praticado qualquer ato de condução, nomeadamente a colocação do veículo em circulação. Motivação
A convicção do tribunal assentou no depoimento da testemunha indicada pela Acusação, Agente da PSP, que de forma cristalina e direta descreveu a situação ocorrida, nomeadamente a realização de uma manobra pelo arguido, ao volante do veículo de matrícula ..-..-FL, a qual implicou até que a carrinha policial tivesse que parar a sua marcha, por o arguido estar a bloquear a via.
Acresce que ainda que o depoimento da testemunha oferecida pelo Arguido, a única que esteve no local, não depôs de modo a infirmar o depoimento da testemunha indicada pela acusação, tanto mais que o seu depoimento foi pautado pela fragilidade das suas afirmações, já que não conseguiu indicar uma justificação plausível para o facto de o Arguido, pretendendo dirigir-se para um café com a testemunha, sair do lugar do passageiro, sentar-se no lugar do condutor e acionar o motor. Sendo que o argumento da curiosidade não colhe, já que o expectável é que a curiosidade não jogue a favor do arguido e o levasse a que para além de acionar o motor, iniciasse a condução."
Por outro lado, também a versão dos factos dada pelo Arguido carece de razoabilidade, já que a curiosidade, como já indicamos, por si só não justifica nem pode justificar que tenha colocado o veículo a funcionar e que não pretendesse com ele circular.
E que assim não o não pretendendo fazer circular, colocasse o cinto de segurança. Ora, este ato, para alguém que é inexperiente na condução, nem sequer pode ser considerado instintivo.
Assim, e perante estes depoimentos, conjugados com o CRC do arguido, constante de fls. 10 dos autos, o Tribunal entendeu dar como provados os factos supra relatados e como não provados os restantes alegados na contestação do arguido.
Quanto às condições de vida, o Tribunal deu por boas as declarações do arguido.”
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
A. Inconstitucionalidade material do artigo 3º, nºs 1 e 2 do D.L. nº 2/98, de 3 de janeiro, por violação do artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa
Sustenta o arguido/recorrente, que o crime de condução ilegal pelo qual foi condenado, enquanto crime de perigo abstrato, é materialmente inconstitucional, pois embora tutele o bem jurídico da segurança rodoviária e, antecipadamente, bens pessoais e patrimoniais, porque se trata de uma simples proibição formal, falece a relação necessária entre a proteção daqueles bens e a incriminação, devendo consequentemente ser remetida para o direito de mera ordenação social, sob pena de violação do artigo 18º, nº 2, da Lei Fundamental, por ilegítima restrição de direitos, liberdades e garantias.
Vejamos.
O crime de condução sem habilitação legal encontra-se previsto e é punível pelo artigo 3º, nºs 1 e 2 do D.L. nº 2/98, de 3 de janeiro, que dispõe:
“1 — Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 — Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.”
Trata-se, efetivamente, de um crime de perigo abstrato, em que o bem jurídico protegido é a segurança rodoviária, mas igualmente como forma de antecipação de proteção de bens singulares (pessoais e patrimoniais), pois que a infração põe em causa a vida e os bens.
Por sua vez, o artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, estatui que:
“A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
O Tribunal Constitucional foi já várias vezes chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade material daquele normativo incriminador da condução inabilitada, o que fez sempre pela afirmativa, designadamente nos seus acórdãos nº 337/2002, de 10.07.2002, proferido no processo 98/2002; nº 173/2012, de 25.03.2012, proferido no processo n.º 769/11 e, também, no acórdão nº 83/95, de 21.02.1995, proferido no processo nº 512/93 (este último pronunciando-se, ainda, sobre norma anterior mas equivalente: o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 123/90, de 14 de abril).
As razões do juízo de não inconstitucionalidade, que vem sendo formulado pelo Tribunal Constitucional, às quais aderimos, prendem-se, essencialmente, com a ponderação da elevada sinistralidade rodoviária e dos elevadíssimos custos para a comunidade a ela inerentes que, pela sua manifesta gravidade, justificam a incriminação do perigo para a segurança rodoviária, que advém da condução inabilitada.
Como eloquentemente se escreveu no já referido acórdão nº 337/2002, do Tribunal Constitucional (citado, também, pelo acórdão 173/2012, do mesmo Tribunal) e que por brevidade reproduzimos:
“(…) os veículos, mormente os automotorizados, são, reconhecidamente, geradores de risco para a vida, integridade física e para os bens, seja de toda a comunidade, seja de todos aqueles que utilizam as vias públicas ou fazem utilização das suas margens ou proximidades.
Como a condução de veículos automotorizados não é, em regra, inata às faculdades humanas, requerendo, por isso, aprendizagem, quer das respetivas técnicas, quer das regras a que deve obedecer a circulação rodoviária, é facilmente aceitável a ideia de que ao Estado se imponham especiais cautelas para apurar da suficiência dessa aprendizagem, não permitindo que quem não seja detentor de tal suficiência possa livremente levar a efeito a condução.
Se alguém a pratica, sem que o apuramento pelo Estado seja certificado, a presunção de que a prática da condução nessas condições não tem um mínimo de segurança não se antolha como um despropósito ou um excesso.
E, para obviar ao acrescido risco decorrente dessa presunção (para além de se não poder, nem dever, escamotear que são inúmeros os casos de condução por quem legalmente não está legalmente habilitado para tanto e que é mui elevada a sinistralidade, mesmo atendendo aos que estão habilitados) não se mostra minimamente como implicando uma injusta medida a «desincentivação» dos comportamentos consistentes na condução sem título, «desincentivação» essa que é efetuada através da respetiva criminalização.
(…)
Do exposto resulta que se há de concluir que a norma em apreço apresenta aquele mínimo de ressonância ética que expressa os valores da coletividade, consequentemente não se mostrando, ao desenhar como ilícito criminal a conduta nela tipificada, como desproporcionada, excessiva ou ultrapassadora de uma justa medida e, por isso, se afigurando como compatível com a dignidade humana o sancionamento criminal que leva a efeito. (…)”
Por toda esta ordem de razões, é incontroverso que a dimensão do bem jurídico protegido com a incriminação da condução inabilitada, justifica a consequente restrição de direitos fundamentais que, como tal, não se pode qualificar de ilegítima.
Não constituindo assim a respetiva criminalização uma violação do disposto no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
Improcedendo a argumentação em contrário do recorrente.
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B. Erro de julgamento de determinados pontos da matéria de facto provada, por errada apreciação e valoração da prova; o princípio in dubio pro reo.
Sustenta o arguido/recorrente, que o Tribunal a quo, ao dar como provado que ele “conduziu o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-FL, na …, em …”, fez incorreta apreciação da prova produzida em audiência, da qual tal não resultou.
Para tanto, indica as provas que, em seu entender, impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.
Assim cumprindo os requisitos de forma estabelecidos para a impugnação da matéria de facto pelo artigo 412º nº 3, als. a), b) e c) e nº 4 do Código de Processo Penal.
Requisitos esses que se fundam na necessidade da delimitação objetiva do recurso da matéria de facto, na medida em que o recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido, sendo antes o recurso da matéria de facto concebido pela lei como remédio jurídico (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 7.ª edição, atualizada e aumentada, 2008, pág. 105).
Nestes casos, o Tribunal da Relação não faz um segundo julgamento, não vai à procura de uma nova convicção, antes se limitando a fazer o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos no recurso e das provas que imponham, e não só que permitam, decisão diferente. Pois a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tendo de respeitar, o princípio da livre apreciação da prova do julgador, expresso no artigo 127º do Código de Processo Penal e a sua relação com a imediação e oralidade, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração efetuada na primeira instância da prova testemunhal, face à ausência de contacto direto com esse prova, o que integra uma das grandes limitações deste tipo de recursos.
Tudo isto implicando que o tribunal de recurso só possa alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos de erro na apreciação da prova.
Posto isto, e dentro dos limites que a lei estabelece para a apreciação do recurso da matéria de facto, vejamos pois se o Tribunal a quo errou na apreciação e valoração da prova produzida na audiência e se o resultado do processo probatório devia ser outro.
Do teor da motivação, já supra transcrita e para onde agora se remete, logo se alcança que a sentença recorrida expôs de forma suficiente os elementos de facto que fundamentam a decisão e explicou de modo percetível o processo lógico que a tal raciocínio conduziu, o que fez sem erro patente de julgamento e sem utilizar meios de prova proibidos.
Justificando, de forma clara, que a prova dos factos relativos à condução na via pública, pelo arguido, do veículo automóvel, matrícula ..-..-FL, teve por base o depoimento da testemunha C…, agente da PSP que, encontrando-se no exercício das suas funções profissionais, viu o arguido ao volante do referido veículo, conduzindo-o na via pública. Situação que a testemunha descreveu de forma que o Tribunal a quo qualificou de “cristalina e direta”, não deixando dúvidas de que teve possibilidades de ver que quem conduzia o veículo era o arguido, uma vez que a carrinha policial onde seguia teve que parar a sua marcha, por aquele se encontrar a bloquear a via.
E, realmente, ouvida a gravação de todo o depoimento desta testemunha, contrariamente ao alegado pelo recorrente, não ficam dúvidas de que aquilo que afirmou corresponde inteiramente ao que foi consignado a esse propósito na motivação.
Não assumindo qualquer relevância, no contexto global do depoimento, e contrariamente ao que sugere o recorrente, que a mesma testemunha, na audiência de julgamento, ocorrida cerca de dezassete dias após os factos, já não se recordasse de todas as caraterísticas do veículo conduzido pelo arguido. Tanto mais que estamos perante um agente da PSP que, por causa das suas funções profissionais, lida frequentemente com situações relacionadas com a condução ilegal de veículos, o que propicia que a recordação de determinados pormenores menos relevantes se possam esbater.
Por outro lado, na motivação, não se escamoteia a produção de prova de sinal contrário, constituída pelo depoimento da testemunha D…, que referiu ser ele quem conduzia o veículo e que, na altura, o arguido estava sentado ao volante apenas porque teve “curiosidade”, mas não realizou nenhuma manobra de condução.
O que o Tribunal a quo fez, foi não conferir credibilidade a tal depoimento, justificando adequadamente essa sua convicção, como se pode ler a esse propósito na motivação:
“o depoimento da testemunha oferecida pelo Arguido, a única que esteve no local, não depôs de modo a infirmar o depoimento da testemunha indicada pela acusação, tanto mais que o seu depoimento foi pautado pela fragilidade das suas afirmações, já que não conseguiu indicar uma justificação plausível para o facto de o Arguido, pretendendo dirigir-se para um café com a testemunha, sair do lugar do passageiro, sentar-se no lugar do condutor e acionar o motor. Sendo que o argumento da curiosidade não colhe, já que o expectável é que a curiosidade não jogue a favor do arguido e o levasse a que para além de acionar o motor, iniciasse a condução."
Por outro lado, também a versão dos factos dada pelo Arguido carece de razoabilidade, já que a curiosidade, como já indicamos, por si só não justifica nem pode justificar que tenha colocado o veículo a funcionar e que não pretendesse com ele circular.
E que assim não o não pretendendo fazer circular, colocasse o cinto de segurança. Ora, este ato, para alguém que é inexperiente na condução, nem sequer pode ser considerado instintivo.”
Assim, se o Tribunal a quo, que teve a imediação da prova, conferiu credibilidade à testemunha C… e se a sua versão é plausível segundo as regras da experiência comum, não se vê como poderia sequer este tribunal de recurso, que não contactou diretamente como as testemunhas nem com o arguido, proceder a um novo julgamento sobre a credibilidade dos mesmos.
Aliás, proceder a novo julgamento nesses termos, implicaria um modelo de recurso da matéria de facto que não é o do Código de Processo Penal Português.
Como ensina Figueiredo Dias (Direito Processual Penal. vol. I. ed.1974. pág. 204) a decisão sobre a matéria de facto, para além da atividade racional que envolve, tem também sempre de conter uma convicção pessoal, na qual estão presentes elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais, designadamente no que respeita à credibilidade dos depoimentos. E o legislador, consciente das limitações que o recurso da matéria de facto necessariamente tem envolver, teve o cuidado de dizer que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que “impõem”e não as que “permitiriam” decisão diversa (cfr. artigo 412º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal).
In casu, é indubitável que a argumentação e prova indicadas pelo recorrente não impõem decisão diversa da proferida, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, até menos credível, porque feita não pelo órgão jurisdicional com competência para tal, mas por uma das partes, com interesse direto no desfecho do processo.
A decisão do Tribunal a quo é assim inatacável neste ponto, porque proferida de acordo com a sua livre convicção, nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal e em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis.
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O princípio in dubio pro reo
Como se escreveu no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto (de 17.11.2010, proc. 97/08.2GCSTS.P1, disponível em www.dgsi.pt): “I. O princípio in dubio pro reo pressupõe que após a produção e apreciação exaustiva de todos os meios de prova, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos fatos; não de uma dúvida hipotética e abstracta, sugerida pela apreciação da prova feita pelo recorrente, mas antes uma dúvida assumida pelo próprio julgador. II – Só há violação do princípio in dubio pro reo quando for manifesto que o julgador, perante uma dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo versão que o desfavorece”.
Ora, como flui já da exposição imediatamente antecedente, o Tribunal a quo considerou provados todos os factos relevantes relativos ao arguido, o que fez para além de qualquer dúvida razoável sobre qualquer deles, sem dúvidas em fixar a ocorrência dos factos tal como se encontram descritos. Não decorrendo da sentença a existência ou confronto do julgador com qualquer dúvida insanável sobre factos, motivo pelo qual não houve nem há dúvida para ser valorada a seu favor, não tendo aqui aplicação o princípio in dubio pro reo.
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C. Aplicação de pena de admoestação
Por último, e para o caso de, como aconteceu, não procederem os anteriores argumentos, o recorrente defende que a pena de multa deveria ser substituída por admoestação.
Vejamos.
Dispõe o artigo 60º, do Código Penal:
“1 – Se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação.
2 – A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
3 – Em regra a admoestação não é aplicada se o agente, nos três anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluída a de admoestação.
4 – A admoestação consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal.”
In casu, verificando-se o pressuposto formal para a aplicação da admoestação, face à medida concreta da pena aplicada ao arguido, que é inferior a 240 dias de multa, haverá que indagar da possibilidade de efetuar um juízo de prognose positivo, que permita concluir que a pena de admoestação se mostra adequada e suficiente para a realização das finalidades da punição, de protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade.
É que, como se pode ler no nº 12 do Preâmbulo ao Código Penal (Versão originária), a admoestação é apenas aplicável a indivíduos “culpados de factos de escassa gravidade e relativamente aos quais se entende (ou por serem delinquentes primários ou por neles ser mais vivo um sentimento da própria dignidade, por exemplo.) não haver, do ponto de vista preventivo, a necessidade de serem utilizadas outras medidas penais que importem a imposição de uma sanção substancial.”
Revertendo novamente ao caso sub judice, estamos perante um crime de condução inabilitada, que é de prática muito frequente e constitui uma grave violação das regras de trânsito, o que intensifica as necessidades de prevenção geral.
Sendo que o recorrente, embora sem antecedentes criminais, familiar e socialmente integrado e a frequentar já uma escola de condução, não demonstrou arrependimento, sequer através da simples admissão dos factos, o que denota uma má formação da sua personalidade.
Neste contexto, sem assunção da culpa, não podemos atribuir os factos apenas à imaturidade e impulsividade própria da juventude do arguido, que conta apenas com 18 anos de idade, e acreditar que a pena de admoestação bastasse para que ele interiorizasse o desvalor da conduta e não a voltasse a repetir.
Tudo indicando, antes, que a aplicação da pena de admoestação falharia, manifestamente, o fim preventivo da pena, na vertente da prevenção especial, sendo encarada com leviandade pelo condenado e, nessa perspetiva, feriria, também, o sentimento jurídico da comunidade, não contribuindo para a validação dos valores jurídico penais violados.
De tudo decorrendo não haver justificação para a substituição da pena de multa por admoestação, nenhuma censura nos merecendo a sentença recorrida, quando assim decidiu.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso.
Vai o recorrente condenado em custas, fixando-se em 6 (seis) Ucs a taxa de justiça.
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Porto, 10 de dezembro de 2014
(Elaborado e revisto pela relatora)
Fátima Furtado
Elsa Paixão