TENTATIVA NEGLIGENTE
TENTATIVA DE HOMOCÍDIO NEGLIGENTE
DEVER DE CUIDADO
Sumário

I - Age sem o cuidado devido e de que é capaz o agente policial que em perseguição de veiculo automóvel dispara contra o veiculo perseguido, visando atingir o pneu traseiro a fim de o fazer parar, sabendo que ao assim proceder pode atingir mortalmente os seus ocupantes, mas fê-lo convicto de que tal não aconteceria.
II - Sendo o acto lesivo apenas imputável a titulo de negligência, não é punível a sua conduta traduzida na tentativa negligente de homicídio.

Texto Integral

Proc. nº 10110/08.0TDPRT.P1
2ª Vara Criminal do Porto

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
Na 2ª Vara Criminal do Porto, no processo comum colectivo nº 10110/08.0TDPRT, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo sido proferida decisão com o seguinte dispositivo:
Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal colectivo, em:
1 - Julgar improcedente, por não provada, a pronúncia formulada contra o arguido B…, pela prática, em autoria material, de dois crimes de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, nº 1, 22º e 23º, todos do Código Penal e, consequentemente, absolvê-lo da mesma;
2 – Julgar improcedente o pedido cível de indemnização deduzido pelo assistente C… e, em consequência, dele absolver a o demandado B….
3 – As custas criminais, com 4 (quatro) UCs de taxa de justiça, ficam a cargo do assistente – artigo 515º, nº 1, al. a), do CPP.
4 – As custas cíveis ficam a cargo do demandante – artigo 523º do CPP.

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As armas e demais objetos apreendidos foram-no à ordem do processo comum nº 1382/06.6 GAMAI, que correu termos na 4ª Vara Criminal do Porto, no qual já foi providenciado pelo respetivo destino, nada havendo a decidir no âmbito dos presentes autos.
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Após trânsito, dê conhecimento deste acórdão à IGAI e ao Comando Geral da GNR, mediante envio de cópia certificada.
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Notifique e deposite.
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Inconformado com a decisão absolutória, o Ministério Público veio interpor o presente recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. Vem o presente recurso interposto da decisão absolutória que concedeu ao arguido B… a imputação da sua atuação criminosa apenas a título de negligência, no cometimento de dois crimes tentados de homicídio simples, da previsão do artigo 131º, 22º e 23º, todos do Código Penal, por cuja prática, aquele, se encontrava pronunciado;
2. O nosso desacordo refere-se, desde logo, ao vicio do artigo 410º nº2 al. c) do CPP, o que só por si não implicará o reenvio destes autos, nos termos do artigo 426º do CPP, mas, antes, que O tribunal Superior possa decidir da causa, porquanto a factualidade dada como provada foi bastante para que esse Tribunal possa dar como provados os itens produzidos em quinto, sétimo e oitavos lugares e, daí, poder atribuir-lhe conduta dolosa, ainda que a titulo de dolo eventual;
3. A nossa matéria factual foi já apreciada em sede deste novo julgamento, já havia sido apreciada nos autos nº1382/06.6GAMAI da 4ª Vara Criminal deste Tribunal, onde a conduta deste arguido foi já aí analisada e o mesmo veio- finalmente- a ser condenado pelo cometimento de dois crimes de homicídio por negligencia, na forma consumada e um crime de ofensa à integridade física por negligencia, nas pessoas de dois ocupantes que seguiam no banco traseiro do veículo atingido, vindo a ser condenado numa pena única de três anos de prisão (para além da pena de multa), cuja pena ficou suspensa na sua execução;
4. Tal atuação deste arguido refere-se, aqui e agora, na sequencia da extração de certidão para responsabilização do arguido, agora quanto a essa mesma conduta mas nas pessoas dos agora visados aqui assistente C… e do seu então pendura D…, na qualidade de ocupantes do banco da frente do dito veiculo, alvejados mas não atingidos;
5. Porquanto toda a situação fáctica e naturalística imputada a este arguido – em toda a sua atuação comissiva por ação – se refere a um mesmo pedaço de vida, relativamente àquela outra mesma situação já julgada e cuja factualidade se encontra definitivamente fixada pelo Tribunal Superior;
6. Assim também o entendeu, o ilustre Coletivo que fixou a matéria provada em tudo idêntico e, no essencial, com aquela já fixada pelo Tribunal Superior;
7. Daí que a mesma era bastante para que, nestes nossos autos o Tribunal recorrido pudesse ter, pois, concluído de modo diverso- integrando a conduta do arguido, não já a título de mera negligência (mesmo grosseira ou consciente), mas, antes a título de dolo, ainda que eventual;
8. No entanto sempre se nos afigura ter existido um visível erro de apreciação da matéria de facto provada, por não ter relevado – como se justificava-, as declarações do perito E…, fazendo também tabua rasa da ordem de serviço da corporação policial a que o arguido pertencia, em contrapartida, sobrevalorizando o Manual de Instruções do IGAI e da testemunha de defesa Coronel F…;
9. Tal como e ainda quanto a vícios de forma, e sem necessidade de reenvio, porque supríveis, afigura-se-nos uma contradição entre matéria dada como provada e não provada;
10. Finalmente refira-se o erro de julgamento, no seguimento daquele vício de natureza formal, por má valoração dos depoimentos daquele Senhor Perito Inspetor da Policia Judiciaria, por não ter valorizado- como deveria-, as instruções do Comandante da GNR – corpo da BT, então em vigor para todos os elementos desta corporação e pela sobrevalorização dada ao texto de apoio do MAI e das declarações da testemunha F…;
11. Fixou este Tribunal recorrido, matéria factual em tudo idêntica àquela já fixada e transitada;
12. O busílis desta questão continua a resumir-se à controvertida atuação do arguido na utilização da arma de fogo- pistola automática metralhadora “Famae”-, saber se existiu, ou não, excesso e inadequação deste meio empregue, para combater uma situação meramente contra-ordenacional como resulta dos itens u) e v), como o Tribunal;
13. Daí que melhor relevando as declarações do Perito Inspetor da PJ, esclarecendo a resposta já por si dada aos quesitos que lhe haviam sido previamente colocados e valorando o texto contendo instruções aos agentes de trânsito da PSP (em detrimento das instruções do IGAI), que neste caso não lhe era aplicável, tal como a testemunha Coronel F… assim acabaria por concluir, os factos dados como não provados “…
- O arguido agisse convencido de existir grande probabilidade de atingir corporalmente os ocupantes do veículo em fuga;
- O arguido se tenha conformado com a possibilidade de atingir qualquer dos ocupantes do Peugeot alvejado, nomeadamente o assistente C… ou o D… e de lhes tirar a vida ou ofender corporalmente…”, deveriam ter ficado comprovados;
14. Integrando a conduta do arguido e, agora, relativamente aos dois ocupantes do banco da frente do “Peugeot …”, no cometimento de dois crimes de homicídio simples, na forma tentada, a título de dolo eventual;
15. Existiu erro na apreciação da matéria de facto provada, por virtude de, como supra se referiu, não ter relevado, como a situação justificava, as declarações do perito e ter feito tabua rasa da Ordem de Serviço da corporação policial que o arguido servia;
16. Tendo, indevidamente, sobrevalorizado o manual de instruções do IGAI (inaplicável, no caso), tal como o depoimento da indicada testemunha de defesa Coronel F…;
17. Ora e se o Tribunal recorrido não arredou o disposto no artigo 2º do Decreto-Lei nº454/99, de 5/11, ao relevar, igualmente, o teor daquele texto do MAI, denominadas “técnicas de intervenção policial”, inaplicável, neste caso, o Tribunal revelou tal vício;
18. Tal como denotou espirito contraditório nessa mesma apreciação, porquanto as premissas não estão em concordância com a conclusão perante a sua fundamentação jurídica quando entendem que (parágrafos 5º a 7º de fls.28, que aqui se reproduzem) e logo a seguir, tenham concluído em sentido oposto como o fizeram no 1º paragrafo de fls.29);
19. Ora, se o arguido não se apercebeu ou sabia da existência dos passageiros que seguiam dentro do veículo e no banco traseiro, outrossim se não poderá dizer da existência do condutor e do pendura que ocupavam o banco da frente;
20. Ainda quanto a este vício de forma, ainda que suprível pelo Tribunal Superior, refira-se que a matéria dada como provada no item n) está em nítida contradição com aquela outra que foi dada como não provada nos sétimos e oitavo itens;
21. Não se podendo, pois, concluir como o fizeram os Juízes do Superior Tribunal no âmbito dos autos de processo comum coletivo nº1382/06.6GAMAI, da 4ª Vara Criminal deste Tribunal, porque aí ficou comprovado que o arguido desconhecia os ocupantes do banco traseiro;
22. Também os esclarecimentos do perito da PJ, bem como da testemunha indicado pela defesa apenas poderiam apontar à integração de uma conduta dolosa por parte do arguido;
23. A que acresce a má apreciação feita relativamente ao texto de apoio do MAI denominada por “técnicas de intervenção policial“, sobrevalorizada em face da diretiva relativa a perseguições elaborada e então em uso pela BT da GNR, entidade á qual pertencia, já que aquele memorandum não se não lhe aplicava e uma vez que a situação excluía tal intervenção policial, como o próprio Tribunal acabaria por considerar na sua fundamentação de direito;
24. Este Regulamento policial da GNR/BT, não valorizado pelo tribunal e completamente, então e agora, ignorado e desprezado pelo arguido, o que se lamenta, porquanto o arguido agiu e atuou numa área para a qual não tinha sequer jurisdição, porque pertencente ao Comando da PSP;
25. No qual se ordenava aos elementos policiais a proibição de perseguições e consequente uso de arma de fogo, em situações de desobediência de sinal de paragem, cujo procedimento apenas impunha a anotação de matricula do veiculo em fuga;
26. O que o arguido não fez e desrespeitou toda e qualquer regra prudente na sua atuação, que não estava prevista dentro do circunstancialismo previsto no inicial citado diploma, ou, sequer, nos regulamentos internos para uso de arma de fogo, a que acresce o facto do arguido ter servido o Exercito e cumprido o SMO, com treino com armas de fogo idênticas às da pistola que utilizou;
27. Assim o entendeu o Tribunal Superior no âmbito do citado acórdão elaborado e em sede de recurso (segundo interposto pelo MP), que considerou comportamento negligente do arguido e apenas porque entendeu que o mesmo não tinha conhecimento da existência dos dois ocupantes no banco traseiro;
- Daí que os ditos itens supra referidos (dados como não provados em 7º e 8º lugares), deveriam terem sido comprovados, ou seja, “…O arguido agisse convencido de existir grande probabilidade de atingir corporalmente os ocupantes do veículo em fuga;
- O arguido se tenha conformado com a possibilidade de atingir qualquer dos ocupantes do Peugeot alvejado, nomeadamente o assistente C… ou o D… e de lhes tirar a vida ou ofender corporalmente…;
28. Quanto à matéria de direito deverá ser, pois, o arguido condenado pelo cometimento de dois crimes de homicídio simples, na forma tentada, na forma de dolo eventual, tendo em atenção o disposto no artigo71º nº1, do Código Penal, na pena única e três anos de prisão, cuja execução lhe deverá ser suspensa – dada a sua boa integração social e profissional, colaboração com o Tribunal a ainda primariedade, apesar da sua total falta de arrependimento e de humildade-, por igual período;
29. Ao proceder, como fez, absolvendo o arguido, uma vez mais o arguido, agora relativamente às pessoas dos dois ocupantes do banco da frente do veiculo perseguido, a douta sentença enferma do vicio do artigo 410º nº2 al. a) e c), do CPP, ainda que não deva implicar, só por si, qualquer reenvio dos autos, pois o Tribunal Superior poderá decidir da causa e nos termos do artigo 426º nº1, do C.P.P.;
30. Violando, assim, os artigos 131º, 14º al. c), 22º, 23º, 71º, 50º, todos do Código Penal e 127º do Código de Processo Penal;
31. Pelo que deverá e neste sentido, o Douto Tribunal “ad quem”, reparar esta decisão, integrando a conduta do arguido, numa atuação dolosa e não meramente culposa que permitiu, uma vez mais este tribunal da 1ª instância, absolver o arguido, condenando-o nos termos da especial atenuação conferida por esta forma tentada de crime de homicídio simples.
VOSSA EX.ª, PORÉM, COMO SEMPRE FARÃO INTEIRA JUSTIÇA!
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Também inconformado com a decisão absolutória, o assistente C… veio interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. C…, assistente nos autos supra identificados, não se conforma com o acórdão de fls…. dos autos, a qual mais uma vez veio absolver o arguido B…, pela prática, em autoria material, de dois crimes de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, n.º 1, 22 e 23º, todos do código Penal e, consequentemente, absolvê-lo da mesma, assim como julgou improcedente o pedido cível de indemnização deduzido pelo assistente, aqui recorrente e, em consequência, absolver o demandado B…;
2. Encontra-se errada e incorrectamente julgada a matéria de facto dada como provada no ponto O), P), CC) E DD) dos factos provados e matéria de facto dada como não provada, que infra se indicará e discriminará, face a toda a prova validamente produzida em julgamento;
3. Foi erradamente dado como provado, face a prova validamente produzida, no ponto O) que: “O arguido, que seguia no banco dianteiro direito da viatura da GNR, colocado junto à janela, com o tronco inclinado para o exterior, efectuou quatro disparos, em tiro semi-automático, sobre a traseira da viatura Peugeot, em fuga, que se encontrava a uma distância de, aproximadamente, quinze a vinte metros”;
4. Deveria ter sido dado como provado no ponto O) que: “O arguido, que seguia no banco dianteiro direito da viatura da GNR, colocado junto à janela, com o tronco inclinado para o exterior, efectuou um disparo, em tiro semi-automático, produzindo uma rajada de 3 projecteis, sobre a traseira da viatura Peugeot, em fuga, que se encontrava a uma curta distância, não apurada mas não superior a 5 metros”, nos termos e fundamentos supra referidos e que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
5. Mais foi dado erradamente como provado, compulsada e analisada a prova validamente produzida em audiência de julgamento, no PONTO P): Tais viaturas continuaram a marcha no sentido descendente, fizeram uma curva e prosseguiram por uma zona plana, em reta, local em que o arguido B…, que se encontrava na mesma posição à janela da viatura policial, efectuou mais dois disparos, do mesmo modo e sensivelmente à mesma distância dos anteriores, tendo então a viatura em fuga imobilizado a sua marcha, junto do prédio com o número 359;
6. Ora, conforme supra referido, e foi dado como provado, o arguido efectuou disparos em modo semi-automático, não podia ter efectuado dois disparos, mas antes apenas mais um disparo, uma vez que, conforme resulta do referido manual da pistola metralhadora em causa e junto aos autos a folhas ..., a cadência de tiro da arma, em modo semi-automático é três disparos. Logo, o arguido terá, não efectuado um segundo disparo, que resultou em mais uma rajada curtas de tês projecteis, que voltaram a metralharam o pequeno Peugeot …;
7. Não só as características da arma impunha que fosse dado como provado que o arguido efectuou apenas dois disparos, sabendo que efectuaria, duas rajadas de três projecteis, em movimento, que naturalmente, e mesmo que o atirador visasse o pneu traseiro direito, face a essa circunstância, só por mero acaso tal resultado seria atingido, sendo mais provável, como aconteceu, que fosse o carro atingido em vários pontos dispersos pela traseira, com diferentes trajectórias, e que invadiram o habitáculo, com os nefastos resultados que são conhecidos. Acresce que esses disparos, que esse disparo, terá sido efectuado a uma curta distância, em que os veículos teriam que estar muito próximos face a dispersão reduzida dos projecteis;
8. Nesse sentido conferir novamente declarações do assistente C…, o qual, como vem referido no douto acórdão, afirmou "não ter ouvido qualquer tiro de advertência, senão teria procedido à paragem do veículo e que houve dois momentos de disparos – um primeiro, de 3 ou 4 tiros sequenciais, que atingiram os ocupantes traseiros do veículo, com as viaturas em andamento franco (diz que seguia, então, a 100 Km/h ou mais) e um segundo momento, de mais 3 tiros, com o Peugeot já quase parado. Declara que o “…” chegou a estar a cerca de 1 a 2 metros do Peugeot em duas alturas, aquando dos disparos e aquando do “despiste” (cfr. pág. 16 do douto Acórdão);
9. Pelo exposto deveria ter sido dado como provado, compulsada e analisada a prova validamente produzida em audiência de julgamento, no PONTO P) que: Tais viaturas continuaram a marcha no sentido descendente, fizeram uma curva e prosseguiram por uma zona plana, em reta, local em que o arguido B…, que se encontrava na mesma posição à janela da viatura policial, efectuou mais um disparo, em modo semi-automático, produzindo uma nova rajada de 3 projecteis, do mesmo modo e sensivelmente à mesma distância dos anteriores e com mesmo resultado, tendo então a viatura em fuga imobilizado a sua marcha, junto do prédio com o número 359 - Cfr. nesse sentido depoimento do perito/inspector E…, gravado em suporte digital em uso neste Tribunal, em 03.02.2014, com a duração de 01 hora, 12 minutos e 51 segundos (cfr. acta de audiência de julgamento de 03.02.2014), que aqui parcialmente supra transcrevemos e que aqui damos desde já como reproduzido para todos os efeitos legais;
10. Mais foi erradamente dado como provado no ponto CC) que “o arguido B… não dispunha de qualquer outro meio coercivo menos perigoso, tendo optado pelo uso da arma de fogo, como forma de conseguir imobilizar o Peugeot.”;
11. Ora, salvo o devido respeito, atenta a prova produzida em audiência de julgamento, o Tribunal a quo deveria antes ter dado como provado que o arguido B… DISPUNHA de outros meios menos perigosos para conseguir imobilizar o Peugeot;
12. Desde logo, e conforme resulta dos factos provados haviam mais viaturas no encalce do carro em fuga, pelo que era possível a selagem do veículo em fuga, devendo ter existido comunicação entre os veículos no encalce, organizando a selagem, sem recurso a armas de fogo, sem prescindir esta ser uma situação de mera desobediência a um sinal de paragem, devendo, de acordo com regulamentos em vigor, os agentes limitar-se à anotação do número da matricula do veículo "em fuga", seguindo-se as diligências possíveis no sentido de alertar o comando tendo em vista a eventual intercepção do veículo por outra força já preparada para o efeito, sendo certo que, a perseguição inclusive, ocorria, quando entrou dento da cidade do Porto, numa área de Jurisdição da P.S.P.. Melhor seria, face à natureza contraordenacional da infracção que esteve na origem da perseguição, e para que não se fosse posta em causa a segurança rodoviária e a vida de todos intervenientes ou terceiros, que fosse abandonada a perseguição, depois da identificação do veículo - Cfr. nesse sentido depoimento do inspector E…, gravado em suporte digital em uso neste Tribunal e que supra transcrevemos e que aqui damos desde já como reproduzido para todos os efeitos legais;
13. Pelo exposto deveria ter sido dado como provado, compulsada e analisada a prova validamente produzida em audiência de julgamento, no ponto CC) que “o arguido B… dispunha outros meios coercivo menos perigoso, tendo contudo optado pelo uso da arma de fogo, como forma de conseguir imobilizar o Peugeot.”;
14. Mais foi ainda erradamente dado como provado, de acordo com prova produzida, no ponto dd) que “o arguido B… agiu sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, bem sabendo que, ao disparar em direcção ao veículo automóvel em fuga, poderia atingir os ocupantes do mesmo, tirando-lhes a vida ou ofendendo-lhes corporalmente, mas atuou convicto de que tal não sucederia, dada a sua condição de atirador exímio";
15. Ora, ao contrário do que refere o douto Acórdão recorrido, não resulta, da prova produzida em julgamento, nomeadamente do depoimento do perito E…, que o arguido B… fosse um atirador exímio. Ouvido todo depoimento este não permite aquela conclusão;
16. O que resulta, de acordo com o que vimos de referir supra, quanto aos pontos O e P dos factos provados, é que o arguido, disparou, irreflectidamente e sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, duas rajadas de três tiros, em condições de luminosidade/visibilidade e de um ponto instável num carro em movimento e com um alvo em movimento, que, só muito fortuitamente poderiam atingir o alvo que visava - o pneu traseiro direito - e que poderiam, com grande probabilidade atingir os ocupantes do veículo automóvel em fuga, ou terceiros que se encontrassem nas imediações;
17. Acresce que, mesmo se admitisse a alegada qualidade de atirador do arguido - o que não se concede, nem se concede porque nada nos autos permite essa conclusão - o certo é que tal resultaria em prejuízo do arguido, uma vez que implicava ter elevada experiência com armas de fogo, e condições de disparo, sabendo que disparar de forma instável, num veículo em movimento, sobre um alvo também em movimento, é absolutamente ineficaz e de resultado absolutamente improvável e perigoso, mais a mais fazendo-o utilizando o modo semi-automático da pistola metralhadora que utilizou, cujas rajadas, "varrem" o alvo - Cfr. nesse sentido depoimento do inspector E…, gravado em suporte digital em uso neste Tribunal, em 03.02.2014, com a duração de 01 hora, 12 minutos e 51 segundos (cfr. acta de audiência de julgamento de 03.02.2014), que supra parcialmente transcreveremos e que aqui damos desde já como reproduzido para todos os efeitos legais;
18. Pelo exposto, e de acordo com prova produzida, deveria ter apenas sido dado como provado, no ponto dd) que “o arguido B… agiu sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, bem sabendo que, ao disparar em direcção ao veículo automóvel em fuga, poderia atingir os ocupantes do mesmo, tirando-lhes a vida ou ofendendo-lhes corporalmente";
19. Consequentemente, e de acordo como o que vimos de referir e de acordo com toda a prova produzida, deveria ter sido também dada como provada a seguinte matéria de facto dada como não provada, e com a seguinte redacção: - O arguido tinha à sua disposição outros meios de obrigar o veículo em fuga a imobilizar-se; - O arguido agiu convencido de existir grande probabilidade de atingir corporalmente os ocupantes do veículo em fuga; - O arguido conformou-se com a possibilidade de atingir qualquer dos ocupantes do Peugeot alvejado, nomeadamente o assistente C… ou o D… e de lhes tirar a vida ou ofender corporalmente. Nesse sentido conferir o depoimento e esclarecimentos do perito E… e toda a prova documental produzida, nomeadamente reportagem fotográfica de folhas ... dos autos e inspecção ao veículo de fls. ... dos autos;
20. Mais deveria ter sido dada como provado, e não como não provado, porque assim o impunha a prova produzida, nomeadamente as declarações do assistente C…, que aqui damos por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, e se encontram gravada em sistema integrada de gravação digital usado naquele Tribunal e foram produzidas no dia 27.01.2014, e que têm a duração de 01 hora, 01 minuto e 17 segundos, que: - O assistente, face aos disparos, tenha sentido pânico e terror e temido pela vida; - A conduta do arguido haja provocado no assistente angústia, ansiedade, sofrimento, tristeza e revolta; - O assistente tenha vivenciado o sucedido inúmeras vezes, sentindo-se agitado e intranquilo e não conseguindo repousar ou dormir;
21. Quem vivencia os factos descritos supra na matéria de facto dada como provada, é alvo de duas rajadas, vê o carro a ser metralhado e dois seus amigos atingidos, sendo que um deles perdeu de imediato a vida, naturalmente, a menos que seja um sociopata (o que não dada como provado) e tenha desprezo pela vida, particularmente pela dos outros, sentirá naturalmente pânico, terror e temerá pela vida, quando percebe que está a ser alvejado o carro que conduz, dai que inclusivamente tenha parado a viatura, e também terá que sentir angustia, sofrimento e tristeza e revolta, uma vez que para além do mais dois seus amigos foram atingidos e um deles perdeu a vida, sendo certo que o assistente poderia ser também um deles - só a fortuna e o acaso impediu esse resultado - o que tudo naturalmente perturbou e marcou o assistente, com reflexos no seu bem estar e no seu descanso;
22. Pelo exposto tal factualidade tinha que ser dada como provada e não como não provada, porque assim o impunha toda a prova produzida e as regras de experiência e da normalidade do acontecer;
23. Acresce que, o Tribunal a quo dá como provados factos que integram o tipo de crime de homicídio simples, na forma tentada, contudo, entende que, a conduta do arguido foi "apenas" negligente e que essa mesma conduta não produziu quaisquer resultados ao nível da produção de lesões no corpo ou na saúde, e muito menos de morte, dos ofendidos, estando perante um crime meramente tentado e não um crime consumado, e assim sendo a tentativa negligente não é punível;
24. Contudo, não perfilhamos o mesmo entendimento, e quanto a nós, da prova validamente produzida, e da própria factualidade dada como assente, resulta que o arguido agiu com dolo e não com negligência;
25. Atentos os factos dados como provados, sem prescindir a impugnação de facto supra, é nosso entendimento que o arguido actuou com DOLO, uma vez que o arguido estava perfeitamente consciente que, naqueles condições e circunstâncias de tempo, modo e lugar, poderia atingir os ocupantes da viatura, conformou-se com esse facto, mesmo sabendo que, o resultado da sua conduta, a qual para além de não se justificar, dificilmente teria o resultado pretendido, e que poderia levar a perda de vidas, não só dos ocupantes do veículo que eram alvo dos seus disparos, mas de quaisquer terceiros que se encontrassem no local, sendo absolutamente desaconselhável o usa da arma, mais a mais, em modo semi-automático, com rajada de três projecteis, que tenderiam a dispersar pelo alvo ou para além dele;
26. O dolo significa conhecer e querer os elementos objectivos pertinentes do tipo legal. O conhecimento deve referir-se aos elementos do tipo situados no passado e no presente. O autor dever prever, ademais, nos seus rasgos essenciais, os elementos típicos futuros, especialmente o resultado e a relação causal;
27. A vontade consiste na decisão de realizar a acção típica e na execução dessa decisão;
28.O dolo dever referir-se também às circunstâncias que tornam o caso especialmente grave (casos de agravação punitiva).
29. O arguido B… agiu com dolo, mesmo que eventual, e a sua conduta é punível, pelo que deverá o arguido ser condenado pelos crimes de que estava pronunciado;
30. Pelo exposto, deverá o arguido ser condenado, em pena de prisão, em pena que não se concretiza e se deixa ao competente critério desta Relação;
31. Face à prova produzida, à factualidade dada como provada e factualidade que deve ser dada como provada, face a prova validamente produzida e de acordo com regras da experiência, deveria ter sido procedente o pedido de indemnização civil e o arguido/demandado condenado a pagar ao assistente a quantia peticionado, o que, após a reapreciação, deverá acontecer, devendo o Demando condenado a pagar ao recorrente a quantia peticionada, assim se fazendo justiça;
32. Disposições violadas: Foram violados os artigos 131º, 13º, 14º, 22º, 23º do Código Penal e artigos 127º, 163º, 355º do Código Processo Penal e 32º da Constituição da República Portuguesa, e as demais normas que V. Exias suprirão.
Termos em que, se deverá revogar o douto Acórdão nos termos, com os efeitos e pelas razões supra expendidas, condenando-se o recorrido B… nos termos propugnados.
Assim se fazendo, uma vez mais, JUSTIÇA!
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Os recursos foram admitidos (cfr. fls. 1491 e 1502).
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Em resposta aos recursos do Ministério Público e do assistente C…, o arguido pugnou que lhes seja negado provimento.
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Nesta Relação o Ilustre Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Passemos agora ao conhecimento das questões alegadas nos recursos interpostos da decisão final proferida pelo tribunal colectivo.
Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida (segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respectiva motivação - transcrição):
II - Fundamentação
2.1 - Motivação de facto
2.1.1 - Factos provados
Da discussão e instrução da causa, resultou provado que:
(Da Acusação)
a) No dia 3 de Outubro de 2006, cerca da 01,00 hora, os soldados da GNR, G… e H…, na altura, ambos em funções no Posto Territorial da Maia, encontravam-se de serviço de patrulha e circulavam no veículo automóvel, da marca Nissan, modelo … (jeep), devidamente caracterizado, que estava afeto àquele órgão de polícia criminal.
b) No cruzamento conhecido como das …, em …, comarca da Maia, avistaram o veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Peugeot, modelo …, com cor vermelha, modelo …, de matrícula ..-..-DJ, conduzido pelo assistente C…, que ali estava parado em obediência ao semáforo de cor vermelha e, em cujo interior, seguiam mais três indivíduos, do sexo masculino, D…, como pendura, I… e J…, que seguiam no banco traseiro, sem que, pelo menos, o condutor e o pendura fizessem uso dos respectivos cintos de segurança, instalados no veículo automóvel.
c) Verificado tal facto, o soldado da GNR G…, entendeu abordar tal veículo, fazendo passar o Jipe da GNR, em que seguia, pelo lado direito do Peugeot e imobilizando-o uns metros à frente e à direita do mesmo.
d) Para o efeito, o soldado da GNR G… saiu do Jipe da GNR e dirigiu-se ao Peugeot, dando indicações para o condutor, o assistente C…, proceder ao estacionamento do veículo, junto da berma, de forma a poder ser devidamente fiscalizado.
e) O assistente C…, que se encontrava ao volante do veículo automóvel da marca Peugeot, não acatou tal ordem, conseguiu pôr o veículo que conduzia em andamento, passando por trás e junto do Jipe e do militar da GNR G…, colocando-se em fuga (a conduta do assistente C… já foi apreciada, como arguido, no âmbito do Proc.1382/06.6 GAMAI).
f) Face à conduta empreendida pelo assistente C…, os soldados da GNR, de imediato, lançaram um alerta, via rádio, à rede da GNR, informando desse comportamento do assistente C…, da circulação sem uso dos respetivos cintos de segurança, bem como forneceram os elementos identificativos do veículo automóvel em fuga, nomeadamente marca, cor e matrícula.
g) O jipe onde se faziam transportar os dois soldados da GNR, acima identificados, perseguiu o veículo automóvel, conduzido pelo assistente C…, por dentro de localidades e outras vias rodoviárias, perseguição essa que se manteve por muitos quilómetros, tendo as duas viaturas passado a circular na …, no sentido Póvoa do Varzim - Porto, cidade onde entraram pela Rotunda …, vulgarmente conhecida como dos ….
h) Nessa altura já o veículo automóvel em fuga, conduzido pelo assistente, estava ser perseguido por uma outra viatura da GNR, da marca Nissan, modelo …, devidamente caracterizada, com a matrícula GNR L-…., pertencente ao Posto Territorial de Matosinhos, que, entretanto, viera auxiliar na perseguição, conduzida pelo soldado K… e transportando ainda o arguido B….
i) A viatura da GNR onde circulava o arguido B…, na saída da Estrada … e entrada na Rua …, passou a ser o perseguidor mais próximo do Peugeot conduzido pelo assistente, continuando o jipe a fazê-lo, mas bem atrás do Nissan ….
j) As mencionadas viaturas circularam por diversas artérias desta cidade, nomeadamente pela Rua …, entrando de seguida na Avenida …, donde seguiram pela Rua … e pela Rua …, onde o veículo em fuga mudou de direcção, a fim de passar a circular na Rua …, sempre seguido de perto pela viatura onde seguia o arguido B….
k) Todas estas viaturas circularam em velocidade manifestamente superior à recomendada para uma condução prudente e à legalmente estabelecida e em violação de diversas regras estradais, percorrendo várias artérias desta cidade.
l) Os elementos da GNR emitiram várias mensagens sonoras para que o veículo em fuga se imobilizasse, ordem que nunca foi acatada pelo assistente C….
m) Quando se encontravam na Rua …, nesta cidade do Porto, artéria que apresenta uma inclinação, seguindo ambas as viaturas no sentido descendente e apesar de os ocupantes da viatura em fuga não terem denotado qualquer atitude ofensiva para os militares da GNR que os perseguiam, o arguido B…, que se transportava no Nissan … e que seguia imediatamente atrás da viatura Peugeot, decidiu fazê-la parar, recorrendo ao uso de uma das armas de fogo que lhe estavam distribuídas.
n) Decisão tomada pelo arguido, apesar de saber que poderia pôr em risco a vida ou a integridade física do condutor e do pendura da viatura que perseguia, já que ambas as viaturas circulavam a uma velocidade manifestamente exagerada, que não lhe permitia o uso mais seguro e adequado de armas de fogo e que, dentro da viatura em fuga, seguiam, pelo menos, essas duas pessoas.
o) O arguido, que seguia no banco dianteiro direito da viatura da GNR, colocado junto à janela, com o tronco inclinado para o exterior, efetuou quatro disparos, em tiro semi-automático, sobre a traseira da viatura Peugeot, em fuga, que se encontrava a uma distância de, aproximadamente, quinze a vinte metros.
p) Tais viaturas continuaram a marcha no sentido descendente, fizeram uma curva e prosseguiram por uma zona plana, em reta, local em que o arguido B…, que se encontrava na mesma posição à janela da viatura policial, efetuou mais dois disparos, do mesmo modo e sensivelmente à mesma distância dos anteriores, tendo então a viatura em fuga imobilizado a sua marcha, junto do prédio com o número ….
q) Como consequência necessária e directa destes disparos, um dos ocupantes da viatura em fuga, que seguia no banco traseiro, lado direito, o I… acabou por ser atingido, no tórax, por dois projécteis, sendo um de trás para diante e outro de trás para diante, da esquerda para a direita e ligeiramente de cima para baixo.
r) Que lhe causaram as lesões traumáticas torácicas descritas nos relatórios das autópsias juntos a fls. 260 e seguintes dos autos e 457 e seguintes dos autos, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos para todos os legais efeitos, que lhe determinaram, como efeito necessário, a sua morte.
s) Igualmente em consequência dos disparos efectuados, J…, que seguia no banco traseiro, do lado esquerdo, acabou por ser atingido, por um dos projécteis disparados, na zona abdominal, que lhe causou as lesões constantes dos registos clínicos juntos a fls. 318 e seguintes dos autos, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos para todos os legais efeitos,
t) Que lhe determinaram, como consequência necessária e directa, quarenta e cinco (45) dias de doença, com afectação da capacidade para o trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional, conforme consta do relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito penal junto a fls. 618 e seguintes dos autos, que aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os legais efeitos (os factos descritos nas alíneas q) a t) já foram apreciados e decididos no âmbito do Processo nº 1382/06.6 GAMAI).
u) Todas as seis cápsulas foram deflagradas pela pistola automática — metralhadora – de que o arguido B… se munia, da marca FAMAE, modelo SAF, de calibre 9 mm Parabellum (9 mm LUGER, na designação anglo-americana), com o número de série …….., de origem chilena, que se encontrava em boas condições de funcionamento,
v) Bem como os dois projécteis suspeitos e o projéctil correspondente ao fragmento de blindagem, conforme consta do relatório de exame pericial e balístico junto a fls. 629 e seguintes dos autos, que aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os legais efeitos.
w) A viatura da marca Peugeot, modelo …, de matrícula ..-..-DJ, apresenta na sua zona traseira cinco vestígios compatíveis com acção e resultado de projécteis de arma de fogo e o vidro da porta lateral traseira direita fraturado.
x) Os vestígios compatíveis com a acção de projécteis de arma de fogo situam-se na porta traseira (do porta bagagem) e no pára choques, com inclinações e direcções aproximadamente constantes e as trajectórias dos projécteis que provocaram os vestígios acima descritos revelam todas inclinação descendente e direcção da esquerda para a direita, tendo como referência o eixo central longitudinal e o chão da viatura, sendo que as trajectórias referenciadas por A, C e D apresentam continuidade para o interior do habitáculo.
y) A trajectória do vestígio B terminou na parte interior do fecho da porta traseira e a trajectória do vestígio E perfurou o pára-choques e terminou no pneumático de reserva, que se encontrava no seu alojamento, por baixo da mala traseira, o qual se apresentava perfurado e sem pressão.
z) Das observações à viatura da marca Peugeot, modelo …, de matrícula ..-..-DJ, colhe-se que a mesma veio a ser atingida por cinco (5) disparos, de arma de fogo, dos quais três (3) tiveram continuidade para o interior do habitáculo da mesma, conforme resulta do auto de exame junto a fls. 212 e seguintes dos autos e do relatório de exame pericial junto a fls. 342 e seguintes dos autos, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos para todos os legais efeitos.
aa) O arguido B… tinha perfeito conhecimento sobre as situações passíveis de recurso à utilização de armas de fogo e conhecia as características técnicas da arma de fogo que lhe estava distribuída pela corporação policial a que pertence.
bb) Sabia igualmente das possíveis consequências que poderiam advir da utilização de tal arma de fogo e, quando a utilizou, não estava a ser ofendido corporalmente ou ameaçado na sua integridade física, nem foi confrontado com qualquer arma de fogo, que tivesse sido empunhada pelo assistente C… ou pelos seus acompanhantes.
cc) O arguido B… não dispunha de qualquer outro meio coercivo menos perigoso, tendo optado pelo uso da arma de fogo, como forma de conseguir imobilizar o Peugeot.
dd) O arguido B… agiu sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, bem sabendo que, ao disparar em direção ao veículo automóvel em fuga, poderia atingir os ocupantes do mesmo, tirando-lhes a vida ou ofendendo-os corporalmente, mas atuou convicto de que tal não sucederia, dada a sua condição de atirador exímio.

(Do Pedido Cível e da Contestação)
ee) O assistente C… sentiu medo de ser atingido pelos disparos;
ff) O assistente desrespeitou as regras de trânsito, adotando uma conduta suscetível de colocar em perigo a vida ou a integridade física de pessoas que circulassem nas vias por onde circulou;
gg) O arguido desconhecia a existência de dois ocupantes no banco traseiro do Peugeot;
hh) Os disparos foram efetuados de cima para baixo e da esquerda para a direita, visando o pneu traseiro do lado direito;
ii) O Manual de “Técnicas de intervenção Policial”, distribuído pelo Ministério da Administração Interna, no âmbito da formação de praças à distância, prevê o disparo de arma de fogo para o pneu traseiro direito do veículo em fuga, como último recurso para forçar a sua imobilização, quando do interior deste haja reação ou, não tendo cessado o flagrante delito, se torne imperioso evitar danos maiores, observados os requisitos legais, designadamente o disposto no Decreto-Lei nº 457/99, de 05 de Novembro.
(Do Relatório Social e de outras fontes)
- Dados relevantes do processo de socialização
jj) B… é originário de um núcleo familiar constituído pelos progenitores e cinco irmãos, dos quais é o mais novo. O seu processo educativo desenvolveu-se neste contexto familiar, caracterizado pela estabilidade relacional e afetiva e condição económica mediana. O pai, já falecido, era funcionário fabril e a mãe, figura mais interveniente no processo educativo dos filhos, doméstica.
kk) Frequentou em idade própria o sistema de ensino regular, que abandonou aos 16 anos com o 6º ano de escolaridade, depois de duas reprovações. Mais tarde, aos 23 anos de idade, completou o 12º ano de escolaridade por iniciativa própria em horário noturno.
ll) O seu percurso letivo, apesar de marcado por algum absentismo, caracterizou-se pela adaptação à dinâmica e disciplina escolares.
mm) Aos 17 anos de idade, iniciou o exercício de atividade laboral como funcionário de uma empresa de transitários, aí permanecendo até aos 19 anos, idade em que ingressou no serviço militar.
nn) Posteriormente ao cumprimento obrigatório daquele serviço, após a conclusão do curso de cabo, decidiu continuar a carreira militar tendo sido colocado em …, onde frequentou um curso de operações especiais e posteriormente no quartel de ….
oo) No ano de 2000, integrado numa força da NATO, cumpriu durante 6 meses missão nos Balcãs e, no ano de 2003, por igual período, no âmbito das forças da ONU, missão em Timor.
pp) Em 2004, ingressou na Guarda Nacional Republicana onde, após a conclusão do curso de praças em que obteve classificação relevante, ingressou na brigada territorial.
qq) Aos 27 anos de idade, estabeleceu relação de facto com a atual companheira, resultando dessa união uma filha.
- Condições sociais e pessoais
rr) B… vive com a companheira, funcionária numa empresa de publicidade e a filha de ambos de 7 anos de idade, caracterizando-se o relacionamento familiar como estável e afetivamente gratificante. Residem em apartamento próprio, tipologia T2, com boas condições de conforto e habitabilidade, inserido no centro urbano de ….
ss) O agregado familiar apresenta, pelos proventos provenientes das respetivas atividades profissionais e única fonte de rendimento, uma situação estável mas não desafogada, face aos encargos fixos, nomeadamente com a prestação da habitação. A companheira desenvolve atividade laboral corno vendedora numa empresa de publicidade.
tt) A nível profissional, o arguido permanece exercendo funções de guarda, na brigada territorial da Guarda Nacional Republicana, no posto de …, onde revela integração positiva em termos funcionais e relacionais, sendo considerado por superiores e colegas de trabalho, profissional empenhado, competente e com boa capacidade de relacionamento.
uu) O arguido detém uma imagem positiva em termos de idoneidade e sociabilidade no meio de inserção residencial, aí mantendo um círculo de amigos com quem convive frequentemente.
vv) Como atividade extra-laboral, dedica-se diariamente à prática de desporto, modalidade de atletismo (triatlo), de grande exigência física e mental, estando inscrito corno atleta federado no “L…” e, durante a época balnear, dedica-se em regime de voluntariado à atividade de nadador salvador nas praias de ….
- Impacto da situação jurídico-penaI
ww) O arguido manteve anterior confronto com o sistema de administração da justiça, consequente da situação factual que originou o processo judicial em referência, motivo de forte consternação emotiva, que justificou o recurso a acompanhamento de apoio psicológico, demonstrando atualmente agastamento e inconformismo pela continuação do protagonismo nesta nova situação processual. Segundo afirma a superação desta penosidade que vivencia é compensada pelo apoio e compreensão dos familiares dos colegas e hierarquia profissional e pela prática intensiva de desporto a que se dedica diariamente.
xx) Em abstrato, o arguido reconhece a ilicitude dos factos pelos quais está a ser acusado, bem como a existência de vítimas. Contudo, pondera que factos daquela natureza, quando ocorridos no exercício de funções policiais, podem enquadrar-se como uma consequência de factos imprevisíveis.
yy) Em caso de condenação, o arguido demonstrou recetividade para aderir à aplicação de uma medida a ser executada na comunidade.
- Conclusão
zz) B… tem origem num contexto familiar estruturado e economicamente estável que lhe permitiu condições para um desenvolvimento psico-educativo equilibrado.
aaa) Nos contextos de vida em que está inserido, ao nível familiar, profissional e social, regista um enquadramento assertivo, sendo avaliado positivamente pelas pessoas com quem se relaciona. Mantém inserção laboral e equilíbrio económico estabilizados. Em termos familiares, dispõe de enquadramento relacional e afetivo coeso e solidário, partilhando com o cônjuge os constrangimentos relacionados com a situação jurídico-penal.
bbb) Do registo criminal do arguido nada consta.
*
2.1.2 – Factos não provados
Com pertinência ao objecto do processo, não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contrário dos constantes do ponto anterior e, designadamente, que:
- A conduta adotada pelo assistente C… no cruzamento …, haja sido interpretada, pelos soldados da GNR, como uma tentativa de atropelamento;
- A abordagem nas … também tenha sido determinada por suspeita derivada da existência de vários assaltos à mão armada e em residências;
- No alerta rádio difundido tenha sido referido que se tratava de um grupo composto por quatro indivíduos;
- A condução do Peugeot colocasse efetivamente em perigo a vida de terceiros;
- O arguido tivesse à sua disposição outros meios de obrigar o veículo em fuga a imobilizar-se;
- O arguido houvesse disparado “tiros de aviso”;
- O arguido agisse convencido de existir grande probabilidade de atingir corporalmente os ocupantes do veículo em fuga;
- O arguido se tenha conformado com a possibilidade de atingir qualquer dos ocupantes do Peugeot alvejado, nomeadamente o assistente C… ou o D… e de lhes tirar a vida ou ofender corporalmente;
- O assistente, face aos disparos, tenha sentido pânico e terror e temido pela vida;
- A conduta do arguido haja provocado no assistente angústia, ansiedade, sofrimento, tristeza e revolta;
- O assistente tenha vivenciado o sucedido inúmeras vezes, sentindo-se agitado e intranquilo e não conseguindo repousar ou dormir;
- O assistente haja sofrido um abalo psicológico, ficando seriamente afetado na sua saúde psíquica.
*
2.1.3 – A convicção do tribunal/Análise crítica da prova
O tribunal fundamentou a sua convicção nos meios de prova, a seguir indicados por súmula, conjugados entre si e analisados à luz das regras da experiência:
- nas declarações do arguido em audiência, que diz ter recebido um alerta rádio de que uma patrulha da Maia perseguia um veículo suspeito, da marca Peugeot e cujas matrícula e cor foram indicadas, que se dirigia para a área de Matosinhos e pedindo ajuda para a respetiva interceção. Garante não ter sido referido o número de ocupantes do veículo, nem que os mesmos circulassem desprovidos dos cintos de segurança e que só já em plena perseguição ouviu mencionar a tentativa de atropelamento aos militares no cruzamento …. O declarante veio a avistar o Peugeot junto da Rotunda …, logo assumindo o lugar de perseguidor mais próximo. Seguindo pela Rua … com os sinais de emergência ligados, luminosos e sonoros, o Peugeot efetuou uma travagem brusca, obrigando o Nissan … perseguidor a subir o passeio para evitar a colisão iminente. A perseguição continuou pela Av. …, sempre com os sinais luminosos rotativos e a sirene ligados, bem como com diversas advertências para parar realizadas com o megafone do veículo policial caracterizado, a uma velocidade de cerca de 100 Km/hora. Nessa avenida, o Peugeot circulou em contramão, obrigando vários veículos a parar e o Nissan … tentou ultrapassá-lo, mas foi obrigado a travar e abortar a manobra, por este ter guinado para a esquerda, assim tentando abalroar o veículo perseguidor. No cruzamento da Av. … com a Av. …, o Peugeot atravessou esta em desrespeito ao semáforo vermelho, continuou pela Rua …, onde entrou em despiste, seguiu pela Rua …, onde obrigou uma carrinha a parar para evitar a colisão e, após, pela Rua …. Garante que desconhecia a presença de dois ocupantes no banco traseiro do Peugeot, os quais não eram visíveis por estarem baixados e/ou por os vidros estarem embaciados, em razão da chuva que caíra. Concluiu ser necessário parar o Peugeot, porque em função da condução adotada, iria acabar por causar uma tragédia. Assim, decidiu fazer uso da arma de fogo, disparando um tiro para o ar e, face à ausência de qualquer reação por parte do Peugeot, quando se encontrava a uma distância de cerca de 15 a 20 metros, disparou dois tiros e depois, em frente à escola, mais três, sempre visando o pneu traseiro direito daquele veículo. Usou a pistola-metralhadora “SAF FAMAE”, de 9 mm de calibre, que diz ter sido concebida para as intervenções em meio urbano, por ser mais fiável ao permitir 3 apoios (mãos e ombro), usando-a em modo semi-automático, isto é, tiro a tiro. Garante que se previsse a possibilidade de atingir alguém, não teria feito uso da arma de fogo. Assegura que o vidro da porta direita traseira do Peugeot foi quebrado pelo declarante, após a paragem do veículo e terem sido imobilizados os ocupantes da parte da frente do mesmo, altura em que viu que estavam duas pessoas na parte de trás, mas com a porta trancada. Menciona que, quando circulavam na Av. …, se aperceberam do “desmarque” de algum objeto por parte dos arguidos, vindo a saber posteriormente que os seus colegas de …, haviam recuperado uma arma de fogo no local. Diz não dispor de outros meios coercivos, que a rede rádio da GNR não permite a ligação direta com a da PSP, só sendo possível os contactos através das respetivas “centrais”. Acrescenta que as munições usadas pela “SAF” são do tipo “derrubante” (que perdem 60 a 70% da força, no choque com a primeira massa que encontrem) e não do tipo “perfurante”. Diz ter sabido da tentativa de atropelamento aos militares nas …, no decurso da perseguição. Afirma ter feito tiro de adaptação a esta arma em 2004 e talvez 2005, nos modos de tiro estático e dinâmico, mas com alvo imóvel. Diz não conhecer o “Manual de Operações” difundido pela Brigada de Trânsito e constante de fls. 770 e segs. dos autos. Diz ser militar da GNR há 10 anos e ter cumprido missões na Bósnia e em Timor-Leste. Dedica-se voluntariamente à missão de nadador-salvador em praias, tendo, há cerca de 2 anos, salvado dois jovens com 14 anos de idade, em … e, quando esteve em Timor-Leste, um fuzileiro de afogamento;
- nas declarações do assistente C…, que declara ter parado o Peugeot no semáforo …, altura em que os vidros estavam embaciados. O Jeep da GNR passou pela direita do Peugeot e parou logo à frente, mas não viu qualquer agente sair do mesmo. Ao perceber que iria ser abordado, decidiu fazer inversão de marcha e fugir pela …, por não ter o cinto de segurança colocado, não ter seguro, nem certificado de inspeção do veículo (que diz ter sido emprestado por um amigo) e estar embriagado. Afirma ter visto o “Nissan …” na Rotunda …, mas que este só tomou a dianteira ao “Nissan …” (jeep), após terem cruzado a Av. …. Diz ter visto as luzes rotativas, acha que ouviu a ordem de paragem (via megafone), mas pensa não ter ouvido a sirene sonora. Afirma que chegaram a circular a 100 ou 120 Km/hora. Garante não ter havido qualquer tentativa de ultrapassagem do Peugeot por parte das viaturas policiais e que não viu qualquer “desmarque” feito a partir do veículo que conduzia. Assegura não ter ouvido qualquer tiro de advertência, senão teria procedido à paragem do veículo e que houve dois momentos de disparos – um primeiro, de 3 ou 4 tiros sequenciais, que atingiram os ocupantes traseiros do veículo, com as viaturas em andamento franco (diz que seguia, então, a 100 Km/h ou mais) e um segundo momento, de mais 3 tiros, com o Peugeot já quase parado. Declara que o “…” chegou a estar a cerca de 1 a 2 metros do Peugeot em duas alturas, aquando dos disparos e aquando do “despiste”. Viu que o vidro lateral traseiro do Peugeot foi quebrado pelo arguido com a coronha da arma de fogo. Diz ter sentido medo de ser atingido pelos disparos e que, pouco após a imobilização dos veículos, a PSP chegou ao local;
- no depoimento da testemunha J…, ocupante do Peugeot (lado esquerdo traseiro). Refere a paragem no semáforo …, a inversão de marcha e a fuga, por o C…, que conduzia o veículo, não ter carta de condução e estarem todos alcoolizados. Afirma terem sido perseguidos pelo “jeep” e, próximo da Rotunda …, pelo “…”, que traziam as luzes rotativas e as sirenes ligadas, achando que foi transmitida ordem sonora de paragem. Diz não saber a quem pertencia o Peugeot e que os passageiros de trás não levavam colocados os cintos de segurança. Acha que a GNR só disparou uma rajada e diz que o Peugeot parou logo que o depoente se queixou de ter sido atingido (com um tiro nas costas e pernas). Afirma que vinha encostado à traseira e inclinado para a esquerda a “ler” o telemóvel (a seguir, corrigiu, dizendo estar a falar com uma amiga). Também refere não ter dado qualquer indicação ao condutor, porque “ia baixado” e não tinha visão para a frente. Não sabe quantos tiros foram disparados e não ouviu qualquer tiro disparado para o ar. Afirma que o vidro da porta traseira direita, que estava trancada, foi quebrado pelo arguido com a coronha da metralhadora. Diz ser seu o chapéu constante da fotografia de fls. 34, desconhecendo tudo o resto que era transportado no porta bagagens do Peugeot;
- nos esclarecimentos, em audiência, do perito E…, inspetor da PJ, que efetuou a resposta aos quesitos de fls. 632 a 637. Conclui que os tiros foram disparados a cerca de 15 metros de distância, em modo semiautomático, isto é tiro a tiro e com trajetória ligeiramente descendente. Considera que a arma em causa dispõe de reduzida precisão no modo de tiro utilizado, mas que é quase nula, ou seja com muita dispersão, em modo de rajada. Em sua opinião e de acordo com testes realizados, o disparo contra alvos em movimento é sempre de evitar, seja qual for a arma usada, principalmente se o atirador também estiver em movimento, porque o grau de eficiência é nulo. Acrescenta que mesmo no caso de se tratar de um excelente atirador (como diz ser o arguido, face à concentração de tiro verificada), disparando para o pneu, dada a pequena dimensão do alvo visível, acaba por acertar no veículo ou no solo. Não atribui relevo aos locais onde os invólucros foram encontrados porque, no tipo de piso existente, eles saltam. Tem conhecimento que o “Manual de Tiro” da GNR, tal como a instrução ministrada a militares, contraria as instruções da PJ, de que se não deve disparar para os pneus dos veículos em movimento;
- no depoimento da testemunha M…, vigilante num edifício próximo do local dos disparos. Diz que numa madrugada em que estava no exterior a fumar, ouviu 4 tiros, que lhe pareceram de rajada, vindos da parte de trás do edifício e, logo a seguir, viu passarem dois carros, a mais de 60 Km/hora e a cerca de 3 metros um do outro. Viu que no veículo da GNR, seguia um militar com a maior parte do tronco fora da janela, com a arma empunhada. Na altura, não se apercebeu de qualquer outro trânsito e não ouviu qualquer outro tiro;
- no depoimento da testemunha G…, militar da GNR, na Maia. Declara ter visto o Peugeot a abrandar, nas … e ter reparado que os ocupantes não traziam cinto de segurança colocado, mas não reparou quantos eram. Foi abordar o Peugeot e viu que ele arrancou, passando por trás do “jeep” e seguindo em direção ao aeroporto. Seguiram o veículo, a uma velocidade de 70 ou 80 Km/hora e alertaram o destacamento para a tentativa de atropelamento. Manteve a perseguição até depois da rotunda …, já que ao virar da Estrada … para a Rua …, o “jeep” se despistou, tendo sido ultrapassado, nessa altura, pelo Nissan …. Diz que só encontraram trânsito na … e na Av. … e que o Peugeot passou o semáforo vermelho ao atravessar a Avenida …. Afirma ter ouvido os avisos sonoros para parar e a sirene, mas não os tiros disparados;
- no depoimento da testemunha H…, militar da GNR, ao tempo na Maia e que conduzia o “jeep” Nissan …. Declara terem abordado o Peugeot nas …, ficando lado a lado, mas sensivelmente com a traseira do “jeep” alinhada com a frente do Peugeot. O guarda G…, que tinha visto os ocupantes sem cinto de segurança, saiu do veículo e ao dirigir-se ao Peugeot, o depoente ouviu esse veículo a arrancar e viu-o a dirigir-se para a zona do aeroporto. O depoente só tinha visto o condutor e o vulto do pendura. O G… comunicou com a Central rádio do destacamento, pedindo reforços e fizeram a perseguição do mesmo, pela zona do aeroporto e pela …, até próximo da rotunda …, onde entraram em despiste, sempre com as luzes rotativas ligadas. Já na … apareceu o Nissan …, de Matosinhos, em reforço da perseguição. Após o despiste, perdeu de vista o Peugeot, passando então a seguir as luzes (“pirilampos”) do …, que só vieram a encontrar já parado e, pouco depois, começaram a chegar carros da PSP. Não ouviu quaisquer tiros;
- no depoimento da testemunha K…, militar da GNR, que conduzia o Nissan …. Afirma ter sido pedido apoio pelo posto da Maia, em razão de um abalroamento nas …, tendo o veículo entrado na …. Pouco após a passagem pela rotunda …, o … passou a encabeçar a perseguição. Logo na Rua …, o Peugeot efetuou uma travagem brusca, para forçar à colisão entre os veículos. Na Av. …, onde passaram por vários veículos, foi feita uma tentativa de ultrapassagem do Peugeot, não concretizada. Durante a perseguição, sempre a velocidade superior a 60 Km/hora, fizeram uso da sirene, dos rotativos luminosos e do megafone, ordenando a paragem do Peugeot, o qual já havia desrespeitado um sinal de “stop” no final da Rua … e veio a atravessar a Av. … (no cruzamento com a Av. …) com desrespeito pelo semáforo vermelho. Já após tal cruzamento e quando as viaturas se encontravam separadas por cerca de 10 metros, o arguido colocou o seu tronco por fora da janela do veículo e efetuou vários disparos, que calcula em 5 ou 6, muito seguidos uns aos outros. Garante que nunca lhes foi dito o número de ocupantes do Peugeot e que só tinha visto o condutor e o “pendura”. Assegura que só se apercebeu do Peugeot ter sido atingido, após ele ter parado. Não viu qualquer “desmarque” durante o percurso, nem ouviu aviso de que iam ser disparados tiros. Declara não ter sido ponderado o abandono da perseguição, nem conversado sobre os meios a usar, sendo certo que o abalroamento é proibido. Diz que o vidro lateral direito traseiro do Peugeot foi quebrado pelo arguido, para conseguir abrir a porta respetiva e que o condutor deste veículo se mostrava preocupado com os colegas atingidos;
- no depoimento da testemunha F…, coronel da GNR, ora na reserva, mas ao tempo comandante do Grupo de Matosinhos. Declara conhecer o texto de apoio da formação contínua ministrada aos agentes de fls. 1203 e segs. (“Técnicas de intervenção policial”), que permite o uso de arma de fogo em situações de elevada perigosidade e esgotados todos os outros meios. Afirma que os agentes têm algum treino de tiro estático com a arma pessoal, mas pensa que com a “FAMAE” não. Considera que esta arma é mais adequada do que a anteriormente usada (G-3, arma de guerra), até por usar munições derrubantes e não perfurantes. Garante que as diretivas eram diferentes para o dispositivo territorial, relativamente à Brigada de Trânsito (fls. 777 e segs., item 7). Diz que o arguido tem uma postura correta e serena;
- nos depoimentos das testemunhas N… (inspetor da PJ e amigo de infância do arguido), O… e P…, respetivamente sargento-chefe e capitão da GNR, ambos superiores do arguido no destacamento territorial de Matosinhos. O primeiro depôs quanto às condições pessoais e familiares e os segundos quanto ao conceito profissional do arguido;
- no teor dos documentos juntos aos autos, designadamente no auto de notícia de fls. 9 a 13, no auto de apreensão de fls. 14, nas fotografias de fls. 19 a 34 e 37 a 66, no auto de exame do veículo Peugeot e “croquis” com localização dos impactos no mesmo (fls. 101 a 103), no relatório de autópsia de I… (fls. 124 a 147 e 209 a 216), no relatório pericial e de reconstituição dos factos de fls. 182 a 203, no exame médico-legal de J… (fls. 236 a 239), no relatório pericial às armas (fls. 242 a 252), na exposição proferida pela subinspetora-geral da IGAI sob a epígrafe “O uso de armas de fogo pelos agentes policiais – alguns aspetos” (fls. 298 a 309), na resposta de fls. 631 a 637 aos quesitos formulados a fls. 627/8, na diretiva relativa a perseguições policiais, elaborada e para uso da extinta Brigada de Trânsito (fls. 771 a 786) e no texto de apoio do MAI “Técnicas de intervenção policial” (fls. 1203 a 1228).
As testemunhas depuseram sobre factos que presenciaram diretamente.
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Sobre os factos ocorridos no cruzamento …, na Maia, os depoimentos são coincidentes no essencial, nomeadamente no que se refere à abordagem pelos agentes da GNR e à fuga desencadeada pelo condutor do Peugeot. O que não é coincidente – nem tinha que o ser, já que os motivos determinantes de uma podem ser completamente diversos da outra - são as razões da abordagem (segundo os militares da GNR, por terem visto que alguns dos ocupantes circulavam sem cintos de segurança colocados) e da fuga (o assistente C… confirma que não trazia colocado o cinto de segurança, nada menciona quanto à falta de carta de condução, mas declara que o veículo não tinha seguro nem inspeção obrigatória e que os ocupantes estavam embriagados; a testemunha J… diz que o C… não tinha carta de condução e que estavam todos alcoolizados). No que concerne à alegada tentativa de atropelamento, o guarda G… não a menciona e o condutor do jeep, H…, apenas ouviu o ruído do carro abordado a arrancar e viu-o a fugir. Ambos os militares declaram só ter visto dois dos ocupantes do Peugeot. Este facto pode causar alguma estranheza, dado que o jeep da GNR passou pelo Peugeot e parou mais à frente, mas pode ser explicado, não só pelo curto período de exposição, mas também por os vidros deste estarem embaciados, o que é confirmado pelo assistente C….
No que respeita à perseguição movida – inicialmente e desde as … até à rotunda … (…) pelo jeep “…” e desta em diante, mais concretamente desde o início da Rua …, por este e pelo “…”, que logo assumiu a dianteira e foi o perseguidor mais próximo até à paragem do Peugeot – as declarações e depoimentos prestados em audiência são praticamente coincidentes, pelo que foram pacificamente aceites pelo tribunal. Excetuam-se algumas questões não essenciais ao objeto do processo e que respeitam: - à travagem brusca do Peugeot, ainda na Rua …, com vista a provocar a colisão do … com aquele (mencionada pelo arguido e pelo condutor do …); - à tentativa de ultrapassagem feita pelo … ao Peugeot na Av. …, gorada pela guinada súbita do Peugeot para a esquerda a fim de provocar a colisão lateral (descrita pelo arguido e pelo condutor do …, mas negada pelo assistente e pela testemunha J…); - ao lançamento, nesta última avenida, do interior do Peugeot e por uma janela, de um objeto não identificado (facto que o assistente e a testemunha J… negam, mas que é referido pelo arguido, sendo certo que, posteriormente, foi encontrada uma pistola adaptada na referida avenida).
No que concerne aos disparos efetuados foi determinante o auto de reconstituição dos factos de fls. 154/5, o auto de exame de fls. 101 a 103, o relatório pericial e fotografias anexas de fls. 182 a 203, conjugados com as fotografias de fls. 19 a 34, 37 a 70, que permitem determinar o número de disparos feitos, a respetiva sequência e direção, bem como o modo como o alvo foi atingido. Na verdade, neste aspeto, as versões ouvidas em audiência apresentaram certas divergências, que são admissíveis pela curta duração da ação e pela tensão certamente vivenciada. As versões são concordantes quanto à ordem de paragem dada ao veículo perseguido por meio do megafone instalado no …, embora os ocupantes do Peugeot não tenham certeza absoluta de a terem ouvido (somente “acham” que sim). Após, porém, o arguido diz ter feito um primeiro disparo para o ar, de que mais ninguém se apercebeu, o que não surpreende no que se reporta aos ocupantes da viatura perseguida, porque mesmo ouvindo o disparo, não era fácil de perceber qual a direção dele. Mas o condutor do … também não se apercebeu do mesmo, mas somente de que foram disparados 5 ou 6 tiros “rápidos, muito seguidos”, quando os veículos estavam separados por cerca de 10 metros. Seria pela concentração na condução do veículo? É bem possível, mas é facto que se não consegue dilucidar. Os ocupantes do Peugeot referem: - o C…, que houve duas fases de disparos, a primeira, de 3 ou 4 tiros sequenciais, com o Peugeot em franco andamento a “100 Km/hora ou mais” e a segunda, de mais 3 tiros com a viatura quase parada, porque os ocupantes da parte traseira do veículo haviam sido atingidos na primeira fase; o J… acha que só houve uma rajada de tiros (tese inadmissível em face dos diversos locais onde foram localizados os invólucros de munições deflagradas, sendo claramente em duas fases sequenciais, a primeira de 4 tiros e a segunda, após os veículos terem descrito uma curva ligeira, de mais dois, como se alcança das respetivas fotos). A testemunha M…, zelador num prédio nas proximidades, diz ter ouvido 4 disparos seguidos, que pensou ser em rajada (é de concluir que a testemunha só terá ouvido a primeira série de disparos, a que decorreu mais próxima do local onde se encontrava).
Uma outra questão importa apreciar e que se traduz no facto de terem sido encontrados 6 invólucros disparados e o veículo apresentar apenas 5 vestígios de atingimento por bala. Será o 6º aquele que o arguido afirma ter disparado para o ar? Não cremos nisso, nem sequer que tal disparo (para o ar) haja sido feito. A ter acontecido, tal tiro havia que ter precedido todos os demais, logo pertenceria à primeira série disparada. Mas os invólucros recolhidos (aliás, em qualquer uma das séries) encontram-se muito próximos uns dos outros, cada um deles separado por cerca de três metros do seguinte e do precedente. Não se olvida que a localização deles não pode ser tomada como uma referência certa, absoluta, dado as viaturas estarem em movimento e atenta a natureza do piso (duro) onde caíram, que os faria saltar. Mas são uma referência aproximada, dado não ser de admitir que tivessem trajetórias coordenadas, quer de aproximação, quer de afastamento. Ora, tendo em conta que a uma velocidade de 60 Km/hora (e tudo indica que seria superior) um veículo percorre 16,6 metros por segundo e que os invólucros apresentam um distanciamento de cerca de 3 metros, confirma-se que os disparos foram muito rápidos, não havendo sequer tempo de corrigir a trajetória do tiro - à velocidade indicada, a simples mudança da posição vertical da arma (para disparar para o ar) para a sensivelmente horizontal (a fim de alvejar o pneu do veículo em fuga) demoraria mais do que o cerca de 1/5 de segundo que mediou entre cada tiro, mesmo que se prescinda do tempo indispensável a fazer/corrigir a mira. A conclusão a tirar só pode ser que não houve qualquer tiro para o ar, mas sim que um dos disparos se perdeu.
No que concerne ao alvo dos disparos, o tribunal concluiu que se tratava do pneu traseiro direito do veículo. Tal conclusão resulta da trajetória dos mesmos – ligeiramente descendente e da esquerda para a direita, como se extrai do relatório pericial de fls. 182 e segs, essencialmente da fotografia de fls. 200 – o que confirma as declarações do arguido.
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Duas questões há ainda a referir. A primeira é a afirmação do ofendido J… de que, pelo menos na parte final da perseguição e aquando dos disparos, vinha “baixado e encostado para a sua esquerda” a operar com o telemóvel, o que permite reforçar a versão do arguido de não ter visto quaisquer ocupantes da traseira do Peugeot. A segunda é a afirmação do assistente de que “se tivesse ouvido o tiro para o ar, pararia logo”, a qual não merece credibilidade, porquanto não adotou tal conduta após a primeira série de tiros, mas somente após a segunda série.
No que se reporta ao modo (doloso ou negligente) de atuação do arguido, a respetiva análise e conclusão far-se-á no capítulo seguinte.
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A factualidade dada como não assente resulta de não ter sido produzida qualquer prova quanto à mesma ou de a mesma não ter sido cabal de modo a afastar qualquer dúvida razoável, como já supra se referiu.
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Enunciação das questões a decidir nos recursos em apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelos recorrentes da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal [Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal” III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada]. [Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95].
Assim, face às conclusões apresentadas pelo Ministério Público, importa decidir as seguintes questões:
- Vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal: erro notório na apreciação da prova, contradição entre matéria dada como provada e não provada e contradição entre a fundamentação e a decisão;
- Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada e não provada;
- Subsunção jurídica da conduta do arguido.
Face às conclusões apresentadas pelo assistente C…, importa decidir as seguintes questões:
- Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada e não provada (pontos O), P), CC), e DD) dos “Factos Provados” e matéria de facto dada como não provada);
- Subsunção jurídica da conduta do arguido;
- Procedência do pedido de indemnização civil.
Comecemos por analisar a questão atinente aos vícios da sentença e que foi directamente suscitada pelo Ministério Público.
É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, de conhecimento oficioso, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do Código de Processo Penal, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal, como sejam o de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e o de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, além da indicação das provas a renovar, se for caso disso.
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
Tais vícios não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
O erro de julgamento e o erro notório na apreciação da prova, ocorrem respectivamente quando:
a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;
b)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
O vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal, não leva ao ora analisado vício.
Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal cumprirá dizer que muitas vezes se confunde o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) - com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.
O recorrente/Ministério Público ao invocar o vício do artigo 410º nº2 al. c) do Código de Processo Penal alega que “… a factualidade dada como provada foi bastante para que esse Tribunal possa dar como provados os itens produzidos em quinto, sétimo e oitavos lugares e, daí, poder atribuir-lhe conduta dolosa, ainda que a título de dolo eventual”. E prossegue defendendo que “…a mesma era bastante para que, nestes nossos autos o Tribunal recorrido pudesse ter, pois, concluído de modo diverso- integrando a conduta do arguido, não já a título de mera negligência (mesmo grosseira ou consciente), mas, antes a título de dolo, ainda que eventual”.
Invoca ainda o Ministério Público o vício do artigo 410º nº2 al. b) do Código de Processo Penal, alegando que a matéria dada como provada nos itens m) e n) está em nítida contradição com aquela outra que foi dada como não provada nos sétimos e oitavo itens.
Para além dos invocados vícios, o Ministério Público alega o erro de julgamento, o que não resulta do texto da decisão recorrida, e só pode ser apurado se ocorrer impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412º, n.º3 do Código Processo Penal.
Comecemos por dizer que, do texto da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência, constam os factos suficientes para a decisão de direito, no que se refere aos crimes imputados ao arguido e pelos quais vem absolvido, sendo que o tribunal apurou e pronunciou-se sobre os factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, e investigou os factos relevantes para a decisão.
Acresce que não se verifica qualquer incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Se não vejamos.
Comecemos por dizer que não se vislumbra qualquer discordância entre as premissas e a conclusão a que o tribunal a quo chegou, pois, não obstante a conduta do arguido ser violadora dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, traduzindo evidente violação dos deveres objectivos de conduta e, sendo do conhecimento geral e comum que o disparo de uma arma de fogo, dirigido a uma pessoa é idóneo para matar a mesma, daí não pode extrair-se a conclusão que o arguido, ao agir como agiu, sabendo da existência do condutor e pendura, se tenha conformado com a possibilidade de os atingir.
Quer dizer, no trecho do acórdão em causa, assinalado pelo Ministério Público na motivação do recurso, o tribunal começa por formular uma consideração de ordem genérica, aliás, incontestável que não é incompatível com a conclusão a que chegou, pois considerou que não se demonstrou que arguido tenha visado os ocupantes do veículo mas sim o pneu traseiro do mesmo.
Prosseguindo, agora na análise da invocada contradição entre a matéria dada como provada e a matéria dada como não provada.
Atentemos na matéria fáctica em causa:
Provada:
“….m) Quando se encontravam na Rua …, nesta cidade do Porto, artéria que apresenta uma inclinação, seguindo ambas as viaturas no sentido descendente e apesar de os ocupantes da viatura em fuga não terem denotado qualquer atitude ofensiva para os militares da GNR que os perseguiam, o arguido B…, que se transportava no Nissan … e que seguia imediatamente atrás da viatura Peugeot, decidiu fazê-la parar, recorrendo ao uso de uma das armas de fogo que lhe estavam distribuídas.
n) Decisão tomada pelo arguido, apesar de saber que poderia pôr em risco a vida ou a integridade física do condutor e do pendura da viatura que perseguia, já que ambas as viaturas circulavam a uma velocidade manifestamente exagerada, que não lhe permitia o uso mais seguro e adequado de armas de fogo e que, dentro da viatura em fuga, seguiam, pelo menos, essas duas pessoas….”,
Não provada:
“…-O arguido agisse convencido de existir grande probabilidade de atingir corporalmente os ocupantes do veículo em fuga;
-O arguido se tenha conformado com a possibilidade de atingir qualquer dos ocupantes do Peugeot alvejado, nomeadamente o assistente C… ou o D… e de lhes tirar a vida ou ofender corporalmente”.
Comecemos por dizer que no ponto n) dos “Factos Provados” consta a representação pelo arguido do resultado (atingir corporalmente os ocupantes do veículo) como possível.
Ora, o que se dá como não provado é que o arguido tivesse representado tal resultado como muito provável, o que não é contraditório, pois uma coisa é ser possível, outra ser provável.
Por outro lado, também não há contradição entre o segundo facto dado como não provado e acima transcrito, uma vez que este se refere à atitude (conformação ou não conformação) do arguido perante a representação do resultado e não à própria representação.
Aliás, a questão que se poderia colocar seria a de saber se haveria contradição entre este mesmo facto dado como não provado e o facto dd) dos “Factos Provados”, pois ambos se referem à atitude do agente perante o resultado.
Contudo, não existe qualquer incompatibilidade entre eles, uma vez que no dd) se deu como provado que o arguido agiu convicto de que o resultado representado não sucederia, ao passo que naquele se deu como não provado que o arguido se tenha conformado com a possibilidade de atingir qualquer dos ocupantes do Peugeot alvejado, nomeadamente o assistente C… ou o D… e de lhes tirar a vida ou ofender corporalmente”.
Dito de outro modo, pode-se dizer que o último dos factos “não provados” supra referidos, articula o dolo eventual, enquanto que, os referidos “factos provados”, conjugados com os factos aa), cc) e dd), articulam a negligência, omissão por parte do arguido de um dever objectivo de cuidado ou diligência exigido segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento, bem como a sua previsibilidade.
Pelo que, face a todo o exposto, conclui-se que do texto do acórdão recorrido, não resultam quaisquer contradições, mormente, as invocadas pelo Ministério Público.
Por outro lado, face ao teor da decisão recorrida, por si e em conjugação com as regras de experiência e normalidade do acontecer, facilmente se conclui que a mesma dá como provados e não provados os factos necessários e suficientes ao raciocínio lógico-subsuntivo que integra a decisão (de absolvição), não evidenciando o invocado vício do erro notório na apreciação da prova.
É que não podemos escamotear que o tribunal a quo afastou o dolo na actuação do arguido - mesmo sob a forma de dolo eventual - dando como assente a sua actuação sob a forma de negligência consciente.
Ora, a imputação da conduta do arguido está em consonância com a matéria factual dada como provada no acórdão em crise, ou seja, face aos pontos aa), cc) e dd) e considerando como não provado que “O arguido agisse convencido de existir grande probabilidade de atingir corporalmente os ocupantes do veículo em fuga” e que “O arguido se tenha conformado com a possibilidade de atingir qualquer dos ocupantes do Peugeot alvejado, nomeadamente o assistente C… ou o D… e de lhes tirar a vida ou ofender corporalmente”.
E não podemos esquecer que, quando a realização de um facto for representada como uma consequência possível da conduta haverá dolo, se o agente actua conformando-se com aquela realização. Assim, na conformação ou não conformação com o resultado é que reside a diferença entre o dolo eventual e a negligência consciente.
Assim, importa atentar nos factos provados, para se concluir que dos mesmos o tribunal a quo não retirou qualquer conclusão logicamente inaceitável, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum assim como não deu como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido.
De facto, do texto do acórdão em crise resulta que o tribunal a quo considerou que “…a conduta adotada pelo arguido não respeitou os limites impostos pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade previstos no artigo 2º do DL 457/99, de 05/11, tendo violado os seus deveres objetivos de conduta” e que “…não ficam dúvidas para ninguém que o disparo de arma de fogo, se e quando dirigido para uma pessoa, é idóneo a produzir o resultado típico, isto é a matar essa pessoa, embora o resultado dependa, obviamente, da zona do corpo atingida, já que existem zonas muito vulneráveis e outras que o são muito pouco”.
Tal como considerou que o arguido podia e devia ter previsto a possibilidade de atingir os ocupantes – o condutor e o pendura, considerando a rapidez dos disparos, o facto de ambas as viaturas estarem em movimento (o que dificulta a precisão do tiro), a reduzida dimensão do alvo visado (vista de uma viatura situada à retaguarda, a dimensão visível do pneu é diminuta), sendo que o arguido tinha a capacidade e a obrigação de prever a possibilidade de poder atingir algum dos ocupantes, mesmo contando somente com o condutor e o pendura como “alvos” hipotéticos.
E quanto à conformação do arguido com tal resultado (a possibilidade de, com a sua conduta, atingir algum desses ocupantes) o tribunal a quo entendeu que não tinha forma de contrariar a versão do arguido de que só disparou por estar convicto de conseguir atingir apenas o pneu visado e que o não teria feito se admitisse outra possibilidade, designadamente de atingir os ocupantes que sabia circularem no Peugeot (condutor e pendura).
E, em consonância, decidiu que afastar o dolo (eventual) na actuação do arguido, dando como assente a actuação sob a forma de negligência consciente.
Refira-se ainda que, conforme resulta de fls. 17 e 21 do acórdão recorrido e ao contrário do que defende o Ministério Público, o tribunal a quo, tal como resulta do texto do acórdão, fundamentou a sua convicção nos vários meios de prova, conjugados entre si e analisados à luz das regras da experiência, entre eles os esclarecimentos, em audiência, do perito E…, inspector da PJ, que efectuou a resposta aos quesitos de fls. 632 a 637 e a directiva relativa a perseguições policiais, elaborada e para uso da extinta Brigada de Trânsito (fls. 771 a 786).
Pelo que, do texto do acórdão recorrido não resulta qualquer violação das regras sobre o valor da prova vinculada, das regras da experiência ou das legis artis.
Diga-se ainda que o Ministério Público recorrente pretende é contrapor a convicção que ele próprio alcançou sobre os factos (que é irrelevante) à convicção que o tribunal de 1.ª instância teve sobre os mesmos factos, livremente apreciada segundo as regras da experiência, e invoca o vício do erro notório na apreciação da prova. No entendimento do recorrente, a sua versão dos factos é que é merecedora de credibilidade, e não a versão que veio a ser acolhida no acórdão recorrido, pretendendo, pois, o Ministério Público substituir a convicção alcançada pelo tribunal recorrido com base na valoração que fez sobre determinados meios de prova, à sua própria convicção fundada, obviamente, na valoração que fez dos mesmos meios de prova.
O modo de valoração das provas, e o juízo resultante dessa mesma valoração, efectuado pelo “tribunal a quo”, ao não coincidir com a perspectiva do Ministério Público recorrente nos termos em que este as analisa, e consequências que daí derivam, não traduz qualquer vício da decisão.
Pelo que, face a todo o exposto e, ao contrário do defendido pelo Ministério Público, não padece o acórdão recorrido dos invocados vícios aludidos nas alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Improcede, pois, este fundamento do recurso do Ministério Público.
Aqui chegados passamos a analisar a questão atinente à impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada e não provada, questão suscitada por ambos os recorrentes.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (Sobre estas questões, v. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, disponíveis em www.dgsi.pt.).
Temos, pois, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.
Duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.
Mas se o recurso que incide sobre matéria de facto implica a reponderação, pelo Tribunal da Relação, de factos pontuais incorrectamente julgados, essa reponderação não é realizada se este tribunal se limitar a ratificar ou “homologar” o julgado (por exemplo, com a simples constatação, a partir do acolhimento da fundamentação, da correcção do factualmente decidido), em vez de fazer um verdadeiro exercício de julgamento, embora de amplitude menor.
Como faz notar o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 30.11.2006 (www.dgsi.pt/jstj), “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efectivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento” [No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 15.10.2008 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Henriques Gaspar) em que se escreveu que “a reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global e muito menos um novo julgamento da causa, também se não poderá bastar com declarações e afirmações gerais quanto à razoabilidade do julgamento da decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada (ou, melhor, uma nova ponderação), em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção em relação aos factos impugnados, para, por esse modo, confirmar ou divergir da decisão recorrida (cf. Ac. n.º 116/07 do TC, de 16-02-2007, DR, II série, de 23-04-2007, que julgou inconstitucional a norma do art. 428.º, n.º, 1 do CPP «quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos da prova produzida).
É esse exercício que procuraremos fazer de seguida, mas não pode olvidar-se que uma das grandes limitações do tribunal de recurso quando é chamado a pronunciar-se sobre uma impugnação de decisão relativa a matéria de facto, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração, efectuada na primeira instância, da prova testemunhal, decorre da falta do contacto directo com essa prova, da ausência de oralidade e, particularmente, de imediação.
Também não se pode esquecer que o julgador pode recorrer a presunções naturais ou hominis no processo de formação da sua convicção, uma vez que se trata de um meio de prova admitido na lei (cf. art. 125º do Código de Processo Penal), sendo que de acordo com o disposto no art. 349º Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou julgador extrai de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido. Consistem, pois, em raciocínios lógico-dedutivos, ou demonstrativos, que o julgador elabora, a partir da prova indiciária, para alcançar a verificação dos “factos juridicamente relevantes”.
Está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indirecta (Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do TRP, de 28.01.2009, do TRC, de 30.03.2010 e do STJ, de 11.07.2007 (todos disponíveis em www.dgsi.pt), também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem, portanto, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância.
É que se afigura indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Note-se, aliás, que o legislador, consciente das limitações que o recurso da matéria de facto necessariamente tem envolver, teve o cuidado de dizer que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que “impõem”e não as que “permitiriam” decisão diversa (cfr. artigo 412º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal).
O nosso poder de cognição está confinado aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com as especificações estatuídas no art. 412º n.º 3 e 4 do Código Processo Penal.
E diga-se que os recorrentes cumpriram o ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal (muito embora tal não aconteça no que se refere às declarações do assistente que se limita a dá-las por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais e remeta para a respectiva gravação digital e que tem a duração de 1 hora, 1 minuto e 17 segundos, situação que adiante se abordará).
O Ministério Público argumenta que foram incorrectamente julgados os factos dados como não provados em 7º e 8º lugares, os quais deveriam terem sido dados como provados, ou seja, que “…O arguido agisse convencido de existir grande probabilidade de atingir corporalmente os ocupantes do veículo em fuga; O arguido se tenha conformado com a possibilidade de atingir qualquer dos ocupantes do Peugeot alvejado, nomeadamente o assistente C… ou o D… e de lhes tirar a vida ou ofender corporalmente…”.
O assistente defende que se “encontra errada e incorrectamente julgada a matéria de facto dada como provada no ponto O), P), CC) E DD) dos factos provados e matéria de facto dada como não provada”.
Atentemos no que se fez constar na Motivação da Matéria de Facto da sentença recorrida.
E atentemos também nos argumentos invocados pelos recorrentes.
O Tribunal da Relação procedeu à análise da totalidade da prova produzida, nomeadamente da prova testemunhal, pericial e documental, sendo que os segmentos dos depoimentos transcritos pelos recorrentes na motivação dos recursos, correspondem apenas a parte do que pelas pessoas em causa foi dito na audiência de julgamento.
Por uma questão de lógica, passamos a analisar a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada e não provada suscitada pelo assistente C….
Comecemos pela questão atinente ao número de disparos efectuados pelo arguido.
Para tanto, atentemos no auto de reconstituição dos factos de fls. 154 e 155, no qual consta que o arguido “efectuou quatro disparos, com o objectivo de atingir a viatura em fuga nos seus pneumáticos” e, decorridos cerca de 350 metros, “o arguido efectuou mais dois disparos na direcção da viatura em fuga”.
Do auto de exame de fls. 101 a 103 consta que “o encosto do banco traseiro apresentava três perfurações, duas delas no encosto do lugar direito e um do esquerdo” e ainda que a “traseira viatura apresentava cinco impactos de projécteis de arma de fogo…”.
Do relatório do exame pericial e fotografias anexas de fls. 182 a 203 consta que o arguido efectuou “quatro disparos sobre a traseira da viatura Peugeot, que se encontraria a uma distância de aproximadamente 15 metros, em tiro semi-automático” e ainda que efectuou “mais dois disparos do mesmo modo”.
Do relatório do exame à arma (fls. 242 a 252), e relativamente ao seu funcionamento consta “funcionamento semi-automático ou automático por inércia de culatra (com comutador de tiro com quatro (4) posições: “S” – segurança; “1” – semi automático; “L” – automático com rajada de três (3) tiros e “F” – automático”.
Em declarações o arguido referiu que usou a pistola em modo semi-automático, isto é, tiro a tiro, tendo feito um primeiro disparo para o ar e, face à ausência de qualquer reacção por parte do Peugeot, quando se encontrava a uma distância de cerca de 15 a 20 metros, disparou dois tiros e depois, em frente à escola, mais três, sempre visando o pneu traseiro direito daquele veículo. Afirmou ainda não dispor de outros meios coercivos, que a rede rádio da GNR não permite a ligação directa com a da PSP, só sendo possível os contactos através das respectivas “centrais”.
O assistente C…, condutor do veículo Peugeot, assegurou não ter ouvido qualquer tiro de advertência, referindo que houve dois momentos de disparos – um primeiro, de 3 ou 4 tiros sequenciais, que atingiram os ocupantes traseiros do veículo, com as viaturas em andamento franco (diz que seguia, então, a 100 Km/h ou mais) e um segundo momento, de mais 3 tiros, com o Peugeot já quase parado.
A testemunha J…, ocupante do Peugeot referiu que só houve uma rajada de tiros (tese inadmissível em face dos diversos locais onde foram localizados os invólucros de munições deflagradas).
A testemunha M…, vigilante num edifício próximo do local dos disparos referiu que numa madrugada em que estava no exterior a fumar, ouviu 4 tiros, que lhe pareceram de rajada, vindos da parte de trás do edifício (do que decorre que só terá ouvido a primeira série de disparos, a que decorreu mais próxima do local onde se encontrava).
A testemunha K…, militar da GNR, que conduzia o Nissan … referiu que o arguido colocou o seu tronco por fora da janela do veículo e efectuou vários disparos, que calcula em 5 ou 6, muito seguidos uns aos outros. Acrescentou que durante a perseguição, sempre a velocidade superior a 60 Km/hora, fizeram uso da sirene, dos rotativos luminosos e do megafone, ordenando a paragem do Peugeot. Declarou não ter sido ponderado o abandono da perseguição, nem conversado sobre os meios a usar, sendo certo que o abalroamento é proibido.
O Sr. perito E…, inspector da PJ referiu que a arma dos autos é tanto semi-automática, como totalmente automática, sendo que em tiro semi-automático terá alguma precisão. Referiu ainda que a arma em causa estava preparada para disparar em semi-automática, tiro a tiro, sendo mais simples visar os pneus do carro em semi-automática e fazendo tiro a tiro. Adiantou ainda ser perfeitamente possível ao apontar para os pneus concentrarem-se “aqui” os tiros. Sendo que se o tiro fosse disparado em rajada nem sequer acertava no carro. Concluiu que os tiros foram disparados tiro a tiro, e com trajectória ligeiramente descendente.
Ora, em face dos diversos locais onde foram localizados os invólucros de munições deflagradas, claramente em duas fases sequenciais, a primeira de 4 tiros e a segunda, após os veículos terem descrito uma curva ligeira, de mais dois, como se alcança das respectivas fotos (fotografias de fls. 19 a 34, 37 a 70), analisada e avaliada em conjunto toda a prova produzida, entre ela a prova pericial e, ultrapassando as divergências evidenciadas nos referidos depoimentos resultantes da curta duração da acção aliada à tensão da situação em causa, na ponderação lógica e racional de todos os elementos probatórios, face às regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que a argumentação e prova indicadas pelo recorrente C… não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada constante dos pontos O) e P) dos “Factos Provados” e decidida pelo Tribunal a quo.
O mesmo acontece relativamente ao ponto CC) dos “Factos Provados” pois embora ressalte dos factos provados que outra viatura (jipe da GNR) perseguia o veículo Peugeot conduzido pelo assistente, o certo é que a viatura da GNR onde circulava o arguido B…, na saída da Estrada … e entrada na Rua …, passou a ser o perseguidor mais próximo do Peugeot, continuando aquele jipe a fazê-lo, mas bem atrás do Nissan … (ponto i) dos “Factos Provados”.
Não escamoteamos que o arguido poderia e devia ter abandonado a perseguição, perseguição que se desenvolveu dentro da cidade do Porto, área da jurisdição da PSP, facto que, dadas as circunstâncias poderia relevar para efeitos disciplinares.
No entanto, há a considerar que as comunicações das duas forças policiais em causa – GNR e PSP – são efectuadas através de canais diferentes, confirmando o arguido que a rede rádio da GNR não permite a ligação directa com a da PSP, só sendo possível os contactos através das respectivas “centrais”.
Acresce que, no contexto em causa, dadas as circunstâncias relatadas e constantes da factualidade provada, de perseguição dentro da cidade do Porto, em meio urbano, a colocação de barreiras na estrada para fazer imobilizar o Peugeot não era possível (não estava disponível), além de ser de difícil execução.
Por outro lado, do depoimento do inspector E… resulta que a técnica da selagem, invocada pelo recorrente, é perigosa (perguntado se era ainda mais perigosa que a dos tiros respondeu “depende, se for em altas velocidades, é perigoso”), para o carro que leva o toque, implicando uma série de condicionalismos, estando totalmente fora de hipótese fazer isso em auto-estrada, a alta velocidade, sendo que os carros perdem completamente o controlo, um e outro. E continua afirmando que “isso pode ser feito em determinadas circunstâncias, mas há uma condição que é a mais importante, que é a baixa velocidade …”.
Em consonância e, ao contrário do que defende o recorrente, decorre que a invocada técnica de selagem não seria de utilizar no caso concreto.
Assim, face a todo o exposto, na ponderação lógica e racional de todos os elementos probatórios, face às regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que a argumentação e prova indicadas pelo recorrente C… não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada constante do ponto CC) dos “Factos Provados” e decidida pelo Tribunal a quo.
E que dizer quanto ao ponto DD) dos factos provados?
Argumenta o recorrente C… que da prova produzida, nomeadamente do depoimento do inspector E…, não resulta que o arguido fosse um atirador exímio, mas sim que este disparou irreflectidamente e sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, duas rajadas de três tiros.
Quanto ao número de disparos efectuados pelo arguido já acima nos pronunciámos, dispensando-nos de tecer mais considerações.
Quanto ao depoimento do Sr. Inspector E…, para além do que já dissemos, apraz-nos acrescentar que o mesmo reconheceu que enquanto militar, deu formação aos militares, e então partia do princípio (que agora reconhece como errado) “de que se desse tiros para carros, para os pneus, os carros paravam e, nessa medida, o que os militares ensinam é que se deve dar tiros para os pneus, partir do princípio de que os carros param”.
Acresce que do mesmo depoimento podemos extrair que o arguido é um atirador exímio, considerando a reduzida dispersão do tiro realizado naquelas circunstâncias (tiro rápido e mediante atirador e alvo móveis), de acordo com as instruções dimanadas da corporação a que pertence (e desde que verificadas as circunstâncias autorizadoras dessa opção, que não estavam reunidas, conforme se refere no acórdão em crise), disparando de cima para baixo e da esquerda para a direita, sendo que em 6 disparos efectuados, 5 deles atingiram a traseira do veículo.
O arguido, por sua vez, afirmou ter feito tiro de adaptação a esta arma em 2004 e talvez 2005, nos modos de tiro estático e dinâmico, mas com alvo imóvel.
Por outro lado, não podemos escamotear que se provou que o arguido aos 19 anos de idade ingressou no serviço militar. Posteriormente ao cumprimento obrigatório daquele serviço, após a conclusão do curso de cabo, decidiu continuar a carreira militar tendo sido colocado em …, onde frequentou um curso de operações especiais e posteriormente no quartel de …. No ano de 2000, integrado numa força da NATO, cumpriu durante 6 meses missão nos Balcãs e, no ano de 2003, por igual período, no âmbito das forças da ONU, missão em Timor. Em 2004, ingressou na Guarda Nacional Republicana onde, após a conclusão do curso de praças em que obteve classificação relevante, ingressou na brigada territorial. Sendo que tais factos não foram impugnados.
Tudo conjugado, em face de todo o exposto, na ponderação lógica e racional de todos os elementos probatórios, face às regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que a argumentação e prova indicadas pelo recorrente C… não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada constante do ponto DD) dos “Factos Provados”, bem como os pontos 5, 7 e 8 dos “Factos não Provados” e decidida pelo Tribunal a quo.
Defende ainda o recorrente C… que se deveria ter considerado como provado que:
- O assistente, face aos disparos, tenha sentido pânico e terror e temido pela vida;
- A conduta do arguido haja provocado no assistente angústia, ansiedade, sofrimento, tristeza e revolta;
- O assistente tenha vivenciado o sucedido inúmeras vezes, sentindo-se agitado e intranquilo e não conseguindo repousar ou dormir.
Alega o recorrente que “Quem vivencia os factos descritos supra na matéria de facto dada como provada, é alvo de duas rajadas, vê o carro a ser metralhado e dois seus amigos atingidos, sendo que um deles perdeu de imediato a vida, naturalmente, a menos que seja um sociopata (o que não dada como provado) e tenha desprezo pela vida, particularmente pela dos outros, sentirá naturalmente pânico, terror e temerá pela vida, quando percebe que está a ser alvejado o carro que conduz, dai que inclusivamente tenha parado a viatura, e também terá que sentir angustia, sofrimento e tristeza e revolta, uma vez que para além do mais dois seus amigos foram atingidos e um deles perdeu a vida, sendo certo que o assistente poderia ser também um deles - só a fortuna e o acaso impediu esse resultado - o que tudo naturalmente perturbou e marcou o assistente, com reflexos no seu bem estar e no seu descanso”.
Para tratar esta questão não podemos alhear-nos do contexto em que tais factos ocorreram.
E não podemos esquecer que foi o próprio assistente que não acatou a ordem para proceder ao estacionamento do veículo, junto da berma, de forma a poder ser devidamente fiscalizado, emanada do soldado da GNR G… e, encontrando-se ao volante do veículo automóvel da marca Peugeot, conseguiu pôr o veículo que conduzia em andamento, passando por trás e junto do Jipe e do militar da GNR G…, colocando-se em fuga.
Depois, foi perseguido durante vários quilómetros por dois veículos da GNR, continuando em fuga, mudando de direcção, circulando em velocidade manifestamente superior à recomendada para uma condução prudente e à legalmente estabelecida e em violação de diversas regras estradais, percorrendo várias artérias desta cidade.
E, não obstante, os elementos da GNR terem emitido várias mensagens sonoras para que o veículo em fuga se imobilizasse, tal ordem nunca foi acatada pelo assistente C….
E mesmo depois de o arguido ter efectuado quatro disparos, em tiro semi-automático, sobre a traseira da viatura Peugeot, o assistente prosseguiu na sua fuga, continuando a marcha no sentido descendente, fez uma curva e prosseguiu por uma zona plana, em recta, local em que o arguido B…, efectuou mais dois disparos, do mesmo modo e sensivelmente à mesma distância dos anteriores, tendo então a viatura em fuga imobilizado a sua marcha, junto do prédio com o número 359.
Ora, o próprio assistente C… confirmou que houve dois momentos de disparos, um primeiro em que os tiros atingiram os ocupantes traseiros do veículo, com as viaturas em andamento franco (diz que seguia, então, a 100 Km/h ou mais) e um segundo momento, de mais 3 tiros, com o Peugeot já quase parado. Declarou ainda que o “…” chegou a estar a cerca de 1 a 2 metros do Peugeot em duas alturas, aquando dos disparos e aquando do “despiste”.
Quer dizer, mesmo depois de os primeiros tiros terem atingido os ocupantes dos bancos traseiros, o assistente continuou a fuga e ainda com o … mesmo atrás de si, não se coibiu de continuar a marcha.
Decorre, pois, naturalmente que este comportamento adoptado pelo assistente não é compatível com o de uma pessoa que tem pânico, terror ou teme pela vida, com alguém a quem a conduta do arguido provoca angústia, ansiedade, sofrimento, tristeza e revolta.
Pelo que, neste contexto, na ponderação lógica e racional de todos os elementos probatórios, face às regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que a argumentação e prova indicadas pelo recorrente C… não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a referida matéria de facto não provada e decidida pelo Tribunal a quo.
Improcede, pois, este fundamento do recurso do assistente C….
Prosseguindo na análise da impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto não provada suscitada pelo Ministério Público.
O Ministério Público argumenta que foram incorrectamente julgados os factos dados como não provados em 7º e 8º lugares, os quais deveriam terem sido dados como provados, ou seja, que “…O arguido agisse convencido de existir grande probabilidade de atingir corporalmente os ocupantes do veículo em fuga; O arguido se tenha conformado com a possibilidade de atingir qualquer dos ocupantes do Peugeot alvejado, nomeadamente o assistente C… ou o D… e de lhes tirar a vida ou ofender corporalmente…”.
Invoca este recorrente “o erro de julgamento por má valoração dos depoimentos daquele Senhor Perito Inspetor da Policia Judiciaria, por não ter valorizado - como deveria -, as instruções do Comandante da GNR – corpo da BT, então em vigor para todos os elementos desta corporação e pela sobrevalorização dada ao texto de apoio do MAI e das declarações da testemunha F…”.
Comecemos por dizer que no ponto ii) dos “Factos Provados” (não impugnado) consta que “O Manual de “Técnicas de intervenção Policial”, distribuído pelo Ministério da Administração Interna, no âmbito da formação de praças à distância, prevê o disparo de arma de fogo para o pneu traseiro direito do veículo em fuga, como último recurso para forçar a sua imobilização, quando do interior deste haja reação ou, não tendo cessado o flagrante delito, se torne imperioso evitar danos maiores, observados os requisitos legais, designadamente o disposto no Decreto-Lei nº 457/99, de 05 de Novembro”.
Ora, lido o acórdão recorrido e, na sequência do já decidido, não podemos deixar de atentar que o mesmo teve em consideração os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito E…, inspector da PJ, que efectuou a resposta aos quesitos de fls. 632 a 637, conforme resulta de fls. 17.
Bem como teve em conta o depoimento da testemunha F…, coronel da GNR, conforme resulta de fls. 20.
Considerou também a directiva relativa a perseguições policiais, elaborada e para uso da extinta Brigada de Trânsito (fls. 771 a 786) e o texto de apoio do MAI “Técnicas de intervenção policial” (fls. 1203 a 1228), conforme resulta de fls. 21 do acórdão em crise.
E concluiu que “perante esta factualidade resumida, não ficam dúvidas que a conduta adotada pelo arguido não respeitou os limites impostos pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade previstos no artigo 2º do DL 457/99, de 05/11, tendo violado os seus deveres objetivos de conduta.
Ora, perante esta factualidade resumida, não ficam dúvidas que a conduta adotada pelo arguido não respeitou os limites impostos pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade previstos no artigo 2º do DL 457/99, de 05/11, tendo violado os seus deveres objetivos de conduta”.
Nas palavras do recorrente, “desrespeitou toda e qualquer regra prudente na sua actuação - que não estava dentro daquele circunstancialismo previsto no citado diploma legal, ou sequer, dentro dos seus regulamentos internos para uso de arma de fogo”.
Reiteramos que nos esclarecimentos que prestou o Sr. Inspector E… reconheceu que enquanto militar, deu formação aos militares, e então partia do princípio (que agora reconhece como errado) “de que se desse tiros para carros, para os pneus, os carros paravam e, nessa medida, o que os militares ensinam é que se deve dar tiros para os pneus, partir do princípio de que os carros param”.
Por sua vez, a testemunha F… confirmou que “… o objectivo era disparar e só para os pneus, essas eram as orientações” e mais adiante que “os agentes estavam formatados para seguir as ordens que lhe estavam formatadas… o MAI vem incutir a situação limite que não deve ser ultrapassada, caracterizada no livro, para cessar ou fazer cessar… havia um texto de apoio e um videograma que acompanhava esses cenários”. E ainda que “essa directiva não vincula um agente territorial. Cada unidade podia dar as suas … o pessoal territorial não tem…”.
Ainda relativamente à directiva 3058 (fls. 771 2 772) atente-se que a fls. 770 se refere que “o documento ora enviado, teve a sua origem e foi da responsabilidade da Extinta Brigada de Trânsito, tratando-se de uma norma interna produzida e destinada ao dispositivo daquela unidade”.
Assim, face a todo o exposto, neste contexto, não se vislumbra, ao contrário do que defende o Ministério Público, que o tribunal recorrido tenha valorado mal os esclarecimentos do Senhor Perito E…, ou não tenha valorado as instruções do Comandante da GNR, do corpo da Brigada de Trânsito, Q…, sobre abordagem a viaturas automóveis, por agentes policiais desta entidade policial (fls.772 a 783), sobrevalorizando o texto de apoio do MAI e o depoimento da testemunha F….
Sabemos que as provas não podem ser apreciadas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada, devendo ser analisadas e valoradas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma a que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.
E reitera-se que, analisado o acórdão, o mesmo conclui que o arguido violou “os seus deveres objetivos de conduta”.
Importa também salientar que o elemento subjectivo do crime, que pertence ao foro interno do agente, sendo insusceptível de apreensão directa, na ausência de confissão (ou de confissão congruente), tem de ser inferido dos factos materiais que, provados e apreciados com a livre convicção do julgador e conjugados com as regras da experiência comum, apontam para a sua existência.
Ao julgador exige-se, então, que decida a questão de facto de forma a concluir, ou não, se o agente agiu internamente da forma como o revelou externamente. E essa conclusão assentará, não num juízo de certeza absoluta – esse dificilmente se obterá fora da confissão e mesmo esta pode não ser verdadeira – mas num juízo que vença ou ultrapasse a dúvida razoável.
Assim, neste contexto, considerando o descrito comportamento do arguido, partindo da constatação dos factos objectivos, conjugada com as regras da experiência comum, face a todo o exposto, considerando que se provou que:
- Quando se encontravam na Rua …, nesta cidade do Porto, artéria que apresenta uma inclinação, seguindo ambas as viaturas no sentido descendente e apesar de os ocupantes da viatura em fuga não terem denotado qualquer atitude ofensiva para os militares da GNR que os perseguiam, o arguido B…, que se transportava no Nissan … e que seguia imediatamente atrás da viatura Peugeot, decidiu fazê-la parar, recorrendo ao uso de uma das armas de fogo que lhe estavam distribuídas (ponto m) dos Factos Provados e não impugnado);
- Decisão tomada pelo arguido, apesar de saber que poderia pôr em risco a vida ou a integridade física do condutor e do pendura da viatura que perseguia, já que ambas as viaturas circulavam a uma velocidade manifestamente exagerada, que não lhe permitia o uso mais seguro e adequado de armas de fogo e que, dentro da viatura em fuga, seguiam, pelo menos, essas duas pessoas;
- Os disparos foram efetuados de cima para baixo e da esquerda para a direita, visando o pneu traseiro do lado direito (ponto hh) dos Factos Provados e não impugnado);
- O arguido B… tinha perfeito conhecimento sobre as situações passíveis de recurso à utilização de armas de fogo e conhecia as características técnicas da arma de fogo que lhe estava distribuída pela corporação policial a que pertence;
- Sabia igualmente das possíveis consequências que poderiam advir da utilização de tal arma de fogo e, quando a utilizou, não estava a ser ofendido corporalmente ou ameaçado na sua integridade física, nem foi confrontado com qualquer arma de fogo, que tivesse sido empunhada pelo assistente C… ou pelos seus acompanhantes;
- O arguido B… não dispunha de qualquer outro meio coercivo menos perigoso, tendo optado pelo uso da arma de fogo, como forma de conseguir imobilizar o Peugeot;
- O arguido B… agiu sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, bem sabendo que, ao disparar em direção ao veículo automóvel em fuga, poderia atingir os ocupantes do mesmo, tirando-lhes a vida ou ofendendo-os corporalmente, mas atuou convicto de que tal não sucederia, dada a sua condição de atirador exímio,
(pontos aa), bb), cc) e dd) dos Factos Provados),
é evidente que o tribunal a quo bem andou ao considerar como não provado que “…O arguido agisse convencido de existir grande probabilidade de atingir corporalmente os ocupantes do veículo em fuga; O arguido se tenha conformado com a possibilidade de atingir qualquer dos ocupantes do Peugeot alvejado, nomeadamente o assistente C… ou o D… e de lhes tirar a vida ou ofender corporalmente…”.
Assim, neste contexto, face ao exposto, considerando o descrito comportamento do arguido, partindo da constatação dos factos objectivos, conjugada com as regras da experiência comum, face a todo o exposto, não podemos deixar de considerar que o arguido B… agiu sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, bem sabendo que, ao disparar em direcção ao veículo automóvel em fuga, poderia atingir os ocupantes do mesmo, tirando-lhes a vida ou ofendendo-os corporalmente, mas actuou convicto de que tal não sucederia (não se conformou com o resultado).
Pelo que, analisada e avaliada em conjunto toda a prova produzida, na ponderação lógica e racional de todos os elementos probatórios, face às regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que a argumentação e prova indicadas pelo recorrente não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto não provada, decidida pelo Tribunal a quo.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso.
Aqui chegados e considerando-se definitivamente assente a matéria de facto dada como provada, cumpre agora aferir se os factos provados permitem integrar todos os elementos constitutivos dos crimes imputados ao arguido, ou seja, de dois crimes de homicídio simples, na forma tentada, previstos e puníveis pelos artigos 131º, nº1, 22º e 23º, do Código Penal (em que seriam vítimas o assistente C… e o ofendido J…, que seguiam nos bancos da frente do Peugeot).
Enunciemos o quadro legal vigente.
Preceitua o artigo 131º do Código Penal que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.
O artº 22º, nº 1, do mesmo código, prescreve que “Há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”. O número 2 do mesmo artigo define actos de execução, entre outros e no que ao caso interessa: “Os que forem idóneos a produzir o resultado típico” (alínea b)).
No que respeita ao uso de armas de fogo em intervenções policiais, impõe-se analisar o que dispõe o regime regulador do uso de armas de fogo na acção policial, instituído pelo Decreto-Lei nº 457/99, de 05/11, em conformidade com os princípios constitucionais atinentes.
Estabelece tal diploma, no artigo 2º e sob a epígrafe “Princípios da necessidade e da proporcionalidade” – que:
“1. O recurso a armas de fogo só é permitido em caso de absoluta necessidade, como medida extrema, quando outros meios menos perigosos se mostrem ineficazes, e desde que proporcionado às circunstâncias.
2. Em tal caso, o agente deve esforçar-se por reduzir ao mínimo as lesões e danos e respeitar e preservar a vida humana.”.
Por sua vez, dispõe o artigo 3º do mesmo diploma legal:
«1. No respeito dos princípios constantes do artigo anterior e sem prejuízo do disposto no nº 2 do presente artigo, é permitido o recurso a arma de fogo:
a) Para repelir agressão actual e ilícita dirigida contra o próprio agente da autoridade ou contra terceiros;
b) Para efectuar a captura ou impedir a fuga de pessoa suspeita de haver cometido crime punível com pena de prisão superior a três anos ou que faça uso ou disponha de armas de fogo, armas brancas ou engenhos ou substâncias explosivas, radioactivas ou próprias para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes;
c) Para efectuar a prisão de pessoa evadida ou objecto de mandado de detenção ou para impedir a fuga de pessoa regularmente presa ou detida;
d) Para libertar reféns ou pessoas raptadas ou sequestradas;
e) Para suster ou impedir grave atentado contra instalações do Estado ou de utilidade pública ou social ou contra aeronave, navio, comboio, veículo de transporte colectivo de passageiros ou veículo de transporte de bens perigosos;
f) Para vencer a resistência violenta à execução de um serviço no exercício das suas funções e manter a autoridade depois de ter feito aos resistentes intimação inequívoca de obediência e após esgotados todos os outros meios possíveis para o conseguir;
g) Para abate de animais que façam perigar pessoas ou bens ou que, gravemente feridos, não possam com êxito ser imediatamente assistidos;
h) Como meio de alarme ou pedido de socorro, numa situação de emergência, quando outros meios não possam ser utilizados com a mesma finalidade;
i) Quando a manutenção da ordem pública assim o exija ou os superiores do agente, com a mesma finalidade, assim o determinem.
2. O recurso a arma de fogo contra pessoas só é permitido desde que, cumulativamente, a respectiva finalidade não possa ser alcançada através do recurso a arma de fogo, nos termos do nº 1 do presente artigo, e se verifique uma das circunstâncias a seguir taxativamente enumeradas:
a) Para repelir a agressão actual ilícita dirigida contra o agente ou terceiros, se houver perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física;
b) Para prevenir a prática de crime particularmente grave que ameace vidas humanas;
c) Para proceder à detenção de pessoa que represente essa ameaça e que resista à autoridade ou impedir a sua fuga.
3. Sempre que não seja permitido o recurso a arma de fogo, ninguém pode ser objecto de intimidação através de tiro de arma de fogo.
4. O recurso a arma de fogo só é permitido se for manifestamente improvável que, além do visado ou visados, alguma outra pessoa venha a ser atingida».
Ora, considerando a factualidade definitivamente assente, será que a conduta do arguido se pode subsumir a prática dos referidos crimes?
Para melhor se compreender a situação, transcrevemos um breve trecho do acórdão proferido por esta Relação em 30.10.2013, no processo nº 1382/06.6GAMAI.P2, abundantemente citado por ambos os recorrentes:
“A negligência é um juízo de censura ao agente por não ter agido de outro modo, conforme podia e devia. O traço fundamental situa-se, pois na omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência (não ter o agente usado aquela diligência exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento).
Necessário ainda se torna que a produção do evento seja previsível (uma previsibilidade determinada de acordo com as regras da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homens – neste caso forças policiais) e só a omissão desse dever impeça a sua previsão ou a justa previsão.
Beleza dos Santos (R.L.J. 67/162, 70/225) sustentava que a par dos deveres concretos havia um dever geral de atenção, de cuidado, de previdências quanto ao «respeito pelos interesses alheios».
Mas como se determina esse dever geral? Não havendo disposição que o defina deverá irá buscar-se à sua razão de ser que é a razão social. Para saber se, em tais condições, é culposa uma conduta, deve-se aferir a mesma pelo conceito social sobre as condições de razoabilidade em que o agente procedeu, consideradas as circunstâncias da pessoa, do tempo, do modo e do lugar.
E uma questão inevitável se coloca: - segundo o conceito das pessoas medianamente prudentes, era razoável que o soldado da GNR procedesse de outro modo para respeito dos interesses alheios? Se o era, então a conduta é negligente. Caso contrário, se o não era, usou da conduta que usaria qualquer pessoa medianamente prudente em condições iguais e a conduta não seria culposa, (cfr. neste sentido Prof. Cavaleiro Ferreira in “Cód. Penal”. nota II, 87 e Prof. Figueiredo Dias in “O problema da consciência da ilicitude em direito penal” pág. 127).
Quando a realização de um facto for representada como uma consequência possível da conduta, haverá dolo se o agente actua conformando-se com aquela realização. Assim, na conformação ou não conformação com o resultado é que reside a diferença entre o dolo eventual e a negligência consciente.
No respeitante à negligência inconsciente, “a Lei, para evitar a produção de resultados antijurídicos, proíbe a prática de condutas idóneas para os produzirem, querendo que eles sejam representados pelo agente; ou permite tais condutas, mas rodeadas dos necessários cuidados, para que os eventos típicos se não realizem. Esta permissão de condutas perigosas é geralmente devida a imperativos do desenvolvimento científico, técnico ou económico. É o caso dos meios de transporte, das armas, da electricidade, etc., meios em si perigosos, mas cujo uso é permitido mediante cuidados adequados a evitar desastres pessoais e danos. Quando estes cuidados são acatados, o risco esbate-se; na omissão dos mesmos se radica o fundamento da negligência inconsciente” (cfr. Maia Gonçalves, Cod. Penal, pág. 593).
«A negligência ou mera culpa consiste na omissão da diligência que era exigível ao agente, mas pode assumir diversas formas, em função da intensidade ou grau da ilicitude ou da culpa. Assim, diz-se que há negligência consciente quando o agente previu a verificação do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria acreditou na sua não verificação, e só por isso não tomou as providências necessárias para o evitar. E diz-se que há negligência inconsciente quando o agente não chega sequer, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se tivesse usado da diligência devida.»
«Segundo outra terminologia, a negligência (culpa em sentido restrito) pode ser levíssima, leve ou grave. Será levíssima quando o agente tenha omitido os deveres de cuidado que só uma pessoa excepcionalmente diligente e prudente teria observado; será leve quando o agente deixar de observar os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria adoptado; será grave quando tiverem sido omitidos os deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta deixaria de respeitar», (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2007, disponível in www.dgsi.pt.)
No caso em apreço estamos perante uma negligência consciente, nos termos previstos no artº 15º al. a) do cód. penal, porquanto o arguido B… não procedeu com o cuidado a que nas circunstâncias descritas, estava obrigado e de que era capaz. Representou como possível que atingisse os ocupantes da viatura (matando ou ferindo), mas ainda assim disparou 6 tiros de pistola-metralhadora, confiando que não os atingiria.
A negligência inconsciente é aqui de afastar pois tal implicava que o arguido não chegasse sequer a representar como possível o resultado da sua conduta, o que na situação descrita era de todo improvável.
Mesmo que se considerasse negligência inconsciente não deixaria de ser uma negligência grave e/ou grosseira.
Conforme se defendeu no acórdão do STJ:
1. A negligência grosseira não excluiu a negligência inconsciente que consiste em não se chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
2. A negligência grosseira acompanhada da negligência inconsciente significa um menor grau de culpa em relação à simples negligência grosseira». Ac. do STJ, de 06/05/93, proc. nº 44236.
Mas a situação analisada enquadra claramente a previsão do artº 15º al. a) do cód. penal, sendo em nosso entendimento uma negligência grosseira, porquanto estamos perante um comportamento que ultrapassou claramente a simples falta de cuidado, que segundo as circunstâncias estava obrigado, evidenciando uma conduta insensata, irreflectida e esquecendo elementares precauções exigidas pela prudência de quem utiliza armas e as direcciona contra um automóvel em circulação (a 60 km/h e a 15/20 metros de distância) com passageiros lá dentro”.

Revertendo para o caso dos autos e atenta a factualidade assente, não restam dúvidas de que a situação criada pelo condutor do Peugeot …, C…, ao desobedecer a uma ordem de paragem das autoridades, devidamente legitimadas para o fazerem, não justifica a reacção por parte da entidade policial, por parte do arguido, tendo em conta que não estava em causa uma situação de crimes de elevada gravidade, nem a busca ou captura de indivíduo procurado ou fugido à justiça, sobre o qual impendessem mandados de detenção.
Sendo certo que embora o recurso ao uso de armas de fogo seja lícito em situações especiais, a situação concreta revelou, como já dissemos e conforme concluiu o tribunal recorrido, um excesso, que violou os princípios da necessidade e proporcionalidade, estabelecidos no artº 2º do D. L. 457/99 de 5.11, pois o recurso a arma de fogo só é permitido em caso de absoluta necessidade, como medida extrema, quando outros meios menos perigosos se mostrem ineficazes, e desde que proporcionado às circunstâncias (cfr. artigo 2º do DL 457/99).
Efectivamente, a situação foi manifestamente desproporcionada e feita sem a mínima observância do dever de cuidado que no caso concreto se impunha, a que estava obrigado o arguido B… e de que era capaz, não tendo sequer, como podia e devia, previsto a morte da vítima e as ofensas noutra.
De facto, tendo em conta o tipo de arma usada, a distância e as circunstâncias em que foi utilizada, disparada a cerca de 15 a 20 metros da viatura Peugeot, que é de pequenas dimensões e alguma fragilidade, o que face ao poder de perfuração e alcance da arma utilizada, maior que o de uma pistola normal, pela experiência profissional, o treino de tiro que possuía e demais conhecimentos em geral ministrados aos soldados da GNR na sua formação, impunha-se ao arguido um especial dever de cuidado, podendo e devendo prever que 6 tiros (4+2) disparados naquelas circunstâncias, com o carro em andamento a velocidade superior à legalmente estabelecida e à distância aproximada de 15/20 metros do veículo atingido, eram susceptíveis de pôr em perigo as vidas humanas ou a integridade física dos seus ocupantes, como de facto se comprovou.
Por outro lado, não estando em causa um crime de elevada gravidade, nem nenhuma das principais situações enumeradas no artº 3º do D.L. 457/99 supra citado, não se justificava o aparato criado, com reforço de viaturas e uso de pistola-metralhadora. A fuga de um cidadão à entidade policial nas circunstâncias em que ocorreu não justificava o recurso a tais meios para a sua detenção, que afinal se revelaram bem mais graves do que se as autoridades, simplesmente tivessem abandonado a perseguição e se limitassem a levantar o respectivo auto de notícia, fazendo assim o infractor responder igualmente perante a Justiça.
Reiteramos que o meio empregue foi desproporcional, sendo que se provou que quando o arguido utilizou a arma não estava a ser ofendido corporalmente ou ameaçado na sua integridade física, nem foi confrontado com qualquer arma de fogo, que tivesse sido empunhada pelo assistente C… ou pelos seus acompanhantes (ponto bb) dos “Factos Provados” e não se provou que a conduta adoptada pelo assistente C… no cruzamento …, haja sido interpretada, pelos soldados da GNR, como uma tentativa de atropelamento.
Conforme já referimos, não se verificou qualquer pressuposto de proporcionalidade qualitativa dos bens (objecto da agressão e objecto da acção de defesa), nem quantitativa, em termos de uso de meios.
Pelo que, os princípios da proporcionalidade e da necessidade, que regulam o recurso a arma de fogo pelas forças policiais, foram claramente violados.
Ficou provado que os disparos foram efectuados de cima para baixo e da esquerda para a direita, visando o pneu traseiro do lado direito (ponto hh) dos “Factos Provados”), sendo que os vestígios compatíveis com a acção de projécteis de arma de fogo situam-se na porta traseira (do porta bagagem) e no pára choques da viatura da marca Peugeot, modelo …, de matrícula ..-..-DJ (ponto x) dos “Factos Provados).
Das observações à viatura da marca Peugeot, modelo …, de matrícula ..-..-DJ, colhe-se que a mesma veio a ser atingida por cinco (5) disparos, de arma de fogo, dos quais três (3) tiveram continuidade para o interior do habitáculo da mesma, conforme resulta do auto de exame junto a fls. 212 e seguintes dos autos e do relatório de exame pericial junto a fls. 342 e seguintes dos autos, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos para todos os legais efeitos (ponto z) dos “Factos Provados).
Sabemos igualmente que a vítima mortal foi atingida por dois tiros e o companheiro que seguia ao seu lado, por um (pontos q) e s) dos “Factos Provados”).
Ora, considerando o poder de perfuração e alcance da pistola-metralhadora utilizada, o tipo de viatura visada e trajectória dos 3 tiros que penetraram no interior do Peugeot, caso não existissem vítimas no banco de trás, as balas atingiriam possivelmente os ocupantes dos bancos dianteiros (condutor e pendura).
Pelo que, face a todo o exposto, não podemos deixar de concluir que os factos provados, objectivamente, traduzem um juízo de censura à conduta do arguido B…, conduta essa que integra uma negligência consciente, nos termos previstos no artº 15º al. a) do Código Penal, porquanto o arguido B… agiu sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, bem sabendo que ao disparar em direcção ao veículo automóvel em fuga poderia atingir os seus ocupantes, tirando-lhes a vida ou ofendendo-os corporalmente, mas actuou convicto de que tal não sucederia (ou seja, não procedeu com o cuidado a que nas circunstâncias descritas, estava obrigado e de que era capaz, representando como possível que atingisse os ocupantes da viatura (matando ou ferindo), mas ainda assim disparou 6 tiros de pistola-metralhadora, confiando que não os atingiria.
Como se refere no já citado acórdão desta Relação de 30.10.2013, “Tal actuação traduz efectivamente um comportamento que ultrapassou claramente a simples falta de cuidado, que segundo as circunstâncias estava obrigado, evidenciando uma conduta insensata, irreflectida e esquecendo elementares precauções exigidas pela prudência de quem utiliza armas e as direcciona contra um automóvel em circulação” (em velocidade manifestamente superior à recomendada para uma condução prudente e à legalmente estabelecida e a 15/20 metros de distância) com passageiros lá dentro.
Assim, impõe-se, pois, afastar o dolo na actuação do arguido - mesmo sob a forma de dolo eventual - dando-se como assente a actuação sob a forma de negligência consciente.
Ora, relativamente aos ocupantes da frente do veículo Peugeot, é certo que a conduta negligente do arguido não produziu qualquer resultado ao nível da produção de lesões no corpo ou na saúde, e muito menos de morte, dos mesmos ofendidos, pelo que estamos perante não um crime consumado, mas meramente tentado.
Contudo, conforme se refere no acórdão recorrido, a tentativa negligente não é punível.
“Na verdade, de acordo com a norma plasmada no artigo 22º, nº 1, do Código Penal, “há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”.
Assim, a vontade (o elemento volitivo do dolo) de cometer o crime – que pelas mais diversas e variadas razões não chega a consumar-se - é elemento determinante e indispensável à existência do ilícito e à respetiva punição. Na falta de tal elemento, tendo o agente atuado por negligência, a conduta não é punível”.
Como se refere no Acórdão desta Relação do Porto de 16-09-2009, (disponível em www.dgsi.pt) “O dolo na tentativa é o mesmo que o do crime consumado, dirige-se a um fim e compreende os actos de execução formalmente típicos necessários, excluindo-se assim a possibilidade de tentativa no crime negligente ou no crime preterintencional”.
Quer dizer, a figura da tentativa e a tipicidade da tentativa e do facto tentado prevista no artigo 22º do Código Penal é uma tipicidade dolosa. E não existe responsabilidade penal por tentativa negligente.
Não é concebível a tentativa a título de negligência, uma vez que o acto praticado por negligência só é punido se se tiver concretizado no resultado, o que falta na tentativa. A tentativa representa, pois, o inverso da negligência pois aqui há o que falta naquela, isto é, o desvalor do resultado.
Da leitura dos artigos 16º e 22º do Código Penal resulta, pois, que, se não há tentativa sem dolo, não há tentativa com negligência.
A tentativa como o inverso da negligência encontra-se em FARIA COSTA, Tentativa e dolo eventual, pág. 14. Assim também FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte geral, pag. 694.
Assim, atentas as considerações supra expostas, temos de concluir que bem andou o tribunal recorrido ao julgar a pronúncia improcedente e absolver o arguido B…, da prática, em autoria material, de dois crimes de homicídio simples, na forma tentada, previstos e puníveis pelos artigos 131º, nº 1, 22º e 23º, todos do Código Penal.
Aqui chegados, passamos a analisar a questão suscitada pelo recorrente C… quanto à procedência do pedido cível por ele deduzido.
O lesado C… demandou o arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 5000,00, para compensação dos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros legais desde a data da notificação do pedido e até efectivo e integral pagamento.
Ora, improcedendo a pretendida impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto não provada apresentada pelo recorrente C… e não se tendo logrado demonstrar a prática de qualquer ilícito criminal (cfr. artigo 483º do Código Civil), o pedido indemnizatório nele fundado tem, forçosamente, que improceder.
Pelo que improcede mais este fundamento do recurso, improcedendo na totalidade ambos os recursos.
***
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente C…, mantendo integralmente a decisão recorrida.
Condenar o recorrente C… nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s.
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Porto, 21 de Janeiro de 2015
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva