INSOLVÊNCIA
CONTRATO DE ALIENAÇÃO DA EMPRESA INSOLVENTE
NULIDADE DA VENDA
Sumário

I - Só depois de se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens alienados em processo de execução coerciva, como é o processo de insolvência, podem ser adjudicados e entregues ao seu adquirente, bem como celebrado o instrumento da venda.
II - Se, porém, em contravenção desta regra, for celebrado por escrito um contrato de venda de um estabelecimento da insolvente sem estar assegurado o pagamento da totalidade do preço que lhe corresponde, essa venda é válida e produz plenamente os seus efeitos jurídicos, se não houver motivos para a anular ou dar sem efeito nos termos previstos na lei processual civil.

Texto Integral

Pº 95/08.9TYVNG-I.P1

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório
1- No processo de insolvência da sociedade, B…, S.A., foi decidido pelo Sr. Administrador da Insolvência, ouvida a Comissão de Credores, proceder à venda, mediante propostas em carta fechada, “da empresa compreendida na Massa Insolvente”.
2- Nesta sequência, procedeu-se, no dia 03/04/2009, à abertura de tais propostas, tendo sido aceite pelo Sr. Administrador da Insolvência, com a aprovação da representante da Comissão de Credores, o valor apresentado pela sociedade, C…, Ldª, no montante de 800.500,00€.
3- Em seguida, no dia 08/06/2009, foi celebrado entre a Massa Insolvente da B…, S.A., representada pelo seu Administrador, e a C…, Ldª, um “Contrato de Alienação da Empresa”, nos termos do qual a primeira vendeu à segunda “a empresa como um todo”, pelo preço de 800.500,00€, parte do qual, correspondente a 160.100,00€, aquela disse já ter recebido no dia 02/04/2009, e o remanescente em dívida, ou seja a quantia de 640,400,00€, declarou ter-lhe então sido pago, “através de cheque sobre o D…, com o nº ……….”.
4- Depois de dar conta nos autos de que este cheque fora devolvido por falta de provisão, o Sr. Administrador de Insolvência requereu, no dia 01/03/2011, que a C…, Ldª, fosse notificada “para proceder, no prazo de 8 dias, ao pagamento da quantia de 640.400,00, sob pena de vir a ser liquidada a sua responsabilidade, procedendo-se ao arresto de bens e ao competente procedimento criminal, nos termos do art.º 898.º, nº1, al. c), do CPC”.
5- Tentada essa notificação sem êxito, o Sr. Administrador de Insolvência, requereu, então, no dia 18/04/2011, a notificação judicial avulsa da citada sociedade, C…, Ldª, e de E…, “[d]ando-lhes conhecimento que:
Deverá a sociedade requerida proceder, no prazo de 15 dias, ao depósito da quantia €640.400,00 (seiscentos e quarenta mil e quatrocentos euros), correspondente ao preço remanescente da proposta apresentada para aquisição do estabelecimento comercial/industrial da sociedade insolvente –B…, SA, sob a cominação de que, não o fazendo, face ao disposto no artigo 898 n.º 1 e 2° do CPC., poderá optar-se:
a) pela manutenção do negócio, ordenando-se o arresto dos bens necessários da proponente faltosa, seguindo-se, posteriormente, a execução, para apurar a quantia necessária ao depósito em falta;
b) ou de ruptura do negócio, resolvendo-o, por incumprimento, o que se traduz em dá-lo sem efeito, e partir para uma nova venda, segundo as melhores conveniências para os credores. Mas neste caso, será a requerida sancionado com a impossibilidade de participar no novo processo de venda e terá de suportar as despesas inerentes à venda e à diferença do preço encontrado e o anterior”.
6- Concretizada esta notificação no dia 17/06/2011, e instado o Sr. Administrador de Insolvência sobre a possibilidade de realização de nova venda, veio aquele assumir a seguinte posição:
“1- Existe já interessado na aquisição dos bens da massa insolvente.
2- Diligenciou já o administrador da insolvência por nova inventariação e avaliação dos bens.
3- Sucede que a sociedade C… impede a entrada das pessoas encarregues de tal serviço, por considerar que são os mesmos proprietários dos bens e do estabelecimento.
4- Termos em que se requer a Vossa Ex.ª que se digne ordenar o que tiver por conveniente, designadamente sobre a falta de pagamento do preço remanescente pela proponente C… e suas consequências legais”.
7- A C…, Ldª, veio, então, no dia 06/03/2012, expor e requerer, além do mais, o seguinte:
“C…, Ldª, adquirente do estabelecimento comercial trespassado nos presentes autos, tendo tido conhecimento do requerimento de fls... apresentado pelo Senhor Administrador de Insolvência a 16/12/2011, vem expor e requerer como se segue:
01. O Senhor Administrador de Insolvência requereu ao Tribunal que se pronunciasse sobre os efeitos da falta de pagamento de (parte) do preço, pugnando que seja resolvido o contrato de trespasse supra referido.
02. Por despacho de fls ..., datado de 2/02/2012, o Mmo. Juiz determinou que decidiria tal requerimento após ouvir a Comissão de Credores.
03. Sucede que o Senhor Administrador de Insolvência, decidiu, sponte sua, agir judicialmente contra a ora expoente quanto ao quid subjacente a tal requerimento ainda antes de ter procedido à junção ao autos do requerimento referido em 1 e, logicamente, antes que sobre tal tenha recaído qualquer despacho.
04. Com efeito, em 17 de Junho de 2011 (meio ano antes do requerimento que aguarda despacho) o Senhor Administrador de Insolvência lançou mão de notificação judicial avulsa dirigida à expoente e ao seu sócio gerente em que intima ao “depósito da quantia de €640.400 (seiscentos e quarenta mil e quatrocentos euros), correspondente ao preço remanescente da proposta apresentada para aquisição do estabelecimento comercial/industrial da sociedade insolvente – B…, sob a cominação de que, não o fazendo, face ao disposto no artigo 898 n° 1 e 2 ° do CPC, poderá optar-se:
a) pela manutenção do negócio, ordenando-se o arresto de bens necessários da proponente faltosa, seguindo-se, posteriormente, a execução, para apurar a necessária ao depósito em falta;
ou de ruptura de negócio, resolvendo-o, por incumprimento, o que se traduz em dá-lo sem efeito, e partir para uma nova venda, segundo as melhores conveniências para os credores. Mas neste caso, será a requerida sancionado com a impossibilidade de participar no novo processo de venda e terá de suportar as despesas inerentes à venda e à diferença do preço encontrado e o anterior”. (…)
05. A tal notificação judicial avulsa, a aqui expoente respondeu através da carta registada de 29 de Junho de 2011 que se junta e que brevitatis causae aqui se dá por reproduzida (…).
06. De referir que tal missiva não mereceu, por parte do Senhor Administrador de Insolvência, qualquer resposta.
07. O que motivou que a ora expoente, remetesse nova missiva, datada de 11/10/2011 (…).
08. O objectivo declarado das cartas ora juntas foi o de dar a conhecer da(s) razão(ões) de ser da assumida situação debitória perante e as vicissitudes que lhe estão subjacentes (e que adiante daremos conta) bem como reiterar o compromisso de pagamento assim que as situações nelas descritas se encontrassem ultrapassadas.
09. Cumpre ainda consignar que, para além da notificação judicial avulsa junta, o Senhor Administrador da Insolvência levou a cabo, operações materiais tendentes à propalada “nova venda” (assim assumindo a si a decisão de resolver o contrato ...) nomeadamente o facto de ter incumbido a leiloeira “F…, Ldª” de inventariar os bens móveis constantes do estabelecimento adquirido pela expoente nos presentes autos.
10. A expoente não se pode conformar com os factos jurídicos e materiais levados a cabos pelo Senhor Administrador de Insolvência, vindos de relatar, pelo que, através do presente requerimento, deles traz conhecimento aos autos para os fins tidos por convenientes.
(…).
23. Como já se deixou escrito, os factos vindos de descrever estão a ser discutidos em sede judicial, ai se pedindo, para além da vertente indemnizatória, que a G…, Ldª seja condenada a reconhecer o contrato de arrendamento e a absterse de pôr em causa a manutenção da posse, por parte da C… dos Armazéns compreendidos no contrato de arrendamento em cuja posição acedeu por força da compra efectuada nos presentes autos da Insolvência.
24. É em face deste enquadramento que a C… se sente legitimada a não liquidar os valores em causa, na medida em que os direitos adquiridos pela C… por força do contrato de trespasse estão a ser desrespeitados, pondo em risco sério a prossecução da actividade industrial em causa e, inerentemente, os postos de trabalho da insolvente e que a C… assumiu.
25. Com efeito, a C…, neste momento conjuntural de crise, dá emprego a quase 30 pessoas, sendo que a resolução do contrato propugnada pelo Senhor Administrador de Insolvência no requerimento referido em 01 ou mesmo o arresto dos bens e sua posterior execução, tal como aventado na notificação judicial avulsa, terá como inevitável consequência a a paralisação do processo produtivo e a perda dos postos de trabalho da insolvente e que foram assegurados pela C… por força do compra do estabelecimento.
26. Neste enfoque, a C… compromete-se a liquidar o valor em causa, assim que for, judicial ou extra-judicialmente, resolvida a situação exposta.
Termos em que se requer a V. Exª, que não decida o requerimento de 16/12/2011 no sentido propugnado pelo Senhor Administrador de Insolvência, aguardando os presentes autos que se decida o proc. 1738/ 11.2TBVCD a correr termos em Vila do Conde”.
8- Ouvido o Sr. Administrador da Insolvência, veio o mesmo apresentar a sua versão, requerendo, em simultâneo, que se ordenasse o que se tivesse por conveniente e ainda a notificação da Administração da C…, Ldª, para, no prazo de cinco dias, juntar aos autos os comprovativos do pagamento dos salários e certidão das dívidas tributárias e contributivas.
9- Nesta sequência, e tendo por referência os desenvolvimentos ocorridos nos apensos, foi determinada, no dia 03/10/2012, a notificação do Sr. Administrador da Insolvência para informar se a liquidação já estava ultimada “ou, em caso negativo, impetrar o que lhe aprouver em prol de tal desiderato”.
10- O Sr. Administrador Judicial veio, então, no dia 18/10/2012, expor e requerer o seguinte:
“1- A liquidação não está ultimada, nem se afigura poder estar enquanto não houver decisão sobre as consequências da falta de depósito/pagamento do preço pela proponente C…, Ldª, relativamente ao estabelecimento industrial.
2- Por requerimento datado de 28/02/2011, junto aos autos principais, requereu a este Tribunal que fosse a sociedade C… notificada para proceder no prazo de 8 dias, ao pagamento da quantia de 640.400,00, sob pena de vir a ser liquidada a sua responsabilidade, procedendo-se ao arresto de bens e à competente procedimento criminal, nos termos do art.º 898°, nº1, al. c), do CPC. (cfr. requerimento datado de 28/02/2011, junto aos autos principais.
3- Tendo-se frustrado tal notificação.
4- E em 18/04/2011, requereu a notificação judicial avulsa da sociedade C… e do seu representante legal, nos termos da qual se notificou aqueles para procederem ao pagamento do preço remanescente.
5- A sociedade C… não procedeu até hoje ao pagamento
6- Usando de diversos expedientes, nomeadamente requerimentos dirigidos aos autos principais e acções judiciais, posteriores à notificação para depósito do preço em falta, em que a massa insolvente nem sequer é parte, para obstar o normal prosseguimento dos autos ou uma decisão.
7- E com o decurso do tempo, o estado actual do País, o desinvestimento, a ressaca da banca ao financiamento, crê-se que o arrastar indefinido desta situação influenciará negativamente o valor dos bens.
8- Termos em que se requer a Vossa Ex.ª que se digne ordenar dar sem efeito a venda do estabelecimento da devedora, promovendo-se nova venda, como, aliás, é já entendimento maioritário da Comissão de Credores”.
11- Perante este requerimento recaiu o seguinte despacho, datado de 08/02/2013:
“Atentas as ponderosas razões atrás elencadas pelo Exmº AI – e considerando que a C…, Ldª incumpriu a prestação à qual estava adstrita vista a natureza sinalagmática do contrato em crise, tem-se o negócio jurídico por não perfeito (art.762º nº 1 do C.Civil “a contrario sensu”) – proceda o atrás impetrante a nova venda, destarte ficando sem efeito jurídico útil o sobredito trato negocial.
Deste modo, atenta a natureza do processo de insolvência (de liquidação universal, no beneficio dos credores), defiro o pedido pelo Exmº AI em sede de nova venda”.
12- Inconformada com este despacho, reagiu a sociedade, C…, Ldª, interpondo recurso no qual conclui, em síntese, que:
a) Este recurso é tempestivo porque que não foi notificada pela secretaria do despacho recorrido e só teve conhecimento do mesmo através de missiva que recebeu do Administrador da Insolvência, no dia 11/06/2013.
b) Foi violado o seu direito ao contraditório, na medida em que não lhe ter foi facultada a tomada de posição sobre a pretensão do Sr. Administrador de Insolvência, no sentido de ser dada sem efeito a venda dos autos.
c) Embora não tenha liquidado o remanescente do preço acordado, essa venda é válida e eficaz, pois nem aquela sua falta tem como consequência a “imperfeição” de tal venda, nem essa venda é injustificada, na medida em que goza da excepção do não cumprimento.
Por estas razões, sumariamente expostas, pede a revogação da decisão recorrida.
13- A sociedade, G…, Ldª, e a Massa Insolvente da B…, S.A., pugnaram, em resposta, pela manutenção do julgado, tendo a última arguido igualmente a intempestividade deste recurso.
14- Recebido o mesmo nesta instância e preparada a deliberação, importa tomá-la:
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II- Questão prévia
Divergem a Apelante e a Apelada, Massa Insolvente da B…, S.A., quanto à tempestividade deste recurso.
Alega a primeira, que não foi notificada pela secretaria do despacho recorrido e que só teve conhecimento do mesmo através de missiva que recebeu do Administrador da Insolvência, no dia 11/06/2013. Por conseguinte, tendo interposto este recurso no dia 26/06/2013, considera-o tempestivo.
Já a referida Massa Insolvente sustenta o contrário. A seu ver, a Apelante devia ter arguido a referida falta de notificação no prazo previsto para a invocação de nulidades, pelo que, não o tendo feito, ficou sanado esse vício, devendo considerar-se intempestivo este recurso.
Ora, não é assim.
Nos termos do artigo 685.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[1], o prazo para a interposição de qualquer recurso ordinário conta-se a partir da data da notificação do despacho impugnado. E essa notificação, nos termos do artigo 253.º, n.º 1, do mesmo Código, quando dirigida às partes em processos pendentes, como é o caso, deve ser feita na pessoa dos mandatários judiciais das mesmas.
Pois bem, embora a Apelante já tivesse constituído mandatário forense nos autos (fls. 191 do apenso E), não há noticia de que o mesmo tenha sido notificado do despacho recorrido, com sucesso, pela secretaria do tribunal recorrido (fls. 252 do mesmo apenso). Por conseguinte, a referida notificação está em falta.
É certo que a Apelante reconhece ter tomado conhecimento do despacho recorrido através de missiva que recebeu do Administrador da Insolvência no dia 11/06/2013. Todavia, nada na lei o obrigava a arguir logo a nulidade decorrente da falta de conhecimento desse despacho através do tribunal recorrido, pois que se ignora, de todo, se este último não lhe iria ainda dar esse conhecimento. Nulidade haveria se esse conhecimento fosse definitivamente preterido, seja expressa, seja tacitamente; o que é impossível de inferir perante os dados constantes dos autos.
Deste modo, só se pode concluir que o recurso interposto pela Apelante é tempestivo. É o que se decide.
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III- Mérito do recurso
1- Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, é constituído, essencialmente, por duas questões:
a) Em primeiro lugar, saber se a decisão recorrida é nula por violação do princípio do contraditório;
b) E, em segundo lugar, determinar se o contrato celebrado entre a Apelante e a Apelada, Massa Insolvente da B…, S.A., é, ou não, válido e eficaz.
2- Para a resolução destas questões, as ocorrências relevantes a considerar como demonstradas são aquelas que constam do relatório supra transcrito, as quais se basearam na documentação junta aos autos.
3- Fundamentação jurídica
A primeira questão a solucionar, como vimos, é a que diz respeito à alegada nulidade do despacho recorrido por pretensa violação do direito ao contraditório de que a Apelante se diz titular; ou seja, por alegadamente não lhe ter sido facultada a tomada de posição sobre a pretensão do Sr. Administrador de Insolvência, no sentido de que fosse dada sem efeito a venda entre ambos celebrada.
Antes de assumirmos posição sobre este concreto diferendo, importa realçar o quanto importante é, no nosso sistema jurídico, o aludido direito.
Traduzindo uma dimensão de vários princípios constitucionais estruturantes do Estado de Direito democrático, particularmente, o princípio da igualdade e o de acesso ao direito e aos tribunais, mediante um processo equitativo, consagrados, respectivamente, nos artigos 13.º, nº 1, e 20º, nºs 1 e 2, da CRP[2], o princípio do contraditório revela-se não só enquanto direito de defesa formal, mas também como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio[3].
Por isso mesmo, tal como resulta do artigo 3º, nº1, do Código de Processo Civil, “[o] tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”.
Só nos casos excepcionais previstos na lei – acrescenta o nº 2 – “se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida”, sendo que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo licito, salvo em caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as parte tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” (nº3).
É, pois, manifesto que o direito ao contraditório não pode deixar, por regra, de ser observado em qualquer processo judicial.
E, no caso presente, cremos que o foi. É a própria Apelante, a nosso ver, quem o confessa no requerimento que dirigiu a juízo no dia 06/03/2012[4].
Com efeito, nesse requerimento, a Apelante não só reconhece que teve conhecimento de que o Sr. Administrador de Insolvência requereu em juízo a resolução do contrato, como admite que teve conhecimento de outros actos subsequentes cujos efeitos diz não aceitar.
Assim, embora a Apelante se queixe de não lhe ter sido levado ao conhecimento o último requerimento do Sr. Administrador da Insolvência, a verdade é que a pretensão veiculada nesse requerimento já lhe tinha sido antes transmitida.
De modo que, em termos substanciais, não se vê qualquer ofensa ao direito ao contraditório de que a Apelante é titular. O que basta para a recusa da nulidade arguida a este respeito.
Passemos agora à questão da validade e eficácia do contrato de alienação da empresa insolvente.
Como já demos conta, esse contrato foi considerado “não perfeito” no despacho recorrido, em virtude da falta de pagamento da totalidade do preço pela Apelante. Consequentemente, seguindo a mesma linha de raciocínio, foi dado “sem efeito jurídico útil o sobredito trato negocial”, ordenando-se a realização de nova venda.
A Apelante é que não se conforma com este desfecho, pois, reconhecendo embora a apontada falta[5], defende que ela não colide com a validade e eficácia do citado contrato, além de que, a seu ver, é justificada, uma vez que lhe é legitimo opor a excepção do não cumprimento. De modo que aquele convénio só pode ser mantido em vigor.
Será assim?
Vejamos:
O contrato em causa foi celebrado na sequência da decisão adoptada pelo Sr. Administrador da Insolvência, que, depois de ouvir a Comissão de Credores a esse respeito, determinou a venda, mediante propostas em carta fechada, “da empresa compreendida na Massa Insolvente”.
Nessa sequência, procedeu-se, no dia 03/04/2009, à abertura de tais propostas, tendo sido aceite pelo Sr. Administrador da Insolvência, com a aprovação da representante da Comissão de Credores, o valor apresentado pela Apelante, no montante de 800.500,00€.
Seguidamente, ou seja no dia 08/06/2009, foi celebrado entre a Massa Insolvente da B…, S.A., representada pelo seu Administrador, e a Apelante, um “Contrato de Alienação da Empresa”, nos termos do qual a primeira vendeu à segunda “a empresa como um todo”, pelo preço de 800.500,00€, parte do qual, correspondente a 160.100,00€, aquela disse já ter recebido no dia 02/04/2009, e o remanescente em dívida, ou seja a quantia de 640,400,00€, declarou ter-lhe então sido pago, “através de cheque sobre o D…, com o nº ……….”.
Só quando este último cheque veio devolvido por falta de provisão é que se questionou a validade e eficácia de tal venda, tendo o Sr. Administrador de Insolvência começado por se socorrer do regime adjectivo previsto para a venda executiva (previsto no artigo 898.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil), e o Tribunal recorrido, por sua vez, lançado mão, ao que parece, do regime substantivo, para concluir, como vimos, que, sem o pagamento integral do preço não há negócio jurídico “perfeito”.
Ora, como cremos ser compreensível, nenhum destes caminhos pode ser seguido, no plano jurídico.
O do regime substantivo porque a conclusão do contrato de compra e venda não depende do efectivo pagamento do preço. Depende, sim, apenas do acordo das partes sobre as cláusulas que as mesmas julguem necessárias para o efeito, posto que nos encontremos no domínio da plena liberdade contratual. É o que resulta do disposto no artigo 232.º do Código Civil, “à contrário”.
Assim, o dever de pagamento do preço é apenas um dos efeitos essenciais do contrato (artigo 897.º, al. c), do Código Civil) e não uma condição essencial para a sua validade jurídica. Aliás, transmitida a propriedade da coisa ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, como parece ter sido o caso, o vendedor não pode sequer, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço – artigo 886.º do Código Civil.
De modo que nunca, por esta via, se poderia dar sem efeito a venda em causa.
Mas melhor solução não pode ser obtida por recurso às regras relativas à venda executiva.
Essas regras, com efeito, são aqui aplicáveis, posto que nos encontramos num processo de execução universal (artigos 1.º, n.º 1, 17.º e 164.º, nºs 1 e 4, do CIRE), mas o que verificamos é que as mesmas não foram cumpridas na íntegra.
Efectivamente, no caso de venda mediante propostas em carta fechada, como sucedeu no caso presente, os proponentes devem juntar à sua proposta, como caução, um cheque visado, à ordem do Administrador da Insolvência, no montante correspondente a 5 % do valor anunciado para a venda, ou garantia bancária no mesmo valor – n.º 1 do artigo 897.º do Código de Processo Civil.
Aceite alguma proposta – continua o n.º 2 do mesmo preceito -, o proponente ou preferente é notificado para, no prazo de 15 dias, depositar numa instituição de crédito, à ordem da mesma entidade, a totalidade ou a parte do preço em falta.
Se não o fizer, a lei comina várias alternativas (artigo 898.º do Código de Processo Civil). Mas – note-se - só depois de se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente. É o que dispõe o artigo 900.º, n.º 1, do mesmo Código.
E idêntico procedimento deve ser adoptado no caso de venda por negociação particular. Como resulta do disposto no artigo 905.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, o instrumento da venda só pode ser lavrado depois de depositado o preço pelo comprador, numa instituição de crédito, à ordem de quem a promoveu.
Não há dúvidas, portanto, que a venda nunca pode ser concluída sem estar assegurado o efectivo pagamento do preço.
Ora, no caso em apreço, não se teve essa cautela. Assumiu-se como bom um meio de pagamento que não teve essa virtualidade efectiva. De modo que, tendo sido celebrado por escrito o contrato de venda do estabelecimento da insolvente sem estar paga a totalidade do preço que lhe correspondia, a questão que se coloca é a de saber se esse contrato pode agora ser dado, como foi, sem efeito, por iniciativa jurisdicional.
Pois bem, do nosso ponto de vista, não pode. E não pode porque não há apoio legal para o efeito. Na verdade, a venda executiva só pode ser anulada ou dada sem efeito nos restritos casos previstos nos artigos 908.º, n.º 1, e 909.º, nº1, als a) a d), do Código de Processo Civil. Ou seja, por iniciativa do comprador, “[s]e, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado”, ou ainda: “a) Se for anulada ou revogada a sentença que se executou ou se a oposição à execução ou à penhora for julgada procedente, salvo quando, sendo parcial a revogação ou a procedência, a subsistência da venda for compatível com a decisão tomada; b) Se toda a execução for anulada por falta ou nulidade da citação do executado, que tenha sido revel, salvo o disposto no n.º 3 do artigo 921.º; c) Se for anulado o acto da venda, nos termos do artigo 201.º; d) Se a coisa vendida não pertencia ao executado e foi reivindicada pelo dono”, tudo hipóteses que não se verificam no caso em apreço.
Por conseguinte, é inequívoco que esta venda deve ser mantida; até porque pode já ter produzido outros efeitos jurídicos em relação a terceiros que importa preservar, se estiverem de boa fé.
Daí que não se veja fundamento jurídico para manter em vigor na ordem jurídica o despacho recorrido, com o que procede na íntegra o presente recurso.
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IV- DECISÃO Pelas razões expostas, acorda-se em julgar procedente o presente recurso e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido.
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- Custas pelos Apelados.
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Porto, 10/02/2015
João Diogo Rodrigues
Rui Moreira
Henrique Araújo.
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[1] Aprovado pelo Decreto-Lei nº 44.129 de 28/12/1961, com as actualizações introduzidas até à Lei n.º 29/2013, de 19/04, que é aqui aplicável por ser o que vigorava à data em que foi proferido o despacho recorrido (artigo 142.º, nº1 do mesmo Código) e do qual serão todas as futuras citações sem outra menção distintiva.
[2] Cfr. neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Almedina, Vol I, págs. 409 e 410.
[3] Cfr. neste sentido, José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, 2ª Edição, Reimpressão, Coimbra Editora, pags. 108 e 109.
[4] Ponto 7 do Relatório supra transcrito.
[5] De pagamento parcial (cfr. ponto 10 das conclusões do seu recurso).