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CONTRATO DE MÚTUO
NULIDADE DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
EFEITOS DA NULIDADE
JUROS DE MORA
Sumário
I - Só em casos excepcionais ou de limite, a apreciar casuisticamente, poderá ser configurado o abuso de direito na invocação de nulidade por inobservância da forma legal de um negócio jurídico. II - A invocação do abuso de direito não pode redundar em mero instrumento de convalidação de um negócio que a lei declara nulo por falta de forma legal. III - A nulidade e o seu efeito retroactivo estendem-se a todo o conteúdo do contrato, incluindo a taxa de juros, despesas e encargos convencionados. IV - Porém, anulado o contrato de mútuo por falta de forma legal, a restituição abrange não só a quantia mutuada, mas também os juros de mora a partir da citação ou da interpelação extrajudicial para pagamento, se ela tiver ocorrido em data anterior, podendo coincidir com a data acordada para a restituição. V - Estes juros correspondem aos frutos civis e são devidos pelo mutuário enquanto possuidor de má fé da quantia não restituída.
Texto Integral
Processo n.º 46/14.1TBAMT.P1
Do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Amarante, onde deu entrada em 13/1/2014, entretanto extinto, pertencendo agora à Instância Local da mesma localidade, Secção Cível, J1, da Comarca do Porto Este.
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Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção:
I. Relatório
B…, residente na Rua …, …, Amarante,instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, contra C… e mulher D…, residentes no …, …, do mesmo concelho, pedindo que seja declarada a nulidade do contrato de mútuo, entre eles celebrado, e, em consequência, sejam os réus solidariamente condenados a restituírem-lhe a quantia de 21.069,03 €, acrescida dos juros de mora sobre o valor de 14.740,00 €, contados dia a dia, desde 13.01.2014 e até integral reembolso, à taxa legal de 4%.
Para tanto, alegou, em síntese, o seguinte:
Emprestou, verbalmente, aos réus, a seu pedido, a quantia de 22.740,00 €, em 27/9/2004.
Os réus comprometeram-se a restituir aquela importância por meio de uma letra de câmbio e sucessivas reformas, por eles aceites, bem como a pagar as respectivas despesas e os juros que a instituição bancária lhe debitasse pelas correspondentes operações de desconto.
No entanto, os réus apenas procederam ao pagamento de 8.000,00 €, a título do capital mutuado, e de 1.000,00 €, a título de juros e encargos, nada mais tendo pago desde a última reforma, ocorrida em 5/12/2005.
Os réus contestaram, confessando parte dos factos alegados e aceitando a nulidade, mas alegando que apenas devem 13.740,00 €, por já terem pago 9.000,00 €, e sustentado que os juros só são devidos a partir da citação, concluindo pela sua absolvição na parte restante do pedido.
No despacho saneador foi a acção julgada parcialmente procedente, tendo sido decidido:
- declarar nulo o contrato de mútuo celebrado entre o autor e os réus em 27/09/2004;
- condenar os réus a restituírem, solidariamente, ao autor a quantia de €13.740,00 (treze mil, setecentos e quarenta euros), acrescida de juros de mora à taxa legalmente prevista, calculados desde a data da citação da acção (15/01/2014) até efectiva e integral restituição;
- absolver os réus do demais peticionado.
Inconformado com este saneador-sentença, o autor interpôs recurso para este Tribunal e apresentou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“1. A questão fulcral que se coloca neste recurso é saber qual a medida de restituição consagrada no Artº 289º do CC, como corolário da declaração de nulidade negocial do contrato de mútuo, verbal, celebrado entre as partes.
2.Quanto aos FP, das als. A) a R), resulta que os RR.:
a) – Acordaram pagar ao A. o empréstimo de 22.740,00 € concedido através de sucessivas letras de câmbios, tendo procedido à última reforma e pagamento parcial em 05.12.2005, nada mais pagando após essa data, apesar de diversas vezes interpelados pelo A. para o efeito;
b) - Aceitaram pagar encargos, juros e despesas bancárias ao A.;
c) – Em 05.12.2005, com essa última reforma, pagaram 1.000,00 € por conta dos encargos, juros e despesas bancárias; e
d) – Aceitaram uma 5ª letra (a última), no valor de 11.000,00 €, com vencimento a 06.03.2006.
3.A invocação da nulidade do mútuo como forma de não serem devidos juros antes da citação dos RR., e para que todas as quantias entregues por eles sejam deduzidas à quantia inicial em dívida, ou seja, mesmo os 1.000,00 € que aceitarem ser para pagamento de encargos – posição que a douta sentença acolheu -, configura um manifesto abuso de direito – Artº 334º do CC.
4.Devendo pois esses 1.000,00 € não serem deduzidos à quantia mutuada de 22.740,00 €, mas apenas os outros 8.000,00 €, devendo a restituição a ordenar, quanto ao capital, ser de 14.740,00 €.
5.Finalmente, tendo ficado provado que:
a) – Os RR. – neste caso o R. marido – obrigou-se a pagar ao A. em 06.03.2006 a última letra aceite, de 11.000,00 €, e não o fez;
b) – E que, após 05.12.2005, os RR. foram diversas vezes interpelados pelo A. para lhe pagarem o que estava em dívida – Als. M) e P),
6.Teremos que concluir que, a partir de, pelo menos, 06.03.2006, o os RR. passaram a ser possuidores de má fé da quantia mutuada, ainda não restituída, no valor de 14.470,00 €, sendo portanto devidos juros de mora a partir dessa data.
7.O que resulta da melhor interpretação e aplicação dos Artºs. 289º, nºs. 1 e 3, Artº 1270º, 1271º e 212º do CC.
8.Interpretação e aplicação que a douta sentença não observou, além de ter violado o Artº 334º do CC – Artº 639º, nº 2, als. a) e b) do CPC.
9.Sendo que, os juros que o A. peticionou na p.i. eram moratórios, e não remuneratórios.
TERMOS EM QUE,
Deve a douta sentença ser revogada e substituída por douto Acórdão deste Tribunal, que, mantendo a declaração de nulidade do mútuo, condene os RR. a restituírem solidariamente ao A. a quantia de 14.470,00 €, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, desde 06.03.2006 e até efectiva e integral restituição,
Assim se fazendo JUSTIÇA.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Admitido o recurso como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, foi o mesmo remetido a este Tribunal que manteve o modo de subida e o efeito fixados pela 1.ª instância.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente (cfr. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do actual CPC, aqui aplicável), não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir consistem em saber:
1. Se existe abuso de direito por parte dos réus na invocação da nulidade para não pagarem os encargos e os juros acordados;
2. E se os juros de mora são devidos desde data anterior à citação, mais precisamente a partir do vencimento da letra da última reforma – 6/3/2006.
II. Fundamentação
1. De facto
No saneador, com valor de sentença, recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:
A) No dia 27/09/2004, o autor entregou aos réus, após solicitação do réu marido, a quantia de € 22.740,00.
B) Como forma de pagamento desse empréstimo, autor e réus acordaram que o primeiro emitisse e sacasse à sua ordem uma letra de câmbio no valor do capital mutuado, que os réus aceitaram, letra essa com data de emissão de 27/09/2004 e com data de vencimento no dia 27/01/2005.
C) Mais acordaram autor e réus que tal letra seria apresentada a desconto bancário pelo autor, suportando os réus os custos e despesas dessa apresentação, e que, na data do seu vencimento, a letra seria sucessivamente reformada pelos réus através da subscrição de novas letras, com sucessivas amortizações de capital, até que o capital mutuado se verificasse integralmente pago.
D) Autor e réus estabeleceram ainda que estes pagariam, a título de juros, pelo empréstimo concedido, o valor que a instituição bancária onde o autor procedesse ao desconto das sucessivas letras, debitasse ao autor a título de juros pelas sucessivas operações de desconto.
E) Neste contexto, na altura do seu vencimento, os réus procederam à reforma da primeira letra de câmbio aceite, tendo no dia 28/01/2005 aceite nova letra, que o autor emitiu e sacou à sua ordem, no valor de €19.000,00, e com data de vencimento para o dia 28/05/2005.
F) Cumpre aqui dizer que nesta reforma, os réus não procederam ao pagamento ao autor da diferença de valores entre esses dois títulos cambiários, ou seja, não pagaram o valor de reforma, de €3.740,00.
G) Nem pagaram qualquer quantia a título de juros.
H) No dia 28/05/2005, os réus procederam à reforma da 2.ª letra, aceitando uma nova letra, que o autor emitiu e sacou à sua ordem, no valor de €15.000,00, com data de vencimento de 28/08/2005.
I) Nesta operação de reforma, os réus pagaram ao autor o valor da reforma de €4.000,00, mas nada pagaram a título de juros.
J) No dia 28/08/2005, os réus procederam à reforma da 3.ª letra, aceitando o réu marido uma nova letra, que o autor emitiu e sacou à sua ordem, no valor de €13.000,00, com data de vencimento de 28/11/2005.
K) Nesta operação de reforma, os réus pagaram ao autor o valor da reforma de €2.000,00, através de cheque nesse valor, de conta do réu marido do E…, agência de Amarante, com data de 29/08/2005.
L) Mas nada pagaram a título de juros.
M) No dia 05/12/2005, os réus procederam à reforma da 4.ª letra, aceitando o réu marido uma nova letra, que o A. emitiu e sacou à sua ordem, no valor de €11.000,00, com data de vencimento de 06/03/2006.
N) Nesta operação de reforma, os réus pagaram ao autor o valor da reforma de €2.000,00, através de cheque no valor de €3.000,00, datado de 05/12/2005, de conta do réu marido da F…, Agência de Amarante.
O) Assim, deste cheque, €2.000,00 destinavam-se a pagar a reforma da letra, e os €1.000,00 restantes seriam imputados na amortização dos encargos, juros e despesas debitados ao autor pelas instituições bancárias até essa data nas sucessivas operações de desconto e reforma.
P) Após 05/12/2005, os réus nada mais pagaram ao autor, fosse a que título fosse por conta do mútuo celebrado, apesar deste os ter diversas vezes interpelado para o efeito.
Q) O contrato mencionado em A) não foi reduzido a escrito.
R) Entre a data inicial do empréstimo - 27/09/2004 - e a data da última reforma - 05/12/2005 -, o autor, por via das sucessivas operações de desconto e reforma de letras, suportou as seguintes despesas:
a. Em 02/03/2005, com a devolução ao autor pelo G…, S.A. da 1.ª letra, foi debitado por este banco ao autor a quantia de €22.749,36, ou seja, além do valor do título, mais 9,36 € de despesas;
b. Na mesma data, tendo o autor apresentado a desconto no mesmo banco a 2.ª letra no montante de €19.000,00, foram na sua conta debitados vários valores a título de juros (€894,06), comissão (€202,10), Impostos Jur. (35,76 + 8,08), pelo que o G… apenas lhe creditou em conta €17.860,00, ascendendo assim o montante suportado pelo autor a €1.140,00;
c. No dia 06/06/2005, com a reforma da letra de €19.000,00 pela letra de €15.000,00, foram debitados pelo G… ao autor um total de encargos no valor de € 774,38;
d. No dia 06/09/2005, tendo o autor apresentado a desconto no mesmo banco a 4.ª letra no valor de €13.000,00, foram na sua conta debitados €152,10 a título de comissão e mais €31,94 como Impostos, num total a débito de €184,04;
e. No dia 09/09/2005, com a devolução ao autor pelo G… da 3.ª letra no montante de €15.000,00, foi debitado por este banco ao autor a quantia de €15.031,02, ou seja, além do valor do título, mais €31,02 de despesas;
f. No dia 06/12/2005, com a devolução ao autor pelo G… da 4.ª letra no montante de €13.000,00, foi debitado por este banco ao autor a quantia de €11,25;
g. No dia 15/12/2005, tendo o autor apresentado a desconto no H…, S.A. - vulgarmente designado H1… -, a 5.ªletra no valor de €13.000,00, foram na sua conta debitados a título de encargos o total de €395,67.
h. Finalmente, no dia 09/03/2006, com a devolução ao autor pelo H1… da letra de €11.000,00, foi debitado por este banco ao autor a quantia de €11.003,63, ou seja, além do valor do título, mais €3,63 de despesas.
2. De direito
Como já tivemos oportunidade de escrever noutro local[1] e que aqui tem inteira aplicação, o art.º 1142.º do Código Civil define o mútuo como “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
O mútuo é, de sua natureza, um contrato real, no sentido de que supõe, como elemento essencial à sua constituição, a entrega da coisa sobre que versa, sem a qual e antes da qual o contrato não existe (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. II., 3.ª ed., pág. 680 e Inocêncio Galvão Teles, em O Direito, 125.º, 1993, pág. 190).
O empréstimo de uma quantia em dinheiro implica a transferência desse dinheiro do mutuante para o mutuário, tornando-se propriedade deste.
Atenta a matéria de facto provada, constante das alíneas A e B da fundamentação de facto, não há dúvidas de que entre o autor e os réus foi celebrado um contrato de mútuo, em 27/9/2004, segundo o qual aquele emprestou a estes a quantia de 22.740,00 €.
Assim, com este contrato, aquele dinheiro transferiu-se do autor (mutuante) para os réus (mutuários), tornando-se propriedade dele e ficando com a obrigação de restituir igual importância nos termos acordados.
Porém, atento o valor emprestado, o contrato de mútuo assim celebrado é nulo por falta de observância da forma legalmente prescrita naquela data, que era a escritura pública (cfr. art.º 220.º do Código Civil), tanto mais que não pode ser objecto de redução ou de conversão por faltarem os requisitos da sua admissibilidade previstos nos art.ºs 292.º e 293.º do mesmo Código.
Com efeito, dispunha o art.º 1143.º do Código Civil, então vigente, que “O contrato de mútuo de valor superior a 20.000 euros só é válido se for celebrado por escritura pública e o de valor superior a 2.000 euros se o for por documento assinado pelo mutuário.”[2]
No presente caso, é pacífico que o contrato de mútuo celebrado entre as partes é nulo.
A acção foi configurada com base nessa nulidade, a qual foi invocada na causa de pedir e no pedido[3], com ela concordaram os réus, a mesma foi declarada na sentença e com esse entendimento se conformou o autor, ora recorrente.
E assim é efectivamente, atento o que se deixou dito.
No recurso, o autor/recorrente questiona apenas os efeitos da declaração dessa nulidade, sustentando que são devidos os juros e os encargos que foram objecto do acordo, aquando da celebração do mútuo, configurando uma situação de abuso de direito a sua recusa, bem como os juros de mora vencidos desde o vencimento da última reforma, e não a partir da citação, como sustentam os réus e foi reconhecido na sentença.
Vejamos:
2.1. Do abuso de direito
Como é sabido e temos vindo a repetir noutros acórdãos[4], “o actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça.
Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos[5].
A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável.
Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico[6].
Aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites.
Tal objectividade exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficioso[7]. Porque é de conhecimento oficioso, pode ser apreciado, ainda que não o tenha sido em 1.ª instância, dependendo a sua verificação da alegação e prova dos aludidos factos.
Esta orientação jurisprudencial mereceu o aplauso do Prof. Menezes Cordeiro, que também faz depender a aplicação daquele instituto da verificação dos pressupostos processuais, justificando: “na verdade, o Tribunal não fica limitado pelas invocações jurídicas das partes: pedido um certo efeito e constando, do processo, os factos necessários, pode o juiz optar pelo abuso de direito, mesmo que este não tivesse sido expressamente invocado”[8].
Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
Porém, o abuso do direito, enquanto “válvula de escape”, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito[9].
Como escreveu Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745, ali citado:
“O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”
E ensina, lapidarmente, o mesmo Professor, na “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:
“ (...) 1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”[10]
A proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte.
Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural”[11].
E se assim deve ser entendido em termos genéricos, por maioria de razão o será quando, como no caso dos autos, o reclamado abuso de direito se “reconduz às denominadas inalegabilidades formais, ou seja, à “invocação da invalidade formal de um negócio pela parte que provocou intencionalmente a ocorrência do vício de que decorre (actuação dolosa), ou que, embora não a tenha provocado, participou na sua prática (actuação ingénua, confiante, oportunista e contraditória)[12]. Na realidade, em diferente entendimento, esvaziar-se-iam de qualquer sentido útil os comandos legais que, para salvaguarda da ponderação dos sujeitos contratuais e da certeza e segurança jurídicas, prescrevem a obrigatoriedade da observância de determinados requisitos formais para certos negócios que inundam o tráfico jurídico”[13].
Apesar disso, tem-se entendido que os efeitos da invalidade por vício de forma podem ser excluídos pelo abuso de direito, mas sempre em casos excepcionais ou de limite, a ponderar casuisticamente.[14]
Essa ponderação deverá ser feita “sempre tendo na devida conta que, nestes casos de nulidade formal dos negócios, não é qualquer actuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, antes e porque as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral, só excepcionalmente é que se pode submeter a invocação da nulidade à invocação do venire contra factum proprium”[15].
No caso dos autos, não se vislumbra qualquer das mencionadas situações excepcionais ou de limite, tratando-se, tão só, de extrair as consequências da declaração de nulidade, provocada intencionalmente ou, pelo menos, causada pelo recorrente que esteve na origem da inobservância da forma legalmente exigida para o negócio que celebrou com os réus, forma essa que era imposta pela certeza e segurança jurídicas e cuja nulidade se estende a todas as cláusulas contratuais, como se explicará de seguida.
Daí que não possa beneficiar do invocado abuso de direito.
2.2. Dos efeitos da nulidade
Segundo o preceituado no art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil, a declaração de nulidade tem como efeito a restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, não sendo a mesma possível em espécie, o valor correspondente.
Tem-se discutido na doutrina e na jurisprudência se deve ordenar-se a restituição das quantias em singelo ou se devem ser acrescidas de juros e a que título.
O entendimento predominante vai no sentido de serem devidos juros a partir da citação, ou da interpelação admonitória, se for anterior, por efeito da nulidade[16], e não restituição segundo as regras do enriquecimento sem causa[17].
Contra esta corrente, costuma invocar-se o carácter subsidiário da obrigação de restituir por enriquecimento sem causa, expresso inequivocamente no art.º 474.º do Código Civil, não tendo lugar nos casos previstos no n.º 1 do citado art.º 289.º.
Por outro lado, conforme resulta deste preceito, a declaração de nulidade tem eficácia retroactiva, enquanto o enriquecimento sem causa apresenta um sentido não-retroactivo e actualista, como se alcança dos art.ºs 473.º e seguintes.
Depois, não há identidade de situações entre uma inexistência da obrigação à data em que a prestação foi efectuada, característica da repetição do indevido, segundo o art.º 476.º e uma existência de qualquer excepção a excluir a eficácia da obrigação, suporte da restituição por nulidade do negócio.
Finalmente, não sendo seguro que a unidade do sistema exige que os efeitos da declaração de nulidade sejam disciplinados pelas regras da repetição do indevido, prescritas nos art.ºs 476.º e 479.º a 481.º, a história do n.º 1 do art.º 289.º demonstra que essa solução não foi querida no nosso ordenamento jurídico.
Porque a declaração de nulidade do mútuo por vício de forma opera retroactivamente, deve ser restituído todo o capital mutuado (art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil).
Contudo, por força da remissão operada pelo n.º 3 deste normativo para o preceituado nos artigos 1269.º e seguintes do mesmo diploma, a obrigação de restituir abrangerá não só o capital mutuado, mas também uma quantia equivalente ao montante dos juros de mora à taxa legal a contar da citação (ou da interpelação admonitória se esta tiver tido lugar), como frutos civis que são (art.ºs 289.º, 1270.º, n.º 1, e 212.º, todos do Código Civil), sendo que vale como interpelação a citação judicial para a acção[18].
O possuidor de boa fé faz seus os frutos até ao dia em que souber que se encontra a lesar com a sua posse o direito de outrem (art.º 1270.º, n.º 1), o que normalmente só acontecerá com a citação do réu, uma vez que a citação judicial faz cessar a boa fé nos termos do art.º 564.º, al. a), do CPC.
A posse de má fé, como acto ilícito que é, constitui o possuidor na obrigação de indemnizar, devendo, desde logo, restituir, pelo menos, os frutos civis que um proprietário medianamente diligente poderia ter obtido (cfr. art.º 1271.º do Código Civil), sendo que o conceito de frutos civis nos é fornecido pelo art.º 212.º do mesmo diploma legal.
Por outro lado, tratando-se de uma obrigação pecuniária, a indemnização corresponde aos juros legais a partir do dia da constituição em mora (art.ºs 804.º, 805.º, n.º 1 e 806.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil).
Consta dos factos dados como provados sob a alínea P) que os réus foram interpelados, por diversas vezes, para restituir o capital mutuado, após 5/12/2005, e que nada mais pagaram.
Não se diz quando ocorreram tais interpelações.
No entanto, o pagamento acordado não seria devido antes de 6/3/2006, por ser essa a data de vencimento aposta na letra emitida e sacada aquando da 4.ª reforma da letra inicialmente emitida para pagamento da quantia mutuada (cfr. als. B e M dos factos provados).
Nessa altura, os réus tinham pago ao autor a quantia de 9.000,00 €, sendo 8.000,00 € a título de restituição do capital mutuado (cfr. alíneas I, K e N dos factos provados) e 1.000,00 que o autor imputou nos juros e despesas que havia suportado e que haviam convencionado (al. O).
Esta imputação não se nos afigura correcta, porquanto a nulidade e o efeito retroactivo do vício estendem-se a todo o conteúdo do contrato de mútuo, incluindo os juros, as despesas e os encargos nele convencionados[19], pelo que os referidos 1.000,00 € também devem ser imputados no capital mutuado.
Assim, em 6/3/2006, os réus deviam ao autor a quantia de 13.740,00 € (= 22.740,00 – 9.000,00).
Como os réus foram interpelados a pagar essa quantia e, não obstante ser por eles devida, se recusaram a restituí-la, tornaram-se “possuidores” de má fé, a partir da data do vencimento da última letra, constituindo-se, assim, na obrigação de indemnizar o autor pelo valor correspondente aos frutos civis, pelo que terão de pagar juros de mora à taxa legal sobre o montante a restituir desde aquela data, por ser a partir daí que cessou a boa fé, por força do disposto nos citados art.ºs 212.º, 1270.º e 1271.º, aplicados por analogia, como manda o n.º 3 do referido art.º 289.º[20].
Deste modo, os juros de mora são devidos a partir de 6/3/2006, como sustenta o apelante, e não a partir da citação, como decidiu a sentença.
Procede, por conseguinte, nesta parte, a apelação.
Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
1. Só em casos excepcionais ou de limite, a apreciar casuisticamente, poderá ser configurado o abuso de direito na invocação de nulidade por inobservância da forma legal de um negócio jurídico.
2. A invocação do abuso de direito não pode redundar em mero instrumento de convalidação de um negócio que a lei declara nulo por falta de forma legal.
3. A nulidade e o seu efeito retroactivo estendem-se a todo o conteúdo do contrato, incluindo a taxa de juros, despesas e encargos convencionados.
4. Porém, anulado o contrato de mútuo por falta de forma legal, a restituição abrange não só a quantia mutuada, mas também os juros de mora a partir da citação ou da interpelação extrajudicial para pagamento, se ela tiver ocorrido em data anterior, podendo coincidir com a data acordada para a restituição.
5. Estes juros correspondem aos frutos civis e são devidos pelo mutuário enquanto possuidor de má fé da quantia não restituída.
III. Decisão
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e altera-se a sentença recorrida, condenando-se os réus a pagar ao autor a quantia de 13.740,00 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 6/3/2006 até integral pagamento.
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Custas pelo apelante e pelos apelados na proporção do respectivo decaimento.
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Porto, 24 de Fevereiro de 2015
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
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[1] No nosso acórdão de 18/6/2013, processo n.º 9605/11.3TBVNG.P1.
[2] Actualmente, este artigo continua a exigir escritura pública ou documento particular autenticado, dispondo que “Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a 25.000 euros só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a 2.500 euros se o for por documento assinado pelo mutuário.” (redacção do DL n.º 116/2008, de 4 de Julho, vigente a partir de 1/1/2009).
[3] A qual também é de conhecimento oficioso (art.º 286.º do Código Civil), como se refere no pedido, ainda que impropriamente, na medida em que, sendo pedida a sua declaração pelo interessado, deixa de ser oficiosamente conhecida.
[4] Cfr., por todos, o de 10/7/2013, processo n.º 821/10.6TVPRT.P1, in www.dgsi, de 19/11/2013, processo n.º 1857/09.5TJVNF.S1.P1 e de 17/6/2014, processo n.º 148/11.6TBMSF.P1, no mesmo sítio da internet, que aqui reproduzimos nesta parte.
[5] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 296, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536.
[6] Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171.
[7] Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 30/11/95, na CJ – STJ - ano III 20/5/97, tomo III, pág. 132, de 20/5/97, no BMJ n.º 467.º, pág. 557 e de 25/11/99, CJ – STJ -, ano VII, tomo III, pág. 124; da RL de 29/1/98, na CJ, ano XXIII, I, 103 e da RE de 23/4/98, CJ, XXIII, II, 278.
[8] In Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, 2.ª edição, pág. 247.
[9] Cfr. acórdão do STJ de 15/1/2013, no processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, in www.dgsi.pt.
[10] Cfr., ainda, o mesmo autor, no Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, 2.ª reimpressão, pág. 292, onde menciona as mesmas quatro proposições para a concretização da confiança.
[11] Citado acórdão de 15/1/2013.
[12] Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 7.ª ed., pág. 239.
[13] Cfr. acórdão do STJ de 4/6/2013, processo n.º 994/05.0TBCNT.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[14] Cfr. acórdão do STJ de 28/2/2012, processo n.º 349/06.8TBOAZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[15] Cfr. acórdão do STJ, de 30/10/2003, processo n.º 03B3125, no mesmo sítio da intetrnet.
[16] Cfr., entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao citado art.º 289.º no Código Civil Anotado, Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 2.ª ed., I, 115 e 116, Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 475 e Galvão Teles, in Direito das Obrigações, 3.ª ed., pág. 139, e acórdãos do STJ de 28/11/2002, processo n.º 02B3454, de 18/9/2003, processo n.º 03B2325 e de 27/5/2010, processo n.º 148/06.8TBMCN.P1.S1, ambos in www. dgsi.pt, e acórdão da RC de 10/2/87, CJ, ano XII, tomo I, pág. 58
[17] Neste último sentido, pode ver-se Vaz Serra, para quem “as prestações efectuadas em cumprimento de um negócio nulo ou anulável (e depois anulado) são prestações indevidas; por conseguinte, a sua restituição é uma restituição do indevido, prevista no art.º 476.º e regulada nos seus efeitos pelos art.ºs 479.º a 481.º” (todos do C. Civil), pelo que, tratando-se de uma restituição em numerário, o seu montante deverá ser actualizado (cfr. RLJ ano 108º, pág. 71).
[18] Cfr. os Acórdãos do STJ de 23/11/99, in Proc. 897/99-1ª Sec e de 8/11/01, in Proc 2895/01-7ª Sec, citados no referido acórdão de 18/9/2003, processo n.º 03B2325.
[19] Neste sentido, o citado acórdão do STJ de 18/9/2003 e o acórdão do STJ de 17/3/2005, processo n.º 05B499, disponível em www.dgsi.pt.
[20] Neste sentido, o acórdão do STJ de 13/5/2004, processo n.º 04B661, acessível em www.dgsi.pt.