CULPA
CULPA DO LESADO
CULPA DO SINISTRADO
CULPA GRAVE
RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
Sumário

I - Age com culpa o condutor ultrapassante que inicia a ultrapassagem sem se certificar previamente da existência de circunstâncias objectivas que permitam realizá-la sem pôr em causa a segurança do tráfego.
II - Age também com culpa o condutor ultrapassando que não faculta a ultrapassagem, desviando-se o mais possível para a direita (nos casos em que a ultrapassagem se faz pela esquerda) enquanto aquela não se tiver completado.
III - A partir do momento em que começa a ser ultrapassado o condutor ultrapassando deve facultar a ultrapassagem.
IV - Deve qualificar-se de grosseira a culpa do arguido que faz uma ultrapassagem violando as normas de cuidado.
V - Verificando-se a situação indicada nos números anteriores e sendo os veículos ultrapassado e ultrapassante uma bicicleta sem motor e uma motorizada, respectivamente, são de graduar as culpas em 1/3 e 2/3.
VI - A indemnização, porque a responsabilidade é delitual, não está sujeita aos limites do artigo 508 do CC.

Texto Integral

Acordam, na Relação de Lisboa:
No processo comum n. 573/93.2TB.CLD - primeiro Juízo, da Comarca das Caldas da Rainha, o Ministério Público acusou o arguido, (J), imputando-lhe a autoria das contravenções p. p. pelos artigos 7, ns. 1 e 2, b), e 10, ns. 2 e 5, do Código da Estrada de 1954 - que viriam a declarar-se amnistiadas -, e de um crime de homicídio negligente, p. p. pelo artigo 59, b) - primeira parte, do mesmo código.
Na qualidade de viúva e filho e de únicos herdeiros da vítima - (A) -, (D)a e (E) deduziram pedido cível contra a "Companhia de Seguros Fidelidade, SA".
Realizado o julgamento, o arguido foi absolvido da acusação-crime e, por ter sido julgado parcialmente procedente o pedido cível, a "Fidelidade" foi condenada a pagar aos autores, a quantia de 2420000 escudos, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais e patrimoniais já apurados, e, ainda, o montante dos "danos patrimoniais sofridos que se vierem a liquidar em execução de sentença como os lesados pediram".
Inconformados, recorrem:
I - A Digna. Magistrada do Ministério Público, da decisão da questão criminal, concluindo a motivação, como segue (transcrição):
"1 - Os factos provados apurados em audiência de julgamento conduzem necessariamente à condenação do arguido;
2 - Ao não o fazer o Mmo. Juiz violou o disposto no artigo 59 do CE;
3 - Este, porém, não tem já aplicação por ter sido revogado com a entrada em vigor do Dl 114/94.
4 - Pelo que a sentença ora recorrida deverá ser alterada por outra que condene o arguido (J) pela prática do crime previsto e punido pelo artigo 136, n. 2 do CP;
5 - Na pena de um ano de prisão efectiva que consideramos ajustada ao caso concreto;
6 - A qual deverá ser totalmente perdoada ao abrigo do disposto no artigo 8 alínea d) da Lei 15/94 de 11/5.
7 - Assim, a sentença recorrida deverá ser alterada e substituída por outra, que absolva o arguido".
Na resposta, o arguido pugna pela manutenção do recorrido.
II - A "Companhia de Seguros Fidelidade, SA", da decisão da questão cível, concluindo a motivação, como segue (transcrição):
"a) a douta sentença ora sob recurso absolveu o arguido por entender que se não tinha provado a culpa deste no acidente a que os autos se reportam; b) mas entendeu, igualmente, que não se encontrava provada a culpa da vítima pelo que graduou, e bem, em 1/3 para esta e 2/3 para o arguido a contribuição causal de cada um dos intervenientes para o acidente; c) e, por isso, ficou a indemnização a pagar aos demandantes em Esc. 2420000 acrescida do montante correspondente "aos danos patrimoniais sofridos que se vierem a liquidar em execução de sentença"; d) tal condenação foi, obviamente, proferida com base na responsabilidade civil pelo risco, o que é perfeitamente legítimo, face ao disposto nos artigos 82 e 377 do Código de Processo Penal; e) simplesmente, por força do disposto no artigo 508 do Código Civil, tal responsabilidade está limitada a Esc. 4000000; f) daí que, da douta sentença recorrida, deve expressamente constar que a quantia a liquidar em execução de sentença não pode exceder a diferença entre o montante já liquidado de Esc. 2420000 e os Esc. 4000000 que resultam da limitação legal para a responsabilidade civil pelo risco; g) não o entendendo assim a douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 483, 506, 508 e 566 do Código Civil; h) termos em que deve conceder-se provimento ao recurso e alterar-se a douta sentença recorrida por forma a que à indemnização a liquidar em execução de sentença seja imposto, como limite máximo, a diferença que resultar da quantia já liquidada de Esc. 2420000 e a quantia de Esc. 4000000 que resulta do limite imposto pelo artigo 508 do Código Civil (...)".
Na resposta, os autores do pedido cível sustentam, em síntese, que deve ser negado provimento ao recurso, uma vez que, devendo-se o acidente a culpa do arguido, este responde "sem o limite imposto pelo artigo 508 do Código Civil".
III - Os autores do pedido cível, (D) e (E) - subordinadamente, em relação ao recurso de "Fidelidade" -, concluindo a motivação como segue (transcrição):
"a) Com base nesta matéria de facto o Meritíssimo Juiz "a quo" decidiu atribuir dois terços de responsabilidade ao arguido e um terço à vítima, enquadrando a responsabilidade do arguido e inerentemente da demandada Companhia de Seguros Fidelidade, SA no âmbito da responsabilidade civil a título de culpa nos termos dos artigos 483 n. 1 e 570 ambos do Código Civil. b) Salvo o devido e merecido respeito consideramos que a douta sentença recorrida enferma de erro de julgamento, porque interpretou erradamente a Lei e aplicou-a incorrectamente aos factos. c) Mas, em nosso entender, a actuação do velocipedista ao circular ao meio da sua metade da faixa de rodagem que lhe estava destinada, a cerca de 1,27m da berma do lado direito, atento o seu sentido de marcha, não pode ser considerada como contravencional e sobretudo não se pode considerar causal do acidente. d) Não se provou que o arguido tivesse avisado a infeliz vítima da sua intenção de o ultrapassar, pelo que também não se pode concluir que impendia sobre a vítima o dever de facilitar a manobra de ultrapassagem. e) O arguido cometeu infracção aos deveres gerais de diligência, pois não imprimiu ao seu veículo a velocidade recomendada, nem se inibiu de ultrapassar o velocípede onde circulava a vítima efectuando a manobra de ultrapassagem ao velocípede temerariamente quando se cruzava com um veículo que circulava em sentido contrário. f) E por via disso ao verificar que não podia concluir a manobra já encetada o arguido guinou para a sua direita cortando a trajectória da vítima, embatendo ainda com a parte de trás da sua motorizada na parte lateral esquerda do velocípede provocando a queda ao solo do (A) e as lesões examinadas e descritas no relatório de autópsia de fls. 20 e 22, que foram causa directa e necessária da sua morte. g) Tal factualidade provada inculca que o arguido terá infringido o disposto nos artigos 7 n. 1 e 2 alínea e), 10 ns. 1, 2, 3 e 5 do Código da Estrada), aprovado pelo decreto-lei 39672 (artigos 24, 36 e 38 do actual Código da Estrada), sendo tais transgressões causais do acidente. h) Havendo contravenção a culpa do arguido presume-se, salvo prova em contrário, conforme o decidido em douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/10/92, BMJ 320, 422 e de 06/01/87 (TJ 27-25). i) Pelo que deverá considerar-se que foi a actuação contravencional e culposa do arguido que foi causal do acidente, assacando-se ao arguido a responsabilidade exclusiva pela produção do acidente, não devendo a demandada Companhia de Seguros Fidelidade SA responder a título de risco, com os limites impostos pelo artigo 508 do Código Civil. j) Ao decidir como decidiu a douta sentença recorrida terá violado o disposto no artigo 10 ns. 1, 2, 3 e 5, e no artigo 7 ns. 1 e 2 alínea e), ambos do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei 39672 e artigos 483, 487, 506 e 508 do Código Civil e
136 do Código Penal.
1) Devendo, consequentemente, dar-se provimento ao recurso considerando que há direito dos lesados serem indemnizados com base na culpa exclusiva do arguido, condenando-se a demandada Companhia de Seguros Fidelidade, SA no pagamento aos demandantes da indemnização de 4688100 escudos.
Mas caso assim não se entenda deve referir-se: m) Mesmo que se entenda que existiu por parte do lesado conduta culposa que concorreu para a produção do acidente, deverá considerar-se, ao abrigo do disposto no artigo 570 do Código Civil, que a culpa do arguido foi determinante para a produção do acidente e conceder-se totalmente a indemnização aos demandantes condenando-se a demandada Companhia de Seguros Fidelidade, SA a pagar aos demandantes a quantia de 4688100 escudos peticionada. n) Ao decidir como decidiu a douta sentença recorrida terá violado o disposto nos artigos 483, 487 e 570 do Código Civil. o) Devendo, consequentemente, dar-se provimento ao recurso considerando-se, ao abrigo do disposto no artigo 570 do Código Civil, que a culpa do arguido foi determinante para a produção do acidente e conceder-se totalmente a indemnização aos demandantes, condenando-se a demandada Companhia de Seguros Fidelidade, SA a pagar aos demandantes a quantia de 4688100 escudos peticionada".
Na resposta, "Companhia de Seguros Fidelidade, SA" retoma, no essencial, a tese explanada na motivação do seu próprio recurso.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador da República emitiu parecer favorável ao provimento do recurso interposto pelo Ministério Público.
Notificado do teor desse parecer, o arguido respondeu sem, contudo, aditar nada de novo à sua contra- -motivação do recurso.
Corridos os vistos e realizada audiência pública, cumpre decidir.
O julgamento teve lugar perante tribunal singular.
As declarações prestadas oralmente em audiência não foram documentadas na acta, sendo certo que nem o Ministério Público nem a Defensora nem os Advogados das partes civis declararam não prescindir dessa documentação.
A falta de tal declaração vale como renúncia ao recurso em matéria de facto, pelo que a cognição desta Relação está restringida à de direito, sem prejuízo do disposto no artigo 410, ns. 2 e 3, do Código de Processo Penal (cfr. artigo 428 do mesmo código).
Matéria especificada, como factualidade provada, na sentença recorrida (transcrição):
"1 - No dia 9/10/91 cerca das 18H30m o arguido conduzia o velocípede com motor de matrícula (H) pela EN (X), Bombarral, desta comarca no sentido Bombarral - Moita dos Ferreiros.
2 - À sua frente, no mesmo sentido de marcha e junto à berma direita circulava o velocípede sem motor conduzido pelo (A) id. a fls. 2.
3 - Ao Km 14,200, a cerca de 7 metros de um entroncamento à esquerda de ambos os condutores, o arguido iniciou a passagem à bicicleta.
4 - Quando o arguido começou a ficar a par com esta avistou em sentido contrário um veículo automóvel que dele se aproximava.
5 - Entretanto a bicicleta havia-se já deslocado para cerca do meio da sua metade da faixa de rodagem sem que o arguido se tivesse apercebido de qualquer sinal, feito pelo biciclista (A), de virar à sua esquerda.
6 - Com efeito este pretendia entrar na rua que faz o referido entroncamento à esquerda e que dá acesso à residência que foi sua.
7 - Ao verificar que não podia concluir a manobra já encetada o arguido guinou para a sua direita embatendo ainda com a parte de trás da sua motorizada na parte lateral esquerda do velocípede provocando a queda ao solo do (A) e da sua bicicleta, ficando aquele com a cabeça sensivelmente a cerca de meio metro de distância do eixo da via e com as pernas voltadas para a berma direita, deixando uma mancha de sangue no solo.
8 - Em consequência da colisão o (A) (beneficiário (W) do CNP) sofreu as lesões examinadas e descritas no relatório de autópsia de fls. 20 e 22 que foram causa da sua morte.
9 - O arguido sabia que não devia iniciar a ultrapassagem ao velocípede sem se certificar de que a podia fazer sem perigo de com ele colidir na circunstância de se lhe deparar um veículo a circular em sentido contrário, como aconteceu.
10 - Fê-lo contudo temerariamente, supondo que nenhum veículo viria, arriscando, revelando assim uma manifesta falta de atenção e cuidado que lhe eram comummente exigidos na condução que efectuava omitindo assim o dever de diligência média de um "bonus pater familiae" ao levar a cabo a conduta atrás descrita que podia e devia ter evitado.
11 - O (A) que pretendia virar à sua esquerda no referido entroncamento também devia aproximar-se do eixo da via com a necessária antecedência ou então continuar a sua condução o mais próximo possível da berma da estrada de modo a não causar perigo ou embaraço para o restante tráfego.
12 - O acidente deu-se era quase noite com a iluminação pública já ligada.
13 - O velocípede do (A) trazia reflectores no guarda-lamas traseiro e nos pedais tendo sido avistado cerca de 60 metros antes pelo arguido depois deste descrever uma curva do lado do Bombarral.
14 - O local do acidente é uma recta com cerca de 100 metros de comprimento.
15 - Sensivelmente a meio dessa recta, mas mais próximo da curva do lado da Moita dos Ferreiros, e do lado esquerdo, atento o sentido de marcha de ambos os condutores, situa-se o referido entroncamento.
16 - A estrada é alcatroada e fazia bom tempo.
17 - Nenhuma testemunha inquirida presenciou o acidente.
18 - Nada consta em desabono do arguido.
19 - Este é serralheiro de profissão, sendo de modesta condição social.
20 - Tal como a vítima, (A) que era beneficiário do Centro Nacional de Pensões com o (W).
21 - O arguido conduzia a sua motorizada no seu interesse.
22 - Este havia transferido a sua responsabilidade emergente de acidentes de viação para a demandada Companhia de Seguros Fidelidade SA através da apólice n. 5473923 até ao montante de 20000000 escudos.
23 - O (A) foi nascido a 1/5/1929 e falecido a 23/10/91, com 62 anos de idade, no estado de casado no regime de comunhão geral de bens com a demandante (D).
24 - Esta e o filho de ambos, (E) são os únicos e universais herdeiros do falecido (A).
25 - Este, entre o momento do acidente e o momento da sua morte que lhe sucedeu 14 dias depois, sofreu dores e o receio da morte.
26 - Desde que casou, em 11/8/1956 com a demandante sua esposa viveram sempre na companhia um do outro.
Aquela estimava-o muito dedicando-lhe carinho e o apoio de esposa muito dedicada e amiga.
27 - O casal e o filho de ambos, (E) viviam em casas contíguas, apoiavam-
-se reciprocamente, e este nutria pelos pais amizade e dedicação, aliás, correspondia.
28 - O (A) era um marido e pai afectuoso e amigo.
29 - Os demandantes sofreram angústia e saudade pela morte do seu ente querido.
30 - (D) sofreu intensamente a morte do seu marido, ficando inconsolável.
31 - Os demandantes pagaram a quantia de 178100 escudos de despesas de funeral".
Como se afigura evidente, a decisão de qualquer dos recursos pressupõe a resolução prévia da questão da determinação das causas do acidente dos autos.
Vejamos, pois, antes do mais, as circunstâncias em que, como se provou, eclodiu esse evento.
O arguido conduzia um velocípede com motor pela estrada Bombarral - Moita dos Ferreiros e neste sentido. Depois de ter descrito uma curva e entrado numa recta que se estende por cerca de 100 metros até à curva seguinte, avistou o (A) que, conduzindo um velocípede simples e junto da berma do seu lado direito, seguia no mesmo sentido.
Percorrida pelo arguido cerca de metade da referida recta, já perto do local onde, vinda da esquerda (sentido Bombarral - Moita dos Ferreiros), uma rua entronca na estrada em que ambos circulavam, mais precisamente, a cerca de 7 metros desse entroncamento, o arguido inicia a ultrapassagem do velocípede do (A) , confiando em que não apareceria nenhum outro veículo circulando em sentido contrário.
Enquanto o arguido ia executando a sua manobra, o (A), que, no entroncamento, pretendia mudar de direcção para a esquerda, a fim de passar a circular na citada rua, começou a inflectir para esse lado, de tal modo que, quando ambos os velocípedes começavam a ficar a par, o do (A) já havia ganho o meio da sua meia-faixa de rodagem. Nesse preciso instante, surgiu um veículo automóvel aproximando-se em sentido contrário, pelo que o arguido, na impossibilidade de completar a ultrapassagem, guinou para a sua direita. Foi, então, que se verificou a colisão entre a parte de trás da motorizada e a lateral esquerda do velocípede.
A que se deve, então, o acidente?
Seguramente ao comportamento activo e concorrente de cada um dos intervenientes. Com efeito, não fosse, por um lado, a tentativa de ultrapassagem e a guinada do arguido para a direita, antes de ter passado totalmente para a frente da vítima, e, por outro, o facto de esta se ter deslocado, de junto da berma do seu lado direito para, sensivelmente, o meio da sua meia-faixa de rodagem, antes, também, de o arguido ter completado aquela manobra, e o acidente não teria ocorrido como ocorreu.
Sendo, assim, claro, do nosso ponto de vista, que ambos os condutores deram causa ao sinistro, cabe perguntar a que título se deve imputar a cada um deles a responsabilidade pela sua produção.
A título de culpa, sem a menor dúvida.
Vejamos:
Sendo a ultrapassagem, por razões óbvias, uma das manobras que mais potenciam os perigos do trânsito rodoviário, corresponde à mais elementar regra de cuidado, a exigência de que:
- O condutor ultrapassante, se certifique, previamente, da existência de circunstâncias objectivas que a permitam realizar, completamente, sem pôr em causa a segurança do tráfego e que só a inicie quando se assegurou, efectivamente, de que tais circunstâncias se verificam (v. artigos 10, n. 2, do CE/1954 e 38, n.s 1 e 2, alíneas a) e b), do actual CE);
- O condutor ultrapassando faculte a ultrapassagem, desviando-se o mais possível para a direita (nos casos, como o presente, em que aquela se deve fazer pela esquerda) enquanto aquela se não tiver completado
(v. artigos 10, n. 4 do CE/1954 e 39 do actual CE).
Ora, o arguido decidiu iniciar a ultrapassagem, não porque se tivesse certificado de que as condições de trânsito e de espaço livre que se lhe ofereciam lhe permitiam realizá-la, completamente e em segurança, mas, sim, porque confiou em que, entretanto, não se aproximasse nenhum outro veículo circulando em sentido contrário. Como é bem de ver, confiou, erradamente, no que não devia confiar, uma vez que o inquestionável dever de previsibilidade da circulação de trânsito em sentido contrário, para além da curva que se lhe deparava mais à frente, lhe impunha, precisamente, que não confiasse em que ela se não verificaria.
Enfim, decidindo-se por uma ultrapassagem que não sabia se poderia vir a executar totalmente em segurança, deixando esta, na prática, ao sabor do acaso, o arguido violou, grosseiramente, a referida norma de cuidado ou diligência que, na situação objectiva que se lhe apresentava, lhe impunha, antes, indubitavelmente, se abstivesse de ultrapassar. (Cumpre esclarecer que, configurando-se a guinada do arguido para a direita, antes de completada a ultrapassagem, como manobra de recurso destinada a evitar o automóvel que apareceu a circular em sentido contrário, se entende que ela, sendo ainda consequência da ultrapassagem indevida (desde o primeiro momento), não constitui violação autónoma de um segmento não citado da norma de cuidado a observar nas ultrapassagens (qual seja, a de o condutor ultrapassante só poder retomar a sua direita depois de se certificar de que daí não resulta perigo para o veículo ultrapassado - v. artigos 10, n. 3 do CE/54 e 38, n. 2, b), do actual CE). Registe-se, ainda, que a velocidade que o arguido imprimia à motorizada - cujo valor absoluto não se apurou -, se foi determinante do acidente, não o terá sido por ser (relativamente) excessiva; com efeito, por um lado, não se provou que o arguido tenha ficado impedido de realizar qualquer outra manobra, eventualmente adequada a evitar o acidente, só porque a velocidade a que seguia não consentia a sua realização, e, por outro, fica até a ideia de que, se fosse um pouco mais rápida a sua marcha, a colisão até poderia não ter acontecido).
Por seu lado, a vítima, (A) - que não podia ter deixado de se aperceber da presença do arguido, em virtude, pelo menos, do ruído característico das motorizadas (tanto mais quanto aquele chegou a estar, praticamente, a par de si) - desviando-se de junto da berma da sua direita para o meio da sua meia- -faixa de rodagem, antes de ter sido completamente ultrapassado, fez, também, precisamente o que, de acordo com a regra de cuidado que lhe cumpria observar, lhe estava vedado fazer. Na violação dessa norma se consubstancia a sua culpa. (Aqui, deve notar-se que, face à dinâmica que se provou ter sido a do acidente, o eventual sinal de mudança de direcção para a esquerda (que não se provou ter sido feito em nenhum momento), pela vítima, só teria o efeito relevante considerado na sentença recorrida, se ocorresse em momento razoavelmente anterior àquele em que o arguido iniciou a ultrapassagem. É que, a partir do momento em que começou a ser ultrapassado, ao (A) já não era lícito fazer mais do que facultar aquela manobra, nos termos atrás referidos, pelo que, mesmo que, entretanto, sinalizasse aquela que ele próprio se propunha executar em seguida, sempre teria manter-se a circular junto da berma do seu lado direito enquanto a ultrapassagem não estivesse concluída).
Assente, pois, que arguido e vítima deram, conjunta e culposamente, causa ao acidente - na medida em que ambos se movimentaram para o ponto de colisão, infringindo as regras de cuidado que a cada um deles se impunha observar, e na medida em que os comportamentos prescritos por tais regras são os adequados a evitar acidentes como o dos autos -, há que quantificar as respectivas responsabilidades.
Ora, atendendo a que foi o arguido quem desencadeou o processo do sinistro (iniciando e executando a ultrapassagem até a um ponto tal que pode ter levado a vítima, descuidadamente embora, a confiar em que ele não deixaria de a completar), julga-se correcto, como decidiu o Mmo. Juiz "a quo", fixar em 2/3 e 1/3, respectivamente, a responsabilidade daquele e da vítima pela produção do acidente.
Resolvida a questão básica, comum aos três recursos, é altura de os conhecermos, um por um, no que de especificadamente suscitam.
I - Da decisão da questão criminal:
Recorre, unicamente, o Digno. Magistrado do Ministério Público, insurgindo-se com a absolvição do arguido.
Com toda a razão.
O Mmo. Juiz "a quo", se bem interpretamos a sentença,
- depois de atribuir o acidente às condutas concorrentes do arguido e da vítima (com infracção, a do primeiro, do disposto no artigo 10, ns. 2, 3 e 5, do CE/54, e, a do segundo, das normas dos artigos 11 e 38, n. 4, do mesmo código) e de referir, também, expressamente, a existência de um processo causal composto ou bilateral - incorreu no erro de confundir, equiparando-as, "culpa causal" e "culpa exclusiva".
(É sintomático que, a propósito de ter ou não a vítima feito, com a devida antecedência, o sinal de que pretendia mudar de direcção para a esquerda, tenha dito que, se os "lesados e acusação pública" tivessem feito a prova positiva desse facto, "a culpa recairia inteira no arguido" (sublinhado nosso), para, depois, vir a escrever: "Se concretizado seria de imputar a culpa causal ao arguido. Se não concretizado já não o será" (sublinhámos)). Daí que, apesar de reconhecer que coube "ao arguido alguma culpa pela verificação do acidente", venha a decidir-se pela absolvição, apenas, por não se ter provado um facto que, a ter ocorrido, levaria a imputar a produção do acidente à sua culpa exclusiva; ou seja, o Mmo. Juiz "a quo" entendeu que, por não ser exclusiva, a culpa do arguido não poderia considerar-se causal do acidente e, consequentemente, da morte da vítima, pelo que aquele não poderia ser condenado pelo crime de que vinha acusado.
A insustentabilidade de uma tal tese é manifesta, já que, concluindo-se, como não pode deixar de concluir-se, face à factualidade provada, que foi culposamente causado pelo arguido o acidente de que resultaram, para o (A), lesões que foram causa directa da sua morte, aquele tem de considerar-se autor material de um crime de homicídio por negligência, mesmo que, como é o caso, para a produção do sinistro tenha concorrido a conduta culposa da vítima.
A ultrapassagem feita com violação da norma de cuidado atrás referida é uma manobra particularmente perigosa, devendo, por isso, qualificar-se de grosseira a culpa do arguido, pelo que este cometeu, efectivamente, um crime p. p. pelo artigo 136, n. 2, do Código Penal de 1982. (A inaplicabilidade do artigo 59, b), do CE/54, decorre da revogação deste, por força do disposto no artigo 2 do DL n. 114/94, de 3 de Maio; e a do artigo 137, n. 2, do Código Penal, na versão decorrente da revisão do DL n. 48/95, de 15 de Março, do preceituado no artigo 2, n. 4, do mesmo diploma).
O arguido, de 29 anos de idade, é casado, serralheiro e de modesta condição social. Nada consta em seu desabono.
Para o acidente, ocorrido já há quatro anos, contribuiu, na proporção de 1/3, a conduta da própria vítima, também de modesta condição social, casado e, então, com 62 anos de idade.
Assim, sendo o crime punível com pena de prisão até 3 anos, julga-se que, ponderados os factores especificados, o grau de culpa do arguido e as exigências da prevenção, em particular da prevenção geral positiva, a pena deve ser concretamente fixada em 8 meses de prisão.
Aplicar-se-à o perdão do artigo 8, n. 1, d), da Lei n. 15/94, de 11 de Maio, dado não se verificar nenhuma das situações impeditivas previstas no artigo 9, ns. 2 e 3, do mesmo diploma.
II - Da decisão da questão cível:
A) Recurso da Companhia de Seguros Fidelidade SA:
Com fundamento em que a condenação no pagamento da indemnização aos demandantes foi, "obviamente", proferida com base na responsabilidade civil pelo risco", a recorrente entende que a sentença recorrida deve ser alterada "por forma a que à indemnização a liquidar em execução da sentença seja imposto, como limite máximo, a diferença que resultar da quantia já liquidada de Esc. 2420000 escudos e a quantia de Esc. 4000000 escudos que resulta do limite imposto pelo artigo 508 do Código Civil".
Perante o que ficou decidido sobre as causas do acidente, não há margem para qualquer dúvida de que a responsabilidade do arguido pelos danos causados decorre de, com culpa, ter violado ilicitamente os direitos de outrem (cfr. artigo 483, n. 1, do Código Civil). (Na sentença recorrida, apesar da absolvição crime - fruto do referido equívoco, sobre o qual, aliás, a recorrente apoiou toda a sua tese -, estão bem expressos não só o entendimento de que "quanto ao aspecto indemnizatório", o acidente se ficou a dever a culpas concorrentes de arguido e vítima, na proporção de, respectivamente, 2/3 e 1/3, mas também a própria decisão do pedido cível, em total conformidade com esse mesmo entendimento:
"Relativamente ao pedido cível terá o mesmo de ser julgado em parte procedente e em parte improcedente em face dos factos apurados da proporção da concorrência de culpas supra referida que se nos afigura ajustada e do disposto nos artigos 483 n. 1 e 570 do CC (...)" (nosso, o sublinhado)).
Logo, sendo delitual a responsabilidade do arguido, segurado da recorrente, a indemnização a cujo pagamento está obrigado não está sujeita ao limite máximo fixado no artigo 508 do CC, uma vez que este só se aplica às indemnizações fundadas em acidentes de viação em que não há culpa do responsável.
Este recurso improcede, pois, inteiramente.
B) Recurso (subordinado ao anterior) dos demandantes cíveis:
Sustentam os recorrentes que a sentença deve ser revogada e substituída por outra que condene Companhia de Seguros Fidelidade a pagar-lhe toda a indemnização pedida, em virtude de a produção do acidente se ter devido a culpa exclusiva ou, pelo menos, "determinante" do arguido.
Do nosso ponto de vista, não têm razão.
Com efeito, pelos motivos expostos, a decisão de atribuir a responsabilidade pela produção do sinistro,
às culpas concorrentes de arguido e vítima, na proporção de, respectivamente, 2/3 e 1/3, foi, já o dissemos, correcta. (Agora, cumprirá acrescentar, tão somente, que, a alegação, pelos recorrentes, de que o arguido efectuou a ultrapassagem quando se cruzou com o veículo que circulava em sentido contrário - que, até, teria avistado antes de iniciar aquela manobra - não passa de uma mera suposição que a factualidade provada não suporta).
Logo, não sendo exclusiva a culpa do arguido nem insignificante a da vítima, não pode deixar de se considerar, igualmente, correcta, a decisão de, nos termos do artigo 570, n. 1, do CC, condenar a demandada no pagamento de uma indemnização correspondente ao valor dos danos sofridos pela vítima e demandantes reduzido de 1/3.
Improcede, pois, também, este recurso.
Termos em que, dando provimento ao recurso do Ministério Público e negando-o aos interpostos pela demandada e demandantes cíveis, acordam em:
1 - Revogar a sentença, no que à decisão da questão criminal concerne, condenando o arguido, (J), pela autoria material de um crime de homicídio involuntário, p. p. pelo artigo 136, n. 2, do Código Penal de 1982 (na versão anterior à revisão de 1995), na pena de 8 (oito) meses de prisão que, por força do disposto no artigo 8, n. 1, d), da Lei n. 15/94, de 11 de Maio, se declara integralmente perdoada.
2 - Confirmar a sentença recorrida no que respeita
à decisão da questão cível.
Taxa de justiça, de 2 (duas) UC's, pelo arguido, por ter decaído na oposição ao recurso do MP.
Custas, pelas recorrentes - Companhia de Seguros Fidelidade SA, por um lado, e (D) e (E), por outro - na proporção do respectivo decaimento.
Processado e revisto pelo relator, que rubrica as restantes folhas.
Lisboa, 14 de Fevereiro de 1996.