PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
LEGITIMIDADE
ACÇÃO POPULAR
CONSUMIDOR
DEFESA
ASSOCIAÇÃO
INTERESSES DIFUSOS
Sumário

A DECO (Associação Portuguesa para defesa do consumidor) tem apenas e tão só a possibilidade de intervir como assistente nos processos em que o MP tem intervenção principal nas acções cíveis tendentes
à tutela dos interesses dos consumidores, não tendo legitimidade para, ela própria, propor tais acções.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1 - Relatório
A "Associação Portuguesa Para A Defesa Do Consumidor - DECO" -, com sede na Av. Defensor de Chaves, n. 22, 1, Lisboa, intentou, no tribunal cível da comarca de Lisboa, a presente acção ordinária contra
"Portugal Telecom, S.A., com sede na Av. Fontes Pereira de Melo, n. 40, Lisboa, pedindo que a R. seja condenada a indemnizar todos os lesados que foram vítimas da violação contratual denunciada e que, em fase de liquidação, comprovem o seu direito.
Em suma, a A. veio alegar que tinha chegado ao seu conhecimento que, a partir dos meses de Outubro/Novembro de 1994, a R., sem qualquer aviso aos seus clientes, passou a cobrar, pelo mesmo período de tempo, o valor correspondente a duas assinaturas mensais dos telefones que pôs à disposição, mediante contrato de fornecimento celebrado, prática essa que, em seu entender, representa uma alteração unilateral das condições contratuais.
Defendeu, por outro lado, que tinha legitimidade para a presente demanda face ao disposto nos arts. 12, n. 2 e 13 da Lei n. 29/81, de 22 de Agosto e nos arts. 52, n. 3 e 18, n. 1 da CRP.
Mais disse, em abono da sua tese, que qualquer interessado individualmente sempre poderia intervir como parte principal.
Concomitantemente, pediu que lhe fosse concedido o benefício do apoio judiciário, atento o disposto nos art. 13, n. 1, al. i) da Lei supra citada e 20 do DL 387/87, de 29 de Dezembro.
O M. Juiz do 6 Juízo - a quem a acção foi distribuída - indeferiu in limine a petição por manifesta ilegitimidade da A., de acordo com o art.
474, n. 1, al. b) do CPC, absolvendo, assim, a R. da instância e, ao mesmo tempo, indeferiu o pedido de apoio judiciário.
Considerou o Sr. Juiz no seu douto despacho que, face ao disposto na Lei Fundamental, "o direito de acção popular não é dos tais direitos directamente aplicáveis, pois....ela só existe na medida em que a lei ordinária o regulamentar".
Ponderou, por outro lado, que, da conjugação dos art. 12 e 13 da Lei 29/81 só é legítimo concluir que a A. tem legitimidade para intervir como parte assistente nas acções intentadas pelo MP como parte principal, acções essas tendentes à tutela dos interesses colectivos dos consumidores.
Dessa forma - concluiu o seu raciocínio - à DECO caberá sensibilizar o MP para, em defesa dos interesses legítimos dos consumidores, propor acção indemnizatória cível e só nessa acção poderá intervir como assistente.
Não concordando com tal decisão, a A. agravou para este Tribunal, pedindo a revogação do despacho em crise e a sua substituição por outro que a considere como parte legítima na presente acção, tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões:
1 - Com a revisão da Constituição em 1989, os direitos dos consumidores ganharam dignidade constitucional como direitos fundamentais de natureza económica;
2 - Entre esses direitos, consagrados constitucionalmente, há alguns que constituem direitos dotados de eficácia imediata, que exigem, nomeadamente, uma protecção jurídica própria: é o caso do direito
à reparação dos danos, quer individuais, quer colectivos;
3 - Existem casos, como o dos autos, em que os interesses tutelados não estão imediatamente encabeçados por pessoas individualmente consideradas, mas pertencem antes a uma generalidade indeterminada de pessoas, designadamente de consumidores ou utilizadores - os chamados interesses difusos;
4 - Todas as ordens jurídicas dos países ocidentais reconhecem esses interesses e tutelam os direitos inerentes, conferindo legitimidade processual activa a grupo de cidadãos ou associações deles representantes, para a sua defesa em juízo;
5 - A ordem jurídica portuguesa não é excepção - a acção popular está prevista no art. 52 da Constituição;
6 - A decisão recorrida aplicou erradamente os preceitos dos arts. 52 e 60 da Constituição e os arts. 10, n. 3, al. h) da Lei 29/81, de 22 de Agosto;
7 - Por mera cautela, havia, na sua petição inicial, aberto a porta, desde logo, à intervenção principal de todos quantos se mostrassem com interesse próprio directo e imediato na causa, pretendendo, assim, suprir uma eventual ilegitimidade sua, "fazendo intervir todos aqueles a que fosse reconhecida a legitimidade nos termos clássicos dos art. 26 e segs. do CPC, tendo para tanto requerido todos os lesados da sua conduta ilegal, o que bastaria para que o Mmo Juiz não pudesse, em caso algum, e antes de esgotado este meio, ter indeferido liminarmente a petição.
Juntou vária documentação e, entre ela, parte de um parecer fotocopiado cuja autoria é atribuída ao Prof. Doutor Miguel Teixeira de Sousa (cfr. fls. 214 e ss.).
A agravada apresentou também alegações, pedindo a improcedência do agravo e concluindo que:
- Em causa não estão interesses difusos, mas sim interesses colectivos;
- Não estamos, pois, perante a acção popular do art. 52 da Constituição;
- Por isso, a legitimidade da DECO tem de aferir-se tão-só em face da lei ordinária, mormente da Lei n. 22/81, de 22 de Agosto;
- Nos termos conjugados dos art. 13, al. h) e 10, n. 3 desta Lei, a DECO carece de legitimidade para intentar ou ser parte principal na presente acção.
O Mmo. Juiz manteve a sua decisão.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - Quid iuris?
A questão que aqui se põe é somente esta: tem ou não a agravante legitimidade activa para a presente acção?
Como se sabe, de acordo com o disposto no art. 26, n. 1 do CPC, o A. é parte legítima quando tem interesse directo em demandar.
A parte terá legitimidade como A. se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista: é o que ensina v.g. Antunes Varela e Outros, in Manual de Processo Civil, pág. 129.
Ora, como bem salienta o Mmo. Juiz a quo no despacho recorrido, da conjugação dos arts. 13, al. h) e 10 da Lei 29/81, resulta que a A., enquanto associação de consumidores, tem apenas e só a possibilidade de intervir como assistente nos processos em que o MP tem intervenção principal nas acções cíveis tendentes à tutela dos interesses colectivos dos consumidores.
Ser assistente é ser auxiliar de uma parte em relação à qual tem interesse jurídico em que a decisão seja favorável (cfr. art. 335, n. 1 do CPC).
Como salienta o Conselheiro Lopes Cardoso, "o assistente não prossegue nem defende um direito próprio; propugna ou defende o assistido" (in Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, pág. 137).
O legislador, nos casos de violação de interesses colectivos dos consumidores, entregou a defesa dos mesmos ao MP; sem dúvida que a opção é boa.
E, reconhecendo o papel decisivo que as associações dos consumidores, têm - têm de ter cada vez mais - na sociedade dita pós-industrial, cada vez menos personalizada e mais massificada, não deixou de reconhecer o papel importante que lhes cabe, auxiliando o MP na superior e digna tarefa de defesa da legalidade (cfr. art. 221, n. 1 da CRP).
O art. 52 da Lei Fundamental consagra o direito de todos os cidadãos de apresentarem, individual ou colectivamente, aos órgãos de soberania ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral.
Comentando este preceito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 279 - 3 edição - consideram duvidoso que tais petições propriamente ditas, possam ser dirigidas aos tribunais, já que tal é incongruente como princípio da independência dos tribunais.
E os mesmos consagrados constitucionalistas fazem notar que o objecto da acção popular é, antes de mais, a defesa de direitos difusos, "pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadão uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses".
Fazem mesmo a distinção clara, no feixe de interesses que converge ou pode convergir sobre determinado bem, entre:
- Interesse individual - ou seja o direito subjectivo ou interesse específico de um indivíduo;
- Interesse público ou interesse geral, subjectivo como interesse próprio do Estado e dos demais entes territoriais, regionais ou locais;
- Interesse difuso, isto é a refracção em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada; e
- Interesse colectivo, isto é, interesse particular comum a certos grupos e categorias.
Também a agravada, aproveitando as fotocópias do parecer supra citado, não deixa de sublinhar que há uma grande diferença entre interesses difusos e interesses colectivos.
Estes últimos não possuem um único titular, mas uma pluralidade de titulares; ao contrário, naqueles a titularidade dos interesses colectivos encontra-se determinada ou circunscrita, ainda que apenas em função de uma determinada situação de facto.
Num profundo estudo sobre o tema em análise - Interesses Difusos e Legitimidade Processual, in Revista do Ministério Público, Direitos Fundamentais do Cidadão - Da Lei À Realidade - III Congresso do MP - 1990 - Caderno n. 5, pág. 223 e ss. - o Dr. João Correia, depois de a definir interesses difusos ("são aqueles interesses ou situações jurídicas que pertencem com a mesma identidade, a uma pluralidade de sujeitos, determinável ou indeterminável, eventualmente unificada mais ou menos estreitamente com uma colectividade e que têm por objecto bens não susceptíveis de apropriação exclusiva"), chega mesmo a elucidar que há quem defenda que os interesses difusos não têm portador e, por isso mesmo, Giannini afirma que "no dia em que o interesse difuso encontrar um portador, torna-se colectivo", demonstra que a acção popular, consagrada no art. 52 da Constituição, não está regulamentada e diz mesmo que os instrumentos judiciais adequados para intervir judicialmente não existem e, bem pelo contrário, desaconselham qualquer aventura processual.
E defende a sua tese com os seguintes argumentos:
1 - A acção popular não está regulamentada;
2 - A legitimidade processual pressupõe um interesse directo em demandar, ou seja, exige que o A. tenha uma utilidade derivada da procedência da acção, o que é inadequado à natureza dos interesses difusos;
3 - A inexistência de qualquer previsão legal sobre a acção do MP nesta área, razão pela qual este órgão deverá ser obrigatoriamente titular do direito de agir nas acções de tutela dos interesses difusos;
4 - As acções e tutela dos interesses difusos pressupõem ou exigem a fungibilidade da própria legitimidade processual: a natureza dos interesses a prosseguir impelem os tribunais para a admissibilidade da marcha processual se processar independentemente da diligência do A., cabendo ao MP ou a qualquer membro da sociedade envolvida, assegurar a prossecução do processo até que seja proferida uma decisão;
5 - Há que indagar se é imperioso criar um tipo especial de processo ou, se pelo contrário, são suficientes os meios processuais comuns, devendo-se reconhecer que as acções de tutela dos interesses difusos têm mais a natureza de procedimentos cautelares do que de verdadeiras acções declarativas e que a decisão a tomar pelo tribunal tem uma feição marcadamente inibitória, as mais das vezes impondo uma conduta abstencionista;
6 - Uma outra dificuldade prende-se com o efeito do caso julgado: por exemplo, não se compreende como poderia um simples cidadão, agindo por si, obter uma decisão que vinculasse a sociedade onde ele se insere;
7 - Não é suficiente a adequação do direito adjectivo civil à tutela dos interesse difusos;
8 - As relações advogados-clientes, por um lado, e o seu estatuto, por outro, não vocacionam a Advocacia para a tutela destes interesses.
Na mesma Revista outros estudos aprofundados sobre o tema acabam por permitir chegar à conclusão que a defesa dos interesses difusos deve caber de forma privilegiada ao MP ou, no mínimo, subordinada à sua acção - vide João Pereira Reis, in Direito Ao Ambiente - Interesse Difuso ou Direito Subjectivo, pág. 183 e ss., Carlos Lopes Rego - Reflexos Imediatos da Consagração Constitucional Do Direito De Acção Popular No Âmbito Da Jurisdição Civil, pág. 203 e ss., José Manuel Meirim, in A Tutela Dos Interesses Difusos - A Acção Popular e o Papel Do Ministério Público, pág. 209 e ss., (onde é sublinhada a diferente atitude do legislador em relação às associações de defesa de consumidores no que tange
à sua posição processual face ao DL 29/85, em que lhes atribui apenas o estatuto de assistentes e em relação ao DL 446/85 (ora com nova redacção introduzida pelo DL 220/95, de 31 de Agosto) que lhes confere legitimidade activa relativamente às acções destinadas a obter a condenação na abstenção do uso ou da recomendação de cláusulas contratuais gerais).
No caso presente, a ter havido as violações alegadas pela A. e por parte da R. não estamos em face de interesses difusos - ou seja, de interesses que não têm portador -, mas sim perante interesses colectivos, que pertencem a um determinado ou determinável conjunto de cidadãos (os que, eventualmente, se sintam lesados pela conduta da R.).
Entretanto, foi publicada e entrou em vigor a Lei 83/95, de 31 de Agosto que, concretamente, no seu art. 2, n. 1 confere a titularidade do direito procedimento participação popular a quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e às associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior (protecção à saúde pública, ao ambiente, à qualidade de vida, à protecção do consumo de bens e serviços, património cultural e domínio público).
Mas a entrada em vigor deste diploma em nada altera a conclusão a que teremos, forçosamente, que chegar in casu: em causa, repete-se, estão interesses colectivos e não interesses difusos.
Um outro ponto que importa focar diz respeito ao incidente de intervenção provocada referido pela agravante na conclusão 13 da sua alegação.
Este incidente obedece a um ritualismo próprio que não se compadece com a simplicidade espelhada pela agravante na sua alegação.
Cabe, desde logo, referir que, na petição inicial, a agravante se limitou a alegar que qualquer interessado individualmente poderia vir aos autos intervir como parte principal (cfr. art. 17 da peça processual referida).
Ora, resulta dos art. 356 e ss. do CPC que a intervenção é um incidente da instância que obedece a determinadas exigências, não só de natureza substantiva, como até de natureza adjectiva.
Assim, competia à A. - e só a ela - indicar os interessados, identificando-os, para, face à posição da parte contrária, o juiz decidir pela sua admissão ou não e, no 1 caso, pela ordem de citação dos chamados.
Mas de duas uma: ou a agravante entende que, por si só, não tinha legitimidade para intervir (caso de litisconsórcio necessário) e, então, está expressamente a reconhecer a sua própria ilegitimidade (vide, sobre este ponto concreto, Lopes Cardoso, in obra citado, pág. 191), não sendo lícito ao juiz suprir tal falta (ao contrário do que acontece, por exemplo, com a falta de capacidade judiciária ou a falta de representação, casos em que, por força do disposto no art. 24 do CPC, o suprimento pode ter lugar ex officio), ou, pelo contrário, defende que ela própria tem legitimidade para intervir por si só e, então, não se compreende a preocupação com o incidente de intervenção provocada.
No 1 caso, sem dúvida que a própria A. reconhece a sua ilegitimidade; no 2 caso, não se compreende que, não sendo necessária a intervenção de qualquer outra pessoa, o juiz se visse impedido de decidir, como decidiu, desde logo, pela ilegitimidade da A..
A verdade, no entanto, é que, duma maneira ou de outra, a A. não tem legitimidade para intervir na presente acção como A., como ficou demonstrado.
Em conclusão:
- Os interesses eventualmente violados pela R. são de natureza colectiva e não são, por isso mesmo, interesses difusos;
- Logo, não cabe à A. a defesa de eventuais violações a tais direitos;
- A acção popular visa a defesa de interesses difusos;
- Acresce que é duvidoso que as acções populares possam ser dirigidas aos Tribunais, atento o princípio de independência consagrado na Lei Fundamental (cfr. art. 206 e 208).
- Assim sendo, como é, a A. é parte ilegítima na presente acção (apenas pode intervir como assistente em acção que o MP venha a intentar - aliás, é legítimo concluir que tal veio a acontecer face ao teor da certidão requerida a fls. 27);
- O despacho recorrido não violou disposição legal, nomeadamente os arts. 10, n. 3 e 13, al. h) da Lei 29/81, de 22 de Agosto, nem os arts. 52 e 60 da Lei Fundamental.
Improcedem, destarte, todas as conclusões da agravante.
3 - Decisão
Em conformidade com o exposto e sem necessidade de qualquer outra consideração, decide-se negar provimento ao agravo, confirmando o douto despacho posto em crise.
Custas pela agravante.
Lisboa, 28 Março de 1996.