GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE
ARGUIÇÃO
Sumário

I - A deficiente gravação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento constitui nulidade que pode ser arguida nas alegações de recurso quando a gravação não foi disponibilizada nos termos do art.º 155.º, n.º 3, do CPC e não se prove que o reclamante teve conhecimento da deficiência dez dias antes do termo das alegações.
II - A mesma nulidade deve ser conhecida pelo tribunal onde foi cometida, mantendo-se no âmbito do recurso no caso de ser indeferida.

Texto Integral

Processo n.º 1277/12.4TBFLG.P1
Do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Gondomar, onde deu entrada em 19/6/2012, entretanto extinto, pertencendo, agora, à Comarca do Porto, Instância Central de Penafiel, Secção Cível, J4.

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Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró

Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção:

I. Relatório

B… instaurou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra a C… - Companhia de Seguros, SA, melhor identificadas nos autos, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe as quantias de 509.496,12 €, a título de danos patrimoniais, e a de 200.000,00 €, por danos não patrimoniais, acrescidas de juros, desde a citação até efectivo pagamento.
Para tanto, alegou, em resumo, que, no dia 24/6/2009, pelas 15,30 h, no …, freguesia …, o seu filho menor D… foi atropelado pelo veículo de matrícula ..-CE-.., conduzido por E…, por conta e no interesse da sua entidade patronal F…, Lda., que havia transferido a sua responsabilidade civil para a Companhia de Seguros G…, SA, incorporada na ré, quando circulava em excesso de velocidade, e, portanto, por culpa exclusiva deste condutor, causando-lhe danos patrimoniais e não patrimoniais que pretende ver ressarcidos, por ter de cuidar permanentemente daquele seu filho e de sofrer com ele pelo estado em que ficou devido ao acidente.

A ré contestou, por impugnação, alegando factos tendentes a imputar a responsabilidade na ocorrência do acidente ao menor ou a quem tinha o dever de o vigiar e que, não obstante, já pagou todos os prejuízos dele decorrentes, conforme acordo que celebrou com os pais do menor, sustentando não serem devidos os danos reclamados, por já terem sido pagos ou não serem indemnizáveis, concluindo pela improcedência da acção.

A autora replicou impugnando os factos alegados e os documentos juntos com a contestação, reiterando o que havia alegado e concluindo como na petição inicial.

Foi realizada a audiência preliminar, tendo sido proferido nela o despacho saneador tabelar e feita a condensação, com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, sem reclamações.

Entretanto, foi apensa a esta outra acção ordinária, com o n.º 1228/12.6TBFLG, que H… instaurou contra a C… - Companhia de Seguros, SA, onde pediu a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 50.000,00 €, acrescida de juros a partir da citação e até integral pagamento, com base no mesmo acidente e para o compensar pelos danos não patrimoniais que alega ter sofrido com o estado vegetativo em que ficou o mesmo menor, filho da mulher com quem vive em união de facto.

A ré contestou impugnando os factos alegados e defendendo que os danos reclamados não são indemnizáveis, por se tratar de danos reflexos ou indirectos e por o autor não ser parente ou afim a quem a lei conceda direito de indemnização, concluindo pela improcedência da acção.

O autor replicou nos mesmos termos da acção supra referida.

Na audiência preliminar a que se procedeu, foi proferido despacho saneador tabelar e foram seleccionados os factos assentes e elaborada a base instrutória, de que não houve reclamações.

A audiência de discussão e julgamento foi feita conjuntamente e decorreu nos dias 4 e 24 de Outubro e 19 de Dezembro de 2013.
Finalmente, em 16/3/2014, foi elaborada douta sentença que decidiu:
“I. Julgando a acção principal parcialmente procedente:
a) condena(r) a Ré C… – Companhia de Seguros, S.A. a pagar à Autora B1…, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de € 8.000, acrescida de juro à taxa legal de 4% desde a presente data até integral e efetivo cumprimento;
b) absolve(r) a Ré do restante pedido formulado.
II. Julgando a ação apensa não provada e improcedente, absolve(r) a Ré C… –
Companhia de Seguros, S.A. do pedido deduzido pelo Autor H….”

Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação e apresentou a respectiva motivação com as seguintes extensas e complexas conclusões:
“A. Foi formulada a seguinte questão prévia: a A. pretendendo recorrer, impugnando a matéria de facto gravada, deparou-se a A. com uma gravação imperceptível relativamente ao depoimento das testemunhas que servirá de base ao presente recurso.
B. De facto, ocorrem manifestas e sérias deficiências na gravação dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência, particularmente visíveis quanto à testemunha J…, porquanto várias partes do respectivo depoimento se apresentam completamente imperceptíveis, maxime, no que concerne às perguntas efectuadas pelos mandatários e pela Exma. Senhora Juiz ao mesmo e às respostas dadas durante o seu depoimento (mas também relativamente à testemunha K…).
C. As falhas registadas na gravação impedem a cabal reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal superior, ao mesmo tempo que constituem um obstáculo intransponível para a parte impugnante quanto ao cumprimento do ónus de alegação especial previsto pelo art. 640.º do CPC, que vê assim arredado o seu direito de recurso sobre a matéria de facto legalmente consagrado
D. O que constitui nulidade processual, nos termos do disposto no art. 195.º, n.º 1 do CPC, uma vez que se trata de uma irregularidade susceptível de influir no exame e decisão da causa, sendo hoje pacificamente aceite que a mesma pode ser suscitada até ao termo do prazo para apresentação das alegações de recurso.
E. Esta nulidade importa a anulação do acto viciado (art. 195.º, n.º 1 do CPC), na parte em que influencia a decisão da causa, bem como dos subsequentes actos daquele dependentes, designadamente, da decisão da matéria de facto e da douta sentença recorrida (art. 195.º, nº 2 do CPC).
F. Em relação ao depoimento de praticamente todas as testemunhas, se mostra, no caso, acentuadamente verificado relativamente às testemunhas J… (depoimento de 24-10-2013, gravação áudio de 16:32:32 a 17:14:35), K… (depoimento de 24-10-2013, gravação áudio de 17:55:31 a 18:21:45.
G. Esta situação processualmente anómala e irregular, é verdadeiramente impeditiva de uma autêntica e fundamentada impugnação da matéria de facto, por parte da aqui recorrente, violadora, pois, do direito legalmente consagrado às partes recorrentes, qual seja o de especificadamente impugnarem a matéria de facto decidida no processo.
H. Ouvido o CD que contem a gravação dos depoimentos em causa, verifica-se que, de facto, partes relevantes dos depoimentos são imperceptíveis. Ou seja, não é possível ouvir as perguntas dos advogados e da juiz, sendo também inaudível o depoimento das testemunhas.
I. pela testemunha J… foi referido que o veículo “vinha deslargado” (expressão que o mesmo usou para se referir à velocidade do mesmo e que na gravação não é possível ouvir). As testemunhas aqui referidas referem também que o veículo não desviou a sua marcha, contudo sendo os seus depoimentos inaudíveis, não é possível a transcrição dessas passagens.
J. A gravação deve ser efectuada por sistema sonoro, nos termos que constam do art. 155.º do CPC.
K. Como se pode ler no Acórdão do STJ de 13/01/2009, in www.dgsi.pt:“..., a deficiência da gravação, a existir, constitui uma nulidade secundária, uma vez que tal deficiência integra uma omissão de um acto prescrito na lei (art. 7.°, n.º 2, do Dec.- Lei n.º 39/95, de 15/2), que pode nitidamente influir na decisão da causa por obstar, quer à fundada impugnação da matéria de facto pelas partes com base na gravação, quer à reapreciação da matéria de facto pela Relação. Como tal, deve ser arguida pela parte que nisso tenha interesse.
L. Uma vez que a apelante pretende impugnar tal julgamento, pelo que, em consequência, se requer a anulação dos actos viciados, bem como dos termos subsequentes que deles dependam absolutamente repetindo-se os depoimentos das identificadas testemunhas e anulando-se todos os termos posteriores do processo, designadamente, a decisão que incidiu sobre a matéria de facto e a sentença recorrida.
Sem prescindir:
M. A este respeito surgem três versões relatadas por três testemunhas:
1. E… (condutor);
2. J… (testemunha presencial);
3. L… (GNR que se deslocou ao local do sinistro);
N. O Tribunal a quo desvalorizou o depoimento do condutor do veículo, pois entendeu que em todo o seu depoimento demonstrou falta de objectividade e falta de isenção. De facto, devia o Tribunal analisar de forma crítica todo o seu depoimento, apurando-se uma maior responsabilidade do condutor pela produção do sinistro.
O. Quanto à testemunha J… (testemunha presencial), o mesmo refere que o menor D… vinha de mão dada com a avó (que o segurava), sendo que esta levava também pela mão o neto desta testemunha (que é portador de uma deficiência) e que todos seguiam pelo passeio. Refere ainda que o menor largou a mão da avó começando a correr e que ele próprio (a testemunha) correu atrás dele e chamou-o.
P. Contudo, narrou sem qualquer dúvida que nesse momento passou o veículo segurado da Ré e que o mesmo “vinha deslargado” – expressão que utilizou para afirmar que o veículo vinha a grande velocidade (contudo tal é imperceptivel na gravação como acima já se expôs). Esclareceu que naquele momento não circulavam quaisquer outros veículos naquele local e que o condutor do veículo segurado da Ré não desviou a sua marcha. Afirmou também que o D… se encontrava bem visível e que pôs um pé na estrada.
Q. O menor foi projectado 7 metros de distância e que o embate apenas se deu com a óptica direita do veículo.
R. Salvo o devido respeito, o Tribunal de 1.ª Instância, na apreciação dos factos e na aplicação de direito aos presentes autos, argumentou com base em suposições e não analisou criticamente a prova gravada, pois que a Douta sentença de que se recorre assenta numa errada e superficial apreciação da prova, sem a devida valoração crítica.
S. O Tribunal não valorou devidamente o depoimento das testemunhas arroladas pela Autora, ignorando as suas razões de ciência relativamente à matéria controvertida, como se pode comprovar pelas partes do depoimento das mesmas, que não se transcreveu em virtude de se encontrar imperceptível
T. a simples leitura dos depoimentos destas testemunhas, permite colher que toda esta prova foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” relativamente à distribuição da culpa na ocorrência do sinistro.
U. Do depoimento das testemunhas acima referenciadas (J… e L…), indubitavelmente, se depreende que o veículo segurado da Ré seguia a uma grande velocidade para aquele local (até em desconsideração pelas normas estradais que impõem certos limites de velocidade), não travou e não se desviou antes do embate. Nas palavras da testemunha J… o condutor “seguia deslargado”, referindo-se à velocidade excessiva que o condutor imprimia à viatura.
V. A testemunha J… foi referido que a viatura vinha “deslargada” e tal facto não foi valorado pelo Tribunal à quo, sendo certo que se referia a velocidade superior a 70km/hora, conforme referiu a testemunha L….
W. deveria o Tribunal ter dado como provado que o veículo segurado da Ré circulava a uma velocidade de cerca ou superior a 70km/hora (visto que seguia “deslargado”, ou seja, numa velocidade desadequada para o local para parar no espaço livre e visível à sua frente).
X. Impunha-se que o tribunal considerasse «provados» os seguintes factos:
a) O condutor do veículo circulava a uma velocidade superior a 70km/hora;
b) O condutor do veículo circulava sem prestar qualquer atenção à via, bem como ao que o rodeava;
c) Não é anormal uma criança de 4 anos de idade querer soltar-se de quem a agarra e correr.
d) Tendo o menor D… 4 anos de idade, não tem percepção dos perigos e riscos que comportam o trânsito;
e) O menor D… não iniciou qualquer travessia, apenas desceu o passei, colocando apenas um pé na via;
f) O condutor apenas se desviou quando se apercebeu do embate.
Y. Devem tais factos ser dados como provados, já que resultam claramente dos depoimentos testemunhais, da prova documental e resultam, espantosamente, da motivação de facto apresentada pelo Tribunal à quo – pelo que devem ser considerados provados, visto que foram considerados pelo Tribunal à quo.
“12. Porque a avó do não lhe segurou a mão por modo a que não pudesse soltar-se, a dada altura o menor escapuliu-se, correu pelo passeio e iniciou, sozinho, a travessia da estrada em frente à casa daquela, da direita para a esquerda e perpendicularmente ao seu eixo, atento o sentido de marcha do veículo [resposta ao artigo 7º da base instrutória do processo principal e apenso].
13. Antes de iniciar a travessia o menor não cuidou de olhar para a esquerda e para a direita, não se apercebendo que o veículo seguro na Ré se aproximava [resposta ao artigo 39º da base instrutória do processo principal].
14. No momento do início da travessia o veículo circulava a velocidade não concretamente apurada embatendo com o farol direito no menor que foi projetado, vindo a cair no asfalto a cerca de 7 metros do local do embate [resposta ao artigo 8º da base instrutória do processo principal e apenso].
15. O condutor ainda procurou desviar o veículo para a esquerda, foi-lhe impossível evitar o embate [resposta ao artigo 40º da base instrutória do processo principal].”
Z. Tudo o vindo de dizer, implica falta de fundamentação daqueles factos pelo Tribunal à quo dados como provados.
AA. Ou seja, o tribunal deveria ter estabelecido o fio condutor entre a decisão da matéria de facto e os meios de prova que foram usados na aquisição da convicção, fazendo a respectiva apreciação crítica, nos seus aspectos mais relevantes. Mas tal não se verificou.
BB. De facto o Tribunal à quo supôs que o condutor do veículo apresentou uma versão para manter o seu posto de trabalho.
CC. Supôs que a culpa maior seria do menor e não do condutor do veículo (desconsiderando por completo a perigosidade da circulação rodoviária e a presunção de culpa do condutor do segurado da Ré – cfr. ponto 5 dos factos provados), contudo o Tribunal não pode supor.
DD. Embora a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos seja, em princípio, da competência dos Estados-membros, impõe-se uma interpretação actualista das regras relativas à responsabilidade pelo risco, na consideração do binómio risco dos veículos/fragilidade dos demais utentes das vias públicas.
EE. O Tribunal entendeu desresponsabilizar (quase na totalidade) o condutor do veículo seguro. Contudo, o mesmo conduzia ao abrigo de uma relação comitente/comissário, daí que exista a presunção da culpa do condutor que apenas poderia ser ilidida caso o mesmo demonstrasse não ter violado qualquer regra estradal, o que não aconteceu. O condutor do veículo segurado da Ré não logrou provar que cumpriu escrupulosamente todas as regras estradais, porque para além de ser evidente o excesso de velocidade em que conduzia, era evidente a falta de atenção e despreocupação pelos restantes utentes da via.
FF. No que diz respeito ao menor de quatro anos, peão, que correu pelo passeio, não se pode igualmente falar em culpa, posto que – para uma criança desta idade, em que na normalidade da vida esta se confunde com a brincadeira despreocupada – correr pelo passeio não representa mais do que o preenchimento da sua vida lúdica, pelo que a imprevidência não faz parte do seu quadro mental, não lhe sendo exigível que possa, ou deva, prever as consequências de um dado acto.
GG. Nessa medida, deveria resultar dos factos provados que o condutor do veículo segurado da Ré seguia pelo menos a 70km/hora, que não se desviou antes do embate, conduzindo de uma forma completamente desatenta e sem qualquer respeito pelas normas estradais e que o menor não tinha iniciado a travessia mas que apenas tinha o pé na estrada.
HH. Além disso, se há culpa presumida da avó, a quem tinha sido atribuído o dever de vigilância, há também culpa presumida do condutor, que conduzia por conta, na direcção, dependência económica e sob ordens do seu patrão.
II. Não podemos ignorar que estando o mesmo a trabalhar sob direcção de outrem, indo buscar materiais, certamente que circulava a uma velocidade bem superior a 50km/hora, quanto mais não fosse para demonstrar rapidez na execução do seu trabalho.
JJ. E a avó levava a mão do menor D…, bem como a mão do outro menor (portador de deficiência), sempre bem agarrada. E não é tão incomum assim uma criança soltar-se e querer correr.
KK. Dessa forma, uma atribuição justa de culpas seria então de 90% para o condutor e de 10% para o menor (pela culpa in vigilando).
LL. A análise fria e distanciada de determinadas situações revela que, por vezes, certos efeitos de natureza não patrimonial são mais nítidos (senão mais graves) nas pessoas que rodeiam o lesado. Basta pensar num acidente, como o dos presentes autos, que determine para o sinistrado uma disfunção psicossomática que nem sequer lhe permita percepcionar o seu próprio estado de saúde, caso em que são outras pessoas que realmente sentem o sofrimento, confrontadas com a persistente percepção do estado clinico do sinistrado e com a contínua necessidade de lhe prestarem assistência. Outras vezes, o estado de saúde vai-se degradando lentamente num quadro em que os sofrimentos físicos ou morais do lesado convivem com estados de angústia ou de desespero de quem o rodeia.
MM. No presente caso, não podemos esquecer que estamos a falar de uma mãe, cujo filho de 4 anos sofreu um sinistro que lhe ditou uma incapacidade profunda (impedindo-o de mexer, comer sozinho, vestir-se, tomar banho, necessitando de vigilância durante 24 horas por dia).
NN. Não é de ânimo leve que a A, enquanto mãe do menor D…, se pode conformar com a situação do filho que repentinamente se vê sujeito a intervenções cirúrgicas, carecido de tratamento permanente e persistente, quebrando expectativas que justamente se afirmaram sobre o seu futuro gravemente e para sempre afectado.
OO. De facto, desde o acidente, o menor deixou de se movimentar, alimentar e vestir sozinho e de fazer a sua higiene diária. Padece de ausência de controle dos esfíncteres, obrigando ao uso de fraldas em permanência e para toda a vida. Ficou na dependência de ajudas técnicas (cadeira de rodas), médicas, medicamentosas, bem como do apoio de terceira pessoa.
PP. Desta forma, é de concluir com toda a certeza que tal sinistro e consequentes lesões ao seu filho D…, causaram à A. uma grave perturbação e ansiedade.
QQ. O montante de 40.000,00€ fixado pelo Tribunal à quo afigura-se irrelevante tendo em consideração todas as mudanças operadas na vida da A., as dores e angustias que para sempre acompanharão a (nova e única) rotina da mesma.
RR. Nessa medida, deve ser ponderado o valor peticionado em primeira instância a título de danos não patrimoniais (200.000,00€), na proporção acima mencionada, ou seja, na proporção da atribuição de 90% da culpa ao condutor da viatura.
SS. A autora pede a este título a quantia de € 200.000,00, tendo a sentença proferida em 1ª instância arbitrado a simbólica quantia de € 40.000,00 (na proporção de 20% que corresponde a 8.000,00€).
TT. Devido à dependência do menor D… e à recusa da ideia da sua institucionalização por parte da mãe, enquanto viver com esta, a Autora não tem expectativas de mudança da rotina do agregado em que se insere, vivendo apenas para o filho num sofrimento constante e com a consciência de que o mesmo nunca será autónomo (veja-se a titulo de exemplo: “se o menor se engasgar pode morrer”.
UU. Um tal quadro justifica o valor de 200.000,00€ peticionado nestes autos por ser justo.
VV. De facto, e ao contrário do referido na 1ª Instância, não podem funcionar as quantias usualmente atribuídas para compensar o dano vida como limite à indemnização aqui em apreço.
WW. Ora, dúvidas não restam que os requeridos danos não patrimoniais são enormes e muito graves e, como tais, indubitavelmente merecedores da tutela do direito – art. 496º, nº 1 do citado CC.
XX. Para compensar a Autora de tais danos – para os quais foi, inicialmente, pedida a compensação de € 200.000,00 a decisão recorrida atribuiu o valor de € 40.000,00€ reduzidos a 20%, ou seja, 8.000,00€.
YY. Sendo certo que a Autora, tendo em conta o supra aduzido pede que se fixe tal compensação no valor inicialmente peticionado (200.000,00€).
ZZ. Acresce também que, a quantia de 200.000,00€, não só não indemniza o sofrimento da A., nem é tão pouco grande compensação para os mesmos. É certo que, por tal preço, nenhum voluntário aceitaria suportar tais danos!
Deste modo, revogando a douta sentença e proferindo outra que condene a Recorrida no pedido formulado na P.I. farão V. Ex.as Venerandos Desembargadores a costumada JUSTIÇA!”

A ré contra-alegou defendendo a manutenção da matéria de facto, por ser intempestiva a arguição da nulidade decorrente da deficiente gravação e por corresponder a uma correcta apreciação da prova produzida, bem como a confirmação da repartição de culpas, mas interpondo recurso subordinado, por entender que não é devida indemnização, oferecendo as seguintes conclusões:
“1. Apenas nos casos excepcionais previstos nos Artigos 495º e 496º, n. 2, do Código Civil a Lei admite o ressarcimento dos danos indirectos provocados a terceiros – in Acórdão Uniformizador do STJ de 22 de Maio de 2014;
2. Os ascendentes do lesado não têm direito a ser indemnizados, por dano patrimonial próprio emergente das lesões por aquele sofridas e independentemente do grau de gravidade que estas assumam;
3. A Autora não tem direito a ser indemnizada pelos sofrimentos e por tudo o mais que integre dano de natureza não patrimonial emergente das lesões sofridas pelo menor D… como consequência do acidente a que se reportam os presentes autos;
4. Ao decidir como decidiu a douta decisão recorrida violou o disposto nos Artigos 495º e 496º, n. 2, do Código Civil.
TERMOS EM QUE, deve ser negado provimento ao recurso interposto pela Autora e no provimento do recurso subordinado deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que julgue inteiramente improcedente a presente acção, absolvendo a Recorrente do pedido com todas as legais consequências.”
A autora não respondeu ao recurso subordinado.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito dos presentes recursos.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões das recorrentes [cfr. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do NCPC, aqui aplicável, visto que se trata de uma sentença proferida após a data da sua entrada em vigor, numa acção instaurada depois de 1/1/2008 (cfr. art.ºs 5.º, n.º 1 e 8.º, ambos da Lei n.º 41/2013, de 26/6)], não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, que aqui não relevam, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir consistem em saber:
1. Se ocorre a nulidade arguida por deficiente gravação da prova;
2. Se pode/deve ser alterada a matéria de facto no sentido indicado pela autora/apelante;
3. Se a repartição de culpas deve ser no sentido por ela apontado, ou seja, 10% para o menor e 90% para o condutor;
4. Qual o montante da indemnização pelos danos não patrimoniais reflexos sofridos pela autora;
5. Ou se não há lugar a qualquer indemnização, por não serem indemnizáveis tais danos, como sustenta a ré/apelada e apelante no recurso subordinado.

II. Fundamentação

1. De facto

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos (indicando-se entre parêntesis a sua proveniência):
1. O teor da ata de acordo constante dos autos a fls. 37 (fls. 36 do processo apenso):
“Exmo Sr. Dr. M…, na qualidade de representante dos interesses do menor, D… e Sr. N…, na qualidade de perito liquidatário e representante para o efeito da Companhia de Seguros G…, S.A., considerando e tendo como pressuposto que D… sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais passados e futuros, em consequência do acidente de viação ocorrido em 24-06-2009, no …, freguesia …, em que foi interveniente o veículo de matrícula ..-CE-.., seguro na apólice ………., com processo de sinistro nº 09AU738780, foi aceite pelos signatários e pelos pais do lesado, O… e B1…, o seguinte acordo indemnizatório:
- a Companhia de Seguros G…, S.A. procederá ao pagamento, de uma só vez, do valor de € 431.000;
- não será da responsabilidade da Companhia de Seguros G…, S.A. quaisquer despesas médicas, medicamentosas ou hospitalares posteriores à data deste acordo;
- os subscritores acordam expressamente que nada mais é devido pela Companhia de Seguros G…, S.A. a título de ressarcimento dos danos e lesões, qualquer que seja a sua natureza, renunciando a quaisquer direitos, nomeadamente, direitos de acção judicial emergentes do mesmo acidente contra a referida Companhia de Seguros, segurado e condutor, a quem com o recebimento da quantia indicada dão plena e integral quitação”; consta a data de 23 de Outubro de 2010, a assinatura e carimbo do Mandatário da mãe e em representação do menor e da Autora e do pai do lesado, em representação deste [alínea A) dos factos assentes de ambos os processos].
2. A G… – Companhia de Seguros, SA, foi incorporada por fusão na C… – Companhia de Seguros, SA, tendo tal ato sido inscrito no registo comercial através da inscrição AP. 1/20120531 [alínea B) dos factos assentes de ambos os processos].
3. A responsabilidade emergente da circulação do veículo com a matrícula ..-CE-.., à data do acidente, estava validamente transferida para a Ré C… – Companhia de Seguros, SA por contrato de seguro titulado pela apólice junta a fls. 73 a 76 dos autos principais/ fls. 61 a 64 dos autos apensos [alínea C) dos factos assentes de ambos os processos].
4. No dia 24 de Junho de 2009, pelas 15h30, no …, freguesia …, Felgueiras, o menor D… foi atropelado pelo veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-CE-.. [resposta ao artigo 1.º da base instrutória do processo principal e apenso].
5. O veículo referido em 4) pertencia a P…, S.A. que cedera a sua utilização temporária mediante contrapartida e possibilidade de aquisição através do pagamento de valor residual a F…, Ldª, sendo conduzido por E… que era seu motorista e o tripulava no desempenho das tarefas que a segunda lhe havia atribuído [resposta ao artigo 2.º da base instrutória do processo principal e apenso].
6. O local onde ocorreu o acidente a estrada configura uma reta com cerca de 100 metros e inclinação descendente [resposta ao artigo 3.º da base instrutória do processo principal e apenso].
7. A via tem 7 metros de largura e as duas hemi-faixas destinadas aos dois sentidos de marcha estão separadas por linha descontínua em toda a sua extensão [resposta ao artigo 4.º da base instrutória do processo principal e apenso, bem como artigo 33.º do primeiro].
8. Estava bom tempo, o piso estava seco e a visibilidade era boa [resposta ao artigo 5.º da base instrutória do processo principal e apenso].
9. No local onde veio a ocorrer o embate, a via é ladeada por um passeio com uma largura de cerca de 1,40 metros, que fica entre a via e as moradias que a ladeiam [resposta ao artigo 34.º da base instrutória do processo principal].
10. O veículo seguro na Ré circulava por aquela via no sentido … / …,
[resposta ao artigo 35.º da base instrutória do processo principal].
11. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o menor seguia acompanhado pela avó, pelo passeio direito considerando o sentido … – … [resposta ao artigo 6.º da base instrutória do processo principal e apenso, assim como artigo 37.º do primeiro].
12. Porque a avó não lhe segurou a mão por modo a que não pudesse soltar-se, a dada altura o menor escapuliu-se, correu pelo passeio e iniciou, sozinho, a travessia da estrada em frente à casa daquela, da direita para a esquerda e perpendicularmente ao seu eixo, atento o sentido de marcha do veículo [resposta ao artigo 7.º da base instrutória do processo principal
e apenso].
13. Antes de iniciar a travessia o menor não cuidou de olhar para a esquerda e para a direita, não se apercebendo que o veículo seguro na Ré se aproximava [resposta ao artigo 39.º da base instrutória do processo principal].
14. No momento do início da travessia o veículo circulava a velocidade não concretamente apurada embatendo com o farol direito no menor que foi projetado, vindo a cair no asfalto a cerca de 7 metros do local do embate [resposta ao artigo 8.º da base instrutória do processo principal e apenso].
15. O condutor ainda procurou desviar o veículo para a esquerda, foi-lhe impossível evitar o embate [resposta ao artigo 40.º da base instrutória do processo principal].
16. Em consequência do acidente o menor D… sofreu diversas lesões, entre as quais
TCE grave do qual resultaram, a título de sequelas, designadamente, tetraparesia espástica, estado de consciência diminuído, estado de reatividade mínima e ausência de qualquer atividade motora voluntária [resposta ao artigo 10.º da base instrutória do processo principal e
apenso].
17. O menor sempre viveu e ainda vive com a Autora e desde a idade de 1 ou 2 anos com o Autor [resposta ao artigo 10.º da base instrutória do processo principal e apenso].
18. Desde o acidente, o menor deixou de se movimentar, alimentar e vestir sozinho e de fazer a sua higiene diária [resposta aos artigos 12.º e 14.º da base instrutória, respetivamente do processo principal e apenso].
19. Padece de ausência de controle dos esfíncteres, obrigando ao uso de fraldas em permanência e para toda a vida [resposta aos artigos 13.º e 15.º da base instrutória, respetivamente do processo principal e apenso].
20. Ficou na dependência de ajudas técnicas (cadeira de rodas), médicas, medicamentosas, bem como do apoio de terceira pessoa [resposta aos artigos 14.º e 16.º da base instrutória, respetivamente do processo principal e apenso].
21. O menor, à data do acidente tinha a autonomia correspondente à sua idade de 4 anos e 2 meses [resposta aos artigos 15.º e 17.º da base instrutória, respetivamente do processo principal e apenso].
22. O pai do menor jamais se apresentou para prestar-lhe qualquer cuidado [resposta aos artigos 28.º e 27.º da base instrutória, respetivamente do processo principal e apenso].
23. Desde o acidente a Autora, ajudada pelo companheiro e pelos dois filhos, Q… e S…, nascidos respetivamente a 8 de Janeiro de 1994 e 19 de Dezembro de 1995, dá permanentemente assistência ao menor D…, designadamente, lava-o, veste-o, alimenta-o, deita-o, limpa-o e transporta-o, dedicando-lhe a maior parte do seu tempo [resposta aos artigos 16.º e 17.º da base instrutória do processo principal, assim como artigos 13.º, 18.º a 20.º do apenso].
24. A Autora tinha 34 anos à data do acidente [alínea D) dos factos assentes do processo principal].
25. Em consequência das lesões que o menor sofreu e das sequelas que daí advieram, devido à sua total dependência, a Autora passou a dar-lhe prioridade em detrimento de outras tarefas ou pessoas [resposta ao artigo 18.º da base instrutória do processo principal].
26. A vida da Autora transformou-se numa rotina de prestação de cuidados ao filho, sofrendo diariamente por ver o seu estado [resposta ao artigo 20.º da base instrutória do processo principal].
27. A Autora sofre por saber que terá de prestar auxílio ao filho enquanto ambos viverem, com a sua rotina condicionada aos cuidados diários de que o menor necessita, assim como pelos maiores esforços físicos que tem de fazer à medida que cresce [resposta ao artigo
21.º da base instrutória do processo principal].
28. A Autora levanta-se durante a noite para vigiar o menor devido ao risco de engasgamento [resposta ao artigo 22.º da base instrutória do processo principal].
29. Devido à dependência do filho D… e à recusa da ideia da sua institucionalização, a Autora não tem expectativas de mudança da sua rotina [resposta ao artigo 23.º da base instrutória do processo principal].
30. Devido à prioridade que estabeleceu relativamente ao filho D…, a Autora dá menos carinho e atenção aos filhos S… e Q…, assim como ao companheiro [resposta ao
artigo 24.º da base instrutória do processo principal].
31. A Autora passou a ser mais reservada, menos alegre e a ter menos disposição para sair e conviver, permanecendo mais tempo em casa, designadamente, os períodos festivos [resposta ao artigo 27.º da base instrutória do processo principal].
32. Ao tempo do acidente, a Autora trabalhava no T… de … auferindo o vencimento mensal líquido de € 644,30 [resposta ao artigo 29.º da base instrutória do processo principal].
33. Já fazia parte dos quadros daquela empresa que ainda integra encontrando-se de baixa [resposta ao artigo 31.º da base instrutória do processo principal].
34. Devido à dependência do menor, a Autora só poderá retomar aquele ou outro trabalho fora da habitação, caso contrate terceira pessoa para lhe prestar os necessários cuidados [resposta ao artigo 32.º da base instrutória do processo principal].
35. Ao tempo em que foi celebrado o acordo referido em 1), tanto a Ré como os progenitores do menor D…, incluindo a Autora, sabiam que as sequelas de que ao tempo era portador determinavam que necessitasse de cuidados diários e permanentes de uma terceira pessoa até ao fim da sua vida e que os mesmos incluíam os cuidados de higiene pessoal, de alimentação, de locomoção, de transporte para a prestação de cuidados médicos e tudo o mais necessário a assegurar a sua sobrevivência [resposta ao artigo 41.º da base instrutória do processo principal].
36. Ao tempo em que foi celebrado o acordo referido em 1) a Autora sabia ainda que a prestação, por si, de tais cuidados era incompatível com o desempenho de qualquer actividade profissional fora do domicílio onde se encontrasse albergado o seu filho e que a manutenção do seu emprego sempre obrigaria à contratação de uma terceira pessoa que, na sua ausência, os assegurasse [resposta ao artigo 42.º da base instrutória do processo principal].
37. Fruto das graves lesões de que padece e das graves sequelas de que é portador, é previsível que o menor D… não viva mais de 15 anos [resposta ao artigo 43.º da base instrutória do processo principal].
38. Desde que vive com a Autora, o Autor trata o menor D… como seu filho [resposta ao artigo 11.º da base instrutória do processo apenso].
39. Os Autores vivem em união de facto desde 2006/2007 [resposta ao artigo 12.º da base instrutória do processo apenso].
40 Devido à prioridade referida em 25) a mãe do menor passou a ter menor disponibilidade para o Autor [resposta aos artigos 21.º e 24.º da base instrutória do apenso].
41. Devido à dependência do menor D… e à recusa da ideia da sua institucionalização por parte da mãe, enquanto viver com esta, o Autor não tem expectativas de mudança da rotina do agregado em que se insere [resposta ao artigo 23.º da base instrutória do apenso].
42. O Autor tem afeto pelo menor sentindo perturbação devido ao estado de dependência em que este se encontra [resposta ao artigo 28.º da base instrutória do apenso].
Atenta a nulidade arguida, importa considerar provado, aqui, mais o seguinte:
43. As audiências, com produção de prova, decorreram nos dias 4 e 24 de Outubro e 19 de Dezembro de 2013 (cfr. actas de fls. 256 a 262, 297 a 301 e 386 a 387).
44. Os autores requereram cópia da gravação dos depoimentos prestados em audiência, no dia 22 de Abril de 2014 (cfr. fls. 435 e 436).
45. A qual lhes foi entregue no mesmo dia (cfr. fls. 437).

2. De direito

Importa aplicar o direito aos factos, começando, por razões de ordem lógica, pela apreciação da nulidade arguida, pois dela depende a decisão das restantes questões.

2.1. Da nulidade processual por deficiente gravação

A autora/apelante arguiu a nulidade secundária decorrente da deficiente gravação dos depoimentos das testemunhas J… e K…, que considera importantes para a decisão da causa e a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, o que a impossibilita cumprir os ónus que a lei lhe impõe para obter a alteração dessa decisão (cfr. conclusões A a L).
A ré/apelada defende que tal arguição é extemporânea, já que é aplicável ao presente caso o NCPC e, de acordo com o regime nele previsto, devia ter sido invocada no Tribunal recorrido no prazo de 10 dias após a entrega da cópia da gravação.
Que dizer?
Não há dúvida de que, tendo a prova sido produzida na vigência do NCPC, como foi o caso, é-lhe aplicável o regime nele previsto, por força da aplicação imediata consagrada no art.º 5.º, n.º 1, da citada Lei n.º 41/2013, e que, de acordo com o art.º 155.º daquele Código, “A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato” (n.º 3) e que “A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada” (n.º 4).
Porém, a questão é mais complexa e a sua solução deve ser procurada no confronto com outros dispositivos e regimes, à semelhança do que já acontecia na vigência do anterior Código.
Desde logo, importa atentar no que dispõe o DL n.º 39/95, de 15/2, o qual, depois de afirmar, além do mais que aqui não releva, que a gravação é, em regra, efectuada com o equipamento para o efeito existente no tribunal (cfr. art.º 3.º, n.º 1), que é feita por funcionário de justiça (art.º 4.º), em duas fitas magnéticas, sendo uma destinada ao tribunal e outra às partes e que incumbe àquele facultar, no prazo máximo de oito dias após a realização da respectiva diligência, cópia a cada um dos mandatários ou partes que a requeiram (art.º 7.º, n.ºs 1 e 2), estabelece no art.º 9.º que “Se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade”.
Temos por inquestionável que, à semelhança do regime anterior, a deficiência da gravação da prova, em termos de tornar imperceptível algum depoimento, ou a sua omissão podem constituir nulidade processual secundária, nos termos do n.º 1, in fine, do art. 195.º do actual CPC[1], uma vez que se trata de irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa, pelo menos no que diz respeito ao reexame das provas produzidas na 1.ª instância a efectuar pela Relação, já que também julga de facto e está sujeita aos mesmos princípios do julgador daquela instância, competindo-lhe proceder a um novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, assim assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 13/01/2005, proc. 04B4251, de 17/1/2008, proc. 07B4233 e de 15/05/2008, proc. 08Bl099, e desta Relação de 29/11/2006, proc. 0625494 e de 20/05/2008, proc. 1808/08, todos acessíveis em www.dgsi.pt, proferidos ao abrigo do regime anterior, igual, neste aspecto, ao actual).
Todavia, a sua verificação pressupõe, desde logo, que tenha sido arguida em tempo.
A questão da tempestividade da arguição daquela nulidade, face ao regime do anterior CPC, está longe de ser pacífica nos nossos tribunais, tal como noticia o acórdão do STJ de 14/1/2010, proferido no processo n.º 4323/05.4TBVIS.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Assim, uns defendem que o prazo de arguição da dita nulidade é de dez dias (cfr. art.º 153.º n.º 1 do anterior CPC[2]), contados imediatamente após o termo da audiência de discussão e julgamento ou, pelo menos, da data da disponibilização do registo magnético pelo tribunal (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 22/2/2001, 24/5/2001, 6/7/2006, 18/11/2008, 12/2/2009 e de 14/5/2009, proferidos nos processos n.ºs 3678/00-7.ª, 1362/01-7.ª, 1899/06-7.ª, 3328/08-6.ª, 47/09-6.ª e 40/09.4YFLSB-6.ª, respectivamente, disponíveis no mesmo sítio).
Outros, ainda, proclamam que esse prazo de dez dias começa a contar da data limite em que a parte deveria ter solicitado a entrega da cópia do registo da gravação, nos termos do n.º 2 do art.º 7.º do citado DL n.º 39/95 (v.g. acórdãos do STJ de 8/7/2003, na revista n.º 2212/03 e de 16/9/2008, na revista n.º 2261/08, ambas da 7.ª Secção).
Finalmente, outros entendem que a aludida nulidade pode ser arguida dentro do prazo da alegação de recurso, salvo se se demonstrar que o reclamante teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo, podendo tal arguição ter lugar nessa própria alegação, por não ser exigível à parte (ou ao seu mandatário) que proceda à audição dos registos magnéticos antes do início do prazo do recurso (relativo à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto), sendo que é no decurso deste prazo que surge a necessidade de uma análise mais cuidada do conteúdo dos referidos registos e, com ele, o conhecimento de eventuais vícios da gravação que podem ser alegados na própria alegação de recurso entretanto interposto (v.g. acórdãos do STJ de 9/7/2002, na CJ - Acs. STJ - Ano X, tomo II, págs. 153 a 155, de 15/5/2008, de 1/7/2008, de 23/10/2008 e de 13/1/2009, estes proferidos nos processos 08B1099, 08A1806, 08B2698 e 08A3741, respectivamente, disponíveis em www.dgsi.pt, para além do já citado acórdão de 14/1/2010, no processo n.º 4323/05.4TBVIS.C1.S1, e desta Relação do Porto de 27/03/2006, de 27/11/2008 e de 16/12/2009, nos processos n.ºs 0651069, 0836973 e 217/05.1TJVNF.P1, disponíveis no mesmo sítio).
Defendemos sempre esta última tese, por se nos afigurar ser a mais correcta (cfr., entre outros, o acórdão de 1/4/2014, proferido no processo n.º 42/11.0TBCDR.P2).
E entendemos dever continuar a perfilhá-la, face ao regime do actual CPC, não obstante o disposto no n.º 4 do seu art.º 155.º, pelo menos, nos casos, como o presente, em que não foi disponibilizada a gravação nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.
É que o citado DL n.º 39/95 não foi revogado pelo art.º 4.º da mencionada Lei n.º 41/2013, que aprovou o actual CPC. E também não se deve considerar tacitamente revogado, como defende alguma jurisprudência[3], visto o art.º 155.º não abarcar todos os aspectos regulados naquele diploma.
A disponibilização da cópia da gravação a que alude o n.º 3 do art.º 155.º deve ser feita por iniciativa do tribunal, no prazo de dois dias a contar do respectivo acto, e não estar dependente de prévio requerimento das partes, pois tem, agora, outra amplitude, abrangendo toda a audiência, sem se confinar à mera gravação da prova. Instituída a gravação em sistema sonoro como regra da documentação dos actos praticados na audiência final, a consulta desses elementos só é possível através da audição da gravação realizada. E a disponibilização da gravação deve ser feita relativamente a cada acto a que esta respeita. Como se escreveu no recente acórdão desta Relação e Secção, de 14/2/2015[4], “Percebe-se, assim, que, se a audiência tiver mais do que uma sessão, o prazo para disponibilização da gravação deve ser considerado por referência a cada concreta sessão, como sublinham João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira, em “Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013”, página 35, nota 24.
A disponibilização pressupõe, portanto, um acto expresso da secretaria com esse alcance[5]. Só com essa disponibilização (que entendemos não ter de corresponder à entrega física do suporte sonoro, bastando a colocação ao dispor das partes do suporte já preparado), é que o mandatário da parte estará em condições de aceder aos elementos necessários para uma eventual reacção relativamente a falhas/incorrecções da gravação ou a despachos/decisões de que discorde.”
A falta de disponibilização da gravação impossibilita a contagem do prazo previsto no n.º 4 do referido art.º 155.º, por ser um pressuposto da sua aplicação.
O citado DL n.º 39/95 não contém qualquer preceito que fixe o prazo para arguição de omissões ou anomalias na gravação da prova.
Não vemos que a parte recorrente esteja sujeita a um especial dever de diligência, que lhe imponha a audição do registo áudio da prova nos dez dias imediatos ao recebimento do tribunal, quando ele se destina a servir de suporte a uma alegação de recurso para cuja elaboração dispõe de 40 dias (cfr. art.º 638.º, n.ºs 1 e 7 do NCPC[6]) e é suposto que a cópia recebida do tribunal não enferme de qualquer anomalia.
Como o vício se encontra oculto e o seu conhecimento, pela parte a quem pode prejudicar, depende de um acto desta (audição do registo) que é instrumental de um outro acto, este a praticar no processo (a apresentação da alegação de recurso), é razoável que o prazo para a parte invocar a irregularidade detectada e pedir que se desencadeiem as respectivas consequências (repetição da parte da prova omitida ou ininteligível) seja o mesmo em que pode apresentar a alegação de recurso, salvo se se demonstrar que o reclamante teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo.
Na verdade, se o recorrente dispõe de determinado prazo para minutar o recurso e se, nessa minuta, pode impugnar a matéria de facto dada como provada com base nos depoimentos gravados, é evidente que esse direito (de pedir a repetição da prova omitida ou imperceptível) pode ser exercido até ao último dia do prazo legal em curso, porque pode bem acontecer que só nesse prazo (incluindo o último dia) seja detectada a anomalia da gravação.
Daí que a arguição daquela irregularidade possa ter lugar na própria alegação do recurso de apelação.
Porém, a sua apreciação compete sempre, em primeira mão, ao juiz do tribunal onde se terá verificado a aludida irregularidade.
Embora esteja em causa uma nulidade processual que, à partida, não integra nulidade da sentença, certo é que, a existir tal nulidade, dela deriva nulidade da própria sentença, nos termos do n.º 2 do art.º 195.º do NCPC[7], visto que a sentença depende dos factos que forem considerados provados e estes, por sua vez, dos elementos de prova obtidos e que estejam em condições de ser analisados.
Por isso e apesar de não estarmos perante uma nulidade da sentença prevista no n.º 1 do art.º 615.º do NCPC, será de aplicar aos casos de arguição em sede de alegações, senão directamente pelo menos por analogia, visto tratar-se em qualquer caso de uma nulidade da sentença, o disposto no n.º 4 do mesmo artigo, cabendo assim ao juiz da 1.ª instância o suprimento dessa nulidade, se, como é óbvio, entender que ela existe.
Sendo indeferida essa arguição, mantém-se no âmbito do recurso para a Relação (cfr., neste sentido, o citado acórdão do STJ de 13/1/2009, proferido no processo n.º 08A3741, e os nossos acórdãos de 7/6/2012, proferido no processo n.º 2086/08.0TBVCD-A.P1, e o de 1/4/2014, no processo n.º 42/11.0TBCDR.P2, já citado e que aqui vimos seguindo).
Contudo, há quem exija sempre uma arguição autónoma, sujeita ao regime prescrito no art.º 195.º do NCPC[8], mediante reclamação para o tribunal onde a pretensa nulidade secundária foi cometida, para que este a possa, se for o caso, corrigir ou suprir, e só depois, em função do que o juiz desse tribunal decidir sobre a reclamação, poderá haver recurso para o tribunal superior, como resulta dos n.ºs 1 e 2 daquele normativo, não havendo lugar à aplicação do n.º 3 por o prazo da arguição coincidir com o termo do prazo das alegações e não findar depois da expedição do recurso, como pressupõe este preceito para poder ser arguida directamente perante o tribunal superior (cfr., neste sentido, acórdão desta Relação – e secção – de 16/12/2009, processo n.º 217/05.1TJVNF.P1, in www.dgsi.pt). Isto apesar do art.º 630.º, n.º 2 afirmar a inadmissibilidade de recurso da decisão que indefira a arguição de nulidades secundárias, por brigar com os princípios da igualdade, do contraditório e das regras atinentes à aquisição processual de factos, mostrando-se, portanto, operante, no caso vertente, a salvaguarda constante da parte final desse mesmo preceito (cfr. citado acórdão desta Relação de 10/2/2015).
No caso dos autos, constatamos que:
Não foi disponibilizada às partes, no caso que importa considerar à autora, a gravação de cada uma das sessões da audiência de discussão e julgamento ocorridas nos dias 4 e 24 de Outubro e 19 de Dezembro de 2013.
Apesar de, no fim da cada uma das duas primeiras actas se ter feito constar que a primeira “foi partilhada em 07-10-2013” e a segunda “foi partilhada em 28-10-2013”, não significa que tivesse sido disponibilizado todo o seu conteúdo, depoimentos incluídos, tanto assim que a gravação da primeira foi feita em cassete áudio.
Não se mostra provado que a autora/recorrente tivesse tido conhecimento da alegada deficiente gravação dez dias antes do termo das alegações, onde arguiu a nulidade com fundamento naquela deficiência.
É irrelevante que a entrega tenha sido feita no dia 22/4/2014, pois o que releva é o conhecimento efectivo da deficiência da gravação.
Devemos, assim, considerar tempestiva tal arguição, segundo a tese que perfilhamos.
A autora/recorrente não prescinde do direito de impugnar a matéria de facto com base nos depoimentos gravados que pretende exercer, mas que se viu impossibilitada de fazer, relativamente à matéria que indica relativa ao circunstancialismo em que o acidente ocorreu, por não lhe ter sido facultada cópia audível dos depoimentos das testemunhas J… e K…, que considera importantes para a boa decisão da causa.
Na cópia que nos foi facultada, os depoimentos destas testemunhas apresentam-se, efectivamente, com ruído constante, o que os torna imperceptíveis, sobretudo por falta de percepção das perguntas, agravada pelas respostas quase monossilábicas da primeira testemunha. Tal deficiência é, aliás, extensiva aos depoimentos de outras testemunhas, cuja imperceptibilidade não foi suscitada, mas que importaria tornar perceptíveis, visto que este Tribunal não está confinado à indicação feita pela recorrente.
Esta situação impossibilita a autora/recorrente de proceder à pretendida impugnação, muito embora o tenha feito à cautela com base nos seus apontamentos, mas que a apelada não aceita. A mesma deficiência da gravação impede a reapreciação da matéria de facto por este Tribunal.
Pelo menos, o depoimento do J… aparenta ser relevante, porquanto se afirma que presenciou o acidente.
Apesar disso, não declaramos a nulidade daí decorrente, porque a sua apreciação compete, em primeira mão, ao juiz da 1.ª instância onde a mesma foi cometida e dado que poderá ser, eventualmente, suprida mediante o recurso a técnicos da especialidade por forma a obter e facultar, quer às partes quer ao tribunal de recurso, gravações sem as irregularidades apontadas.
Apesar de estar em causa uma nulidade processual que não integra uma nulidade da sentença, mas que se repercute nela, como dissemos, e ainda que tenha sido suscitada nas alegações, sempre competia ao juiz da 1.ª instância o suprimento dessa nulidade, se, como é óbvio, entender que ela existe.
Competia ao mesmo juiz apreciá-la no despacho em que se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso (cfr. art.º 617.º, n.º 1, do NCPC).
Todavia, o Sr. Juiz não apreciou essa nulidade processual, limitando-se a admitir os recursos e a ordenar a remessa dos autos para este Tribunal (cfr. fls. 537).
Não podemos deixar de mandar apreciar a nulidade assim arguida, pelas razões supra referidas e porque dela depende a apreciação do objecto do recurso com que nos deparamos nesta fase, já depois do despacho limiar do relator.
Aproveita-se a oportunidade para afirmar que desconhecemos o estado da gravação dos depoimentos prestados durante a primeira sessão, em que foram inquiridos o condutor do veículo interveniente no acidente, E1…, e o agente de autoridade que tomou conta da ocorrência, L…, visto que o CD que nos foi enviado é totalmente omisso relativamente à sessão de 4/10/2013.
Não há, assim, necessidade de recorrer, para já, à medida drástica da anulação da audiência de discussão e julgamento na parte referente aos depoimentos cuja gravação se apresenta deficiente e da subsequente sentença, ao abrigo dos poderes conferidos a este Tribunal de recurso pelos art.ºs 640.º, n.º 2, al. b) e 662.º, n.º 2, al. c), ambos do NCPC, em consequência da inexistência de elementos que permitam a alteração da decisão da matéria de facto, considerando aquela nulidade dotada de especial natureza que o tribunal pode conhecer, mesmo por via oficiosa[9], até por que a nulidade arguida ainda não foi apreciada por quem o deve ser, em primeiro lugar.
Nesta conformidade, não temos outro remédio senão ordenar a baixa do processo para que seja apreciada a nulidade arguida, nos termos do n.º 5 do citado art.º 617.º, chamando, ainda, a atenção para o suprimento da falta de registo da gravação da primeira sessão.

Destarte, procedem parte das conclusões da apelação, ficando, para já, prejudicadas as restantes questões nela suscitadas.

Sumariando:
I. A deficiente gravação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento constitui nulidade que pode ser arguida nas alegações de recurso quando a gravação não foi disponibilizada nos termos do art.º 155.º, n.º 3, do CPC e não se prove que o reclamante teve conhecimento da deficiência dez dias antes do termo das alegações.
II. A mesma nulidade deve ser conhecida pelo tribunal onde foi cometida, mantendo-se no âmbito do recurso no caso de ser indeferida.

III. Decisão

Por tudo o exposto, decide-se ordenar que o processo baixe ao tribunal recorrido para apreciação da nulidade arguida e posterior legal tramitação, em conformidade com a sua decisão, com repetição da prova irregularmente gravada, se necessário, por forma a que se mostre preparado para a apreciação de todo o objecto da apelação.
*
Custas pela parte vencida a final.
*
Porto, 10 de Março de 2015
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
______________
[1] Correspondente o art.º 201.º do anterior, de igual teor.
[2] A que corresponde o art.º 149.º do actual, com igual conteúdo.
[3] Acórdãos desta Relação de 13.02.2014, no processo n.º 142046/08.3YIPRT.P1, e de 17.12.2014, no processo n.º 927/12.7TVPRT.P1, ambos em www.dgsi.pt.
[4] Proferido no processo n.º 512/12.3TBAMT.P1, em que o aqui relator e 1.º adjunto intervieram como adjuntos.
[5] Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra de 10.07.2014, no processo n.º 64/13.7T6AVR-A.C1, em www.dgsi.pt.
[6] Correspondente ao art.º 685.º, n.ºs 1 e 7 do anterior CPC.
[7] Correspondente ao n.º 2 do art.º 201.º do anterior CPC.
[8] Idêntico ao do art.º 201.º do Código anterior.
[9] Neste sentido, e, de certo modo, na linha do decidido no acórdão do STJ de 16.12.2010, no processo n.º 170/06.4TCGMR.G1, ver o voto de vencido no acórdão da Relação de Guimarães, de 11.09.2014, no processo n.º 4464/12.1TBGMR.G1, e o acórdão da Relação de Lisboa de 12.11.2013, no processo n.º 1400/10.3TBPDL.L1-7, todos em www.dgsi.pt, bem como o citado acórdão de 10/2/2015.