SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA
LOTARIA NACIONAL
JOGO PARALELO
Sumário

I – A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa possui competência material para apreciar a contraordenação prevista pelo art. 11.º do Decreto-Lei n.º 40397, de 24 de novembro de 1955.
II – Integra a exploração de um jogo paralelo à Lotaria Nacional a atividade do agente que promove e vende “rifas”, escolhidas pelo apostador, em que o número premiado é o que resultar do sorteio daquela Lotaria Nacional.
III – Apenas as rifas que não tenham como meio aleatório de referência os jogos exclusivos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa cabem no âmbito da Lei do Jogo [DL n.º 422/89, de 2 de dezembro].

Texto Integral

Recurso Penal 2032/14.2TBPRD.P1

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Inst. Local – Secção Pequena Criminalidade – J3, foi proferida decisão no processo de impugnação judicial acima referido, declarando “nula a decisão administrativa proferida pela Santa Casa da Misericórdia” que aplicara à arguida /impugnante B… a coima de €500,00
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público recorreu para este Tribunal da Relação do Porto, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição:
1. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa possui competência material para apreciar a contra-ordenação prevista no disposto no artigo 11°, do Decreto-Lei n.º 40397, de 24 de novembro de 1955, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 43339, de 15 de dezembro de 1960 e pelo Decreto-Lei n. 120/75, de 10 de março e ao abrigo do artigo 2°, n.º 1, alínea a) e 3°, n.º 1, da Lei n. 30/2006, de 11 de julho, com a redacção dada pela Declaração de Justificação n.º 47/2006, de 7 de Agosto e, em consequência, condenar a arguida na coima de €500,00, acrescida das custas judiciais.
2. Na verdade, a promoção, organização e exploração das lotarias e concursos de apostas mútuas e demais jogos sociais é um direito exclusivo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, conforme decorre do Decreto-Lei n.º 412/98, de 21 de dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 225/98, de 17 de julho, bem como o Decreto-Lei n.º 40397, de 24 de novembro de 1955, na versão actual do Decreto-Lei n. 120/75, de 10 de março, o Decreto-Lei n.º 84/85, de 28 de março, republicado nos termos do Decreto-Lei n.º 317/2002, de 27 de dezembro e também o Decreto-Lei n.º 412/93, de 21 de dezembro, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 153/2009, de 2 de julho, para além dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/91, de 2612008 e Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro.
3. O actual regulamento do jogo social do Estado denominado Lotaria Nacional (Clássica e popular) foi aprovado pela Portaria n. 1016/2010, de 4 de outubro, a qual veio a revogar a anterior Portaria n.º 551/2001, de 31 de maio.
4. Só os mediadores dos jogos sociais do Estado atribuídos à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e devidamente autorizados podem prestar serviços de assistência para tais efeitos.
5. A Lei n.º 30/2006, de 11 de julho veio proceder à conversão em contra-ordenações de contravenções e transgressões em vigor no ordenamento jurídico nacional, em especial no âmbito dos concursos de apostas mútuas e lotarias concedidos à Santa Casa de Misericórdia de Lisboa.
6. O Acórdão do Tribunal Constitucional nº. 595/2012, publicado em Diário da República, 2.ªSérie, de 18.01.2013, refere que não existe qualquer inconstitucionalidade quanto ao facto de o departamento de jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ser competente para instruir os respectivos processos de contra-ordenação, bem como da competência da direcção desse departamento para aplicar as correspondentes sanções.
7. No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 404/2013, de 15 de Julho de 2013.
8. Consideramos que o departamento de jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é competente para o processamento da contra-ordenação que a arguida praticou, bem como o é para aplicação das coimas e sanções acessórias previstas na lei pela prática das mesmas atento o disposto no artigo 50, n.º 1, da Lei n.º 30/2006, de 11 de julho e o artigo 27°, n.º 3, alínea n), do Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro, inexistindo qualquer incompetência material e ao ter sido proferida a decisão recorrida, nos moldes em que o foi, a Mma. Juiz violou os preceitos supra descritos.
9. Por todo o exposto, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que considere o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa competente materialmente para aplicar a coima à arguida e determine a prolação de decisão face ao recurso interposto pela arguida.

*
Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, acompanhando “a motivação apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância…”.
Deu-se cumprimento ao disposto no art. 417º, 2 do CPP, tendo a arguida respondido ao parecer do MP, pugnando pela prescrição do procedimento contra-ordenacional e sustentando a incompetência material da Santa Casa da Misericórdia para aplicar a coima pela contra-ordenação ora em causa.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A sentença recorrida não referiu, no local sistematicamente adequado, quais os factos que considerou provados. Contudo, os factos a que atendeu foram os referidos na decisão impugnada, constantes de folhas 17 a 22 dos autos, e que são os seguintes:
a) No dia 14-12-2011, pelas 17horas, no interior do estabelecimento comercial de frutas, sito na Rua …, n.º …, Porto, a arguida procedia à promoção e venda de apostas/”rifas” através da inscrição de números numa folha A4, numerada de 1 a 00 que, mediante o pagamento de € 2 por número, habilitava o apostador a ganhar um cabaz de natal a sortear pelos números extraídos na Lotaria Nacional.
b) No dia, hora e local indicados, encontrava-se exposto, em cima de um expositor com fruta, um “Cabaz de Natal” contendo diversos artigos consumíveis e num pequeno balcão, junto à caixa registadora, encontrava-se uma (1) folha A4 com quadrículas numeradas de 1 a 00, algumas com nomes de apostadores e com as inscrições manuscritas, na parte superior com os dizeres “Cabaz de Natal, a 2 € e A Sortear pela Lotaria do Ano Novo”.
c) Abordada pelos investigadores, a ora arguida esclareceu que o referido “Cabaz” era para sortear pela Lotaria do Ano Novo (02-01-2012) e que o valor de cada aposta era de dois euros (€ 2,00), tendo, voluntariamente, entregue a folha de registo de apostas, assinando-a e datando-a.
d) Analisada a folha de marcação das apostas e contabilizadas s mesmas, constatou-se que para o sorteio a realizar em 02.1.2012, pela Lotaria de Ano Novo, tinham sido vendidas quarenta e uma (41) apostas/”rifas”, ao preço unitário de €2 que lhe permitiu arrecadar o valor total de €82.

2.2. Matéria de Direito
2.2.1. Objecto do recurso
É objecto do presente recurso a decisão que, no âmbito da impugnação judicial da coima aplicada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, anulou tal decisão administrativa, por entender que a Santa Casa da Misericórdia não tinha competência material para aplicar coimas.
Na verdade, entendeu-se na decisão recorrida que, no caso, estavam em causa “rifas” e às “rifas aplica-se o regime estabelecido no DL n.º 422/89, de 2/12, com a redacção aditada pelo DL n.º 10/95, de 19/01, sendo considerada uma “modalidade afim do jogo de fortuna ou azar”, pelo n.º 2 do art. 159º daquele DL, pelo que quem deveria instruir os respectivos processos contra-ordenacionais seriam as autoridades policiais autuantes, não tendo a Santa Casa da Misericórdia competência material para o efeito”.
Com esta decisão, o tribunal a quo não apreciou a excepção peremptória da prescrição suscitada pela arguida, consignando “que a excepção peremptória da prescrição pela recorrente invocada, face à decisão tomada, não será apreciada”. Daí que o objecto do recurso não possa abranger a excepção da prescrição, por se tratar de questão expressamente não apreciada na decisão recorrida.
Assim, está em causa apenas saber se a decisão recorrida deve (ou não) manter-se, ou seja, saber que tipo de jogo a arguida promovia e vendia no seu estabelecimento comercial e, daí, concluir se a Santa Casa da Misericórdia tinha (ou não) competência para apreciar a contra-ordenação em causa e condenar a arguida na coima de € 500,00.
2.2.2. Competência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para aplicar a coima que efectivamente aplicou.
A decisão recorrida partiu do pressuposto – mas sem fazer qualquer demonstração de que o mesmo era exacto – de que estava em causa uma “rifa” sancionada pelo regime previsto no Dec. Lei nº. 422/89, de 2/12.
Ora, se é verdade que aos factos previstos no DL nº. 422/89, de 2/12 se aplica o regime aí previsto, também é verdade que aos factos previstos na Lei nº. 30/2006, de 11 de Julho, se aplica o regime aqui previsto. Tais regimes são diferentes entre si, precisamente no que respeita à entidade competente para a instrução e aplicação das coimas.
No regime previsto no Dec. Lei nº. 422/89, de 2/12, as autoridades autuantes tem competência para instruir o procedimento, cabendo a aplicação das coimas ao membro do governo responsável pela área da administração interna – art. 164º do Dec. Lei 422/89, de 2/12.
Já no regime previsto na Lei nº. 30/06, de 11/07, é competente para o processamento das contra-ordenações o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – art. 5º da Lei 30/2006, de 11 de Julho.
Portanto, a questão que se coloca, desde logo, é a de saber se os factos em causa consubstanciam uma contra-ordenação prevista na Lei nº. 30/2006, de 11/07, ou uma contra-ordenação prevista no DL n.º 422/89, de 2/12.
A decisão recorrida não fez qualquer demonstração da qualificação jurídica dos factos, porque entendeu estar perante uma “rifa”, modalidade de jogo expressamente prevista no Dec. Lei n.º 422/89, de 2/12.
No entanto, esta constatação não é bastante. Na verdade, importa saber se os factos em causa cabem (ou não) na previsão da contra-ordenação que a Santa Casa da Misericórdia entendeu ter sido cometida; se tais factos couberem nessa previsão (não obstante serem chamados de “rifa”), importa estabelecer o âmbito de aplicação de cada um dos diplomas legais em aparente conflito.
O art. 2º, 1, a) da Lei nº. 30/2006, de 11 de Julho, refere constituir contra-ordenação:
a) A promoção, organização ou exploração, independentemente dos meios utilizados, nomeadamente o electrónico, de concursos de apostas mútuas, lotarias nacional e instantâneo ou outros sorteios idênticos aos concedidos em regime exclusivo à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com violação desse regime”.
A arguida (aqui recorrida) explorava no seu estabelecimento comercial um jogo que promovia e vendia “rifas”, pelo valor de € 2,00 por número, número esse escolhido pelo apostador e que, face ao sorteio da Lotaria de Ano Novo, lhe permitia ganhar um Cabaz de Natal (isto é, o apostador podia ganhar um Cabaz de Natal, a sortear pelos números extraídos na Lotaria Nacional).
Esta situação integra, em rigor, a exploração de um jogo paralelo à Lotaria Nacional. Na verdade, o apostador escolhia um número e, em função do resultado da Lotaria Nacional, podia ganhar um prémio (no caso, um cabaz de natal).
A exploração de um jogo de Lotaria (idêntico ao concedido em regime exclusivo à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) é assim indiscutível, pelo que os factos constantes dos presentes autos integram o tipo de ilícito previsto no art. 2º, 1,a) da Lei nº. 30/2006, de 11 de Julho.
É verdade que o jogo em causa se poderia incluir também no conceito de “jogo de fortuna e azar”, mais concretamente na modalidade de “rifa”. E, portanto, os factos em causa poderiam também ser incluídos no âmbito do regime previsto no DL nº. 422/89, de 2/12.
O conflito é, todavia, apenas aparente. Todas as rifas, ou qualquer outro tipo de jogo de fortuna e azar que tenha como referência as lotarias ou outros sorteios idênticos, em regime exclusivo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, integram a contra-ordenação prevista no art. 2º da Lei nº. 30/2006, de 11 de Julho. O que determina a subsunção neste tipo de contra-ordenação é o facto de o jogo utilizado ser um daqueles que está concedido, em regime de exclusivo, à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
No caso dos autos, aquilo que determinava a sorte do apostador, no jogo utilizado, era a Lotaria Nacional, concedida em regime de exclusivo à Santa Casa de Misericórdia de Lisboa e, portanto, a situação de facto integra o disposto no citado art. 2º, 1, a) da lei nº. 30/2006 de 11.07.
Deste modo, apenas as rifas que não tenham como meio aleatório de referência os jogos exclusivos da Santa Casa da Misericórdia, cabem no âmbito de aplicação do Dec. Lei nº. 422/89, de 2 de Dezembro. Se, por exemplo, fosse feito um jogo, numa folha A4, idêntico ao dos autos, mas cujo resultado dependesse do número da roleta de um determinado casino, a “rifa” em causa caberia no âmbito do Dec. Lei 422/89, de 2 de Dezembro.
A diferença entre o âmbito de aplicação da Lei n.º 30/06 e do DL nº. 422/89, de 2/12, não está no facto de estarmos perante um jogo de “fortuna e azar” ou uma “rifa”, mas sim no facto de estrarmos perante um jogo de fortuna e azar atribuído em regime de exclusividade à Santa Casa da Misericórdia, ou a outras entidades (Casinos, por exemplo).
No presente caso e perante o apontado critério, estando em causa um jogo cuja sorte do apostador decorria do resultado de um jogo atribuído em regime exclusivo à Santa Casa da misericórdia de Lisboa, é aplicável o regime da Lei n.º 30/2006, de 11 de Junho, segundo o qual cabe àquela entidade o processamento das contra-ordenações aí previstas e a aplicação das coimas respectivas – art. 5º da mesma Lei.
Nestes termos, impõe-se julgar o recurso procedente e, consequentemente, revogar a decisão recorrida.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos à 1ª instância, a fim ser proferida decisão que não considere a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa materialmente incompetente para apreciar a contra-ordenação em causa nos autos e aplicar a coima respectiva.
Sem custas.

Porto, 18/03/2015
Élia São Pedro
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