ACIDENTE DE VIAÇÃO E DE TRABALHO
DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

A circunstância de no n.º 3, do artigo 9.º, da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, se referir que «Nos casos em que não haja lugar à indemnização pelos danos previstos na alínea a) do artigo 3.º, é também inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho», não impede que seja atribuída indemnização a título de dano biológico, se este existir.

Texto Integral

Tribunal da Relação do Porto – 5.ª secção.
Recurso de Apelação.
Processo n.º 972/11.0TBLSD do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este – Penafiel – Instância Central – Secção Cível – J3.

*
Juiz relator – Alberto Augusto Vicente Ruço.
1.º Juiz-adjunto……Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto.
2.º Juiz-adjunto…….Ana Paula Pereira de Amorim.
*
Sumário:
A circunstância de no n.º 3, do artigo 9.º, da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, se referir que «Nos casos em que não haja lugar à indemnização pelos danos previstos na alínea a) do artigo 3.º, é também inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho», não impede que seja atribuída indemnização a título de dano biológico, se este existir.
*
Recorrente/Ré…………………......Companhia de Seguros B…, S. A., melhor identificada nos autos.
Recorrido/Autor…………………...C…, carpinteiro, residente em …, …, ….-… Celorico de Basto.
*
I. Relatório.
a) O presente recurso vem interposto da sentença que condenou a ré seguradora a pagar ao autor uma indemnização por danos que este alegou ter sofrido em consequência de um acidente de viação.
Pediu €25.000,00 euros a título de danos não patrimoniais; €7.000,00 euros por perdas salariais e €85.000,00 euros por perda de capacidade de ganho.
No final, o tribunal julgou parcialmente procedente a acção e condenou a ré seguradora a pagar ao autor a quantia de «…€30.000,00 (trinta mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação da ré, até integral pagamento», tendo absolvido a ré do restante pedido.
Esta verba é composta pela quantia de €25.000,00 euros atribuída ao recorrido a título de dano biológico.
b) É desta decisão que recorre a ré B…, S. A., tendo formulado as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso versa apenas sobre o montante de €25.000,00 atribuído pelo Tribunal a quo ao Recorrido a título de Dano Biológico, pelo que nenhum reparo há a fazer ao restante conteúdo da douta sentença de fls.
2. Na verdade, a ora Recorrente não pode concordar com o teor da douta sentença de fls. nesse aspeto, por entender que houve uma incorreta interpretação e aplicação da lei, na medida em que entende não ser devida qualquer indemnização ao lesado a título de dano biológico. Daí o presente recurso na expectativa de que lhe seja feita justiça.
3. O Recorrido intentou uma ação declarativa sob a forma de processo ordinário contra a ora Recorrente, na qual pediu a condenação desta, pelos danos advenientes de acidente de viação, nas quantias de €25.000,00, a título de danos não patrimoniais, €7.000,00, por perdas salariais e €85.000,00, por perda de capacidade de ganho. Acrescidas de juros legais, contados da citação e até integral pagamento.
4. Quando a presente ação deu entrada em juízo, em 04.07.2011, bem sabia o Recorrido, e isso resultou alegado e provado pela ora Recorrente e, mais tarde, também pela chamada D…, nomeadamente com a junção dos respetivos documentos comprovativos (vide, por exemplo, documentos n.º 4 e 7 juntos com o articulado da chamada), que não tinha direito a peticionar os referidos valores a titulo de perdas salariais, pois que já havia recebido daquela esses valores, atinentes aos períodos de Incapacidade Temporária Absoluta e Parcial sofridos no âmbito da regularização do acidente de trabalho.
5. Veio o Recorrido a reduzir o pedido para o montante de €106.815,82, por requerimento apresentado em 02.05.2012, apenas quando confrontado com tais documentos, reconhecendo afinal ter já recebido o montante de €10.184,18 no âmbito da regularização do processo por acidente de trabalho, que correu termos no Tribunal de Trabalho de Guimarães, sob o n.º 2249/10.9TIPNF.
6. Tal valor correspondia, contudo, não só aos períodos de incapacidade, mas também ao capital de remição entregue em 24.02.2012, ou seja, recebeu valores relativos à perda de capacidade de ganho em que também havia fundamentado a presente ação.
7. O Tribunal a quo andou mal ao decidir como fez, pois apesar de dar como provados os factos supra referidos (vide factos provados n.º 25, 26, 28 e 29), entendeu que o Recorrido ainda teria direito a ser ressarcido pelo dano biológico, repercutindo-se o mesmo até no exercício da sua atividade profissional habitual na medida em que implica a necessidade de desenvolver esforços suplementares.
8. O acidente dos autos traduziu-se simultaneamente num acidente de trabalho e acidente de viação. As indemnizações a que o lesado terá direito em ambos os domínios não são cumuláveis, mas complementam-se entre si, não devendo ressarcir-se duplamente o mesmo dano.
9. Os esforços acrescidos ou suplementares no exercício da atividade profissional já foram salvaguardados pela indemnização atribuída no foro laboral, pelo que considerando-os novamente no domínio cível, estaremos a contabilizar duplamente o mesmo parâmetro do dano.
10. As indemnizações no domínio dos acidentes de viação são reguladas pelo disposto no DL 291/2007 de 21 de Agosto, e pela Portaria 37712008 de 26 de Maio.
11. Especificamente quanto à situação ora em crise, dita o art. 26° do DL 291/2007 que "1·Quando o acidente for simultaneamente de viação e de trabalho, aplicar-se-ão as disposições deste decreto-Iei, tendo em atenção as constantes da legislação especial de acidentes de trabalho".
12. Por sua vez o art. 9.º da Portaria 377/2008, cuja letra é muito clara, dispões que "1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, quanto ao Fundo de Garantia Automóvel, se o acidente que originou o direito à indemnização for simultaneamente de viação e de trabalho, o lesado pode optar entre a indemnização a título de acidente de trabalho ou a indemnização devida ao abrigo da responsabilidade civil automóvel, mantendo-se a actual complementaridade entre os dois regimes. 2. Sendo o lesado indemnizado ao abrigo do regime específico de acidentes de trabalho, as indemnizações que se mostrem devidas a título de perdas salariais ou dano patrimonial futuro são sempre inacumuláveis. 3 - Nos casos em que não haja lugar à indemnização pelos danos previstos na alínea a) do artigo 3.º, é também inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho."
13. É precisamente esta última a situação dos autos, já que o Mm. Juiz a quo entendeu ser apenas de atribuir ao Recorrido uma indemnização pelo dano biológico, além, obviamente, da devida pelos danos não patrimoniais, não abrangidos pela ação laboral.
14. Tendo em conta a data de prática dos atos, nomeadamente interposição da presente ação e recebimento do capital de remição na ação laboral, poderia o lesado ter optado por uma ou outra indemnização.
15. Nos termos da lei, também se conclui que a indemnização a título de dano biológico não é cumulável com a indemnização já recebida no foro laboral, pelo que o recorrido não terá direito à mesma.
16. Assim, vem a Recorrente requerer que revoguem V.a Exas. a douta sentença de fls., nos termos supra expostos, mantendo-a apenas na parte em que atribui ao recorrido uma indemnização pelos danos não patrimoniais por si sofridos no montante de €5.000,00, por ser a única devida.
17. A douta sentença de fls. viola o artigo 9.º, n.º 3 da Portaria 377/2008 de 26 de Maio.
Nestes termos e nos melhores de direito, revogando v. exas. a douta sentença de fls. farão um ato de inteira e sã justiça».
c) O recorrido contra-alegou e concluiu neste termos:
«1. O Tribunal a quo deu como provada entre outros, a matéria de facto vertida nos pontos 18, 19, 20, 21, 24 e 29, e com base nessa factualidade arbitrou ao recorrido uma indemnização de €30.000,00.
2. A apelante contesta tal decisão alegando existir cumulação de indemnizações (entre o foro laboral e o foro civil) e, por via disso, uma violação do art. 9.º, n.º 3, da Portaria 377/2008, de 26 de Maio. 3. Nenhum dos danos que foram objecto de ressarcimento em sede laboral pode ser identificável com os danos não patrimoniais e biológico que motivam a atribuição ao apelado dos montantes indemnizatórios no âmbito dos presentes autos.
4. O ressarcimento dos danos não patrimoniais jamais esteve em causa no processo de acidente de trabalho, já que este é fundamentalmente destinado a compensar o Autor pelas perdas salariais determinadas pelo acidente.
5. Do mesmo modo, o dano biológico sofrido pelo recorrido, por não integrar qualquer componente relativa a danos patrimoniais futuros, também não configura um dano que tenha sido considerado ao nível da indemnização atribuída no processo laboral.
6. O capital de remição da pensão laboral visa compensar perdas de rendimento decorrentes do grau de incapacidade permanente com que se ficou; enquanto o dano cujo ressarcimento se assegura com a indemnização decorrente do défice funcional da integridade físico-psíquica (dano biológico) tem natureza geral, relacionando-se com a repercussão na afectação definitiva da capacidade física e/ou psíquica mas sem intercorrência ao nível dos rendimentos profissionais.
7. O dano biológico decorrente de incapacidade permanente genérica, sem afectação negativa do salário do lesado, justifica a indemnização por dano futuro, a calcular essencialmente com base na equidade (cfr. Ac do STJ de 10.07.2008 acessível em www.dgsi.pt).
8. Inexiste, assim, qualquer cumulação de indemnização que determinaria a violação do art. 3.º da Portaria 377/2008, de 26 de Maio.
Nestes termos e nos melhores de direito que proficientemente suprirão, negando provimento à apelação e, consequentemente, confirmando a decisão recorrida farão V. Ex.as JUSTIÇA!».
II. Objecto do recurso.
Como se vê pelas conclusões que ficaram indicadas, a questão colocada no recurso consiste em saber se o autor terá direito a ser indemnizado a título de dano biológico, considerando que:
(a) O acidente que vitimou o autor foi simultaneamente um acidente de trabalho e um acidente de viação.
(b) As indemnizações a que o lesado tem direito em ambos os domínios não são cumuláveis, mas complementam­-se entre si, não podendo ressarcir-se duplamente o mesmo dano.
Cumpre, por conseguinte, verificar se o autor foi indemnizado no âmbito do processo laboral quanto aos prejuízos indemnizados agora a título de dano biológico.
III. Fundamentação.
a) Matéria de facto provada.
1. Cerca das 07:10 horas do dia 19 de Abril de 2010, ocorreu um acidente de viação ao quilómetro 72,100 da Auto-Estrada A11, no …, do concelho de Lousada.
2. Em que interveio o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-FM, propriedade de E…, Lda., conduzido por F….
3. Nas referidas circunstâncias de tempo e de lugar, o veículo ..-..-FM circulava pela identificada A11, no sentido Marco de Canaveses – Lousada.
4. Pela metade direita da faixa de rodagem, atento o referido sentido e com velocidade bem superior a 120 quilómetros/hora.
5. A dada altura, quando descrevia uma ligeira curva à esquerda ascendente, o veículo entrou em derrapagem, e o seu condutor – atenta a velocidade a que circulava – não conseguiu dominá-lo.
6. Com alguma falta de destreza, limitou-se a guinar o volante e a accionar o travão, deixando um rasto de mais de 11 metros no asfalto, mas o veículo, desembraiado, prosseguiu em resvalamento galopante.
7. Transpôs o dispositivo de retenção lateral (separador central), e só se imobilizou na via oposta àquela em que circulava, depois de capotar.
8. A Ré por via do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ……………/., assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros ..-..FM, propriedade de E…, Lda.
9. O Autor nasceu em 17 de Fevereiro de 1986.
10. O Autor era transportado gratuitamente no veículo ..-..-FM.
11. Em consequência do embate, o Autor sofreu:
a) traumatismo craneo-encefálico;
b) fractura do fémur da perna esquerda;
c) contusão da perna e joelho esquerdos.
12. Do local do acidente foi imediatamente transportado para o Hospital de Penafiel e, daí, enviado para o Hospital de Santa Maria, Porto, onde foi submetido a uma cirurgia ao fémur da perna esquerda.
13. Aí permanecendo internado durante 10 dias.
14. Em 11 de Maio de 2010, o Autor foi submetido a uma cirurgia plástica com enxertos dermoepidérmicos de zona dadora do braço esquerdo.
15. Tendo ficado internado durante uma semana.
16. Após esse internamento, o Autor regressou a sua casa, onde se manteve em repouso até ao dia 27 de Junho de 2010.
17. E prosseguiu em tratamento junto dos serviços clínicos da Ré até ao dia 6 de Dezembro de 2010, data da consolidação médico-legal das respectivas lesões.
18. Apesar dos tratamentos a que se submeteu, o Autor ficou a padecer definitivamente das seguintes sequelas:
a) No crânio: cicatrizes no couro cabeludo, de localização fronto-parietal central, triangulóide de vértice posterior, com dimensão de 7cm x 5 cm, não totalmente coberta por cabelo;
b) No membro superior esquerdo: cicatriz no braço, na sua face antero-interna, com dimensão de 7cm x 6 cm, zona dadora de pele;
c) Na mão: cicatriz sobre as segundas articulações dos 3.º e 4.º dedos, com mobilidades normais;
d) No membro inferior esquerdo: cicatriz triangular na face anterior do joelho e parte superior da perna, com dimensão de 3cm x 3 cm x 4cm.
19. As sequelas de que ficou a padecer são causa de sofrimento físico que, ainda que não afectando o Autor em termos de autonomia e independência, limitam-no em termos funcionais, provocando-lhe um défice funcional permanente de integridade físicopsíquica de cinco pontos, numa escala valorativa que considera ser de 100 pontos a capacidade integral do indivíduo.
20. As sequelas referidas em 18) e 19) implicam esforços suplementares do Autor no exercício da sua actividade profissional habitual.
21. Entre a data do evento e a data da consolidação médico-legal das lesões que sofreu, o Autor teve um sofrimento físico e psíquico correspondente a um quantum doloris de grau 3 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
22. O Autor era saudável e fisicamente bem constituído.
23. O Autor, à data dos factos, tinha a profissão de carpinteiro e auferia todos os meses uma retribuição que, em termos anuais, ascendia ao valor de €10.200,79 euros.
24. Por causa dos ferimentos sofridos e dos tratamentos a que teve de se submeter, o Autor esteve sem poder realizar qualquer tipo de trabalho até ao dia 27 de Junho de 2010 e, depois dessa data, manteve uma incapacidade parcial para o trabalho até ao dia 6 de Dezembro de 2010.
25. No âmbito da regularização do sinistro dos autos, a D… – Companhia de Seguros, S. A., em cumprimento do contrato de seguro de acidentes de trabalho que a vinculava, titulado pelo apólice n.º …………, cujo tomador é a E…, entidade patronal do Autor, foi a primeira a intervir junto do Autor, diligenciando no sentido de este ser seguido e tratado pelos seus serviços clínicos, tendo estes atribuído alta médica ao Autor em 7 de Dezembro de 2010.
26. A D… pagou ao Autor a quantia de €2.317,72 euros a título de incapacidade temporária absoluta, incapacidade temporária parcial e alta definitiva.
27. Tais valores foram calculados com base nas remunerações declaradas à Segurança Social, como também em sede do processo de acidente de trabalho n.º 2249/10.9TTPNF do Tribunal de Trabalho de Guimarães.
28. Para além da quantia referida em 26), a D… – Companhia de Seguros, S. A., pagou ao Autor mais €33,00 euros a título de incapacidade temporária.
29. O Autor recebeu ainda da D… - Companhia de Seguros, S. A., e da sua entidade patronal as quantias de €6.628,03 euros e de €1.139,51 euros, respectivamente, relativas ao capital de remição da pensão da pensão anual e vitalícia que, no âmbito do processo melhor identificado em 27), lhe foi atribuído para ressarcimento da incapacidade permanente para o desempenho de funções laborais de que ficou a padecer, acrescida ainda a primeira de tais quantias de €65,92 euros relativa a diferenças de indemnização, despesas de transporte e respectivos juros de mora.
b) Apreciação da questão objecto do recurso.
1 - Não assiste razão à recorrente pelos fundamentos que a seguir se indicam.
I – Em primeiro lugar, vejamos em que consiste o dano biológico e seu enquadramento enquanto espécie de dano, no âmbito geral do dano corporal.
Transcreve-se o que já ficou referido pelo relator no acórdão do TRP de 8 de Setembro de 2014, proferido no processo n.º 1811/11.7TBPRT [1].
Qualquer evento que cause uma alteração no estado corporal do sujeito constituirá, só por si, um dano, ainda que não gere diminuição de rendimentos.
Mas tal alteração poderá, ao mesmo tempo, ter reflexos negativos de natureza patrimonial ou não patrimonial.
A este respeito, dada a sua clareza, cita-se aqui Armando Braga, que, referindo-se à decisão n.º 184, de 14 de Julho de 1986, do Tribunal Constitucional italiano, disse que em tal decisão de consagrou «…a distinção entre dano-evento e dano-consequência. Aí se concluiu que o dano biológico constitui a lesão do bem da saúde como dano evento, enquanto o dano moral e o dano patrimonial pertencem à categoria de dano consequência em sentido estrito. A afectação da integridade físico-psíquica da vítima, transformada em patologia constitui-se com o evento lesivo. O dano que afecta a integridade físico-psíquica não deve ser confundido com o dano momentâneo, tendencialmente passageiro, ou seja, a perturbação psicológica, que se traduz no dano moral (dano-consequência). A distinção entre dano-evento e dano-consequência tem a virtualidade de deslocar a discussão do dano corporal do mero âmbito das suas consequências para a decisiva esfera ontológica. Esta distinção, entre outras virtualidades, permite clarificar que o dano corporal (dano-evento) existe independentemente das consequências de ordem patrimonial (dano-consequência). Assim, o dano corporal existe sempre que haja lesão da integridade físico-psíquica. E reconhecida a sua existência como dano-evento, sempre terá de ser reparado. Já as consequências patrimoniais do dano corporal revelam-se, no plano ontológico, sucessivas, ulteriores a este e meramente eventuais. A eventual existência e contornos das consequências patrimoniais não pode nem deve confundir-se com o dano corporal (dano evento) não depende da existência e prova de efeitos patrimoniais, este é que se apresentam como consequência (ulterior) do primeiro. Assim, o dano corporal existe sempre que haja lesão da integridade físico-psíquica» [2].
Refere ainda este Autor, que «…se para além do “dano biológico” puder ser verificado um concreto dano à capacidade laboral da vítima, tal representa um ulterior coeficiente ou plus de dano a acrescentar ao dano corporal. Também o “dano moral” poderá ser considerado, se se verificarem os requisitos jurídicos da ressarcibilidade, sendo representado pelo estado de sofrimento psíquico provocado na vítima, habitualmente transitório, da ofensa produzida e das suas consequências» [3].
Afigura-se que esta análise, que destaca o dano corporal (biológico) como dano primordial (dano evento) e os restantes danos como consequência eventuais, pressupondo o primeiro, que poderão ou não verificar-se, é aquela que descreve a realidade tal como ela existe e, por essa razão, deve ser seguida quando se procura determinar a indemnização a atribuir ao lesado.
II – Considerando a prioridade, digamos ontológica, do dano biológico que surge como matriz dos restantes danos, então dificilmente se poderá argumentar que este dano se encontra liquidado através da indemnização atribuída a outros danos que nasceram dele e se autonomizaram (danos não patrimoniais, perdas salariais futuras por incapacidade funcional, etc.).
III – A Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio (alterada pela Portaria 679/2009, de 25 de Junho), veio estabelecer um conjunto de regras destinadas a agilizar a apresentação, por parte das seguradoras, de propostas razoáveis aos sinistrados, com vista à regularização de indemnizações devidas por danos causados em acidentes.
Não veio criar normas, nem o poderia fazer, sobre o dano indemnizável.
Refere-se no preâmbulo desta Portaria que só deve atribuir-se indemnização «…por dano patrimonial futuro quando a situação incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional habitual ou qualquer outra».
No artigo 3.º (Danos indemnizáveis em caso de outros danos corporais), esta portaria estabelece o seguinte:
«São indemnizáveis ao lesado, em caso de outro tipo de dano corporal:
a) Os danos patrimoniais futuros nas situações de incapacidade permanente absoluta, ou de incapacidade para a profissão habitual, ainda que possa haver reconversão profissional;
b) O dano pela ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil;
c) As perdas salariais decorrentes de incapacidade temporária havida entre a data do acidente e a data da fixação da incapacidade;
d) As despesas comprovadamente suportadas pelo lesado em consequência das lesões sofridas no acidente».
E no artigo 9.º (Acidentes simultaneamente de viação e de trabalho) diz:
«1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, quanto ao Fundo de Garantia Automóvel, se o acidente que originou o direito à indemnização for simultaneamente de viação e de trabalho, o lesado pode optar entre a indemnização a título de acidente de trabalho ou a indemnização devida ao abrigo da responsabilidade civil automóvel, mantendo -se a actual complementaridade entre os dois regimes.
2 - Sendo o lesado indemnizado ao abrigo do regime específico de acidentes de trabalho, as indemnizações que se mostrem devidas a título de perdas salariais ou dano patrimonial futuro são sempre inacumuláveis.
3 - Nos casos em que não haja lugar à indemnização pelos danos previstos na alínea a) do artigo 3.º, é também inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho».
A recorrente invoca estas normas para sustentar que tendo o autor sido indemnizado no âmbito de um processo judicial laboral no montante «…de €2.317,72 euros a título de incapacidade temporária absoluta, incapacidade temporária parcial e alta definitiva», «…mais €33,00 euros a título de incapacidade temporária» e ainda «…da D… - Companhia de Seguros, S. A., e da sua entidade patronal as quantias de €6.628,03 euros e de €1.139,51 euros, respectivamente, relativas ao capital de remição da pensão da pensão anual e vitalícia…», não tem direito a ser indemnizado a título de dano biológico.
A Ré defende esta posição argumentando que tal indemnização é excluída pelo n.º 3, do artigo 9.º, da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio.
Efectivamente, a letra e o sentido retirado do n.º 3, do artigo 9.º, da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, indicam que no caso dos autos não haveria lugar a indemnização por dano biológico.
Com efeito, o caso dos autos não cabe na al. a), do artigo 3.º desta Portaria, que respeita a situações de «incapacidade permanente absoluta» e a «incapacidade para a profissão habitual», situações que aqui não ocorrem.
E no n.º 3, do artigo 9.º, da Portaria, diz-se que não sendo caso de aplicar a al. a) do artigo 3.º, então não é cumulável «… a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho».
Aparentemente estas normas revelam-se incompreensíveis, pois as situações de «incapacidade permanente absoluta» e «incapacidade para a profissão habitual», é que justificariam a exclusão de indemnização do dano biológico, na medida em que aquelas são situações de incapacidade grave e a indemnização atribuída já incluiria o dano biológico [4].
Por isso, não ocorrendo situações com tal gravidade não se poderá considerar que o dano biológico se encontrará indemnizado.
Mas então que leitura fazer do n.º 3, do artigo 9.º, da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio?
A alternativa interpretativa consistirá em considerar que, nos casos menos graves, a portaria entende não se justificar a indemnização pelo dano biológico, por este não existir ou ser irrelevante e daí a sua exclusão nos termos do n.º 3, do artigo 9.º, da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio.
Porém, esta interpretação é excluída pelo pensamento do legislador expresso no preâmbulo da portaria, onde diz que «Uma das alterações de maior impacte será a adopção do princípio de que só há lugar à indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional habitual ou qualquer outra.
No entanto, ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica».
Portanto, o legislador da portaria não excluiu a indemnização pelo dano biológico em casos de incapacidade permanente parcial, sendo este o caso dos autos.
Apenas a excluiu no caso de existir «…indemnização por acidente de trabalho».
Que dizer?
Tendo em consideração o que ficou dito, o dano biológico é originário; é a matriz de todos os danos e, por isso, em regra, é um dano indemnizável devido ao facto de não se encontrar em situação de ter sido já indemnizado ao serem indemnizados os outros danos derivados dele.
Por outro lado, ressalvando o disposto no n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil, todos os danos são indemnizáveis, mas, uma vez indemnizado o dano, cessa legalmente a situação danosa, não podendo ocorrer duplicação de indemnizações pelo mesmo dano.
Acresce que a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, como se diz no seu artigo 1.º (Objecto da portaria) apenas fixa «1 – … os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, nos termos do disposto no capítulo III do título II do Decreto -Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
2 - As disposições constantes da presente portaria não afastam o direito à indemnização de outros danos, nos termos da lei, nem a fixação de valores superiores aos propostos».
Ou seja, as suas normas restringem-se à regulamentação da apresentação aos lesados, por acidente automóvel, de uma proposta razoável para indemnização do dano corporal.
Por fim, dada a hierarquia das normas, as normas da referida portaria não se sobrepõe às normas do Código Civil aprovadas por um decreto-lei (DL n.º 47 344, de 25 de Novembro de 1966), sendo certo que o Código Civil apenas exclui da indemnização, como se disse, nos termos do n.º 1 do artigo 496.º, os danos de diminuta gravidade que não justifiquem a tutela do direito.
Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa, «São actos legislativos as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais» e, por força do disposto nos n.º 6 e 7 deste mesmo artigo, «Os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes» e «Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão».
Resultando destas normas, como refere Gomes Canotilho, o «Princípio da preeminência ou superioridade dos actos legislativos (leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais) relativamente aos actos normativos regulamentares ou estatutários» [5].
Uma portaria é um «regulamento da autoria de um ou mais ministros, em nome do Governo» [6].
Resulta do exposto, que a norma invocada pela recorrente não se sobrepõe às normas do Código Civil com base nas quais a sentença atribuiu a indemnização.
IV – Por fim cumpre referir que o autor não foi indemnizado no âmbito do processo laboral quanto aos prejuízos que indemnizados a título de dano biológico.
Como se referiu supra, no processo laboral o autor foi indemnizado no montante «…de €2.317,72 euros a título de incapacidade temporária absoluta, incapacidade temporária parcial e alta definitiva», «…mais €33,00 euros a título de incapacidade temporária» e ainda «…da D… - Companhia de Seguros, S. A., e da sua entidade patronal as quantias de €6.628,03 euros e de €1.139,51 euros, respectivamente, relativas ao capital de remição da pensão anual e vitalícia…».
Nos termos do n.º 2 do artigo 48.º (Prestações por incapacidade) da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro ( regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais), «A indemnização em capital e a pensão por incapacidade permanente e o subsídio de elevada incapacidade permanente são prestações destinadas a compensar o sinistrado pela perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho».
Ora, no dano biológico indemniza-se, como se deixou dito, a lesão sofrida no «bem» saúde, tratando-se de um dano que afecta a integridade físico-psíquica de forma permanente.
Verifica-se que este dano não foi indemnizado no processo laboral.
2 – Considerando o exposto, o recurso improcede porque o dano biológico não foi indemnizado no processo laboral e o disposto no n.º 3, do artigo 9.º, da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, não impede a atribuição de tal indemnização.
IV. Decisão.
Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Porto, 23 de Março de 2015
Alberto Ruço
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
_________________
[1] Cfr. Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXIX (2014), Tomo IV, pág. 162 (não se encontra publicado em www.dgsi.pt).
[2] A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual. Coimbra: Livraria Almedina, 2005, pág. 44.
Ver também João Álvaro Dias quando diz que «…é frequente caracterizar-se o dano à saúde como um dano base, uma componente constante ou um dano-evento que se repercute sempre sobre a vida de relação, como tal sendo indemnizável, independentemente das suas consequências patrimoniais, tomada esta expressão no sentido tradicional» - Dano Corporal – Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios. Almedina, 2001, pág. 138, e, mais adiante, que, «…poderemos dizer que o dano à saúde (componente constante) é, além de um dano à integridade bio-psíquica, um dano à vida de relação que, em determinados casos, incide também sobre a capacidade produtiva da pessoa (dano patrimonial em sentido estrito). Por outras palavras, e tido em conta o contexto da afirmação, é também dano à saúde tudo o que não comporta, demonstradamente, uma diminuição da capacidade de produção de réditos» - pág. 140/141.
[3] Ob. cit., pág. 48.
[4] Pareceria, por isso, mais ajustada uma redacção do n.º 3 do artigo 9.º da Portaria, que não contivesse a partícula «não, ficando com esta leitura: «3 - Nos casos em que haja lugar à indemnização pelos danos previstos na alínea a) do artigo 3.º, é também inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho».
[5] Direito Constitucional, 4.ª edição, 2.ª reimpressão. Coimbra1989, pág.603.
[6] João Caupers. Direito Administrativo I. Lisboa, Editorial Notícias, 1996, pág.221.