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IMPUGNAÇÃO PAULIANA
DOAÇÃO
HIPOTECA
Sumário
I - A existência de outros responsáveis pela satisfação do crédito, porventura titulares de bens suficientes para assegurarem essa satisfação, não obsta à impugnação pauliana de actos patrimoniais praticados por um dos devedores que gerem a impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de o credor obter desse devedor a satisfação do seu crédito, desde que os devedores respondam solidariamente pela obrigação, designadamente no caso dos obrigados cambiários, uma vez que nesse caso, se o credor pode exigir desse credor a satisfação da totalidade do crédito, deve poder accionar os mecanismos de protecção desse direito. II - A doação, mesmo que modal, é, na essência, um acto gratuito, pelo que a impugnação pauliana de uma doação dispensa o requisito da má fé, mesmo quando o donatário recebe o bem doado onerado com uma hipoteca e vai pagando prestações do empréstimo hipotecário sem, no entanto, a tal estar vinculado juridicamente mas apenas para evitar a execução hipotecária do bem ou por liberalidade em relação ao doador.
Texto Integral
Recurso de Apelação Processo n.º 1894/11.0TBPRD.P1 [Comarca de Porto Este / Instância Central Penafiel]
Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I.
O Banco B…, S.A., com sede no Porto, instaurou acção judicial contra C… e mulher D…, residentes em …, Penafiel, e E… e marido F…, residentes em …, Paredes, pedindo que seja declarada a ineficácia da doação feita pelos primeiros réus aos segundos réus, em relação ao autor, ordenando-se a restituição do imóvel ao património dos obrigados, de modo a que o autor aí o possa executar, para satisfação integral do seu crédito e na medida deste seu interesse.
Para o efeito, alegou em síntese, que é credora do 1º réu, na medida em que este avalizou duas livranças entregues como garantia do bom e pontual cumprimento das obrigações decorrentes de um contrato de “crédito em conta corrente” e de um contrato de locação financeira que o autor celebrou com a sociedade “G…, Lda.”, da qual o 1º réu é sócio, sendo que a sociedade deixou de cumprir com as obrigações decorrentes destes contratos, tal como fizeram os avalistas, o que motivou a resolução dos contratos. Na execução instaurada para pagamento da livrança respeitante ao primeiro contrato apenas se logrou a penhora de 1/3 do salário de uma co-executada (no montante mensal de €285,63) e na providência cautelar com vista à entrega do veículo a que respeita o segundo contrato não foi sequer recuperado o veículo, tendo entretanto sido declarada a insolvência da sociedade. O 1º réu, com o consentimento da sua mulher e 1ª ré, doou entretanto à 2ª ré, casada com o 2º réu, pais daquele, o imóvel descrito no artigo 22º da petição inicial, não se conhecendo outros bens da titularidade do 1º réu que possam responder pelo pagamento total da dívida, nem no património dos restantes obrigados, para além do referido salário já objecto de penhora. A doação foi feita com o propósito de subtrair o imóvel à acção do autor, o que era do conhecimento dos 2ºs réus que não podiam ignorar que a doação constituía um acto de mera conveniência do seu filho.
Os réus contestaram, impugnando os factos alegados pelo autor e alegando que o terreno tinha sido doado ao 1º réu, no âmbito de decisão dos seus pais de dividirem os seus bens pelos seus quatro filhos, ficando o 1º réu com o imóvel, com a obrigação de pagar aos irmãos a parte que lhes pertencia, para o que contraiu um empréstimo bancário, com hipoteca sobre o imóvel, mas nunca chegou a pagar os irmãos, pelo que os pais resolveram desfazer a doação, tendo sido juridicamente aconselhados a fazê-lo por intermédio de nova escritura de doação do 1º réu à sua mãe, 2ª ré, a qual ficou com o encargo do crédito hipotecário, tendo sido essa a única motivação da doação impugnada, até porque os 2ºs réus desconheciam à data a existência do crédito do autor e as dificuldades por que passava a sociedade dos seus filhos.
Alegaram ainda que a doação feita pelos 2ºs réus ao 1º réu foi posterior à celebração dos contratos do autor com a sociedade, sendo este o momento da constituição dos créditos, pelo que o autor não podia nesta altura contar com a garantia decorrente deste imóvel. Este encontra-se actualmente onerado com duas hipotecas para garantia de encargos de valor muito superior ao valor do bem, pelo que nunca poderá garantir o crédito do autor. A impossibilidade de satisfação deste crédito existe para o autor desde a concretização da primeira hipoteca. A 2ª ré ao ser onerada com o encargo das duas hipotecas, assumiu uma obrigação, o que constitui uma verdadeira contraprestação, pelo que a doação se transformou num contrato oneroso ou pelo menos misto.
Após julgamento, foi proferida sentença julgando a acção procedente.
Do assim decidido, os réus interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I – A questão que se coloca no presente recurso é a de saber se, ante a matéria de facto alegada, os depoimentos prestados, a prova documental existente nos autos, se poderia ter proferido a sentença, ora recorrida, nos termos em que o foi, considerando-se pois, que esta padece de erro, na apreciação das provas, tal como, na aplicação ou interpretação das normas aplicáveis ao caso sub judice.
II – A tese do autor só pode vingar se, no caso sub judice, reunidos fossem todos os requisitos componentes da impugnação pauliana, o que não sucede.
III – Um deles, é a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa mesma impossibilidade, em resultado do acto que impugna. Que o acto do devedor seja prejudicial ao credor, impedindo que este possa reembolsar o seu crédito. Será que este requisito resultou provado no caso em apreço? Parece-nos que não.
IV – Para além da sociedade devedora, mas insolvente, temos mais quatro avalistas, os quais, à data da celebração da escritura pública de doação, em 24.06.2010, possuíam, na sua propriedade, vários bens móveis, pelo menos, de valor considerável e que satisfariam o credor. E detinha a sociedade devedora, toda a maquinaria pesada, equipamentos, viaturas automóveis de valor bem superior ao crédito do autor.
V – Ignorou-se a extensão dos activos das entidades solidariamente obrigadas ao pagamento do crédito do autor, e que não se resumiam aos réus. A oscilação patrimonial de um dos obrigados solidários, não representa, por si só, uma diminuição da garantia de recebimento do credor, porquanto nada indica que esta não possa satisfazer na íntegra os seus direitos à custa do património dos outros obrigados.
VI – Não tendo sido estabelecida semelhante ilação, pois não consta na matéria de facto provada qual a dimensão do património dos outros co-obrigados, nos termos do artigo 342º do Código Civil, teria que decair nos presentes autos, a pretensão do autor.
VII – Não havendo deficit patrimonial teria, necessariamente que naufragar a acção, porque o requisitório exigido pela lei civil para êxito da impugnação pauliana é cumulativo, tendo todos os requisitos exigidos de ser integralmente provados.
VIII – Por outro lado, considerando-se provado que sobre este bem doado, na data da respectiva escritura (24.06.2010), pendia uma hipoteca voluntária a favor da H…, para garantia do capital de €150.000,00, mutuada aos 1ºs réus, foi produzida prova testemunhal, em audiência de Julgamento, que afirma que, este contrato de mútuo está a ser liquidado pela ré E…, não valendo o terreno, já nessa data, este valor.
IX – Nenhum relevo foi concedido a esta prova testemunhal, pura e simplesmente desprezada, considerando-se antes verificado o requisito da existência de um acto gratuito, que é ofensivo da garantia patrimonial de tal crédito, a doação de 24.06.2010.
X – Nas doações, a vontade das partes tem de ser dirigida sempre a um enriquecimento do receptor, a intenção de doar tem de exceder a de obrigar o outro a uma prestação, pois sem espírito de liberalidade não existe doação.
XI – A existência do encargo de pagar o contrato de mútuo celebrado por C… e mulher com a H…, que recaiu sobra a donatária, E… reconduz a doação à categoria dos contratos onerosos.
XII – A doação, realizada em 24.06.2010, ao ser onerada com tão pesado encargo, superior ao real valor do bem doado, já que, só a importância de €150.000,00, supera já, e muito, o preço de mercado deste bem, deixou a doação de ser um contrato gratuito, por haver da parte da donatária, uma verdadeira contraprestação. O valor patrimonial do mútuo transforma o negócio gratuito e unilateral, num negócio oneroso e bilateral.
XIII – A doação não teve por base a intenção ou causa de proporcionar uma vantagem à outra parte, já que a donatária assumiu a obrigação de efectuar determinada prestação, que se encontra numa relação de correspondência com a atribuição patrimonial do doador, o que é suficiente para excluir a natureza gratuita deste tipo de doações que passam a ser contratos onerosos.
XIV – E, tratando-se de actos onerosos, é exigida a má fé, a consciência do prejuízo que o acto cause ao credor.
XV – Não tendo resultado provada a existência de má fé, por parte do réu doador e da ré donatária, questão relevante por estarmos perante um acto oneroso, teria de improceder o pedido formulado pelo autor.
XVI – Ao não considerar desta forma, violou o Tribunal a quo, o disposto nos Artigos 610º e 612º do Civil, devendo ser revogada a Douta Sentença proferida.
A recorrida não apresentou resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II.
As conclusões das alegações de recurso demandam deste Tribunal que resolva as seguintes questões:
i) Se o requisito da impossibilidade de obter a satisfação do crédito está afastado a partir do momento em que não se provou nos autos que os demais obrigados à satisfação do crédito não tivessem bens que permitissem satisfazer o crédito.
ii) Se o acto impugnado deve ser qualificado como acto oneroso e consequentemente era necessário demonstrar que o devedor e o adquirente estavam de má fé, e, na afirmativa, se este requisito não está verificado.
III.
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1) No exercício da sua actividade, em 29 de Agosto de 2008, o A. celebrou com a sociedade comercial “G…, Lda.”, com sede na Rua …, …, …, Paredes, da qual o 1º R. é sócio, um contrato de empréstimo sob a forma de “crédito em conta corrente”, com a referência ../…../.., no montante de €50.000,00 [A) e B) dos factos assentes].
2) Conforme resulta da cláusula 7ª do referido contrato, ficou acordado que aquela sociedade entregaria ao A., em garantia do bom e pontual cumprimento do mesmo, uma livrança em branco por si subscrita e avalizada, entre outros, pelo 1º R., C…, o que veio efectivamente a suceder, dado que o aval (entre outros) deste era condição essencial para que o A. concedesse tal financiamento [C) e D) dos factos assentes].
3) Ainda no exercício da sua actividade, em 2 de Julho de 2008, o A. celebrou com a mesma sociedade um contrato de “locação financeira” tendo por objecto um veículo automóvel de marca “BMW”, matrícula ..-GB-.., no valor total de €. 63.000,00 [A) e E) dos factos assentes].
4) No âmbito das condições particulares do contrato referido no ponto anterior, no item “Condições Especiais”, entre outras obrigações que daí resultam, ficou também acordado que, em simultâneo com a sua formalização, a sociedade locatária, para garantia do bom e pontual cumprimento das obrigações daí resultantes, se obrigava a entregar ao A. uma livrança em branco, por si subscrita, e avalizada, entre outros, pelo 1º R., C…, o que efectivamente veio a suceder, uma vez que o A. exigia o aval prestado por este para a concessão deste apoio financeiro [F) e G) dos factos assentes].
5) A sociedade deixou de cumprir com os pagamentos a que ficara obrigada no âmbito dos dois contratos descritos nos pontos anteriores, não tendo tais pagamentos sido efectuados nem por aquela, nem pelos “avalistas” das livranças, não obstante interpelados para o efeito pelo A. [H) e I) dos factos assentes].
6) O referido no ponto anterior motivou que o A. tivesse procedido à “resolução” do contrato aludido no ponto 1, em 01.03.2010, e, em 20.05.2010, ao preenchimento da livrança referida no ponto 2, cujo valor não foi pago até esta data ao A., não obstante interpelação para o efeito “dos seus obrigados cambiários” [J) e L) dos factos assentes].
7) Em 10 de Setembro de 2010, o A. deu à execução, pelo valor de € 51.195,46, esta livrança, contra a sociedade “G…, Lda.”, o ora 1º R. e os aí demais “co-obrigados cambiários”, execução essa que corre termos no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, sob o n.º 2629/10.0TBPRD, no âmbito da qual apenas foi possível penhorar 1/3 do vencimento que a ali executada I… aufere, através da sociedade “J…, Lda.” (no montante de €285,63/mês) [M), N) e O) dos factos assentes].
8) O referido no ponto 5 motivou ainda que o A., em 21.05.2010, tivesse procedido à “resolução” do contrato de locação financeira aludido no ponto 3, tendo tido que demandar judicialmente a sociedade, para que esta procedesse à entrega do veículo automóvel em questão, através do procedimento cautelar que corre termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial de Paredes, sob o n.º 2233/10.2TBPRD [K), P) e Q) dos factos assentes].
9) Até esta data, nem a sociedade, nem os seus sócios, procederam à entrega ao A. do veículo em questão, nem lhe pagaram qualquer quantia a título das rendas vencidas desde 05.11.2009 [Q) dos factos assentes].
10) Em 26 de Novembro de 2010, foi declarada, no âmbito do processo judicial n.º 2783/10.0TBPRD, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, a insolvência da sociedade “G…, Lda.” [R) dos factos assentes].
11) O 1º R. subscreveu, como avalista, operações de crédito realizadas entre a sociedade referida no ponto 1 e pelo menos as instituições de crédito “K…”, “L…” e “H…”, relativamente às quais foram reclamados montantes em dívida no processo de insolvência aludido no ponto anterior (resposta ao ponto 4º da base instrutória].
12) Por escritura pública intitulada de “Justificação e Doação”, lavrada no Cartório Notarial sito na Rua …, nº .., …, Paredes, no dia 3 de Novembro de 2008, os Réus F… e E… declararam, entre outras coisas, doar ao Réu C…, seu filho, que o declarou aceitar, “por conta da quota disponível e com dispensa de colação”, o prédio rústico sito no …, freguesia …, concelho de Paredes, composto por pastagem, com área de 1.400 m2, a confrontar do norte com M…, do sul com caminho público, do nascente com N… e do poente com P…, não descrito na Conservatória do Registo Predial, mas inscrito na matriz sob o art. 2344 [certidão de fls. 543 a 548]
13) Por escritura pública, intitulada de “Doação”, lavrada no Cartório Notarial de Q…, sito na …, nº …, r/c, trás, esquerdo, em Paços de Ferreira, no dia 24 de Junho de 2010, o Réu C…, com o consentimento da Ré D…, declarou doar à Ré E…, casada com o Réu F… sob o regime de comunhão de adquiridos, a qual declarou aceitar tal doação, o prédio urbano composto de terreno destinado a construção urbana, sito no …, freguesia …, concelho de Paredes, inscrito na matriz sob o art. 3765 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3441 [certidão de fls. 549 a 552].
14) A descrição aberta na Conservatória do Registo Predial de Paredes com o nº 3441/20081216 respeita ao terreno destina a construção urbana inscrito na matriz urbana sob o art. 3765, que proveio do terreno inscrito na matriz rústica sob o art. 2344 [documentos prediais e matriciais de fls. 122 a 147].
15) A aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº 3441/20081216 foi aí inscrita a favor do 1º R., pela Ap. 4 de 16/12/2008, por doação dos 2ºs RR. [documentos prediais e matriciais de fls. 122 a 147 e S) dos factos assentes].
16) Sobre o prédio referido no ponto anterior encontra-se registada, pela Ap. 2228 de 18/02/2009, convertida em definitiva pela Ap. 4365 de 03/03/2009, uma hipoteca voluntária a favor da “H…, S.A.”, para garantia do capital de €150.000,00, com montante máximo assegurado de €211.107,00, por empréstimo concedido aos 1ºs RR. [certidão do registo predial de fls. 162 a 165 e resposta ao ponto 14º da base instrutória].
17) A aquisição da propriedade sobre o prédio referido no ponto 15 operada por intermédio da escritura pública aludida no ponto 13 a favor da 2ª R. foi objecto de inscrição na Conservatória do Registo Predial de Paredes pela Ap. 2266 de 01/07/2010 [certidão do registo predial de fls. 162 a 165].
18) Sobre o mesmo prédio foi registada, pela Ap. 4341 de 11/11/2010, uma hipoteca voluntária a favor de S…, para garantia do capital de €150.000,00, com montante máximo assegurado de €181.500,00, respeitante a empréstimo concedido ao casal formado pelos 2ºs RR. [certidão do registo predial de fls. 162 a 165 e resposta ao ponto 14º da base instrutória].
19) No âmbito da acção executiva aludida no ponto 7, o A. tinha indicado à penhora o imóvel referido nos pontos 14 e 15, sendo confrontado, no decurso das diligências levadas a cabo com vista a essa penhora, com a comunicação do respectivo solicitador de execução, de que não poderia promover o registo da penhora do imóvel em questão, uma vez que já não se encontra registado a favor do ali executado e mulher [S) e T) dos factos assentes].
20) À data de 24/06/2010 e no presente não eram, e não são, conhecidos ao 1º R., pelo menos pelo A., outros bens, para além do referido no ponto anterior [respostas aos pontos 1º e 3º da base instrutória].
21) O 1º R., não obstante a isso se ter comprometido, aquando da escritura pública aludida no ponto 12, não entregou a quantia de €50.000,00 a cada um dos seus três irmãos, mesmo depois de instado para isso pelo menos pela sua mãe e pelas suas irmãs [respostas aos pontos 9º e 11º da base instrutória].
22) Na sequência do referido no ponto anterior, a 2ª R. e o 1º R. acordaram na realização do negócio vertido na escritura pública aludida no ponto 13 [respostas aos pontos 10º e 11º da base instrutória].
23) A 2ª R. pediu ao amigo S… que lhe emprestasse a quantia de €150.000,00, ao que este acedeu, tendo aquela entregue tal quantia ao seu filho T… [resposta ao ponto 13º da base instrutória].
24) Os 1ºs RR. não habitam na morada dos 2ºs RR. [resposta ao ponto 16º da base instrutória].
IV.
As conclusões das alegações de recurso permitem dúvidas sobre o verdadeiro objecto do recurso interposto.
O objecto do recurso de uma decisão é sempre a parte desfavorável ao recorrente já que só quem ficou vencido, e na medida em que o ficou, pode recorrer da decisão (artigo 631.º do novo Código de Processo Civil). Para além desse limite ao poder de cognição do tribunal de recurso, outros podem advir do modo como o recorrente entendeu delinear o seu recurso, uma vez que quando a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas o recorrente pode restringir o recurso a qualquer delas (artigo 635.º).
Com base nos artigos 608.º, nº 2, 609.º, n.º 1, 635.º, nº 4, e 639.º, do Código de Processo Civil constitui jurisprudência continuamente reafirmada que o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao tribunal ad quem conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se as mesmas forem de conhecimento oficioso.
A delimitação do objecto do recurso pela formulação das conclusões das alegações conduz a que seja em função destas e não propriamente das alegações em sentido estrito, que se devam interpretar a balizar as questões que o tribunal de recurso pode e deve conhecer, as quais só podem exceder o mencionado nas referidas conclusões no caso de se tratar de questões de conhecimento oficioso e cujo conhecimento não esteja precludido ou prejudicado.
Nos termos do artigo 639.º do Código de Processo Civil as alegações de recurso devem dividir-se em corpo das alegações, nas quais o recorrente deve expor todos os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão, e conclusões das alegações, nas quais o recorrente deve sintetizar as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e decida.
As conclusões de recurso servem assim para sintetizar as questões que se pretende que o tribunal aprecie e o sentido com que as deverá decidir. Se uma dessas questões é a impugnação da decisão da matéria de facto, terão de fazer parte das conclusões itens especificando essa pretensão e cumprindo os requisitos[1] de depende a validade da impugnação.
Ora nem no corpo nem nas conclusões das alegações de recurso os recorrentes sustentam em parte alguma que determinado facto foi indevidamente julgado provado e a decisão deve ser alterada para não provado e/ou que outro facto foi erradamente julgado não provado e essa decisão deve ser modificada para provado ou provado em determinado sentido.
A impugnação da decisão da matéria de facto é isso e só isso mesmo. Não há impugnação da decisão da matéria de facto quando o recorrente, por exemplo, defende simplesmente que a matéria de facto seleccionada é insuficiente para a boa decisão da causa e reclama a sua ampliação (i.e. não que seja alterada a decisão em relação a esses factos, mas que seja proferida decisão em relação aos novos factos). E também não há quando o recorrente pretende simplesmente que o tribunal ouça a prova gravada para chegar a novas conclusões de facto ou apurar factos que não foram julgados nem considerados na decisão recorrida ou eventualmente nem mesmo alegados pelas partes mas apenas referidos por testemunhas.
Para além de no corpo ou nas conclusões das alegações de recurso não fazerem qualquer referência à intenção concreta de impugnarem a decisão da matéria de facto[2], os recorrentes não observam minimamente qualquer dos requisitos da impugnação da decisão da matéria de facto.
Conforme previa o artigo 685.º-B do antigo Código de Processo Civil, em vigor à data da apresentação do recurso, querendo impugnar a decisão da matéria de facto o recorrente tem de especificar, obrigatoriamente e sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, os seguintes aspectos: os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que na óptica dos recorrentes impunham decisão diversa, sendo que no tocante aos depoimentos gravados carece de indicar as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
A violação deste ónus, preciso e rigoroso, conduz, nos termos expressos e, por conseguinte, intencionais da norma, à rejeição imediata do recurso na parte afectada, não havendo sequer lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento da falha – neste sentido cf. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pág. 145 e seguintes – porquanto esse convite se encontra apenas consagrado no n.º 3 do artigo 639.º do Código de Processo Civil para as conclusões das alegações sobre matéria de direito.
Tem-se entendido, aliás, que o cumprimento deste ónus deve ser feito com rigor e a falha correspondente não deve ser vista com benevolência. É o entendimento de Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pág. 147, onde este autor sustenta que “as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2ª instância. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.[3]
Como começámos por assinalar, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam as questões colocadas à apreciação do tribunal de recurso, pelo que é nelas que se devem mostrar cumpridos os requisitos da impugnação da decisão da matéria de facto, quando essa é, por vontade dos recorrentes, uma das questões suscitadas ao tribunal de recurso. Sucede que nas conclusões, não se encontra em momento algum a enunciação dos concretos pontos da matéria de facto que os recorrentes consideram terem sido incorrectamente julgados (pois não existe sequer impugnação da decisão), não consta a indicação dos meios de prova que justificam a alteração da decisão e não consta a indicação das passagem da gravação desses meios de prova. Da mesma forma que não se faz, com intenção do cumprimento desses requisitos, qualquer remissão para o corpo das alegações, o que permitiria, eventualmente, considerar que essa falha das conclusões era irrelevante e que, apesar da irregularidade, os requisitos estavam implícita e suficientemente cumpridos.
Pelo exposto, consigna-se que o recurso não tem por objecto a impugnação da decisão da matéria de facto e a alteração dos factos sobre os quais pode recair a nossa decisão.
As questões de direito que os recorrentes suscitam são, como vimos, duas.
A primeira prende-se com o requisito da impossibilidade de obtenção da satisfação do crédito (ou o agravamento dessa impossibilidade) e com o modo de interpretar esse requisito quando para além do devedor que realizou o acto impugnado existam outros responsáveis pelo débito. A segunda arraiga-se ao requisito da má fé e ao critério para decidir se o acto é oneroso ou gratuito para efeitos de exigir ou dispensar aquele requisito.
Vejamos então, em breves palavras, os requisitos da impugnação pauliana. A acção de impugnação pauliana é, como sabemos, uma acção pessoal, onde se faz valer um direito de crédito do autor. O acto sujeito à impugnação pauliana não adquire por isso qualquer forma de invalidade, não tem nenhum vício genético, é totalmente válido e eficaz. Sucede apenas que os bens objecto do acto impugnado vão responder pelas dívidas do alienante, na exacta medida do interesse do credor, mantendo o acto os seus efeitos jurídicos em tudo quanto exceder a medida daquele interesse[4].
Conforme resulta do estabelecido nos artigos 610.º a 612.º do Código Civil, a impugnação pauliana só pode ser feita relativamente a actos que não sejam de natureza pessoal. Depois é necessário que do acto advenha a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade (sendo certo que o credor só tem de alegar e provar o montante do passivo e é o devedor que tem de provar que possui bens penhoráveis de igual ou maior valor - artigo 611.º).
Se o acto for oneroso, a impugnação procede havendo má fé, valendo como tal a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor – artigo 612.º –. Se o acto for gratuito e o crédito anterior ao acto – primeira parte da alínea a) do artigo 610.º – a impugnação procede ainda que o terceiro tenha procedido de boa fé. Se o acto for gratuito mas o crédito posterior ao acto, a impugnação só procede quando este tenha sido dolosamente praticado para prejudicar o credor – segunda parte da alínea a) do artigo 610.º –.
O primeiro requisito da impugnação pauliana é assim a existência de um crédito cuja defesa se intenta com a impugnação. E para esse efeito o que importa é que o crédito esteja constituído, haja nascido na titularidade do autor. Não é necessário que o crédito já esteja vencido no momento da prática do acto impugnado, conforme resulta do disposto no nº 1 do artigo 614.º do Código Civil que admite o recurso à impugnação pauliana pelo credor cujo crédito ainda não se venceu.
A lei exige a anterioridade do crédito relativamente ao acto impugnado (artigo 610.º, alínea a), 1.ª parte, do Código Civil), na medida em que apenas os credores anteriores ao acto impugnado podiam legitimamente contar com o património que o devedor possuía na data da constituição do crédito[5]. Se nesta data os bens já não faziam parte do património do devedor, naturalmente que os novos credores não podiam contar com eles para obter a satisfação do seu crédito. Excepcionalmente é possível a impugnação pauliana de actos praticados antes da constituição do crédito, mas apenas nos casos em que se demonstre que os actos foram praticados dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor (2.ª parte da alínea a) do artigo 610.º do Código Civil).
O segundo requisito prende-se com o prejuízo que do acto resulta para o credor, entendido esse prejuízo como a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade (artigo 610.º, alínea b), do Código Civil). Não basta para o efeito que o devedor tenha praticado um acto de diminuição do seu património para que o credor o possa impugnar, é necessário além do mais que em virtude dessa diminuição fique em causa a possibilidade de o credor assegurar a satisfação do seu crédito. Mas também não é necessário a demonstração concreta da efectiva impossibilidade de satisfação do seu crédito, o que apenas seria demonstrável após a excussão prévia de todo o património responsável pela dívida, basta o mero perigo concreto dessa frustração.
O que releva para o efeito é a relação entre a situação patrimonial do devedor após o acto e o montante da dívida. Se em consequência do acto a situação patrimonial apresentar um resultado inferior ao valor necessário à satisfação do crédito, pode afirmar-se que do acto resultou a impossibilidade de satisfação do crédito. Se a situação patrimonial anterior já era deficitária, qualquer diminuição do património implicará um agravamento dessa impossibilidade.
O último dos requisitos da impugnação pauliana é o requisito da má fé. Quanto a este requisito a lei distingue se o acto é oneroso ou gratuito. O acto oneroso só está sujeito a impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; já o acto gratuito é impugnável ainda que um e outro hajam actuado de boa fé. Sendo o interesse no cumprimento das obrigações “mais valioso que o interesse na protecção e conservação de actos de liberalidade, quando se verifica a alienação de um bem, sem recebimento de qualquer contrapartida, não se justifica que os interesses de quem deu e de quem recebeu se sobreponham, em qualquer situação, aos interesses de quem deixa de ter garantido o cumprimento do seu crédito sobre o benemérito” – cit. Cura Mariano, in Impugnação Pauliana, Almedina, 2004, pág. 183 –.
A má fé que aqui se exige traduz-se na consciência psicológica de que o acto impugnado vai provocar a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito. “A consciência do prejuízo é um processo psicológico pertencente ao domínio da representação ou ideação, assumindo uma natureza intelectiva. Nesta operação intelectual, o devedor e o terceiro adquirente devem não só ter a percepção da situação patrimonial do primeiro e dos efeitos do acto que vão praticar, mas também aperceberem-se que estes podem impossibilitar os credores do devedor de obter a satisfação integral dos seus créditos. Não é necessário que essa consciência se traduza num juízo de certeza sobre a verificação futura desta consequência, bastando-se com um juízo de possibilidade. É suficiente para que os autores do acto tenham consciência das suas consequências danosas que as prevejam como possíveis, tendo-as presente no seu espírito” – cit. Cura Mariano, loc. cit., pág. 191, no mesmo sentido Acórdão da Relação do Porto de 13.10.2009, relatado por João Ramos Lopes, in www.dgsi.pt –.
A má fé deve verificar-se no momento da prática do acto, sendo irrelevante o conhecimento posterior. E deve verificar-se cumulativamente nas pessoas do devedor e do terceiro. A lei não exige, contudo, que o devedor e o terceiro tenham a intenção de prejudicar os credores, bastando a consciência do prejuízo que vão causar. Para o efeito, é necessário ao menos que eles representem a possibilidade da produção do resultado danoso. Também não é necessário que eles representem a situação específica do credor impugnante, sendo suficiente, pelo contrário, que a sua percepção ou representação abranja a generalidade dos débitos do devedor (onde se inclui o crédito do credor impugnante). Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.06.2009, relatado por Alberto Sobrinho, “na formulação legal a má fé não se reconduz à intenção deliberada de prejudicar o credor, podendo consistir apenas na consciência do prejuízo causado. Exige-se que os outorgantes do acto lesivo representem que esse acto afectará a satisfação do direito do credor, que tenham consciência dessa repercussão negativa.”
Apresentados, em linhas gerais, os requisitos do instituto, vejamos então se no caso concreto os mesmos se encontram preenchidos.
Quanto ao primeiro dos requisitos assinalados, os recorrentes não questionam a decisão do tribunal a quo de o julgar verificado. Basta-nos, portanto, assinalar, sem mais, que no caso esse requisito se encontra efectivamente preenchido, uma vez que se demonstrou que a autora é credora do 1.º réu em virtude da sua posição da avalista num título de crédito emitido para garantia do reembolso de um contrato de mútuo celebrado com uma sociedade, subscritora do referido título de crédito, a qual não cumpriu as correspondentes obrigações de reembolso, dando origem ao vencimento do contrato. O crédito não só existe como é anterior ao acto impugnado, mesmo por referência à data do respectivo vencimento.
No que concerne ao segundo dos requisitos (impossibilidade de obtenção da satisfação integral do crédito), os recorrentes não questionam que a doação do imóvel é um acto que diminuiu a garantia de satisfação do crédito da responsabilidade do réu C… proporcionada pelo respectivo património. E também não questionam (não alegam o oposto, como lhes incumbia se fosse esse o caso) que o réu devedor não possui outro património que permita a satisfação do crédito, pelo que aquele acto causou necessariamente a impossibilidade de satisfação integral do crédito ou, ao menos, o seu agravamento.
Defendem, contudo, os recorrentes que não sendo o réu devedor o único responsável pela satisfação do crédito, antes existindo outros responsáveis (o devedor principal – subscritor do título - e os restantes avalistas do subscritor) relativamente aos quais não se provou que não possuam bens suficientes para assegurar aquela satisfação, o referido requisito está por demonstrar.
Este argumento não pode, contudo, ser acolhido. Tem-se entendido, com efeito, que no caso de existirem devedores solidários, o eventus danni deve ser aferido unicamente em função da situação do património do devedor que praticou o acto. Uma vez que nessa situação qualquer dos devedores responde perante o credor pela prestação integral, o seu património responde individualmente pela totalidade da dívida e, consequentemente, o credor goza da faculdade de zelar pela manutenção do património de cada um em condições de satisfazer a totalidade da dívida. O mesmo sucede nos casos de devedores responsáveis a título de fiança ou aval, em que o credor pode exigir a manutenção do património quer do devedor principal, quer dos fiadores ou avalistas e mesmo que estes gozem do benefício de excussão prévia. Nesse sentido pronunciaram-se Cura Mariano, in loc. cit., Almedina, 2004, pág. 172, a demais doutrina e a jurisprudência aí citadas.
No recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.01.2015, relatado por Catarina Gonçalves, in www.dgsi.pt, esta questão foi abordada e decidida nos seguintes termos que, por merecer a nossa inteira concordância, passamos a citar:
“[A avalista das livranças] responde nos mesmos termos que a pessoa a favor de quem dá o aval; … responde, portanto, solidariamente, com a subscritora das livranças e os demais avalistas, sem que lhe assista o direito de exigir a excussão prévia do património dos demais co-obrigados e, designadamente, o da subscritora da livrança. Daí que o credor, tendo adquirido o direito/faculdade de exigir a prestação integral de qualquer um dos devedores solidários, possa atacar, por via da impugnação pauliana, os actos praticados em cada um dos patrimónios desses devedores que impliquem uma diminuição da garantia patrimonial que esse concreto património representava para a satisfação do seu crédito e que restrinjam ou limitem o direito de ver o seu crédito satisfeito integralmente à custa desse património, independentemente da suficiência ou insuficiência do património dos demais co-obrigados.
Como se refere no Ac. do STJ de 22/01/2004, “existindo uma pluralidade de devedores solidários, a garantia patrimonial não é constituída pela mera soma dos respectivos patrimónios, mas sim pela cumulação dos mesmos patrimónios, responsáveis, cada um de per si, pela totalidade do crédito (…) Quando um destes patrimónios deixa de poder responder pela totalidade do crédito, o sistema de garantia patrimonial fica afectado, independentemente dos restantes patrimónios poderem ser suficientes para o cumprimento da obrigação”.
Assim, como se afirma no Acórdão da Relação de Coimbra de 20/11/2012, citando Cura Mariano, “o credor pode, pois, vigiar pela manutenção da solvabilidade de todos os patrimónios que autonomamente garantem o seu direito de crédito, atacando com a impugnação pauliana os actos praticados sobre um dos patrimónios garantes que ponham em risco a sua possibilidade de obter a satisfação do seu crédito pelos bens desse património, independentemente da situação dos restantes” acrescentando que “a solvabilidade do património do fiador ou do avalista não impedirá a impugnação de acto do devedor que impeça a satisfação integral do crédito pelo seu património (…)”.
Neste sentido se tem pronunciado a nossa jurisprudência. Com efeito, além dos Acórdãos já referidos, salientamos os seguintes:
- O Acórdão do STJ de 14/12/2006 (processo nº 06B3881), em cujo sumário se lê que: “não basta, para se excluir a impugnação pauliana, que os outros devedores solidários ainda mantenham no seu património bens suficientes para garantir o pagamento da dívida; pelo contrário, essa suficiência de bens tem de dizer respeito ao património demandado, sendo, portanto, irrelevante a eventual suficiência dos patrimónios dos restantes devedores solidários”;
- O Acórdão do STJ de 09/10/2006 (processo nº 06A2368), cujo sumário tem o seguinte teor:
“I – No caso de existirem devedores solidários, apenas importa a situação em que ficou o património no qual se integrava o bem sobre o qual recai o acto impugnado, pois é característica da solidariedade a existência de várias garantias patrimoniais autónomas, respondendo cada um dos devedores pela prestação integral.
II – O credor pode atacar com a impugnação pauliana os actos praticados sobre qualquer um dos patrimónios garantes e que ponham em risco a possibilidade de obter a satisfação do seu crédito pelos bens desse património, independentemente da situação dos restantes.
III – O mesmo sucede nos casos de obrigações garantidas por aval, pois a obrigação contraída pelo avalista da livrança é solidária, pelo que o seu portador pode exigir o respectivo cumprimento integral de qualquer dos obrigados cambiários, já que quando nasceu a obrigação ficou a poder contar com a garantia constituída pelo património dos vários devedores solidários, a qual tem de acompanhar sempre aquela obrigação, não bastando para se excluir a impugnação pauliana que os outros devedores solidários ainda mantenham no seu património bens suficientes para garantir o pagamento da dívida, tendo a suficiência de bens de dizer respeito ao próprio demandado”;
- O Acórdão do STJ de 01/07/2004 (processo nº 04B1971), onde se refere que “em acção pauliana proposta contra os avalistas de uma livrança não tem qualquer interesse saber se o património da subscritora é ou não suficiente para a satisfação do crédito do autor, já que este pode accionar, individual ou colectivamente, os obrigados cambiários, não gozando os avalistas do benefício da excussão”.
- O Acórdão do STJ de 05/12/2002 (processo nº 02B3652), com o seguinte sumário: “o avalista não pode defender-se, com a eventual existência de património na esfera jurídica do avalizado, já que o credor não tem necessidade de previamente excutir o património do devedor, podendo agredir directamente o património do avalista (responsabilidade solidária, que não meramente subsidiária)”.
É certo, portanto, que, para efeitos de procedência da presente acção de impugnação pauliana é irrelevante a circunstância de os demais co-obrigados possuírem património bastante para a satisfação do crédito da Autora. Conforme se referiu, os pressupostos da impugnação pauliana têm que ser aferidos relativamente ao património onde foi praticado o acto que está a ser impugnado, atendendo exclusivamente à situação em que fica este património após o aludido acto e à sua suficiência ou insuficiência para satisfação da prestação integral, porquanto, estando em causa uma obrigação solidária, é pela prestação integral que esse património responde.”
No fundo, do que se trata é de repercutir ao nível dos mecanismos jurídicos de defesa do crédito, o direito do credor de exigir e obter de qualquer dos devedores solidários a satisfação integral do seu crédito sem que aos devedores seja lícito opor o benefício da divisão. Se o credor pode exigir de qualquer dos credores a satisfação total do seu crédito (artigo 519.º do Código Civil) justifica-se que possa actuar em defesa do seu crédito relativamente à actuação de qualquer deles que se traduza numa diminuição do respectivo património e gere a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito.
Mesmo que os demais devedores solidários possuam património suficiente para assegurar essa satisfação integral, podendo o credor exigir de outro deles essa satisfação, os actos praticados por este são susceptíveis de serem impugnados se importarem a referida diminuição patrimonial impeditiva de o credor obter deste o pagamento que lhe podia exigir. Se assim não fosse, aliás, estar-se-ia a permitir que fossem os credores a escolher qual deles iria satisfazer o crédito ou em que medida o iriam fazer, violando de forma expressa o regime jurídico imperativo das obrigações solidárias, máxime os artigos 518.º e 519.º do Código Civil.
Nessa medida, não há como deixar de considerado preenchido também o requisito da impugnação que consiste em resultar do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade. Improcede por isso a primeira questão suscitada pelos recorrentes.
No que concerne à segunda questão, já se referiu que se o acto impugnado tiver a natureza de acto oneroso, a impugnação só procede havendo má fé, mas se o acto for gratuito a impugnação procede ainda que o terceiro tenha procedido de boa fé uma vez que o crédito é anterior ao acto. Consequentemente, da natureza gratuita ou onerosa do acto depende a exigência deste requisito para a impugnação proceder.
Sustentam os recorrentes que após a doação do imóvel pelo réu devedor à ré sua mãe, a donatária tem vindo a pagar prestações do empréstimo contraído pelo doador antes da doação no valor de €150.000 e garantido por hipoteca do imóvel doado, pelo que se deve entender que a doação é, no caso, um acto oneroso.
Refira-se que os recorrentes não defendem, e não o fazem porque isso não consta sequer do texto da escritura pública de doação cuja cópia consta de folhas 150 e seguintes, que a doação haja sido feita com essa obrigação, melhor dizendo, que esse comportamento da donatária corresponde ao cumprimento de qualquer condição, encargo ou modo fixado pelo doador ao definir os termos jurídicos do negócio da doação.
Para C. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, pág. 402, “a distinção dos negócios jurídicos em onerosos e gratuitos tem como critério o conteúdo e finalidade do negócio (…). Os negócios onerosos ou a título oneroso pressupõem atribuições patrimoniais de ambas as partes, existindo, segundo a perspectiva destas, um nexo ou relação de correspectividade entre as referidas atribuições patrimoniais (normalmente traduzidas em prestações). Cada uma das partes faz uma atribuição patrimonial que considera retribuída ou contrabalançada pela atribuição da contraparte. Cada uma das prestações ou atribuições é o correspectivo (a contrapartida) da outra, pelo que, se cada parte obtém da outra uma vantagem, está a pagá-la com um sacrifício que é visto pelos sujeitos do negócio como correspondente. (…). Os negócios gratuitos ou a título gratuito caracterizam-se, ao invés, pela intervenção de uma intenção liberal (animus donandi, animus beneficiandi). Uma parte tem a intenção, devidamente manifestada, de efectuar uma atribuição patrimonial a favor da outra, sem contrapartida ou correspectivo. A outra parte procede com a consciência e vontade de receber essa vantagem sem um sacrifício correspondente”.
Refere Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 2008, 5.ª edição, pág. 447, que o critério que permite fazer a classificação dicotómica entre negócios jurídicos gratuitos e onerosos é “a existência, ou não, no conteúdo do negócio, de um sistema de contrapartidas. (…) Os contratos onerosos são aqueles em que é estipulado um sistema contrapartidas. Na compra e venda, o preço é a contrapartida da coisa vendida, na locação a contrapartida é a renda, no contrato de trabalho é o salário. A contrapartida é o correspectivo da outra prestação estipulada como o seu contravalor de modo a que, pelo menos tendencialmente, na perspectiva das partes, a equilibre. O tipo paradigmático do contrato oneroso é a compra e venda. Contratos gratuitos são aqueles em que à prestação principal não corresponde uma contrapartida, em cujo conteúdo se estipula uma atribuição patrimonial unilateral. O tipo paradigmático dos contratos gratuitos é a doação”.
Acrescenta este autor que “a classificação dos negócios jurídicos em gratuitos e onerosos é francamente defeituosa, porque dificulta concepção dos contratos que não sejam puramente gratuitos nem perfeitamente onerosos. Uma das prestações pode não corresponder valorativamente à outra, por variadíssimas razões. Uma compra e venda pode ser celebrada por um preço inferior ao valor da coisa vendida, ou porque o vendedor está animado por um espírito de liberalidade ou de caridade, ou porque deseja mobilizar stocks, ou porque as condições do mercado lhe não permitem vendê-la por um preço superior. As doações podem ser oneradas com modos ou encargos que podem até atingir ou mesmo ultrapassar o valor da coisa doada. A gratuidade e a onerosidade são qualidades impermeáveis, são dois pólos numa série infinitamente graduável, na qual se inserem negócios mais ou menos gratuitos, como a doação modal, e mais ou menos onerosos, como as vendas por preços baixos, ou mesmo por preços vis. A distinção mantém todavia a sua utilidade, desde que entendida de modo polar, admitindo entre um pólo, onde se situará a gratuidade e outro pólo, constituído pela onerosidade perfeita, uma série de situações intermédias, mais ou menos gratuitas ou mais ou menos onerosas.”
O mesmo autor, agora in Contratos Atípicos, Almedina, pág. 140 e seguintes, acentua que “a doação, como contrato gratuito mais importante, não tem uma contrapartida. O seu conteúdo típico resume-se a uma deslocação patrimonial unilateral e simples. (…) Os contratos gratuitos comportam todavia a estipulação de «modos» que podem tornar menos clara a sua gratuitidade e atenuar a sua unilateralidade patrimonial. (…) A estipulação de uma contraprestação, de uma deslocação patrimonial de sentido contrário, não significa, só por si, que uma seja o correspectivo ou a contrapartida da outra. O modo ou encargo é exemplo de contraprestação que não é correspectivo ou contrapartida da outra. (…) Na doação modal, o modo perturba a gratuitidade e a unilateralidade económica típica da doação. O modo não é a contrapartida económica da coisa doada. Se o fosse, seria um preço, e o contrato seria então qualificável como compra e venda ou como troca.”
Também Januário Gomes, in Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, pág. 390, citando Pais de Vasconcelos, loc. cit. Mota Pinto, in Onerosidade e gratuitidade das garantias, pág. 238, Antunes Varela, in Ensaio sobre o conceito do modo, pág. 131 e segs., e Galvão Teles, in Manual dos contratos em geral, pág. 399, e in Obrigações, pág. 97, sustenta que a classificação entre negócios onerosos e negócios gratuitos deve ser entendida em termos polares, já que entre o paradigma da onerosidade constituído pela compra e venda e o paradigma da gratuitidade, constituído pela doação, se encontram negócios que não são nem plenamente gratuitos nem puramente onerosos, podendo assumir essa natureza na relação entre as partes e não a assumir na relação com terceiros e vice-versa.
Teles de Menezes Leitão, in Garantias das Obrigações, 2012, pág. 68, sublinha por sua vez que “relativamente aos actos gratuitos, a impugnação pauliana procede, mesmo que o devedor e o terceiro tenham agido de boa fé. Entre os actos gratuitos incluir-se-ão naturalmente as doações modais ou onerosas, uma vez que, estas apesar de imporem encargos ao beneficiário, não deixam de constituir verdadeiras liberalidades, representando o modo ou encargo não uma contraprestação mas uma restrição da liberalidade. Deve igualmente ser considerado como acto gratuito o cumprimento das obrigações naturais, uma vez que não existindo um dever jurídico à realização da prestação, a situação aproxima-se da liberalidade. Serão também considerados actos gratuitos a prestação de garantias a terceiros, a menos que seja prestada uma remuneração adequada pela garantia. Pelo contrário, parecem dever considerar-se como actos onerosos a partilha judicial dos bens do devedor, e a dação em cumprimento”.
Também Cura Mariano, in loc. cit, pág. 219, menciona que “as doações com encargos são aquelas em que o doador insere uma cláusula modal que impõe ao donatário um encargo (art. 963.º do C.C.). Apesar do donatário assumir a obrigação de efectuar determinada prestação, esta não se encontra numa relação de correspectividade com a atribuição patrimonial do doador, sendo antes uma mera limitação de origem do objecto da doação. Esta atribuição meramente consumptiva, ou a latere, do donatário não é, pois, suficiente para excluir a natureza gratuita deste tipo de doações. A existência e o cumprimento desse encargo, apesar de não influírem nos requisitos da impugnação pauliana, terão consequências ao nível dos seus efeitos”.
Diga-se, a finalizar, que a doação com cláusula modal prevista no artigo 963.º do Código Civil é aquela em que o doador onera do donatário com encargos, os quais, no entanto, nunca podem ultrapassar o valor da coisa ou direito doado. Segundo C. Mota Pinto, in loc. cit., pág. 580, o modo é “uma cláusula acessória típica, pela qual, nas doações e liberalidades testamentárias, o disponente impõe ao beneficiário da liberalidade um encargo, isto é, a obrigação de adoptar um certo comportamento no interesse do disponente, de terceiro ou do próprio beneficiário”.
Feito este enquadramento teórico, é agora fácil concluir que no caso a doação não pode de forma alguma deixar de ser vista como um acto puramente gratuito. Na verdade, a doação nem sequer é modal, no sentido de que ao celebrá-la o doador não impôs à donatária qualquer obrigação ou encargo, designadamente de pagamento do empréstimo garantido pela hipoteca que onera o bem doado. Por outro lado, também não foi sequer alegado que concomitantemente com a doação tivesse sido celebrado com o credor qualquer assunção ou transmissão de dívida para a donatária. Por conseguinte, a doação foi feita de modo irrestrito ou desonerado.
Ao fazer a doação, o doador doa os bens com os ónus reais que sobre os mesmos recaem. Para existir doação válida e puramente gratuita não é necessário que os bens estejam libertos de qualquer encargo ou ónus. Se estiverem, o que sucede é que o benefício do donatário é menor e eventualmente pode estar em risco, mas tal não obsta à eficácia jurídica da doação.
Assim, se a donatária vem pagando as prestações desse empréstimo, fá-lo unicamente por obrigação natural, com o objectivo de auxiliar o filho que é o devedor desse empréstimo e que independentemente da doação manteve a qualidade de devedor, ou para evitar a perda do bem doado que sobrevirá da execução coerciva da hipoteca no caso de o empréstimo não ser pago uma vez que o imóvel foi doado com o ónus real da hipoteca e esta acompanhou o bem doado. Ainda que na sequência dessa execução, a donatária possa vir a perder o bem doado e a totalidade do seu valor, no caso de o produto da sua venda não chegar sequer para liquidar o mútuo hipotecário, essa circunstância não afasta que a doação tenha sido feita sem qualquer encargo e, portanto, deva ser qualificada como negócio gratuito.
Na pior das hipóteses, a donatária perderá o valor que a liberalidade lhe proporcionava mas não mais que isso face ao limite previsto no artigo 963.º, n.º 2, do Código Civil. Se no reembolso do empréstimo vier a suportar valores superiores ao valor do imóvel (o que não é sequer crível já que nessa caso a opção mais lógica e coerente é a de perder o imóvel) fá-lo-á não por estar obrigada juridicamente a fazê-lo, mas para auxiliar o seu filho e, como tal, a título de obrigação natural ou mesmo por espírito de liberalidade, não como contrapartida da doação.
Deve por isso entender-se que ainda que seja verdade o que vem referido pelos recorrentes (a alegação de que a donatária vem pagando prestações do empréstimo não consta da matéria de facto), daí não resultaria nunca que a doação devesse ser tida, para efeitos do artigo 612.º do Código Civil, como um acto oneroso e que, por virtude disso, fosse necessário para a procedência da impugnação que o doador e a donatária tivessem agido de má fé. Improcede assim também a segunda questão suscitada no recurso.
V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes (tabela I-B).
*
Porto, 9 de Abril de 2015.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto194)
José Amaral
Teles de Menezes
___________
[1] Embora com a especificidade anotada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.02.2015, relatado por Tomé Gomes no processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, in www.dgsi.pt.
[2] Esta circunstância poderia permitir, sem mais, a rejeição da totalidade do recurso por extemporaneidade. Com efeito, propendemos para considerar que o pedido de reapreciação da prova gravada (que é o que permite o alargamento do prazo do recurso em 10 dias, utilizado no caso pelos recorrentes), pressupõe, como parece lógico, que o recorrente impugne a decisão da matéria de facto. Para o alargamento do prazo ter lugar é necessário que o recorrente impugne a decisão da matéria de facto (independentemente do cumprimento dos requisitos legais dessa impugnação, cuja falta já só pode motivar a rejeição dessa parte do recurso e não do recurso na totalidade) e que essa impugnação tenha como fundamento a prova por depoimentos que se encontra gravada. Por outras palavras, se não há impugnação da decisão da matéria de facto (se o recorrente não reclama a alteração da decisão proferida em relação a nenhum facto), não será pelo facto de o recorrente pretender que o tribunal se atenha a depoimentos produzidos para interpretar os factos provados (únicos que podem ser atendidos na decisão) ou formular conclusões quanto aos mesmos (como aqui sucede) que o prazo de recurso é alargado.
[3] No mesmo sentido, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.07.2012, no processo nº 781/09.6TMMGR.C1, in www.dgsi.pt.
[4] cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Fevereiro de 1997 e de 15 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 464, pág. 519 e nº 494, pág. 302, respectivamente. Nesse sentido, na doutrina Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 2º vol., pág. 492, e ROA, ano 51, págs. 567; Carvalho Fernandes, in O regime registral da impugnação pauliana, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, vol. II, pág. 25 e seg.; Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, vol. II, pág. 299 e segs.
[5] O que não significa, no entanto, que não possam ser objecto de impugnação actos praticados em relação a bens que só posteriormente à constituição do crédito passaram a integrar o património do devedor. Uma vez que pela satisfação da dívida respondem todos os bens do devedor, mesmo os adquiridos apenas depois da constituição do débito, e que a impugnação pauliana é um mecanismo de tutela dessa garantia geral, desde que estejam reunidos os demais requisitos da impugnação pauliana podem ser impugnados todos os actos praticado pelo devedor em relação aos bens que integram essa garantia e/ou a partir do momento em que a integram.