RETRIBUIÇÃO
COMPENSAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I - O artigo 279º, nº1, do CT/2009 proíbe a compensação/desconto efectuados pelo empregador no salário do trabalhador na vigência do contrato de trabalho, mesmo com o acordo deste, por esse acordo equivaler a renúncia ao direito ao salário, ou parte dele, direito que é indisponível enquanto perdurar o contrato de trabalho.
II - Por isso, não atua com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o trabalhador que já após a cessação do contrato de trabalho instaura acção com fundamento na diminuição da sua retribuição por força da compensação/desconto efectuados pelo empregador na vigência do contrato de trabalho.

Texto Integral

Processo nº679/13.3TTOAZ.P1
Relatora: M. Fernanda Soares – 1315
Adjuntos: Dr. Domingos José de Morais
Dra. Paula Maria Roberto

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I

B… instaurou, em 06.12.2013, no Tribunal do Trabalho de Oliveira de Azeméis, acção emergente de contrato de trabalho, contra C…, Lda., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 5.420,77 e juros vincendos.
O Autor fundamenta o seu pedido nos seguintes factos: foi admitido ao serviço da Ré em 01.08.2008 para exercer as funções de motorista de pesados, mediante a remuneração mensal de € 1.200,00, sendo que em Setembro, Outubro e Novembro de 2012 a Ré reduziu o seu vencimento mensal para o montante de € 760,11 e em Dezembro do mesmo ano, altura em que apenas trabalhou 12 dias, nada lhe foi pago a esse título. Em 13.10.2012 o Autor denunciou o seu contrato de trabalho com efeitos reportados a 12.12.2012. Reclama, deste modo, o pagamento da retribuição em falta e referente aos meses de Setembro a Dezembro de 2012 bem como os proporcionais de férias, subsídios de férias e de natal.
A Ré contestou alegando que o vencimento do Autor é no montante de € 600,00 mensais a que acrescia o valor médio de € 400,00, a título de ajudas de custo. Em 13.09.2012 o Autor, em viagem a Espanha, manipulou o tacógrafo do veículo que conduzia e desrespeitou os tempos de descanso obrigatórios, o que sabia não poder fazer, sendo que tal contra-ordenação deu origem ao pagamento de uma coima no valor de € 6.102,00. Confrontado com a situação o Autor disse que a responsabilidade do pagamento da coima era dele, mas que não a poderia pagar na totalidade. Após negociações, a Ré aceitou pagar metade da coima e o Autor pagaria a outra metade através de desconto que a Ré faria ao valor das ajudas de custo por ele auferidas. Assim, no seguimento do acordo feito com o Autor, a Ré efectuou os seguintes descontos: a) € 380,39 relativo às ajudas de custo que o Autor teria de receber em Setembro de 2012; b) € 430,89 relativo às ajudas de custo que o Autor teria de receber em Outubro de 2012 e c) € 430,89 relativo às ajudas de custo que o Autor teria de receber em Novembro de 2012. Acontece que ao ter denunciado o seu contrato de trabalho o Autor quis furtar-se ao cumprimento do referido acordo e ao vir reclamar, agora, o pagamento das quantias descontadas age em manifesto abuso de direito na modalidade de «venire contra factum proprium». Reconhece, no entanto, dever ao Autor o subsídio de natal de 2012 e os proporcionais de férias e subsídio de férias, no total de € 2.184,99. Conclui pela procedência da excepção invocada, pela improcedência da acção, à excepção do pagamento da quantia de € 376,13. Para o caso de assim não se entender defende a Ré que a sua condenação deve limitar-se à quantia de € 3.427,16.
O Autor veio responder concluindo como na petição inicial e defendendo a inexistência do abuso de direito.
Foi proferido despacho saneador.
Procedeu-se a julgamento com gravação da prova pessoal e foi proferida sentença, em 01.04.2014, onde se consignou a matéria de facto dada como provada e não provada e julgando-se a acção parcialmente procedente, se condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 3.427,16 acrescida dos juros de mora que se vencerem.
A Ré veio recorrer pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por acórdão que a absolva do pagamento da quantia de € 3.051,00, com base no abuso de direito em que o Autor incorreu, concluindo do seguinte modo:
1. Incorre em abuso de direito aquele que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, o que se traduz no uso ilegítimo de um direito – artigo 334º do C. Civil.
2. Como decorre do depoimento de parte do Autor e dos factos dados como provados, a Ré viu ser-lhe criada a convicção séria de que o Autor assumiria o pagamento de uma coima avultada, de sua exclusiva responsabilidade, no seguimento da sua declaração para com ela no sentido de que assumiria metade da mesma, no montante de € 3.051,00, mediante acordo para tal celebrado.
3. Uma actuação desta natureza permitiu criar na Ré a tranquilidade de não agir contra o Autor, no sentido de procurar exercer o direito de regresso do valor correspondente a tal coima.
4. Tal acordo passou por não ser entregue ao Autor o valor de ajudas de custo, até perfazer o valor de € 3.051,00.
5. O que, por força da inesperada denúncia do contrato de trabalho, a Ré se viu impossibilitada de se ver ressarcida como havia sido acordado.
6. Até porque o Autor nunca se dignou proceder ao pagamento correspondente após a cessação do contrato.
7. Tal comportamento do Autor violou a convicção séria que o mesmo criou à Ré, o que configura o recurso do Autor aos presentes autos nessa parte, um uso ilegítimo de um direito, o que lhe está vedado por força do instituto do abuso de direito.
8. Por tal, decidiu mal o Tribunal a quo ao configurar a nulidade da compensação operada, para, dessa forma e, em consequência, justificar o acto do próprio trabalhador, o que integra nulidade que supra invocou.
9. Decidiu mal a decisão recorrida ao não declarar o abuso de direito praticado pelo Autor, violando, assim, o disposto no artigo 334º do C. Civil.
O Autor contra alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida, concluindo do seguinte modo:
1. O acordo celebrado oralmente entre as partes é nulo por violação do disposto no artigo 294º do C. Civil, por se tratar de disposições imperativas nos termos do artigo 279º do C. Civil e, por isso, não se encontrando na disponibilidade das partes.
2. O CT impede a compensação de créditos, que o empregador tenha sobre o trabalhador, através da remuneração do mesmo, sendo que a violação de tal disposição legal importa a prática de uma contra-ordenação muito grave atento o disposto no nº5 do mesmo preceito legal.
3. Não se encontram preenchidos os pressupostos do instituto jurídico do abuso de direito previsto no artigo 334º do C. Civil.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu parecer no sentido da não procedência do recurso.
Admitido o recurso e corridos os vistos, os autos foram inscritos em tabela e o julgamento adiado por falta de vencimento da relatora. Cumpre decidir.
* * *
II
Matéria de facto dada como provada e a ter em conta na decisão do recurso.
1. O Autor e Ré outorgaram um contrato mediante o qual o Autor exercia sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré as funções de motorista de pesados, mediante o pagamento de uma retribuição.
2. O Autor cumpriria um horário de trabalho de 40 horas semanais, trabalhando de segunda-feira a sexta-feira, das 8H00 até às 18H00, com intervalo para almoço.
3. O Autor auferia, pelo menos, uma remuneração mensal no montante de € 600,00, a que acresce a retribuição especial proveniente da clª74ª/7 do CCT celebrado entre a ANTRAM e a FESTRU, publicado no BTE, 1ªsérie, nº9, de 08.03.1980, com as sucessivas actualizações de que foi objecto, bem como do subsídio de alimentação e de ajudas de custo, em montante variável.
4. Nos meses de Setembro a Dezembro de 2012 foi liquidada, a título de retribuição, em termos líquidos – após a aplicação à retribuição da taxa social única e da devida a título de IRS – a quantia de € 760,11.
5. Doze dias de laboração por parte do Autor, no mês de Dezembro de 2012, não foram liquidados pela Ré.
6. O Autor a 13 de Outubro de 2012 denunciou o contrato de trabalho, com efeitos a partir de 12.12.2012.
7. Os proporcionais de férias, subsídios de férias e de natal de 2012, ano em que o contrato entre Autor e Ré cessou, não foram liquidados.
8. No dia 13.09.2012, enquanto em deslocação em Espanha, o Autor ao serviço da Ré manipulou o tacógrafo do veículo que conduzia e desrespeitou os tempos de descanso legalmente obrigatórios, tendo sido a referida conduta alvo de contra-ordenação, no montante de uma coima única de € 6.102,00.
9. Quando a Ré teve conhecimento da aplicação da coima confrontou o Autor, tendo este assumido a responsabilidade do pagamento da multa em metade.
10. Após negociações foi acordado entre Autor e Ré o pagamento da coima em prestações mediante desconto nos valores que o Autor teria direito a auferir.
11. Foram efectuados, pelo menos, os seguintes descontos na retribuição auferida pelo Autor, salvaguardando a retribuição no valor de € 600,00 e a retribuição especial proveniente da clª74ª/7 do CCT publicado no BTE, 1ªsérie, nº9, de 08.03.1980, com as sucessivas actualizações de que foi objecto: i) no mês de Setembro o montante de € 380,39; ii) no mês de Outubro e Novembro de 2012, respectivamente, o montante de € 430,89.
* * *
III
Questão em apreciação.
Do abuso de direito por parte do Autor ao instaurar a presente acção.
Neste particular, consta da sentença recorrida o seguinte: (…) “Não se constata pela conduta do Autor que este tenha agido com abuso do direito. Com efeito o Autor ao peticionar os montantes pecuniários em apreço (retribuição e subsídios) não efectua qualquer conduta que nos permita concluir que tenha excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito invocado. Cumpre realçar que a não admissibilidade da compensação de créditos no montante de € 3.051,00 foi decidida oficiosamente pelo Tribunal, perante a nulidade – que é de conhecimento oficioso – supra apreciada” [a Mmª. Juiz está a referir-se ao acordo efectuado entre o Autor e a Ré que considerou ferido de nulidade atento o disposto no nº1 do artigo 279º do CT].
Defende a apelante que o comportamento do Autor criou na Ré a séria convicção de que aquele assumiria o pagamento de uma coima avultada, como assumiu, ao ter acordado que tal pagamento seria feito através de desconto a efectuar pela Ré no valor das ajudas de custo a receber pelo trabalhador. Contudo, ao contrário da convicção formada pela Ré, o Autor veio agora exigir o pagamento das quantias cujo montante foi acordado ele assumir. Vejamos então.
Numa primeira análise seriamos tentados a concluir pela existência do abuso de direito por parte do Autor, na medida em que ele terá acordado com a Ré pagar metade da coima em prestações, procedendo esta ao desconto nos valores que ele teria direito a auferir – nº10 da matéria de facto provada – e posteriormente, com a instauração da presente acção, veio reclamar os valores descontados. Mas assim não é como vamos explicar de seguida.
Sob a epígrafe “Compensações e descontos” determina o artigo 279º do CT/2009 o seguinte: “1. Na pendência de contrato de trabalho, o empregador não pode compensar a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador, nem fazer desconto ou dedução no montante daquela. 2. O disposto no número anterior não se aplica: a) A desconto a favor do Estado, da segurança social ou outra entidade, ordenado por lei, decisão judicial transitada em julgado ou auto de conciliação, quando o empregador tenha sido notificado da decisão ou do auto; b) A indemnização devida pelo trabalhador ao empregador, liquidada por decisão judicial transitada em julgado ou auto de conciliação; c) À sanção pecuniária a que se refere a alínea c) do nº1 do artigo 328º; d) A amortização de capital ou pagamento de juros de empréstimo concedido pelo empregador ao trabalhador; e) A preço de refeições no local de trabalho, de utilização de telefone, de fornecimento de géneros, de combustíveis ou materiais, quando solicitados pelo trabalhador, ou outra despesa efectuada pelo empregador por conta do trabalhador com o acordo deste; f) A abono ou adiantamento por conta da retribuição”.
Tal disposição legal determina, na vigência do contrato de trabalho, a inadmissibilidade da compensação integral da retribuição em dívida com créditos do empregador sobre o trabalhador e só nos casos previstos no seu nº2, é admitida a compensação, a qual não pode exceder, no seu conjunto, um sexto da retribuição (nº3 do citado artigo), a não ser no caso da al. a) do seu nº2. Trata-se de uma excepção ao princípio geral do artigo 847º do C. Civil.
A referida proibição evidencia a finalidade do salário/retribuição: a satisfação das necessidades pessoais e familiares do trabalhador.
E como o trabalhador não pode renunciar ao pagamento da retribuição, ou de parte dela, na vigência do contrato de trabalho, o artigo 279º do CT/2009 vem precisamente proibir que através dessa compensação/desconto efectuados pelo empregador, e aceite pelo trabalhador, ocorra essa renúncia.
Na verdade, se defendermos, o que não acontece, que com o acordo do trabalhador o empregador já poderá efectuar a dita compensação, então, e salvo o devido respeito, estaremos a deixar entrar pela janela o que o legislador não quis que entrasse pela porta: a renúncia do trabalhador, na vigência do contrato, ao salário ou parte dele.
Entendemos que o artigo 279º do CT/2009 é uma norma dirigida directamente ao empregador porque é ele que processa e paga o salário ao trabalhador. No entanto, a mesma norma não deixa de ser dirigida ao trabalhador, caso ele acorde na compensação durante a vigência do contrato de trabalho, na medida em que tal acordo significa tão só a disposição de direitos que no momento são indisponíveis – artigo 1249º do C. Civil [«as partes não podem transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos»].
E não podendo o Autor dispor, como dispôs, do direito a parte do seu salário [sendo que qualquer prestação do empregador ao trabalhador se presume constituir retribuição – artigo 258º, nº3 do CT/2009], ao ter anuído no dito desconto, a referida compensação não pode operar por ser ilegal [nem sequer sabemos, em concreto, o que foi acordado relativamente ao valor a descontar, sendo certo que o desconto efectuado pela Ré – e dado como provado – ultrapassa o valor permitido pelo nº3 do artigo 279º do CT tendo em conta o montante do salário auferido pelo trabalhador].
Ora, e se assim é, então não poderia a Ré ter efectuado o referido desconto, por a tal obstar o disposto no artigo 279º do CT/2009. E tendo ela violado a referida disposição legal não pode exigir ao Autor que acate a situação decorrente dessa violação. Estar-se-ia perante a modalidade de abuso de direito “Tu quoque”, ou seja “ a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso: - ou prevalecer-se da situação jurídica dai decorrente; - ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio; - ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada” – Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa «in Agendo», de António Menezes Cordeiro, 2006, página 60.
Por isso, inexiste, por parte do Autor, abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, ao instaurar a presente acção, na medida em que não lhe era lícito renunciar, através do referido acordo, a parte do salário na vigência do contrato de trabalho [sendo que um dos fundamentos da presente acção é precisamente o indevido desconto efectuado pela Ré, que conduziu à redução do salário do Autor nos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2012].
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Termos em que se julga a apelação improcedente e se confirma a decisão recorrida.
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Custas da apelação a cargo da Ré/recorrente.
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Porto, 26-05-2015
Fernanda Soares
Domingos Morais
Paula Maria Roberto (Vencida pelos fundamentos constantes do voto que anexo)
______________
Voto (n.º 3, do artigo 663.º, do C.P.C.).
Tendo em conta a matéria de facto apurada, nomeadamente os factos descritos nos pontos 1 a 7, dúvidas não existem de que o A. celebrou com o R. um contrato de trabalho para desempenhar a sua atividade de médico especialista em medicina geral e familiar, materializada em consultas, pareceres, atestados e outros atos médicos possíveis de realizar no posto do R. e atos de cirurgia, mediante uma retribuição mensal fixa, atividade que desenvolvia em 9 horas semanais (pontos 14, 15 e 24).
Por outro lado, o A. realizou inúmeras cirurgias fora do seu horário de trabalho, remuneradas até novembro de 2006 pela aplicação do fator “K” a cada ato médico e que lhe foram pagas pelo R. mediante emissão de “recibos verdes” por parte do A. (pontos 17 e 18).
Acresce que, como ressalta da matéria de facto apurada, o A. não logrou provar, como lhe competia (artigo 342.º, n.º 1, do C.C.), que aquando da celebração do contrato de trabalho acordou com o R. o pagamento de uma retribuição variável calculada tendo em conta o valor do citado fator “K”.
Assim sendo, e face aos restantes factos apurados (pontos 26 a 30) entendo que as cirurgias realizadas pelo A. e pagas pelo R. mediante apresentação dos respetivos recibos, constituem uma atividade “extra” contrato de trabalho, pese embora prestada aos beneficiários do SAMS porque, desde logo, praticada fora do horário de trabalho, com autonomia e até fora do posto do R..
E, ao contrário do alegado pelo recorrente, não vislumbro qualquer inadmissibilidade legal na coexistência de um contrato de trabalho e de uma “prestação de serviços” entre o A. e o R., uma vez que esta última se desenvolve fora do horário de trabalho acordado, nem, ainda, que quanto àquela se verifiquem os elementos essenciais do contrato de trabalho. Pelo contrário, verifica-se é a citada autonomia e o pagamento na forma já referida.
Na verdade, poderia questionar-se se estamos perante um contrato misto, ou seja, no qual se reúnem elementos de dois ou mais negócios. No entanto, <<o contrato de trabalho não se combina com outros contratos típicos, na medida em que contém um conjunto de prestações (prestação de trabalho e retribuição), perfeitamente articuladas num conteúdo contratual típico. Numa palavra, reúne, apenas, elementos do mesmo contrato. (…) Se o contrato de trabalho em si é um contrato simples, não será difícil imaginá-lo em articulação com outras figuras contratuais>>[1].
Mas, como refere Antunes Varela[2] <<para que diversas prestações a cargo de uma das partes façam parte de um só e o mesmo contrato, e não de dois ou mais contratos, é necessário que elas integrem um processo unitário e autónomo de composição de interesses. (…) Se às diversas prestações a cargo de uma das partes corresponder uma prestação única (una ou indivisível) da outra parte, será naturalmente de presumir, até prova em contrário, que elas quiseram realizar um só contrato (…).E o mesmo se diga, quando na base das prestações prometidas por uma e outra das partes haja um esquema ou acerto económico unitário, de tal modo que a parte obrigada a realizar várias prestações as não queira negociar separada ou isoladamente, mas apenas em conjunto>>.
Ora, face ao que ficou dito, podemos sem dúvida concluir que não estamos perante uma prestação única nem um acerto económico unitário.
Assim, teria por acertada a conclusão da sentença recorrida no sentido de que as quantias entregues pelo R. ao A. a título de montantes obtidos pela aplicação do factor “K”, não constituem “contrapartida do seu trabalho”, antes e quiçá contraprestração no âmbito de um (concomitante) contrato de prestação de serviços – artigo 1154º, do C.C..
Por outro lado, conforme o disposto no n.º 3, do artigo 258.º, do C.T., presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador. No entanto, os factos supra descritos nos pontos 26, 27, 29 e 30, ao contrário do alegado pelo recorrente, permitem-nos concluir no sentido de que o R. fez prova do contrário, ilidindo tal presunção (artigo 350.º, n.º 2, do C.C.).
Desta forma, aquelas quantias que o R. entregou ao A. para pagar as cirurgias efetuadas fora do seu horário de trabalho e através da aplicação do fator “K”, como já referimos, não constituíram qualquer remuneração do trabalho prestado no âmbito do contrato de trabalho celebrado mas “antes e quiçá contraprestração no âmbito de um (concomitante) contrato de prestação de serviços”.
Resta dizer que o réu desde novembro do ano de 2006 que não paga ao autor – para além da retribuição mensal, a que se reporta o ponto 4 - qualquer quantia a título de pagamento de pequenas cirurgias quanto às realizadas dentro do horário referido em 10 – 2 (desde novembro de 2006 até 31 de maio de 2009, 2 horas semanais Cirurgia Geral; após 1 de junho 2009 (inclusive) quatro horas semanais Consulta/Pequena Cirurgia).
Acontece que, da matéria de facto apurada não resulta para o R., no âmbito do contrato de trabalho, a obrigação do pagamento de qualquer outra quantia para além da retribuição referida no ponto 4 (nem qualquer diminuição da mesma), na medida em que, o A. encontra-se obrigado a cumprir os horários acordados para o exercício, além do mais, de atos médicos que tecnicamente seja possível efetuar no posto clínico dos SAMS, como é o caso das pequenas cirurgias, trabalho remunerado pela retribuição acordada e constante da cláusula 6 do contrato de trabalho e não por qualquer retribuição variável.
O A. até novembro de 2006 realizou inúmeras cirurgias e que foram remuneradas pela aplicação do factor “K” a cada ato médico, no entanto, tais cirurgias foram efetuadas fora do seu horário de trabalho, pelo que, aquela remuneração não foi contrapartida da prestação acordada no âmbito do contrato de trabalho, sendo que, <<o princípio da irredutibilidade da retribuição só opera quando a relação jurídica estabelecida entre as partes assume a natureza de um contrato de trabalho (…)>>[3].
Face ao que ficou dito, entendo que o R. não violou o direito (a garantia) do A. não ver diminuída a sua retribuição, nem lhe deve a quantia peticionada pelo mesmo.
Pelo exposto, confirmaria a sentença recorrida.
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Paula Maria Roberto
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[1] Paula e Hélder Quintas, Código do Trabalho anotado e comentado, 2ª edição, 2010, Almedina, pág. 90.
[2] Das Obrigações em geral, vol. I, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, págs. 279 e 280.
[3] Acórdão do STJ de 10/04/2002, Rev. n.º 454/02-4.ª: Sumários, 60.º.