RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ARRENDAMENTO
COMODATO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
Sumário

I - Os meios possessórios podem ser utilizados também nas situações da chamada posse paralela ou detenção interessada, como o arrendamento e o comodato.
II - Não se pode cumular em procedimento cautelar um pedido indemnizatório, por haver uma incompatibilidade substancial quer de pedidos, quer de causas de pedir.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de lisboa:
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Na 1. secção do 2. Juízo da Comarca de Sintra foi intentada, por (S) contra Fairsteads Limited, a presente providência cautelar de restituição provisória de posse com os seguintes pedidos:
1 - ordenar-se a restituição da posse da casa em crise à requerente, sem citação nem audiência prévia do esbolhador, em virtude do esbulho violento de que aquela foi vítima, nos termos do artigo 394 do CPC, tudo à custa da requerida;
2 - ordenar-se à requerida a restituição à requerente de todos os bens desta, à custa daquela no local do esbulho;
3 - condenar-se a requerida a pagar à requerente a quantia de 1500000 escudos, dados os prejuízos de ordem moral e patrimonial que aquela sofreu em consequência directa do esbulho violento de que foi alvo em relação à posse da casa onde residia permanentemente.
Para tanto alega, em síntese, a requerente que:
- vivia desde princípios de 1991, juntamente com o marido e dois filhos menores, numa casa da rua (Y), tendo celebrado contrato-promessa de compra e venda tendo por objecto a mesma casa, verificando-se de imediato a respectiva tradição material e tendo sido pagas todas as importâncias estipuladas quanto ao preço;
- contudo, por negócios efectuados pelo marido da requerente, a casa passou a ser propriedade da requerida, se bem que se tenha acordado que a requerente e a família permanecessem nela a viver;
- aí mantinha a requerente a sua residência permanente, tomando as suas refeições, dormindo e guardando todos os seus pertences e haveres, ficando em nome do seu marido a água, electricidade e telefone, sendo certo que ela e o marido também fizeram obras na casa;
- em 17/9/96, o representante da requerida, acompanhado de outras pessoas invadiram a casa, levando tudo o que aí se encontrava, e mudaram as fechaduras da casa, encontrando-se, por isso, a requerida impossibilitada de nela entrar.
A providência foi liminarmente indeferida, com absolvição da requerida de todos os pedidos, "sem prejuízo do disposto no art. 386 do CPC".
É desta decisão que a requerente nos traz o presente recurso de agravo, com as seguintes conclusões: a) A ora recorrente e família viviam permanentemente desde princípios de 1991 numa casa-moradia sita na rua (Y), Sintra, tendo celebrado um contrato-promessa com o anterior proprietário e verificando-se de imediato a tradição material da coisa. b) Em finais de 1994, a referida casa passou a ser propriedade da requerida, que, contudo, nunca tomou posse da mesma, ou sequer, nela exerceu qualquer actividade. c) Nessa altura foi acordado entre a ora recorrente e o marido e o Sr. (M), representante da requerida, que aqueles permaneceriam a ocupar e habitar a mencionada casa, como já o faziam anteriormente. d) Pelo que a ora recorrente e família praticavam de forma pública e reiterada, desde 1991, todos os actos materiais correspondentes à situação jurídica de possuidores da casa, designadamente ali dormiam, tomavam as refeições, guardavam todos os seus haveres, mantinham em seu nome os contratos de prestação de serviços de terceiros (água, electricidade e telefone) e chegaram a efectuar obras licenciadas pela Câmara Municipal de Sintra também em seu nome. e) Exercia assim a recorrente desde 1991 uma posse pública, pacífica e de boa-fé sobre a casa em questão. f) No dia 17 de Setembro de 1996, os responsáveis da requerida invadiram a casa possuída pela ora recorrente e retiraram do interior todo o recheio ali existente pertença desta por forma a que a mesma ficou completamente vazia, tendo-os depositado num armazém por eles escolhido. g) Sendo que a recorrente e os seus filhos menores, de 6 e 8 anos respectivamente, ficaram sem qualquer habitação para viver, tendo de pernoitar de favor em casa de familiares, e não podendo retornar à citada casa, uma vez que os responsáveis da requerida haviam mudado todas as fechaduras da mesma. h) Em face da actuação ilícita e abusiva por parte dos responsáveis da requerida, a ora recorrente não teve outra alternativa senão intentar de imediato (10/10/96) uma providência cautelar de restituição provisória de posse, ao abrigo do disposto nos arts.
1279 do CC e 393 e sgs. do CPC. i) A qual foi passado quase um mês (em 6/11/96) indeferida liminarmente por despacho do Mmo. Juíz, objecto do presente recurso de agravo, dado que considerou não se encontrar preenchido o requisito da parte final do n. 1 do artigo 1278 do CC, sendo que a ora recorrente se encontrava convencida da questão da titularidade do direito. j) Contudo, a ora recorrente propôs uma providência cautelar de restituição provisória de posse, sendo esta a única finalidade daquela, e não uma acção judicial de restituição, nos termos dos artigos 1033 e sgs. do CPC. k) Por outro lado, encontravam-se preenchidos, de acordo como os factos expostos, todos os requesitos da providência cautelar: a posse, o esbulho e a violência, os quais todavia não foram sequer apreciados pelo Mmo. Juíz do Tribunal "a quo". i) Acresce que a expressão "sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores" da primeira parte do artigo 1279 do CC, que serviu de fundamento à decisão recorrida, prende-se com o facto de a providência cautelar de reacção contra o esbulho violento, admitida por aquele preceito, não afectar o exercício da acção normal de restituição de posse, e não com o facto de o pussuidor esbulhado se encontrar ou não convencido na questão da titulariedade do direito, que surge na parte final do n. 1 do artigo 1278 do CC. m) Pelo que providência cautelar de restituição provisória de posse (artigos 1279 do CC e 393 do CPC) e acção judicial de restituição (artigos 1278 do CC e 1033 e sgs. do CPC) são dois meios perfeitamente autónomos e distintos, com requisitos próprios e diferenciados, que o possuidor esbulhado pode intentar, sendo certo que a propositura da primeira não dispensa a propositura da segunda, sob pena de caducidade daquela. n) Ao ter decidido em contrário, o douto despacho recorrido do Mmo. Juíz do Tribunal de 1. Instância violou o disposto nos artigos 1279 do CC e 393 do CPC.
A requerida contra-alegou, propugnando a confirmação do julgado.
O Mmo. Juíz sustentou o despacho sob recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Os factos que interessam à decisão são os que acabam de ser relatados.
Antes de mais, convém frisar que a solução do presente recurso vai ser procurada à luz do regime processual anterior à recente Reforma de 1995, operada pelo DL 329-A/95, de 12/12, pois que, por força do disposto no artigo 22 deste mesmo diploma legal, o novo regime só se aplica aos procedimentos cautelares requeridos na pendência da lei nova, ainda que como incidente de acções pendentes à data da sua entrada em vigor.
Ora, a lei nova, como se sabe, entrou em vigor em 1 de janeiro de 1997 (artigo 16 do DL 329-A/95) e a presente providência foi requerida em 11 de Outubro de 1996.
Como se sabe, no anterior regime processual só o possuidor esbulhado com violência poderia lançar mão da providência da restituição provisória de posse, específica e nominadamente prevista para o caso - artigos 1279 do Código Civil e 393-395 do CPC.
No novo regime, e conforme a alteração da redacção dada ao artigo 395 deste último diploma legal, também ao possuidor esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 393 (esbulho violento), é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum (equivalente à anterior providência cautelar inominada).
Contudo, não é só o possuidor stricto sensu que pode lançar mão dos meios possessórios.
Também as situações de posse paralela ou de detenção interessada, como o arrendamento e o comodato, podem ser defendidas por estes meios - acórdão desta Relação, de 19/5/87, CJ, ano XII, tomo 3, pag. 86-88.
Quanto ao arrendamento, é a própria lei a prever expressamente que o locatário que for privado da sua coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos pode usar, mesmo contra o locador, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276 e seguintes - n. 2 do artigo 1037 do CC.
É que a posse, conforme se lê no referido douto acórdão, "sendo um instituto específico do direito das coisas (direito de propriedade e outros direitos reais) como se define no art. 1251 do CC, não é exclusivo destas, conquanto as pressuponha, sendo também admitida relativamente aos direitos pessoais ou obrigacionais relacionados com as coisas, e durante muito tempo se discutiu qual a verdadeira natureza, pessoal ou real da posse (cfr. Cunha Gonçalves, "Da Prop. e da Posse", 185; M. Rodrigues,
"A Posse", 2., pags. 31, 39, 131 e 190).
Donde não possa obter a nossa concordância o fundamento invocado pelo Mmo. Juíz a quo, para indeferir liminarmente o pedido da rerstituição da casa, consubstanciado no reconhecimento por parte da agravante do direito de propriedade da agravada sobre a mesma casa.
É que o direito invocado como fundamento desse pedido de restituição é um dos tais de posse paralela ou detenção interessada, configurado, ao menos aparentemente, como comodato.
Efectivamente, a requerente, ora agravante, alega a esse propósito que, mesmo após o facto de a casa ter passado a ser propriedade da requerida, ora agravada, o representante desta, Sr. (M) acordou em que a requerente e família permanecessem a viver na mencionada casa (artigos 4 e 5 da petição inicial).
Não obstante, deve ser mantido o despacho de indeferimento da providência.
Por uma outra razão, também nele invocada, mas de que não se extraiu a correcta consequência legal.
Com o pedido de restituição, quer da casa, que dos seus bens nela existentes, a agravante cumulou um pedido indemnizatório de 1500000 escudos, por "prejuízos de ordem moral e patrimonial".
Porém, como acertadamente se consigna na decisão recorrida, este pedido não se coaduna com a natureza do processo, com o carácter provisório da restituição que se pede.
Na verdade, a restituição provisória de posse, como, aliás, qualquer outro procedimento cautelar, tem um cariz meramente instrumental, tendo por finalidade como que antecipar a decisão definitiva a proferir na acção principal, preparando o terreno para que a natural demora da tramitação desta não torne ineficaz a respectiva decisão.
Por outras palavras, as providências cautelares servem para acautelar direitos, não para os definir.
Por isso lhes basta, para serem decretadas, a prova da mera aparência do direito (fumus boni juris) e a sumariedade instrutória (summaria cognitio).
É na acção principal, de que forçosamente dependem (artigo 384, n. 1, a que corresponde o actual n. 1 do artigo 383 do CPC), que, com maior formalidade e com possibilidade de recurso a todos os meios probatórios, vai ser declarado, constituído ou exigido o direito acautelando.
Significa isto que só na acção de manutenção ou de restituição da posse poderia este pedido indemnizatório ser formulado.
Conforme claramente resulta do artigo 1284, n. 1 do CC (o possuidor mantido ou restituído tem direito a ser indemnizado).
E também resultava do n. 2 do artigo 470 do CPC, redacção anterior à Reforma de 1995, ao permitir que, não obstante a diversidade da forma de processo
- resultante do facto de as acções possessórias seguirem, na altura, a tramitação especial prevista nos artigos 1033 e sgs. do CPC, hoje revogados - se cumulasse o pedido de indemnização com o pedido de manutenção ou de restituição da posse.
Assim, mais do que uma cumulação ilegal de pedidos por diversidade da forma de processo, o que se verifica é uma verdadeira e intransponível cumulação substancialmente incompatível, quer de pedidos, quer até de causas de pedir.
(Quanto a esta última espécie de incompatibilidade, já Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, quando se cumulem causa de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis).
Entendemos, por conseguinte, que existe uma incompatibilidade intrínseca ou substancial - para utilizar a terminologia de Alberto dos Reis,
Comentário, vol. 2, página 390 - cumular um processo exclusivamente destinado a uma solução provisória, assente na mera aparência de um direito (que se pretende acautelar), um pedido de condenação indemnizatória, a qual pressupõe, necessariamente, a declaração definitiva desse mesmo direito.
Já o Tribunal da Relação de Évora, no seu acórdão de 25/6/75, sumariado no Boletim n. 248, página 470, decidiu que se verificava cumulação ilegal, conducente ao indeferimento liminar, quando no mesmo processo se pedisse, em simultâneo, a restituição provisória de posse e o arrolamento de bens.
Consideramos, por isso, estar verificada a nulidade da ineptidão da petição inicial, prevista nos n. 2, al. c) e 4 do artigo 193 do CPC, determinante do seu indeferimento liminar, por força do disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 474 do mesmo Código, na redacção anterior ao DL 329-A/95, de 12/12.
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DECISÃO
Por todo o exposto decide-se negar provimento ao agravo, confirmando-se, embora com fundamentação diferente, o despacho recorrido.
Custas pela agravante.
Lisboa, 9 de Outubro de 1997.
Dr. Ferreira Girão