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APERFEIÇOAMENTO DA PETIÇÃO INICIAL
SIMULAÇÃO SUBJECTIVA
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
Sumário
I - Não se justifica de todo o recurso ao mecanismo de aperfeiçoamento da petição inicial, quando mesmo assim se vislumbre que a decisão a proferir será necessariamente de improcedência do pedido formulado pelos autores. II - No caso de simulação por interposição fictícia de pessoas, a validade do negócio dissimulado depende da necessária manifestação de vontade do contraente real por meio formalmente válido. III - Havendo interposição real de pessoas está-se perante a figura do mandato sem representação segundo a qual o mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra. IV - As normas substantivas que regem o mandato sem representação não conferem ao mandante, de forma potestativa, a possibilidade de aquisição de direitos em execução do mandato, estatuindo antes a obrigação do mandatário providenciar pela transferência desses mesmos direitos.
Texto Integral
Apelação nº172/14.7TBPVZ.P1
Tribunal recorrido: Comarca do Porto
Póvoa de Varzim – Inst. Central – 2ª Secção Cível – J2
Relator: Carlos Portela (637)
Adjuntos: Des. Pedro Lima Costa
Des. Pedro Martins
Acordam na 3ª Secção (2ª Cível) do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório:
B…, C…, D…, e E…, vieram propor a presente acção declarativa, com processo comum, contra F…, S.A. e G… e mulher, H…, pedindo que a posição de promitente-comprador num contrato-promessa de compra e venda que melhor identificaram, em que a ré sociedade intervém como promitente vendedora e os réus G… e H… como promitentes-compradores, seja assumida pelos autores.
Para tanto alegaram em suma serem únicos e universais herdeiros de I…, falecido no estado de casado com a autora B…. I… celebrou entre outros o contrato-promessa em questão, mas por acordo com os réus G… e H…, figuraram estes como promitentes-compradores, em vista a salvaguardar a possibilidade de uma futura revenda sem necessidade de consentimento da autora B…, com quem se mantinha casado.
Contestaram ambos os réus impugnando muita da factualidade alegada e criticando as conclusões de direito tecidas no articulado inicial, acabando por concluir no sentido da improcedência da acção.
Foi convocada audiência prévia, proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
Proferiu-se então despacho dando às partes conhecimento da intenção de conhecer, de imediato, o mérito da causa, ao abrigo do dever de gestão processual, e convidando as partes a pronunciarem-se a respeito, tendo estas optado pelo silêncio.
Foi então proferida decisão onde se julgou a acção improcedente e, em consequência, se absolveram os réus do pedido.
Inconformados com a mesma decisão dela vieram recorrer os autores, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos as suas alegações.
Foram produzidas contra alegações por todos os réus.
Proferiu-se despacho que considerou o recurso tempestivo e legal, admitindo o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais e porque nada obsta ao seu conhecimento, cumpre apreciar e decidir o recurso em apreço.
*
II. Enquadramento de facto e de direito:
Como se verifica dos autos a presente acção foi proposta em 28.01.2014 e a sentença recorrida foi proferida em 30.12.2014.
Assim sendo e atento o que decorre do disposto nos artigos 5º, nº1 e 7º, nº1 da Lei nº41/2013 de 26 de Junho, ao presente recurso devem ser aplicadas as regras processuais postas a vigorar por este último diploma legal.
Ora como é por demais sabido, o objecto do presente recurso e sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pelos autores/apelantes nas suas alegações de recurso (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do NCPC). E é o seguinte o teor das mesmas:
I) Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Instância Central da Póvoa de Varzim, 2ª Secção Cível – J2, com a qual os Recorrentes, com o devido respeito, jamais poderão concordar, pois foi-lhes totalmente negada a justiça que devia, e deve ser, aplicada ao caso em apreço.
II) A sentença de que se recorre privilegia a rigidez formal em prol da verdade material.
III) Com todo o respeito pelo tribunal a quo, decisões desta natureza esvaziam o espírito de normas jurídicas como o artigo 240º do Código Civil que comina com o vício da nulidade os negócios jurídicos simulados; e cuja ratio legis subjacente deste tipo de normas é, precisamente, a protecção da boa fé e da verdade material, censurando quem age em violação destes princípios.
IV) Demonstra a experiência que o facto de partes contraentes atribuírem um determinado nome a um contrato, tal não significa que seja essa a sua natureza, daí a vigência do princípio da irrelevância do nomen iuris.
Do mesmo modo,
V) A simples existência de um contrato, assinado por determinadas pessoas, não significa, em verdade absoluta, infelizmente, que esse negócio jurídico tenha sido celebrado entre aquelas pessoas ou nos moldes que constam daquele mesmo acordo escrito.
VI) Como bem se sabe, nem sempre os reais contratantes são aqueles que figuram como parte no contrato reduzido a escrito.
VII) Apesar de as palavras fazerem presumir que o contrato existe nesses moldes, é frequente a verificação de que muitos desses negócios não passam de negócios simulados, quer para esconder o verdadeiro preço praticado, quer para camuflar o verdadeiro negócio jurídico em causa, ou as partes na esfera jurídica das quais, realmente, se vão produzir os efeitos jurídicos do negócio que consta do documento escrito.
VIII) Esta em causa um verdadeiro negócio jurídico simulado, tendo em conta que se verifica a existência de simulação quando há uma divergência intencional entre a vontade e a declaração das partes, uma combinação ou conluio que determine a falsidade dessa declaração, e a intenção ou intuito de enganar terceiros; e é precisamente o que sucede no caso em apreço. (Neste sentido, veja-se, por exemplo, Manuel de Andrade, in "Teoria Geral da Relação Jurídica", vol. II, Reimpressão, Coimbra, 1992, pp. 169 a 171).
IX) Os RR., aqui Recorridos, celebraram um contrato-promessa, de forma consciente e voluntária, sabendo que os efeitos jurídicos deste e quem realmente pagaria o preço e seria o verdadeiro promitente-comprador era I…, o qual, por sua vez, com o intuito de enganar a sua mulher, usava interpostas pessoas para realizar negócios jurídicos.
X) Estamos, pois, perante a chamada interposição fictícia, que se verifica "quando um negócio jurídico é realizado simuladamente com uma pessoa, dissimulando-se nele um outro negócio (real), de conteúdo idêntico ao primeiro, mas celebrado com outra pessoa." (Vide Fernando Pessoa Jorge, in "O Mandato sem Representação", Lisboa, 1961, pp. 215 e 216).
XI) Toda a sua fundamentação do douto tribunal ignora, pura e simplesmente, as evidências, fazendo tábua rasa da verdade dos factos, procurando exclusivamente tentar apresentar argumentos formais para a absolvição do réu da instância.
XII) Tanto mais se extrai da leitura da sentença que, a mesma procura apenas encontrar todos os argumentos para a solução teórica preconizada, uma vez que julga o pedido improcedente por não conseguir enquadrar os factos numa das duas soluções de direito que alega.
XIII) Tal construção, além de se alhear da realidade, é puramente teórica, não cumprindo a aplicação do direito à factualidade descrita. Mais,
XIV) Na génese da reforma do Novo Código de Processo Civil esteve também a solução do presente litígio, devendo ter sido observado o artigo 6º do referido diploma, que consagra que “[o] juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”.
XV) A este respeito, PAULO PIMENTA (in “Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013”, p. 11) afirma que “[o] novo Código de Processo Civil apresenta uma plêiade de soluções que têm de comum ideia de que o juiz deverá assumir a função judicante tendo em vista alcançar a verdade material, não se bastando com a mera verdade formal, o que, desde logo, impõe uma diferente forma de relacionamento com as partes e os seus mandatários”.
XVI) Do que se extrai da sentença, por que motivo não convidou o juiz os AA., aqui Recorrentes, a formular um pedido subsidiário (ou a aperfeiçoar o seu pedido) nomeadamente, o de “condenação do R. G… a transferir para si a posição contratual emergente do contrato promessa” conforme aventa na sentença?
XVII) Entendia-se que o juiz não o tenha feito por considerar que o pedido formulado na p.i. seria bastante para a resolução do presente litígio, todavia, como resulta da sentença que “o tribunal estaria sempre impedido de considerar a possibilidade de condenar o réu (…) por tal configurar uma condenação em objecto qualitativamente diverso do pedido”.
XVIII) Não é compreensível esta afirmação, pois os efeitos jurídicos que se visa produzir do ponto de vista do direito material são os mesmos; até porque o pedido que engloba o mais, também engloba o menos!
XIX) Estaremos, possivelmente, perante um “atropelo” a um dos princípios basilares do novo processo e de um dos fundamentos que esteve na génese da alteração do Novo Código, nomeadamente, a realização da justiça.
XX) Atenta a douta sentença no formalismo e mantendo uma postura extremamente rígida e fiel a existência de um documento escrito que, presumidamente, transparece a realidade, esquecendo-se que a verdade material resulta de um conjunto de factores e indícios que vão além da apresentação de assinaturas.
XXI) Citando, uma vez mais, PAULO PIMENTA (Cit., p. 12), “[d]aqui decorre que esta reforma não visou, nem de perto nem de longe, satisfazer a estéril querela dos poderes do juiz face aos advogados, mas tão só dar o sinal, a uns e a outros, de que o elemento central da actividade de todos em juízo é a defesa dos direitos e os interesses do cidadão.”
XXII) E é precisamente esta defesa (a tutela jurisdicional efectiva) que se encontra comprometida pela ineficácia na realização da justiça que o enfoque no formalismo acarreta.
XXIII) O cheque (documento junto à p.i.), no valor de 55.000,00€ (cinquenta e cinco mil euros), que serviu para liquidar o sinal, foi realmente pago por I…, e não pelo R. G….
XXIV) Também foi I… que passou a possuir a loja, objecto do referido contrato-promessa, tendo sido ele quem fez e pagou todas as obras que o imóvel necessitava, como demonstram os documentos n.ºs 7, 8, 9 e 10, juntos com a p.i.; tal como contratou com a EDP o fornecimento de electricidade para o imóvel, como comprova o documento junto á p.i. sob o n.º 11, sendo por este pagas as consequentes contas relativamente aos consumos de energia elétrica.
XXV) Assim sendo, considerando toda esta factualidade, e que eram amplamente conhecidas e públicas e as dificuldades da R. “F…, S.A.”, que teve que vender as suas instalações fabris e todo o património que não estava directamente afecto à sua actividade, como o imóvel objecto do contrato promessa em causa, é evidente o conhecimento, da sua parte, de que estava a realizar um contrato simulado, estando perfeitamente ciente do contrato dissimulado; só que o que queria era vender o imóvel e receber o dinheiro.
XXVI) Não é sequer credível que o R. G… tenha celebrado o contrato com a R. “F…, S.A.”, e que esta aceite para pagamento do sinal do mesmo contrato um cheque no valor de 55.000,00€ (cinquenta e cinco mil euros) de pessoa diversa, sem que soubesse o que estava em causa! Ora, XXVII) Se a R. “F…, S.A.” não conhecia todos os contornos na simulação, o que é falso, não podia certamente ignorar, pois, a existência de um negócio simulado e um dissimulado; pois quem é que aceita um pagamento de 55.000,00€ (cinquenta e cinco mil euros) de pessoa diversa daquela com quem vai celebrar o contrato sem saber o verdadeiro motivo?
XXVIII) Da sentença fica claro, apenas que a acção não procedeu, essencialmente por dois pontos: “o que não resulta claro é que a divergência entre a vontade real e a vontade declarada envolva o acordo do declaratário”; e “não se pode considerar uma promessa de compra e venda entre a sociedade e I…, porquanto este não manifestou qualquer declaração de vontade formalmente válida no sentido de tal contrato”.
XXIX) Se os RR. celebraram entre eles o acordo (sob a forma de contrato promessa) e o pagamento do sinal é feito com um cheque no valor de 55.000,00€ (cinquenta e cinco mil euros) passado por pessoa diversa de quem figura no contrato como promitente comprador. Como podemos dizer que não resulta claro um conhecimento/acordo por parte do legal representante da Sociedade “F…, S.A”?
XXX) O que seria, então, resultar claro? Seria as partes redigirem um documento escrito com as assinaturas reconhecidas notarialmente no qual estivesse escrito o que escondiam com o objectivo de enganar e prejudicar terceiros?
Algo como “as partes pretendem que resulte claro que o contrato-promessa entre elas celebrado foi simulado e que este documento prova do acordo entre declarante e declaratário.”
Ora,
XXXI) Como explica a voz autorizada de HEINRICH HÖRSTER (in "A Parte Geral do Código Civil Português", Coimbra, 1992, p. 541, na interposição fictícia, “uma pessoa apresenta-se aparentemente como parte do negócio jurídico, mas em virtude de um acordo oculto (para terceiros), os efeitos do negócio destinam-se a outra pessoa, não adquirindo o interposto a posição jurídica que exteriormente parece assumir”.
XXXII) A natureza da simulação é a ocultação, pois há um objectivo manifesto de enganar e/ou prejudicar terceiros; logo, na interposição fictícia, esconde-se, através da interposta pessoa, quem verdadeiramente celebra o negócio jurídico; por isso, não se entende o que mais teria que ser claro.
XXXIII) Só não resulta claro, se não se quiser que resulte claro, pois, como salienta Manuel de Andrade, é “muito raro existir uma prova directa da simulação” (in “Teoria geral da Relação Jurídica”, Vol. II, Almedina, 1983, p. 213); apenas não é claro para quem obtusamente persistir, contra todas as provas e evidências, na presunção de que o contrato é um espelho intocável da realidade, devido ao peso que a formalidade dele face contra a realidade descrita.
XXXIV) E, o que pretende o tribunal a quo ao afirmar que I… não manifestou qualquer declaração de vontade por via formalmente válida?
XXXV) É que se os segundos RR. fizessem uma venda ao falecido I…, ou uma doação, a A. B… poderia bloquear o património com uma providência cautelar de arrolamento, facto que o falecido sempre tentou evitar!
XXXVI) Esclarecida a intrínseca natureza oculta da simulação, voltamos a questionar se passar o cheque (que constitui uma ordem de pagamento) para pagar um sinal no valor de 55.000,00€ (cinquenta e cinco mil euros) não exprime a vontade real? Não evidencia a divergência entre a vontade real e a vontade declarada das partes que figuram no contrato promessa? E contratar com a EDP, possuir e exercer uma actividade no imóvel objecto do contrato-promessa, fazer e suportar os custos com obras nesse imóvel não são provas inequívocas de que seria I… a verdadeira parte neste contrato-promessa e de que houve uma simulação que era do conhecimento de todos, incluindo do promitente-vendedor, que, como é óbvio, sabe quem está no imóvel que prometeu vender e quem contratou electricidade com a EDP para esse imóvel?
XXXVII) É necessário ter presente que está em causa um contrato-promessa; a propriedade do imóvel não se transferiu, pelo que não é plausível ou sequer natural que o promitente vendedor não saiba o que é feito, quem possui, quem exerce uma actividade profissional e qual num imóvel que ainda é seu!!!
XXXVIII) Esta é a verdade material, que mais do que um princípio que norteia o processo civil, é um pilar do Estado de Direito e de uma efectiva tutela jurisdicional do cidadão; e a sua negação, expressa na douta sentença recorrida, exprime a busca pelo formalismo a fim de evitar a boa decisão da causa e a realização da justiça.
XXXIX) Não pugnando pela nulidade e colocando de lado esta cominação, o tribunal parece esquecer-se que não está em causa um aproveitamento do negócio em prol dos simuladores, mas sim das pessoas que os simuladores visaram prejudicar e, por este motivo, faria sentido ter em consideração a posição doutrinária “que entende que o negócio dissimulado é formalmente válido, se o documento para ele exigido for do mesmo tipo do adoptado no negócio simulado ou, pelo menos, se a forma adoptada no negócio simulado satisfizer as razões da forma exigida para o negócio DISSIMULADO” (Cfr. HEINRICH HÖRSTER, in "A Parte Geral do Código Civil Português", Coimbra, 1992, pp. 545 e 546), atribuindo-se uma melhor “satisfação da vontade real dos interessados, atribuindo ao documento ou aos documentos celebrados o sentido que as partes quiseram (mas não manifestaram) ao outorgá-los” (Cfr. A. VAZ SERRA, “Anotação ao Acórdão do STJ”, RLJ 113 (1980-1981), p. 57).
XL) O contrato-promessa observou a forma prescrita pelo artigo 410º, n.º3 do Código Civil, pelo que deveria a forma do negócio simulado satisfazer as razões de forma exigidas para o negócio dissimulado.
Além disso,
XLI) Trata-se de um contrato-promessa, cujo contrato final ainda se irá realizar, e o pedido formulado na p.i. visa a substituição da posição contratual do promitente-comprador simulado pelos herdeiros da verdadeira parte que deveria figurar no contrato-promessa e que assinou o cheque e que, por acaso, são estes herdeiros as pessoas que foram enganadas e prejudicadas pela simulação.
XLII) Permitir a cristalização desta ilicitude passa pela perpetuação dos efeitos da simulação, privilegiando e premiando incorrectos comportamentos, de quem quis enganar e prejudicar os Recorrentes, pretendo evitar que esse direito integrasse o património, nomeadamente do casal que não se encontrava divorciado à data da celebração do contrato-promessa.
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Já os réus/apelados nas conclusões das suas contra alegações, pugnam ambos pela improcedência do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.
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Ora perante o acabado de expor resulta claro que é a seguinte a única questão que nos é colocada no âmbito deste recurso:
A de saber se os elementos (de facto e de direito) que constam dos autos permitem julgar procedente o pedido formulado pelos autores/apelantes.
Sendo esta a questão a apreciar, importa referir quais os factos que o Tribunal “a quo” teve como provados e que os mesmos autores e ora apelantes não questionam neste seu recurso e que são os seguintes:
a) Teor da escritura de habilitação de herdeiros junta como documento n.º 1 com a petição inicial, em que os autores são habilitados como herdeiros de I…, falecido em 14 de Janeiro de 2012, nos termos alegados no art. 1.º da petição inicial;
b) Teor do escrito intitulado contrato promessa de compra e venda, datado de 22 de Outubro de 2007, junto como documento n.º 5 com a petição inicial, em que a ré F…, S.A. declara como promitente vendedora e o réu G… declara como promitente-comprador, nos termos alegados no art. 14.º da petição inicial;
c) I… e o réu G… acordaram que este assinaria o escrito referido em b), referente a imóvel que aquele pretendeu adquirir para si, fazendo-o porque, se o próprio I… outorgasse o negócio não poderia depois dispor do imóvel sem que a autora B… concordasse.
*
Da necessária leitura atenta da petição inicial, o que claramente ressalta é que os autores não cumprem correctamente o estatuído no art.º552º, nº1, alínea d) do NCPC, já que não indica devidamente “quais as razões de direito que servem de fundamento à acção”.
Ora perante tal insuficiência de alegação, importa antes do mais apurar se era exigível ao Sr. Juiz “a quo” fazer recurso do mecanismo previsto no art.º590º, nº2 do NCPC.
Vejamos, pois.
Como ensina o Prof. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, 3ª edição, a pág.155 “apresentado o último articulado do processo ou terminado o prazo para a apresentar, o processo é concluso pela secretaria ao juiz, que sendo caso disso, profere despacho destinado a providenciar pela sanação da falta de pressupostos processuais e (ou) a convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados (art.590-2)”.
Tal despacho a que o novo código chama despacho pré-saneador, desempenha uma quádrupla função:
-Sanação da falta de pressupostos processuais (art.590-2-a);
-Correcção das irregularidades dos articulados (art.590-nºs 2-b e 3;
-Junção de documentos que permita a imediata apreciação de excepção dilatória ou o imediato conhecimento do pedido (art.590-2-c);
-Complemento dos articulados deficientes (art.590, nºs 2-b e 4).
No caso dos autos o que muito naturalmente importa considerar é a última das situações previstas.
Assim nesta e no âmbito do novo regime processual, tal convite pode ser dirigido quer ao autor (para complementar o concretizar a causa de pedir) quer ao réu (para complementar ou concretizar uma excepção).
Estamos pois perante um remédio destinado aos casos em que os factos alegados pelo autor ou pelo réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as excepções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados.
Como refere Lebre de Freitas, obra citada, a pág.144 “no primeiro caso, está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir ou duma excepção, por não terem sido alegados todos os que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada. No segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a algum ou alguns desses elementos de facto, de modo conclusivo (abstracto ou jurídico) ou equívoco”.
Perante o acabado de expor, é para nós evidente que a insuficiência de alegação detectada na petição inicial não é de todo enquadrável na previsão legal desta norma do art.º509º, nºs 2, alínea b) e 4 do NCPC.
Isto porque como já vimos, não se trata de uma simples “insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”, mas antes (e também) de uma incorrecta indicação das razões de direito que servem de fundamento ao pedido formulado pelos autores.
Mas mesmo que assim se não entenda, também para nós era de todo inconsequente a prolação do aludido despacho de aperfeiçoamento.
E as razões são aquelas que já constam de forma suficiente na decisão recorrida, as quais aliás merecem a nossa total adesão.
Assim e como dispõe o art.º240º, nº1 do Código Civil “se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 2ª edição, a pág.211, “exige este artigo três requisitos para que haja simulação: divergência entre a vontade real e a vontade declarada, intuito de enganar terceiros e o acordo simulatório”.
Como ali também se afirma, pode existir simulação nos simples actos jurídicos (vide art.295º) e em negócios jurídicos unilaterais.
E mais quando afirmam que a lei distingue entre a simulação absoluta e a simulação relativa e ainda, embora, sem efeitos práticos no direito civil, entre a simulação inocente e a simulação fraudulenta (art.º242º, nº1, parte final).
Por último e atento o que decorre no nº2 do mesmo artigo, afirmam o seguinte:
“Consagrando a nulidade do negócio simulado, a lei quer dizer portanto: a) que a simulação pode ser invocada por qualquer interessado e ser oficiosamente declarada; b) que o vício do negócio pode ser arguido a todo o tempo, tanto por meio de acção como por via de excepção; c) que o vício pode ser sanado, mediante confirmação da declaração”.
Voltando aos autos, importa pois apurar se os requisitos antes melhor referidos se encontram verificados na hipótese concreta aqui trazida pelos autores e ora apelantes B…, C…, D… e E….
Ora não obstante a já antes apontadas insuficiências de alegação, podemos também nós retirar do processo as seguintes conclusões:
Nos termos alegados pelos autores, o réu G… declarou prometer comprar à ré F…, S.A. um imóvel como se mostra do escrito a que se refere a alínea b) em divergência com a sua vontade real, o que fez intencionalmente.
No entanto, não se mostra claro que esta divergência entre a vontade real e a vontade declarada no aludido escrito, envolva o acordo do declaratário, no caso o legal representante da F…, S.A. aqui ré.
Que a existir tal acordo, o mesmo teria por finalidade enganar a autora B…, que aqui surge como terceiro ao aludido negócio celebrado pelos réus G… e F….
Resulta da decisão recorrida que perante o conjunto de elementos acabados de expor o Sr. Juiz “a quo” vislumbrou a possibilidade de aplicar ao caso o regime da simulação relativa previsto no art.º241º, nº1 do Código Civil e segundo o qual “quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado”.
Todos sabemos que nesta norma há dois negócios: um negócio ostensivo – simulado – e um negócio latente – dissimulado.
Nas palavras do Prof. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II. 4ª Reimpressão, a pág.186 e seguintes, “impõe-se ainda distinguir as modalidades de simulação segundo o elemento do negócio latente que aparece desfigurado no negócio ostensivo.
Assim, cabe distinguir a simulação dos sujeitos (simulação de pessoas; simulação subjectiva) da simulação do conteúdo do negócio (simulação objectiva)”.
Ora não restam dúvidas que perante os elementos disponíveis nos autos, a situação em apreço a ser classificada como de simulação só poderá ter enquadramento na primeira hipótese, a da simulação subjectiva.
Saber se no caso a interposição é fictícia ou real, não se afigura de todo fácil, face à matéria factual alegada pelos autores na sua petição inicial.
É consabido “que na interposição fictícia o interposto é um simples presta-nome (homem de palha, testa de ferro; mas não assim na interposição real, onde o interposto será verdadeira parte no ulterior negócio, em face do respectivo contratante” (cf. Manuel de Andrade, obra supra citada, pág.187).
A este propósito e para um melhor distinção destas duas situações, o necessário recurso ao que ficou consignado no Acórdão do STJ de 25.03.2010, processo nº199/03.4TBAVS-AEZ.S1, em www.dgsi.pt. e cujo conteúdo aqui passamos a transcrever nas suas partes mais importantes.
Assim no mesmo fez-se constar que “a interposição fictícia de pessoas se verifica quando um dos sujeitos que surge como parte de um determinado negócio representa um papel de mero testa de ferro, isto é, não adquire quaisquer direitos ou deveres materialmente, todos os efeitos jurídicos decorrentes da conclusão negocial projectam-se na esfera jurídica de outrem, externo ao negócio público e formal” (cf. Menezes Cordeiro, A. Barreto, Da Simulação no Direito Civil, 2014, pág.85)”.
E mais quando afirma o seguinte:
“A interposição fictícia verifica-se quando um negócio jurídico é realizado simuladamente com uma pessoa, dissimulando-se nele um outro negócio (real), de conteúdo idêntico ao primeiro, mas celebrado com outra pessoa. Como exemplifica Pessoa Jorge, A declara vender determinada coisa a B, que manifesta a sua vontade de a comprar; mas sob esta aparência, esconde-se o verdadeiro contrato, não entre A e B, mas entre A e C (cfr. Mandato sem Representação, p. 114 e segs).
Ou seja, celebrado o contrato entre as partes, o outorgante aparente no negócio (testa de ferro ou homem de palha) figurará apenas como titular aparente, titular nominal, com o objectivo de subtrair ao conhecimento de terceiros o nome de uma das partes envolvida no contrato ou de violar a lei.
Logo, ele não representa o “outorgante real” nem se vincula a praticar quaisquer actos jurídicos em nome dele.
A sua intervenção visa apenas validar um negócio que, se formalizado e exteriorizado com o interessado real, seria inválido; a simulação incide sobre a pessoa do outorgante e não sobre o conteúdo do negócio.
Por isso, o Prof. Beleza dos Santos enunciava como requisitos da interposição fictícia de pessoas, os seguintes elementos:
1. Que haja duas ou mais pessoas a quem interesse a realização de um determinado acto jurídico;
2. Que todos ou alguns dos interessados não queiram ou não possam realizar directamente realizar;
3. Que exista um intermediário por meio de quem o acto se pratique e com quem os directamente interessados estabeleçam relações jurídicas;
4. Que esse intermediário não tenha interesse próprio na realização do acto em que intervém como parte (cfr. A simulação no Direito Civil, 2. ed. São Paulo: Lejus, 1999 pág. 222).
Ou, como já entendeu este STJ, em acórdão de 09-05-2002 (Relator Araújo de Barros) na interposição fictícia há uma simulação relativa subjectiva para contornar uma alegada impossibilidade de negociação directa com a outra”.
E mais adiante quando se afirma o seguinte:
“A interposição real verifica-se “quando alguém conclui um negócio jurídico em seu nome, mas por conta ou interesse ou a favor de outrem, pelo que os direitos e as obrigações emergentes do negócio se produzem em relação àquele, que, todavia, se obriga a transferir (ou automaticamente estes se transferem) os direitos para esse outro. "Por conseguinte, ao passo que na interposição fictícia, a pessoa interposta é um sujeito simulado, o interposto é, na interposição real, parte verdadeira no negócio” (cfr. Ac. STJ 09-05-2002 citado).
As situações de interposição real de pessoas reconduzem-se ao mandato sem representação quando alguém, embora o faça no interesse de outrem, actua legalmente em nome próprio, adquirindo direitos e assumindo obrigações, para si e em seu nome próprio.
Há mandato sem representação quando o mandatário age em nome próprio (não em nome do mandante), adquirindo os direitos e assumindo as obrigações decorrentes dos actos que pratica, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participam nesses actos ou sejam deles destinatários (art.º 1180º CCivil)”.
Ora da leitura mais atenta de todo o teor da decisão recorrida, resulta claro que o Sr. Juiz “a quo” e tendo em conta os elementos de facto que tinha ao seu dispor, não deixou de avaliar de forma correcta uma e outra destas duas hipóteses.
Assim, também para nós se mostra de todo inexequível a procedência do pedido formulado pelos autores, através da subsunção dos factos tidos como provados em qualquer destes dois institutos jurídicos.
Na verdade e como ali bem se afirma, poderia ser através do mecanismo previsto no art.º241º, nº1 do Código Civil que se não obstante a nulidade do contrato-promessa celebrado entre F…, S.A. e G…, que seria permitido considerar a validade e eficácia do contrato-promessa efectivamente querido, entre F…, S.A. e I…, cuja posição contratual teria sido adquirida pelos autores por sucessão.
No entanto, afigura-se-nos também evidente que nos casos já antes identificados de simulação por interposição fictícia de pessoas, a validade do negócio dissimulado depende da manifestação de vontade do contraente real por via formalmente válida, no caso o falecido I….
Ora nos autos e dos elementos que temos ao nosso dispor não podemos concluir que existiu ou existe uma declaração de vontade do mesmo no sentido de ser sua a posição contratual que perante a ré F…, S.A, era do réu G….
Deste modo e tendo em conta a posição manifestada quer pela doutrina quer pela jurisprudência melhor citadas na decisão recorrida, também nós somos a concluir que não sendo aplicável ao caso o que resulta do previsto no supra citado art.º241º, nº1 do Código Civil, teria neste âmbito sempre de improceder o pedido que foi formulado pelos autores.
E o mesmo ocorre na hipótese de simulação por interposição real de pessoas, a que segundo o Tribunal “a quo”, melhor se adequa à situação em apreço nos autos.
Como atrás já deixamos dito, havendo interposição real está-se perante a figura do mandato sem representação prevista no art.º 1180º do Código Civil.
Segunda esta norma o mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes.
Nos termos do seu nº1, o mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato.
É consabido que o que caracteriza o mandato sem representação é o facto de o mandatário agir em nome próprio, pelo que os actos por ele praticados, em vez de produzirem os seus efeitos na esfera jurídica do mandante (como quando existe representação – art.º 258º do CC), produzem-nos na esfera jurídica do mandatário (neste sentido Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, pág.541).
No mandato sem representação, o mandatário não deixa de ser contraente em face dos terceiros com quem negociou, mesmo depois de transferir para o mandante os direitos adquiridos em função do mandato (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 2ª edição, pág.311).
Ora como correctamente se afirma na decisão recorrida, segundo a factualidade alegada, é neste âmbito que se deve subsumir o acordo celebrado entre I… e o réu G….
De acordo com os autores o primeiro pretende adquirir para si o imóvel prometido comprar, paga o preço, e passa a fruir e a utilizar o imóvel, mas, nos termos alegados, pede ao réu G… o seu nome “emprestado” para figurar no contrato-promessa.
De acordo com o ali afirmado, o mesmo réu emite a declaração que integra o negócio mandatado, em nome próprio, e por isso adquire na sua esfera jurídica os direitos decorrentes do contrato.
Já vimos o que decorre do disposto no art.º1180º, nº1 do Código Civil.
Mas o que os autores, sucessores do por morte do mandante, aqui pretendem, é assumir directamente a posição contratual adquirida pelo mandatário, o que não lhe é legalmente permitido como passaremos a verificar.
Na verdade, tal norma não confere ao mandante, de forma potestativa, a aquisição dos direitos adquiridos em execução do mandato, impondo antes ao mandatário a obrigação de providenciar pela transferência de tais direitos.
No sentido de que esta transferência dos direitos adquiridos para o mandante é insusceptível de execução específica, vão para além de outros, os acórdãos melhor referidos na decisão recorrida do qual se destaca o do STJ de 26/09/2010, processo nº476/99.P1.S1, em www.dgsi.pt.
Deste modo e como bem se afirma na mesma decisão recorrida, no caso só era possível aos autores que pedissem a condenação do réu G… a transferir para si a posição contratual emergente do contrato promessa, sob eventual cominação de uma sanção pecuniária compulsória, mas já não já a faculdade de obter uma sentença constitutiva de tal efeito.
Perante o acabado de dizer cabe agora chamar à colação o disposto no art.º609º, nº1 do NCPC, segundo o qual “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.
Por isso e pedindo os autores que a posição de promitente-comprador no contrato promessa que consta do contrato de fls.12 e 13 seja por si assumida, tal pretensão teria sempre que improceder, como aliás improcedeu. Em suma, nenhuma censura nos merece pois a sentença recorrida a qual deve por isso ser aqui confirmada.
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Sumário (art.º663º, nº7 do NCPC):
1.Não se justifica de todo o recurso ao mecanismo de aperfeiçoamento da petição inicial, quando mesmo assim se vislumbre que a decisão a proferir será necessariamente de improcedência do pedido formulado pelos autores;
2.No caso de simulação por interposição fictícia de pessoas, a validade do negócio dissimulado depende da necessária manifestação de vontade do contraente real por meio formalmente válido;
3.Havendo interposição real de pessoas está-se perante a figura do mandato sem representação segundo a qual o mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra;
4.As normas substantivas que regem o mandato sem representação não conferem ao mandante, de forma potestativa, a possibilidade de aquisição de direitos em execução do mandato, estatuindo antes a obrigação do mandatário providenciar pela transferência desses mesmos direitos.
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III. Decisão: Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação, assim se confirmando integralmente a decisão recorrida.
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Custas a cargo dos autores/apelantes (cf. art.º527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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Notifique.
Porto, 23 de Junho de 2015
Carlos Portela
Pedro Lima Costa
Pedro Martins