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CONTRATO DE SERVIÇO DOMÉSTICO
CADUCIDADE DO CONTRATO
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE ABSOLUTA E DEFINITIVA DE O TRABALHADOR PRESTAR O SEU TRABALHO
COMPENSAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
INDEMNIZAÇÃO
AUTO DE CONCILIAÇÃO
Sumário
I - Para que o exercício do direito seja considerado abusivo, é necessário que o titular exceda, visível, manifesta e clamorosamente, os limites que lhe cumpre observar, impostos quer pelo princípio da tutela da confiança (boa fé), quer pelos padrões morais de convivência social comummente aceites (bons costumes), quer, ainda, pelo fim económico ou social que justifica a existência desse direito, de tal modo que o excesso, à luz do sentimento jurídico socialmente dominante, conduz a uma situação de flagrante injustiça. II - O facto de a sinistrada/autora no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho não ter deduzido qualquer pedido indemnizatório derivado de danos não patrimoniais na ação especial emergente de acidente de trabalho, não pode inculcar a ideia de que tal comportamento omissivo tenha criado a legítima convicção ou expetativa na sua entidade empregadora de que a mesma nunca mais iria peticionar tal indemnização e que ao vir agora reivindicá-la tenha frustrado aquela expetativa. III - Tendo o contrato de serviço doméstico cessado por caducidade com fundamento em impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de a trabalhadora, aqui recorrente, prestar o seu trabalho – alínea b) do nº 1 do artigo 28º do DL nº 235/92, de 24 de Outubro - inexiste, por parte da trabalhadora, nesta situação, qualquer direito a compensação. Pois, a compensação, só existe para as situações de caducidade do contrato com fundamento na d) n.º1 do art.º 28, do DL n.º 232/92 - ocorrendo alteração substancial das circunstâncias da vida familiar do empregador que torne praticamente impossível a subsistência da relação laboral (artigo 28º, nº 3) - o que manifestamente não é o caso. IV - Se assim é, não tendo o legislador previsto qualquer direito a compensação pela caducidade do contrato na situação em apreço, e, sendo essa não previsão intencional, não há que lançar mão da analogia (cf. artigo 10º, nº 2 do Código Civil). O direito a compensação com fundamento na d) n.º1 do art.º 28, do DL n.º 232/92, é uma norma excecional e, como tal, insuscetível de aplicação analógica (cf. artigo 11º do Código Civil). V - Mesmo que se defendesse que nestas situações se poderia lançar mão do regime geral, a solução não seria diversa. E não o seria, porque, no âmbito do Código do Trabalho, apenas a caducidade do contrato de trabalho resultante da morte do empregador, da extinção da pessoa coletiva empregadora e do encerramento total e definitivo da empresa, dá lugar a que o trabalhador tenha direito a uma compensação calculada nos termos do artigo 366º do Código do Trabalho – cfr. artigo 346º nº 5 do CT. O Código do Trabalho apesar de prever que o contrato possa cessar por caducidade em virtude de impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o trabalhador prestar o seu trabalho – artigo 343º, alínea b) – exclui de forma intencional qualquer direito a compensação por essa cessação. VI - Mesmo que se defendesse que nesta situação concreta o que levou à caducidade do contrato de trabalho teve por causa uma comportamento ilícito e culposo do réu (entidade empregadora) – por não cumprido determinadas normas legais relacionadas com a saúde e segurança no trabalho - e, como tal, deveria ser responsabilizado por esse seu comportamento, a verdade é que, a eventual indemnização apenas poderia ter como fundamento as regras gerais. Assim, quer se entenda que estamos perante uma responsabilidade contratual ou extracontratual, para haver direito a indemnização, haverá que alegar e provar uma conduta violadora de direitos resultantes ou do incumprimento de um contrato ou de leis ou regulamentos, a ilicitude de tal violação, a culpa sob a forma de dolo ou negligência, o dano e o nexo de causalidade entre o comportamento e o dano. VIII – A entender-se que esse dano poderia ser apreciado fora do âmbito do Código do Trabalho, ou seja, fora das normas que preveem a compensação em virtude da caducidade e que acima referimos, então a responsabilidade do Réu teria de ser apreciada no âmbito da ação especial emergente de acidente de trabalho. É que, resultando o acidente, como alega a Autora, da falta de observação, pelo empregador, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais – cf. artigo 18º da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro. Ora, este normativo é bem mais abrangente do que o anterior artigo 18º da lei nº 100/97, de 13 de Setembro, onde, resultando o acidente, da falta de observação, pelo empregador, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, além da agravação das prestações ditas normais (como acontece com o atual artigo 18º, nº 4), estava prevista a responsabilização por danos morais nos termos da lei geral – artigo 18º, nº 2. IX - Atualmente ao dizer-se que a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais, está a contemplar-se toda a situação de danos, quer patrimoniais, quer não patrimoniais, derivados da eclosão do acidente de trabalho, entre os quais, assim nos parece, aqueles que derivam da caducidade do contrato de trabalho em virtude do sinistrado ficar incapaz de prestar a sua atividade. X - É no auto de conciliação que globalmente se equacionam todos os pontos decisivos à determinação dos direitos do sinistrado, conforme resulta dos artigos 111º e 112º do CPT, seja no caso de acordo, seja na falta dele. XI - Na fase contenciosa apenas se pode exercitar os pontos ou factos por que o pedido não logrou acordo na fase conciliatória, ou seja, aqueles que ficaram por dirimir na fase conciliatória e que obstaram ao acordo total, à plena reparação, relativamente à pretensão e direitos que o sinistrado reclamou. XII - Do confronto daqueles normativos (artigos 111º e 112º do CPT) podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto. XIII - É no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, e não fora dele, que o sinistrado pode e deve obrigatoriamente reclamar os danos não patrimoniais, caso entenda que o acidente tenha sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou se o mesmo for resultado da falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho – artigo 18º da NLAT. XIV - Tendo transitado a decisão que definiu os direitos da sinistrada advenientes do acidente de trabalho e não tendo a sinistrada, na tentativa de conciliação, equacionado ou discutido que o acidente, de que foi vítima, tivesse ocorrido, por culpa da sua entidade empregadora, nem reclamado quaisquer danos não patrimoniais, e, tendo a tentativa de conciliação a finalidade de delimitar e definir os direitos resultantes do acidente, é manifesto, no nosso ponto de vista, que já o não pode fazer depois, seja no âmbito da acção emergente de acidente de trabalho, seja através da acção de processo comum. Isto porque estamos no âmbito do caso julgado, com preclusão do direito de reclamar qualquer outra e diversa responsabilidade.
Texto Integral
ACÓRDÃO
PROCESSO Nº 628/14.1TTPRT.P1 RG 480
RELATOR: ANTÓNIO JOSÉ ASCENSÃO RAMOS 1º ADJUNTO: DES. EDUARDO PETERSEN SILVA 2º ADJUNTO: DES. PAULA MARIA ROBERTO
PARTES: RECORRENTE: B… RECORRIDA: C…
VALOR DA ACÇÃO: 29.532,97 €
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Acordam os Juízes que compõem a Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
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I – RELATÓRIO 1.B…, contribuinte nº ………, com domicílio na Rua … n.º .., R/C, Direito, ….-… …, Gondomar, intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra C…, com domicílio na … n.º …, ..º, ….-… P, pedindo que acção ser julgada totalmente procedente por provada e, em consequência, ser reconhecida a cessação por caducidade do contrato de trabalho celebrado entre A. e Réu, por culpa imputável ao Réu e, por via disso, ser o Réu condenado a pagar à Autora, as seguintes quantias, acrescidas de juros de mora, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento:
- a quantia de € 4.532.97, a título de indemnização de antiguidade como compensação pela caducidade do seu contrato de trabalho, resultante das ordens ilícita e culposas emanadas da sua entidade empregadora;
- a quantia a liquidar pelo Tribunal, a título de ressarcimento pelos danos não patrimoniais sofridos pela Autora, mas que nunca deverá ser inferior a € 25.000.
Para tanto, e em resumo, alegou que Em 1 de Janeiro de 2004, o Réu celebrou um contrato de serviço doméstico com a A., mediante o qual esta se obrigava, mediante retribuição mensal, a prestar ao Réu, com carácter regular, sob a sua direção e autoridade, atividades destinadas à satisfação das necessidades próprias ou específicas de todo o agregado familiar do Réu, nomeadamente a prestação de cuidados domésticos, designadamente a coinfecção de refeições, lavagem e tratamento da roupa e limpeza, tratamento ou arrumo da casa, auferindo por via disso, aquando da suspensão do contrato de serviço doméstico, por motivo de acidente de trabalho, a remuneração mensal de € 496,01.
No dia 02 de Junho de 2011, pelas 15h15m, no desempenho das suas funções, no seu local de trabalho, isto é na residência do Réu supra identificada, a aqui Autora foi vítima de um acidente de trabalho, o que originou a instauração do Proc. nº 947/11.9TTPRT, que correu termos na 3ª Secção do Juízo Único do Tribunal de Trabalho do Porto, no qual foi decretada a sentença, cuja ainda não transitou em julgado atento o recurso interposto pela Companhia de Seguros D…, S.A., enquanto entidade responsável.
Este acidente de trabalho ocorreu durante o processo de confeção de cera, pela A., seguindo as instruções e ordens emanadas do Réu, para aplicar no mobiliário pertencente à sua entidade empregadora, o qual implicava o manuseio de diversos produtos químicos, inflamáveis e perigosos, adquiridos e fornecidos à A. pelo Réu, para a confeção de cera, os quais desencadearam um grave incêndio na habitação do Réu, na área da cozinha, tendo a Autora sido gravemente atingida por um líquido quente e diversas chamas, como resultado do incêndio do qual redundaram ferimentos muito graves para a A., designadamente queimaduras de alto grau.
A Autora confecionava este produto, todos os anos, por ordem da sua entidade empregadora, jamais tendo recebido a formação necessária para desempenhar este tipo de tarefas, deveras perigosas e tóxicas, as quais claramente extravasavam o âmbito das funções para as quais a A. havia sido contratada, em perfeito desrespeito, nomeadamente, pelas mais elementares regras de segurança e saúde no trabalho.
Em consequência deste acidente de trabalho, a Autora sofreu queimaduras do 2.º e 3.º graus, as quais atingiram, gravemente, a face, incluindo os olhos, vias aéreas, couro cabeludo, membros superiores e inferiores, dorso, nádegas e coxas, ficando inclusive com a traqueia, laringe e as plantas dos pés queimadas
Do referido acidente resultaram, assim, várias sequelas físicas pós-traumáticas, sendo que o apoio diário de 3ª pessoa à A. foi e continua a ser necessário, dado o estado geral de saúde da A. ter vindo a agravar-se em resultado do referido acidente de trabalho, com especial incidência para:
- ter a A. ficado cega da vista direita e na outra ter catarata;
- não possuir autonomia para movimentar-se sozinha;
- manifesta total incapacidade para trabalhar, para desempenhar as tarefas mínimas das lides domésticas, tais como cozinhar e arrumar, bem como da sua higiene pessoal, designadamente tomar banho;
- desequilíbrios constantes e consequentes receios de se deslocar fora de casa, sozinha;
- registar um assustador aumento de perda de memória.
Foi concedida alta médica à A. no dia 28 de Maio de 2013.
No dia 29/05/2013, a Autora, acompanhada pela filha E…, comunicou ao Réu que tinha tido alta médica, pelo que pretendia retomar as suas funções, cumprindo o disposto no art. 297º do Código de Trabalho, ao que o Réu respondeu que iria falar com a sua Advogada, sendo que mais tarde contactou a A. e a filha da A., E…, dando-lhes conta que, atentas as limitações da A. decorrentes do seu atual quadro clínico e a sua consequente incapacidade para o trabalho e para as lides domésticas, não poderia a A. desempenhar as funções para que havia sido contratada por si, pelo que não iria mais exercer funções ao serviço do Réu, dado que considerava que o contrato de serviço doméstico celebrado com a A. havia cessado a partir dessa data.
Em face do exposto, tornou-se impossível à A. retomar o seu posto de trabalho ou voltar ao mercado de trabalho.
Na verdade, a A. nasceu a 4/02/1952 (doc. nº 14), pelo que à data do acidente tinha 59 anos de idade e à data da alta contava 61 anos de idade, era empregada doméstica e ficou dependente de ajuda de terceira pessoa.
O contrato de serviço doméstico da A. cessou por caducidade, com fundamento em impossibilidade de o trabalhador prestar o seu trabalho (artigo 343.º, al. b) do C.T.).
Atendendo às circunstâncias em que ocorreu o acidente de trabalho da Autora, fortemente vitimizador da sua integridade física e psíquica, é legítimo peticionar uma compensação pela caducidade do seu contrato de trabalho, isto porque, a culpa é claramente imputada à sua entidade empregadora uma vez que ao confecionar a cera no fogão, com produtos químicos altamente inflamáveis, para aplicar no mobiliário da residência do Réu, a Autora limitava-se a cumprir uma ordem/instrução emanada do Réu, ordem esta que, além de ilícita e culposa, deve ser considerada uma manifesta afronta às mais elementares regras de segurança e saúde no trabalho, pois de acordo com o artigo 15.º, n.º 1, da Lei 102/2009, de 10 de Setembro saúde em todos os aspetos do seu trabalho”.
Deste modo a Autora tem o direito a receber, a título de indemnização de antiguidade como compensação pela caducidade do seu contrato de trabalho, o valor global de € 4.532.97 (ao abrigo do disposto no art. 343.º, al. b) e 366º do C.T. ex vi art. 10º do C.C. e arts. 790 e ss. do C.C.).
A entidade empregadora violou deveres de cuidado, atenção ou diligência, que seriam seguidos por um empregador normal, colocado na posição do Réu, que contribuíram para a produção do acidente, tendo violado regras legais de segurança no trabalho, causais do acidente, pelo que há lugar à indemnização por danos não patrimoniais o referido acidente de trabalho, saliente-se, tem provocado à A., desde a ocorrência do referido acidente, enorme dor, dependência, ansiedade, transtornos diversos, desgaste e dificuldades, colocando mesmo em causa o seu relacionamento familiar e social, pelo que, por via disso, a A. perdeu a sua autoestima, a alegria, a motivação e o entusiasmo, revelando grande insatisfação, quer em casa, quer junto dos seus familiares e amigos, cuja companhia ora prescinde, na medida em que a A., outrora uma pessoa extremamente autónoma e independente, atualmente, necessita de se socorrer da ajuda de terceiros, designadamente dos filhos, para conseguir ter uma vida normal e condigna.
Em face disso, a A. sofre um enorme desgosto por se ver altamente diminuída e incapacitada, e, por lhe ser impossível continuar a desenvolver, normalmente, as suas tarefas diárias, necessitando da ajuda de familiares e profissionais especializados.
Em consequência, a autoimagem da A. está diminuída, tendo perdido a alegria, o entusiasmo e a vivacidade de outrora, agora, dando lugar a estados de constante depressão psicológica (doc. nº 10 Assim sendo, em função do exposto, é razoável e considera-se justa e equitativa a fixação da compensação da A. no montante de € 25.000, como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela A., e tendo ainda em atenção o comportamento ilícito, ilegal e reprovável do Réu, a angústia sofrida pela A., os incómodos causados à própria família e a condição socioeconómica dos interessados.
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2. A Ré apresentou contestação alegando que esse contrato cessou, por caducidade em virtude da impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de a Autora prestar trabalho e, em especial, executar as tarefas de serviço doméstico para que havia sido contratada, no momento em que teve alta após ter sofrido um acidente de trabalho (ou seja, em 29 de Maio de 2013).
A Autora sofreu um acidente de trabalho em 2 de Junho de 2011, tendo ficado com um grau de incapacidade permanente que era absolutamente impeditivo da prestação da atividade contratada, ou seja, do exercício de quaisquer funções de serviço doméstico – questão que ela própria colocou ao Réu, afirmando-se incapaz para trabalhar (para desempenhar as tarefas de serviço doméstico.
Autora não tem direito a qualquer compensação pela cessação do contrato de trabalho de serviço doméstico, uma vez que o regime do contrato de serviço doméstico não prevê sequer que o trabalhador tenha direito a uma compensação quando a cessação do contrato por caducidade ocorra por motivo atinente ao empregador, verificando-se a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o empregador receber o trabalhador, como sucede no caso de morte do empregador.
No caso em apreço estando em causa a caducidade por motivo atinente ao trabalhador não há lugar a qualquer compensação ao trabalhador seja no regime do contrato de serviço doméstico, seja no regime geral.
A pretensa culpa da entidade empregadora – que, aliás, não existiu– jamais poderia justificar a atribuição de uma compensação pela caducidade do contrato de trabalho por motivo atinente à trabalhadora e verificado na esfera desta.
O Réu não violou qualquer norma de segurança e proporcionou à Autora a realização do trabalho em condições de segurança e de saúde, não apresentando os utensílios, os produtos e os processos de trabalho qualquer risco para a segurança e saúde da Autora, tendo o acidente ocorrido porque esta não cumpriu as instruções dadas pelo Réu, quanto à forma de confeção do produto para encerar os móveis e, além disso, tomou a iniciativa de realizar o trabalho quando estava sozinha, na ausência do Réu e da mulher (quando as instruções que tinha era para realizar essa tarefa em conjunto com a mulher do Réu, não obstante a própria Autora já ter tido adequada formação para o realizar sozinha).
Uma vez que o Réu tinha transferido para a Companhia de Seguros D… a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho, esta Seguradora assumiu a responsabilidade pelas indemnizações por incapacidade temporária e pensões devidas à Autora, despesas com a hospitalização e assistência clínica, no âmbito da acção que a Autora identifica na P.I. (Proc. nº 947/11.9TTPRT).
Era nesse processo que a Autora (inicialmente representada pelo Magistrado do Ministério Público e que depois constituiu mandatário judicial) deveria ter invocado a pretensa “atuação culposa” do Réu, mas não o fez, e o Réu não foi chamado a intervir, seja por que forma fosse, nessa acção (que correu termos apenas entre a Autora, sinistrada, e a Seguradora do Réu, entidade responsável pela reparação dos danos por aquela sofridos em consequência de acidente de trabalho).
Era, pois, em sede de acção emergente de acidente de trabalho que a Autora poderia e deveria ter discutido esse “agravamento da responsabilidade”, não podendo, agora, vir pedir uma indemnização por danos não patrimoniais por esse mesmo acidente, em acção emergente de contrato de trabalho que cessou por caducidade.
O Réu não é, pois, responsável por qualquer pagamento devido à Autora, a esse título e, designadamente, a título de indemnização por danos não patrimoniais, pois a sua eventual responsabilidade teria de ter sido discutida na acção emergente de acidente de trabalho e não foi – por causa exclusivamente imputável à Autora que aí não invocou a “atuação culposa” do Réu.
Precludido ficou, pois, o direito de a Autora discutir na presente acção a pretensa “atuação culposa do Réu” e de reclamar deste uma indemnização por danos sofridos em virtude do acidente de trabalho.
Termina pedindo que devem ser julgadas procedentes as exceções invocadas e o Réu absolvido do pedido ou, subsidiariamente, deve a presente acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e o Réu absolvido do pedido.
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3. Respondeu a Autora mantendo o que antes havia dito. Defende a improcedência das exceções aduzidas.
Peticiona a condenação do reu como litigante de má-fé ao deduzir oposição cuja falta de fundamento não ignorava e alterar conscientemente a verdade dos factos, com o fim de entorpecer a acção da justiça e impedir a descoberta da verdade. Pede, pois, a sua condenação em indemnização a favor da A., por grosseira litigância de má fé, a liquidar pelo Tribunal, mas que, atento os valores aqui em causa e a superior condição socioeconómica do Réu, tal quantia não deverá ser inferior a € 2.000,00.
Pede ainda a intervenção principal provocada da seguradora “D… – Companhia de Seguros, S.A.”, para quem o Reu havia transferido a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho.
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4. Pronunciou-se o Réu quanto ao pedido da sua condenação como litigante de má-fé manifestando a sua discordância. Defende o indeferimento da intervenção principal provocada da seguradora “D… – Companhia de Seguros, S.A.”, por falta de fundamento legal.
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5. Foi elaborado saneador tabelar, e considerando que os autos permitiam conhecer do mérito da causa, proferiu sentença, cuja parte decisória tem o seguinte teor:
“Pelo exposto e tudo ponderado, julga-se improcedente a presente acção, pelo que se absolve C… dos pedidos contra si deduzidos por B….
Custas pela autora.”
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6. Inconformada com esta decisão dela recorre a Autora, pedindo a revogação da decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, na firme convicção que a mesma resulta de uma errada qualificação jurídica que serviu de base à decisão, a qual vai em sentido bem diferente daquele que, Vossas Excelências, elegerão, certamente, como mais acertada, depois da necessária reponderação dos pertinentes pontos da matéria de facto e de direito, e à luz dos meios probatórios disponíveis.
2. O objeto do presente recurso é a impugnação da decisão proferida quanto à absolvição do Recorrido, nos precisos termos dos pedidos formulados na Petição Inicial, designadamente, ser reconhecida a cessação por caducidade do contrato de trabalho celebrado entre a Autora e o Réu, por culpa imputável ao Réu, e, por via disso, ser o Réu condenado a pagar à Autora, as seguintes quantias, acrescidas de juros de mora, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, a quantia de € 4532,97 a título de indemnização de antiguidade como compensação pela caducidade do seu contrato de trabalho, resultante das ordens ilícitas e culposas emanadas da suas entidade empregadora, bem como, a quantia a liquidar pelo Tribunal, a título de ressarcimento pelos danos não patrimoniais sofridos pela Autora mas que nunca deverá ser inferior a € 25.000,00.
3. Pois bem, com todo o respeito, que é muito e bem devido, o Tribunal recorrido decidiu incorretamente em relação aos referidos factos, o que, em consequência, determinou a prolação da decisão ora posta em crise.
4. Efetivamente, é firme convicção da Apelante que, do cotejo de todos os elementos probatórios presentes nos autos, dir-se-á que a decisão recorrida constitui uma errada aplicação das regras de direito.
I – QUANTO AO INSTITUTO DO ABUSO DE DIREITO:
5. O Tribunal a quo, na sentença que proferiu e de que ora se recorre, considerou que a aqui Recorrente ao instaurar a presente acção com vista «(…) assumiu um comportamento manifestamente contraditório com o seu comportamento anterior, conduta essa que, ao afrontar a expectativa do aqui réu quanto às consequências reparadoras do acidente, é antijurídica sob a modalidade de abuso de direito.»
6. TODAVIA, não pode a aqui Recorrente conformar-se com semelhante conclusão pois, tendo em consideração a matéria de facto considerada como provada pelo Tribunal a quo, é por demais evidente que, in casu, estamos perante uma errada interpretação e aplicação das regras de direito.
Senão vejamos:
7. DESDE LOGO, e no que respeita ao instituto do abuso de direito, o mesmo encontra-se previsto no art. 334º do Código Civil, segundo o qual «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
8. Com efeito, o supra referido preceito legal começa por estatuir que é ilegítimo o exercício de um direito (…).
9. Ora, a ilegitimidade tem no Direito Civil um sentido técnico, ou seja, exprime no sujeito a falta de uma específica qualidade que o habilite a agir no âmbito de um certo direito.
10. De seguida, o preceito exige que o titular exceda manifestamente certos limites designadamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
11. No que respeita aos “limites impostos pela boa-fé”, estes têm em vista a boa-fé objetiva, concretizada através de princípios tais como, a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.
12. Já os “limites impostos pelos bons costumes”, remetem-nos para as regras da moral social, pelo que, também aqui é de presumir uma certa coerência sistemática: os bons costumes prefigurados no art. 334.º do C.C. equivalerão aos mesmos “bons costumes” presentes no art. 280º, nº 1 do C.C..
13. Finalmente: o “fim social ou económico do direito” invoca ou apela a uma interpretação melhorada das normas, que dê valor à dimensão teleológica.
14. Cumpre, ainda, referir que a menção “direito” surge, aqui, numa aceção muito ampla, de modo a abranger o exercício de quaisquer posições jurídicas, incluindo as passivas.
15. Assim sendo, estamos perante uma disposição legal que remete para o sistema e para a Ciência do Direito, confiando ao intérprete-aplicador a tarefa do seu adensamento.
16. Para o seu funcionamento, a Ciência do Direito é essencialmente convocada a intervir, pelo que, o art. 334.º do C.C. faz, em suma, um apelo a uma Ciência Jurídica atualizada, constituinte e experiente.
17. NESTES TERMOS, o abuso do direito apresenta-se, afinal, como um conjunto de situações típicas em que o Direito, por exigência do próprio sistema, entende deter uma atuação que, em princípio, se apresentaria como legítima.
18. O primeiro e, porventura, mais impressivo tipo de atos abusivos, organiza-se em torno da locução venire contra factum proprium.
19. Estruturalmente, o venire postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si, mas diferidas no tempo.
20. Só que a primeira — o factum proprium — é contraditada pela segunda — o venire.
21. O obstáculo ou o impedimento que justificaria a intervenção do sistema residiria, exatamente, na relação de oposição que, entre ambas, se possa verificar.
22. Diz-se que o venire é positivo quando se traduz numa acção contrária ao que o factum proprium deixaria esperar; e será negativo caso redunde numa omissão contrária no mesmo factum.
23. ISTO POSTO, o abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjetivos por, embora consentâneos com normas jurídicas permissivas concretamente em causa, não confluírem no sistema em que estas se integrem.
24. Neste âmbito, o Professor Baptista Machado, in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 117, página 232, considera como pressupostos do venire contra factum proprium:
a) a existência de uma situação objetiva de confiança, emergente de uma conduta de alguém que possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;
b) um investimento de confiança e a irreversibilidade desse investimento;
c) a boa-fé da contraparte que confiou.
25. Trata-se, portanto, de uma figura correspondente a uma “válvula de segurança” para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico imperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito conferido pela lei.
26. Assim, é genericamente entendido que existirá tal abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.
27. No entanto, não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório, ou, dito de outro modo, «uma regra geral de coerência do comportamento dos sujeitos jurídico-privados, juridicamente exigível», conforme refere o Autor Paulo Mota Pinto, “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil, BFDUC, Volume Comemorativo (2003), pág. 276.
28. Assim, o indivíduo é livre de mudar de opinião e de conduta fora dos casos em que assumiu compromissos negociais.
29. Daí que, em princípio, o mecanismo disponibilizado pela ordem jurídica para possibilitar a formação da confiança na palavra dada e, consequentemente, na conduta futura dos contraentes seja só o negócio jurídico.
30. Sabido, porém, que uma das funções essenciais do direito é a tutela das expectativas das pessoas, facilmente se intui que por si só o negócio jurídico, sob pena de cometimento de flagrantes injustiças em muitas situações concretas, não pode constituir o único modo de proteção das expectativas dos sujeitos na não contradição da conduta da contraparte; casos há em que, ainda antes do limiar da vinculação contratual, o agente deve ser obrigado a honrar as expectativas que criou, podendo exigir-se-lhe, então, que atue de forma correspondente à confiança que despertou; casos, isto é, em que não pode venire contra factum proprium.
31. E foi, precisamente, a delimitação de tais casos que obrigou a doutrina e a jurisprudência a terem que precisar com o máximo de rigor possível os pressupostos da proibição desta modalidade do abuso, desde logo por se ter a noção de que este instituto, construído, todo ele, a partir da cláusula geral da boa fé, apenas deve funcionar em situações limite, como verdadeira válvula de segurança e de escape do sistema, e não como uma tal ou qual panaceia de que se lança mão sempre que a aplicação das regras de direito estrito pareça ser insuficiente para assegurar a solução justa do caso.
32. Importa evitar a todo o custo, como escreveu o autor atrás citado, «a utilização da boa-fé como um “nevoeiro” que serve para tudo».
33. EM SUMA, para que possamos estar perante uma situação de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium há desde logo um primeiro e fundamental pressuposto a considerar: a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja suscetível de fundar uma situação objetiva de confiança.
34. Em segundo lugar exige-se que, quer a conduta anterior (factum proprium),quer a atual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente.
35. Em terceiro lugar, que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa-fé, vale por dizer, que tenha confiado na situação criada pelo ato anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente.
36. Em quarto lugar, que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma atividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa atividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara e evidente.
37. Por último, exige-se que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjetiva e objetivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objetiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo e que deu origem ao dano.
38. Não obstante, os pressupostos enumerados não podem em caso algum ser aplicados automaticamente pois, conforme é entendimento do Autor supra citado, o venire contra factum proprium é, em última análise, «uma técnica...que não dispensa, e antes pressupõe, um controlo da adequação material da solução, com uma valoração global de todos os elementos à luz do ponto de vista da tutela da confiança legítima»,
39. por isso, todos aqueles pressupostos «deverão ser globalmente ponderados, em concreto, para se averiguar se existe efetivamente uma “necessidade ético jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objetivo».
40. SUCEDE QUE, perante estes dados, de facto, temos por certo que o comportamento da Autora, aqui Recorrente, qualificado em termos jurídicos à luz do que acima se expôs, não integra um venire contra factum proprium, proibido pelo artº 334º do C.C., conforme infra melhor se demonstrará.
41. DESDE LOGO, cumpre referir que, conforme decorre do teor dos factos considerados como provamos pelo Tribunal recorrido, em 01/01/2004, a Recorrente e o ora Recorrido celebraram um contrato de serviço doméstico, mediante o qual a Recorrente se obrigava, mediante retribuição mensal, a prestar ao Recorrido, com carácter regular, sob a sua direção e autoridade, atividades destinadas à satisfação das necessidades próprias ou específicas de todo o agregado familiar do Recorrido, nomeadamente a prestação de cuidados domésticos, designadamente a confeção de refeições, lavagem e tratamento de roupa e limpeza, tratamento ou arrumo da casa.
42. Acontece que, em 02/06/2011, a Recorrente sofreu um acidente de trabalho quando desempenhava as suas funções na residência do Recorrido.
43. Em face disso, foi instaurado o Proc. nº 947/11.9TTPRT, que correu termos na 1ª Secção do Trabalho da Instância Central do Porto, da Comarca do Porto, no qual já foi proferida, em 23/01/2014, a respetiva Sentença Judicial, a qual, já transitou em julgado, por força do acórdão proferido no âmbito do recurso interposto.
44. CUMPRE DIZER QUE, o acidente de trabalho, supra mencionado, ocorreu durante um processo de confeção de cera levado a cabo pela ora Recorrente, seguindo aquela as instruções e ordens emanadas pelo Recorrido, cuja cera se destinava a ser, posteriormente, aplicada no mobiliário pertencente ao Recorrido.
45. Com efeito, a confeção de tal produto implicava, necessária e obrigatoriamente, o manuseio de diversos produtos químicos, inflamáveis e perigosos, adquiridos e fornecidos à Recorrente pelo Recorrido, os quais desencadearam um grave incêndio na habitação do Recorrido, mais concretamente, na zona da cozinha.
46. Em face disso, o corpo da Recorrente foi atingido pelo liquido quente que, afinal, seria transformado em cera para mobiliário bem como, por diversas chamas provenientes de tal incêndio e que causaram ferimentos graves à aqui Recorrente.
47. NÃO OBSTANTE, a verdade é que a Recorrente não possuía qualquer formação, nem conhecimentos suficientes, que lhe permitissem, em segurança, proceder à confeção da referida cera, circunstancialismo fáctico que era do inteiro conhecimento do Recorrido.
48. Aliás, tal tarefa extravasava, claramente, o âmbito das funções para as quais a Recorrente havia sido contratada, em prefeito desrespeito, nomeadamente, pelas mais elementares regras de segurança e saúde no trabalho.
49. Ora, em consequência de tal acidente, a Recorrente sofreu queimaduras de 2º e 3º graus, as quais atingiram, gravemente, a face, incluindo os olhos, vias aéreas, couro cabeludo, membros superiores e inferiores, dorso, nádegas e coxas, ficando inclusive com a traqueia, laringe e as plantas dos pés queimadas, conforme decorre do teor dos relatórios médicos juntos aos autos com a Petição Inicial e para onde se remete com todas as consequências legais daí decorrentes.
50. Atentos os ferimentos graves e as queimaduras que abrangiam cerca de 60% do corpo da Recorrente, aquela esteve internada, ininterruptamente, no Hospital de S. João, sito na urbe do Porto, desde a data do acidente, 02/06/2011, até ao dia 23/04/2012, data em que a Recorrente foi transferida para o Hospital Privado da Boavista.
51. Do referido acidente resultaram, assim, várias e graves sequelas físicas pós-traumáticas, conforme assim o demonstram os relatórios clínicos juntos com a Petição Inicial e onde se relatam todos os ferimentos e lesões sofridos pela Recorrente bem como, tratamentos, intervenções e terapêutica que lhe foi e tem sido administrada, assim como as sequelas relevantes, cujo teor se considera aqui reproduzido para todos os efeitos legais.
52. CERTO É, PORÉM QUE, somente no dia 28 de Maio de 2013 foi concedida alta médica à Recorrente (cfr. doc. nº 2 junto com a Petição Inicial).
53. Assim, no dia imediatamente seguinte, em 29/05/2013, a aqui Recorrente comunicou ao Recorrido que tinha tido alta médica, pelo que pretendia retomar as suas funções, cumprindo, deste forma, o estatuído no art. 297º do Código do Trabalho, ao que o Recorrido respondeu que tinha que falar com a sua Advogada, tendo, posteriormente, contactado e comunicado à Recorrente que, atentas as limitações daquela, decorrentes do seu atual quadro clínico e a sua consequente incapacidade para o trabalho e para as lides domésticas, não poderia a Recorrente desempenhar as funções para que havia sido contratada,
54. pelo que, não iria voltar a exercer funções ao serviço do Recorrido, dado que considerava que o contrato de serviço doméstico celebrado com a Recorrente havia cessado a partir dessa data.
55. TODAVIA, não esqueçamos que o contrato de serviço doméstico da Recorrente cessou por caducidade, atenta a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva da trabalhadora prestar o trabalho para o qual foi contratada, por culpa, exclusiva, do Recorrido porquanto, o ora Recorrido violou, claramente, deveres de cuidado, atenção ou diligência, que lhe seriam devidos enquanto entidade empregadora, e que contribuíram para a produção do acidente de trabalho que vitimou a Recorrente,
56. razão pela qual, com tais condutas o aqui Recorrido violou regras legais de segurança no trabalho, o que, como se disse, veio a causar o acidente de trabalho sofrido pela Recorrente,
57. pelo que, há lugar à indemnização por danos não patrimoniais, razão pela qual, a Recorrente instaurou a presente acção judicial contra o ora Recorrido.
58. CONTUDO, só os danos patrimoniais são reparáveis no âmbito das ações de acidentes de trabalho, pelo que, ficam os danos não patrimoniais dependentes da verificação dos normais pressupostos da responsabilidade civil.
59. É esse, aliás, o entendimento do autor Luís Menezes Leitão in “Direito do Trabalho”, editora Almedina, 4ª edição, págs. 407 a 409 onde refere que «No campo dos acidentes de trabalho, o art. 8º, nº 1, da Lei 98/2009 considera como dano a “verificação da lesão corporal, perturbação funcional ou doença da qual resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”. As incapacidades de trabalho são classificadas pelo art. 19º, nº 1, da lei 98/2009, como podendo ser temporárias ou permanentes para o trabalho, sendo as incapacidades temporárias classificadas em parciais ou absolutas (arts. 19º, nº 2, da lei 98/2009) e as incapacidades permanentes em parciais, absolutas para o trabalho habitual e absolutas para todo e qualquer trabalho (art. 19º, nº 3, da Lei 98/2009). Nos termos do art. 20º do da Lei 98/2009, a determinação das incapacidades é efetuada de acordo com a tabela nacional de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais, elaborada e atualizada por uma comissão nacional, cuja composição, competência e modo de funcionamento são fixados em diploma próprio. Atualmente, essa tabela consta do Anexo I ao D.L. 352/2007, de 23 de Outubro.
60. Daqui podemos desde logo inferir que a lei só atende a um tipo específico de dano, referenciado em relação à lesão de um bem físico de personalidade, seja ele a vida ou a integridade física. Não se trata, porém, de um dano não patrimonial (art. 496º, nº 1), uma vez que o que é indemnizado é o prejuízo económico em resultado dessa lesão, o que corresponde a um dano patrimonial.
61. Efetivamente, quando o art. 8º, nº 1, da Lei 98/2009 se refere unicamente à morte ou redução da capacidade de trabalho ou de ganho, sem abranger outros danos, está unicamente a contemplar os prejuízos patrimoniais derivados da lesão sofrida, o que aliás é confirmado pela fixação de indemnização em dinheiro em função da retribuição (art. 71º da lei 98/2009) e pelo facto de ser considerada reconstituição natural o restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e a sua recuperação para a vida ativa (art. 23º a) da Lei 98/2009.
62. Concluímos então que a reparação de danos emergentes de acidentes de viação está limitada a um dano patrimonial específico, o qual corresponde àquele que deriva da impossibilidade da prestação de trabalho.
63. No regime jurídico dos acidentes de trabalho só é assim considerado como dano reparável a frustração das utilidades que derivavam para o trabalhador e seus familiares da regular colocação no mercado da sua força de trabalho.».
64. ORA, ACONTECE QUE, nos referidos autos de acidente de trabalho a aqui Recorrente apenas requereu o ressarcimento de todos os danos patrimoniais decorrentes do acidente de trabalho em causa, não tendo, com efeito, peticionado qualquer montante a título de danos não patrimoniais.
65. Porém, além da questão dos danos patrimoniais que foram discutidos na acção de acidentes de trabalho, supra já identificada, como de resto tinham de o ser, os danos morais resultantes do acidente descrito não se circunscrevem apenas a uma responsabilidade meramente laboral.
66. Além de que, e conforme refere o Meritíssimo Juiz a quo na respetiva Sentença Judicial, não existe nenhum preceito legal que imponha, taxativamente, que os danos não patrimoniais decorrentes de acidentes de trabalho só possam ser peticionados nas próprias ações de acidentes de trabalho.
67. Nesta senda, também nada na Lei obstaculiza a que os sinistrados possam, através da instauração de uma acção emergente de contrato de trabalho, requerer uma indemnização/compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos.
68. Tanto mais que, como se disse, um acidente de trabalho é gerador da obrigação de indemnizar os danos morais quando tenha sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou quando resultar de falta de observância das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, conforme aconteceu no caso aqui em apreço.
69. Em face disso, a aqui Recorrente goza de pleno direito de requerer, através da presente lide, contra o ora Recorrido uma indemnização por todos os danos não patrimoniais decorrentes do acidente de trabalho de que a mesma foi vítima e que resultou, como se disse, da culpa, única e exclusiva do Recorrido, o que conduziu à cessação do contrato de trabalho por caducidade.
70. PORQUANTO, e salvo o devido respeito, ao contrário do que entendeu o Tribunal recorrido, a aqui Recorrente não peticionando os referidos danos não patrimoniais no âmbito da acção especial de acidentes de trabalho e fazendo-o, agora, através da presente acção, com fundamento na culpa do Recorrido, não incorre em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
71. Em boa verdade, através dos presentes autos, a aqui Recorrente limita-se, legitimamente, a exercer o seu direito de exigir o ressarcimento por todos os danos não patrimoniais sofridos e legalmente consagrados, estando, portanto, perfeitamente habilitada a agir no âmbito desse direito, sendo que, não o faz em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ou seja, com tal comportamento a aqui Recorrente não excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, inexistindo, além do mais, qualquer contradição entre o modo ou o fim com que exerce esse direito e os interesses que o poder nele consubstanciado está adstrito.
72. ALÉM DO MAIS, cumpre salientar que o aqui Recorrido não teve qualquer intervenção na referida acção especial de acidentes de trabalho, pois, como se disse, nos referidos autos as partes são, unicamente, a aqui Recorrente e a Companhia de Seguros D…, S.A..
73. Aliás, o comportamento anterior assumido pela Recorrente também jamais poderia sedimentar tal expectativa no ora Recorrido porque, conforme supra se mencionou, o que é indemnizável no âmbito das ações de acidentes de trabalho é o prejuízo económico que resulta da lesão sofrida e que, em concreto, constitui um dano patrimonial que deriva da impossibilidade da prestação de trabalho.
74. Ora, segundo a supra referida Teoria da Confiança, o venire só será proibido, através do instituto do abuso de direito, se o mesmo afrontar inadmissivelmente uma situação de confiança legítima gerada pelo factum proprium, o que não é o caso.
75. E mesmo que estivéssemos perante uma atuação contraditória da Recorrente, o que não se admite, também não se vislumbra, em concreto, qualquer necessidade ético-jurídica que justifique a proibição de tal conduta.
76. COM EFEITO, não existe, in casu, qualquer incompatibilidade entre a conduta anterior e a conduta atual assumidas pela Recorrente, pelo que, não se encontram preenchidos os requisitos legais do abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.
77. Ao invés, a ora Recorrente, através dos presentes autos, exerce um direito sem qualquer censura, ou seja, sem exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, e fá-lo, aliás, de forma tempestiva, ou seja, dentro do prazo legalmente estabelecido para que a aqui Recorrente pudesse recorrer à via judicial e, em face disso, requerer a condenação do Recorrido no pagamento de tais danos não patrimoniais.
78. Conclui-se, assim, que a Recorrente ao intentar a presente acção não atuou com abuso do direito.
79. Não podendo, porém, o Tribunal a quo lançar mão do instituto do abuso de direito só porque, no seu entendimento, a aplicação das regras de direito se revelam insuficientes para assegurar, na sua perspetiva, uma solução justa do caso pois, como supra se mencionou, tal instituto só deve funcionar em situações limite, como uma verdadeira válvula de segurança, e desde que preenchidos os seus pressupostos legais, o que não se aplica na situação aqui em apreço.
80. ADEMAIS, não esqueçamos que a aqui Recorrente, em virtude do referido acidente de trabalho, esteve internada por um prolongado período de tempo, durante o qual, aliás, faleceu o marido da Recorrente, facto que apenas lhe foi dado conhecimento quando a mesma regressou a casa, por aconselhamento médico, pelo que não pôde a mesma, além do mais, participar nas cerimónias fúnebres do falecido (cfr. doc. nº 16 junto com a Petição Inicial).
81. Além do mais, a Recorrente continua a ser submetida a tratamentos, exames e consultas que se revelam indispensáveis para a sua reabilitação física, apresentando, contudo, a ora Recorrente graves sequelas físicas que a limitam no desenvolvimento das suas tarefas diárias, necessitando da ajuda de familiares e profissionais especializados.
82. Isto posto, aquando da instauração da referida acção especial de acidente de trabalho, a aqui Recorrente encontrava-se, e aliás ainda se encontra, emocionalmente perturbada e deprimida e, como tal, absolutamente incapaz de entender e discernir o verdadeiro alcance jurídico da referida acção especial de acidentes de trabalho.
83. Ora, o facto de a sinistrada vir agora a juízo exigir do empregador os danos não patrimoniais que podia ter exigido no âmbito da referida acção, mas que não o exigiu por imperfeito conhecimento dos seus direitos, não integra uma atuação com abuso de direito, mas antes se consubstancia num exercício incensurável de um direito.
84. É que a não reclamação no referido processo de direitos que assistiam à sinistrada não comporta o significado, atenta a natureza e posição das partes, que a mesma deles tivesse pretendido abdicar, para mais tarde assumir uma conduta antagónica e surpreender o empregador com um pedido inesperado.
II – QUANTO À COMPENSAÇÃO DECORRENTE DA CADUCIDADE DO CONTRATO DE SERVIÇO DOMÉSTICO:
85. A este propósito, entendeu o Tribunal a quo que a compensação pela caducidade do contrato de trabalho da Recorrente que a vinculava ao Recorrido «encontra-se votada ao insucesso por carecer de base legal para o efeito: em todos os casos de caducidade do contrato de trabalho por motivo atinente ao trabalhador, quer o C. Trab. Como o DL 235/92 não reconhecem o direito do trabalhador em haver qualquer compensação».
86. Contudo, jamais a aqui Recorrente poderá concordar com tal entendimento.
87. ASSIM SENDO, cumpre salientar que ao contrato de serviço doméstico, aqui em causa, é aplicável o regime especial previsto no DL 235/92, de 24 de Outubro.
88. Porém, a qualificação do contrato de serviço doméstico como um contrato de trabalho especial determina a aplicação do regime laboral comum nos aspetos que não se encontram disciplinados especificamente pelo referido diploma legal, conforme sucede em relação à questão da compensação peticionada pela Recorrente e decorrente da caducidade do seu contrato de trabalho, sendo que, tal imposição decorre, aliás, expressamente do próprio teor do art. 9º do Código do Trabalho onde se diz que «Ao contrato de trabalho com regime especial aplicam-se as regras gerais deste Código que sejam compatíveis com a sua especificidade».
89. EM FACE DO EXPOSTO, as regras gerais referentes à caducidade do contrato de trabalho e estatuídas no art. 343º e ss. do Código do Trabalho, aplicam-se, também elas, aos contratos com regime especial, apesar destes puderem apresentar, claro está, especificidades justificadas pela forma particular de prestar tais atividades.
90. CONTUDO, a lei não consagra o direito do trabalhador a uma compensação apenas nas situações em que a caducidade ocorra por impossibilidade atinente ao empregador, ou seja, quando ocorra a morte do empregador ou o definitivo encerramento da empresa ou no caso de declaração de insolvência da entidade empregadora.
91. Ora, conforme supra melhor se explanou e para onde se remete por uma questão de mera economia processual, procurando, deste modo, evitar-se a repetição exaustiva e desnecessária de toda a argumentação aí vertida, do dito acidente de trabalho resultou a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva da trabalhadora prestar o trabalho para o qual havia sido contratada pelo Recorrido, e como tal, o contrato de trabalho celebrado entre aquela e o Recorrido cessou por caducidade.
92. Não obstante, e tendo sempre em consideração os moldes em que tal acidente ocorreu e as consequências nefastas daí resultantes para a integridade física e psíquica da Recorrente, revela-se, por demais, legítimo à aqui Recorrente peticionar uma compensação pela caducidade do seu contrato de trabalho, quando, em boa verdade, tal acidente de trabalho é imputável, única e exclusivamente, ao aqui Recorrido.
93. Ora, não esqueçamos que a Recorrente aquando do acidente de trabalho, se limitou a cumprir uma ordem e/ou instrução do Réu.
94. Ordem essa que, além de ilícita e culposa, se consubstanciou numa manifesta afronta às mais elementares regras de segurança e saúde no trabalho, atento o disposto no art. 15.º da Lei 102/2009, de 10 de Setembro (Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho), no art. 26º, nº 1 do DL 235/92, de 24/10 e nos arts. 281º e 282º do Código de Trabalho.
95. Pois, todo e qualquer trabalhador tem, como é óbvio, direito a prestar trabalho em condições de higiene, saúde e segurança, razão pela qual as entidades empregadoras devem assegurar aos seus trabalhadores condições de segurança e de saúde em todos os aspetos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias para o efeito.
96. ACRESCE QUE, em boa verdade, não se pode deixar de reconhecer o direito à trabalhadora, aqui Recorrente, de ser compensada pela perda, por culpa imputável ao Recorrido, da sua antiguidade ao serviço do mesmo, em resultado da cessação, por caducidade, do seu contrato de trabalho, sendo certo, aliás, que a referida compensação devida à trabalhadora sempre seria devida por aplicação do próprio princípio da segurança no emprego ínsito no art. 53º da C.R.P..
97. Em face disso, e tendo em consideração que a ordem emanada pelo Recorrido de incumbir a Recorrente de proceder à confeção da cera, a qual, posteriormente, seria utilizada na limpeza do mobiliário do Recorrido, implicava, necessária e obrigatoriamente, o manuseio de diversos produtos químicos, inflamáveis e perigosos, para o que a mesma não possuía qualquer formação ou competência para o fazer, tendo o Recorrido perfeita consciência disso mesmo, fez perigar as condições de segurança e saúde da Recorrente, pelo que, dúvidas não há, que a aqui Recorrente terá sempre direito a uma indemnização de antiguidade como compensação pela caducidade do seu contrato de trabalho, resultante das ordens ilícitas e culposas emanadas da sua entidade empregadora.
98. ASSIM SENDO, e sempre com o devido respeito, a verdade é que, muito mal andou o Tribunal de que se recorre ao proferir a decisão recorrida.
99. Nesta senda, e ante tudo o que acaba de se expor, não resta a menor dúvida em reafirmar que a decisão recorrida deve ser substituída por douto Acórdão proferido, por V. Exas., nos termos supra expostos.
100. EM SUMA, não se conforma, de modo algum, a ora Apelante com a douta decisão em crise, por entender que, em face da matéria de facto provada e do direito aplicável, o desfecho certo do pleito, e único desfecho possível, no nosso entendimento, seria a condenação do Recorrido nos termos peticionados, o que não sucedeu.
◊◊◊
7. O réu contra-alegou, requerendo ainda a ampliação do âmbito do recurso, pugnando pela improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida, seja por via da improcedência dos fundamentos invocados pela Recorrente para alteração da decisão, seja, subsidiariamente, por via da procedência do fundamento em que o Recorrido decaiu, assim concluindo:
A. A douta sentença recorrida fez correta apreciação da matéria de facto e adequada aplicação das normas de direito, sendo mesmo exemplar, em termos de ponderação, clareza de exposição e rigor, pois a Autora não tem direito a qualquer indemnização por danos não patrimoniais resultantes de acidente de trabalho nem a uma compensação pela caducidade do contrato de serviço doméstico.
B. O Recorrido pretende, contudo, a ampliação do âmbito do presente recurso no que se refere à preclusão do direito da Autora discutir na presente acção comum a pretensa atuação culposa do Réu e o agravamento da responsabilidade e de reclamar uma indemnização pelos danos patrimoniais resultantes de acidente de trabalho, por se tratar de outro fundamento da defesa, em que a parte vencedora decaiu, que Requer que o Tribunal da Relação conheça, a título subsidiário, prevenindo a necessidade da sua apreciação, ao abrigo do disposto no artº 636º do C.P.C., aplicável ao abrigo do disposto no artº 87º, nº1 do C.P.T.
C. Na sequência do acidente de trabalho sofrido pela Autora, quando desempenhava as funções de trabalhadora do serviço doméstico, na residência do Réu, foi instaurada acção emergente de acidente de trabalho, que correu termos sob o nº 947/11.9TTPRT, na qual foram partes (unicamente) a Autora e a Companhia de Seguros D…, S.A., para a qual o Réu havia transferido a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho;
D. A Seguradora assumiu, nesse processo, a responsabilidade pelas indemnizações por incapacidade temporária e pensões devidas à Autora, despesas com a hospitalização e assistência clínica;
E. Não tendo a Autora invocado nesse processo a responsabilidade agravada do empregador, por alegada “culpa” na produção do sinistro, nem peticionado o pagamento de danos não patrimoniais, o Réu não foi chamado a intervir, seja por que forma fosse, nessa acção;
F. Na fase conciliatória dessa acção emergente de acidente de trabalho, procedeu-se a tentativa de conciliação, na qual as partes (Autora e Ré Seguradora) acordaram quanto à existência do acidente, sua caracterização como acidente de trabalho, retribuição auferida pela sinistrada, transferência total da responsabilidade pela reparação dos danos emergentes do acidente para a ré seguradora, nexo causal entre o acidente e as lesões e data da alta definitiva.
G. A decisão proferida nesse processo já transitou em julgado.
H. Como se decidiu na sentença recorrida, não tendo a Autora suscitado nesse processo a questão da culpa do empregador, gerou no Réu a “expectativa legítima e razoável em como a sua trabalhadora havia dado como pacífico e assente a exclusiva responsabilização da seguradora para quem havia sido transferida a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do sinistro” e “ao vir acionar o réu com fundamento na culpa deste para a ocorrência do acidente, a aqui autora (…) assumiu um comportamento manifestamente contraditório com o seu comportamento anterior, conduta essa que, ao afrontar a expectativa do aqui réu quanto às consequências reparadoras do acidente é antijurídica sob a modalidade do abuso de direito”.
I. A conciliação obtida em sede de acção emergente de acidente de trabalho (com a seguradora responsável pela reparação dos danos), aliada ao facto de a Autora nunca ter adotado qualquer comportamento que levasse o Réu a pensar que a mesma entendia que este tinha tido culpa no acidente, objetivamente interpretadas face à lei, bons costumes e boa-fé, legitimaram a convicção do Réu de que “tal direito não seria exercido” e criaram-lhe a legítima expectativa de que a Autora se bastava com o ressarcimento de todos os danos patrimoniais.
J. Além disso, o pedido de ressarcimento dos danos não patrimoniais emergentes de acidente de trabalho tem de ser feito em acção especial emergente de acidente de trabalho (e não na acção emergente de contrato individual de trabalho).
K. A matéria da prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais (Cap. IV do Código do Trabalho – artºs 283º e 284º) é regulada em legislação específica: a Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro (artº1º, nº1).
L. De acordo com o disposto no artº 2º da Lei nº 98/2009, “O trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho e doenças profissionais nos termos previstos na presente lei.”
M. Ao contrário do que refere a Autora, a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador ou resultar da falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho, como está expressamente previsto no artº 18º, nº1 da Lei nº 98/2009.
N. O processo para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho (destinado à reparação dos danos – de todos os danos – emergentes de acidentes de trabalho) é um processo declarativo especial, regulado no Capítulo II do Título VI (Processos Especiais) do C.P.T (artºs 99º e segs).
O. O processo comum (como é o caso destes autos) é apenas aplicável nos casos a que não corresponda processo especial (artº 48º, nºs 2 e 3 do C.P.T.).
P. A questão da indemnização/compensação por danos não patrimoniais resultantes do acidente de trabalho tinha, assim, de ter sido discutida na acção emergente de acidente de trabalho que correu termos na extinta 3ª Secção do Tribunal do Trabalho do Porto, sob o nº 947/11.9TTPRT.
Q. Existe, pois, um preceito legal que impõe que os danos emergentes de acidente de trabalho – que são reparados nos termos da lei dos acidentes de trabalho – sejam discutidos na acção especial prevista no C.P.T., que se destina precisamente à efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho (sejam eles quais forem).
R. Acresce que, no caso de atuação culposa da entidade empregadora, previsto no artº 18º da Lei nº 98/2009, estamos no domínio da responsabilidade subjetiva por facto ilícito – sendo essa a única situação que a entidade empregadora, ou os seus representantes, podem ser responsabilizados por danos não patrimoniais.
S. Não tendo a responsabilidade do Recorrido sido discutida no processo próprio (acção emergente de acidente de trabalho) ficou precludido o direito de a Autora discutir nesta acção (com processo comum, emergente de contrato de trabalho) a pretensa “atuação culposa do Réu” e de reclamar uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos em virtude de acidente de trabalho.
T. Se a Recorrente tivesse feito este mesmo pedido (de ressarcimento de danos não patrimoniais emergentes de acidente de trabalho) na acção especial prevista nos artºs 99º e segs do Código do Trabalho (como deveria ter feito), a sua pretensão teria sido logo julgada improcedente por ter já chegado a acordo, na tentativa de conciliação que teve lugar nesse processo para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição da sinistrada e da entidade responsável (artºs 109º, 111º e 112º do C.P.T.).
U. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.10.2013, in www.dgsi.pt, assim sumariado: “Obtido acordo na tentativa de conciliação que prevê o pagamento das prestações normais resultantes de acidente de trabalho, a cargo da seguradora, e homologado este por decisão transitada em julgado, estando assegurados os direitos de reparação garantidos por lei, não tem a beneficiária interesse em agir quando apresenta petição inicial em que reclama do empregador a responsabilidade agravada a que se refere o artigo 18º da Lei 98/2009 de 4 de Setembro.”
V. Como refere este aresto “ao aceitar os termos deste acordo, a beneficiária aceitou também que o seu direito de reparação se fixasse em termos prescritos o artigo 57º, nº1, a) da Lei nº 98/2009, 4/9 por contraposição aos casos especiais de reparação previstos no artigo 18º da citada lei. Significa isto que, salvo melhor opinião, se a beneficiária aceitou ser reparada em conformidade com o regime (normal) de responsabilidade infortunística pelo risco, tal como previsto no artigo 57º da Lei 98/2009, de 4/9, afastou a possibilidade de a sua pensão ser fixada de acordo com as regras especiais previstas no artigo 18º do mesmo diploma legal, para os casos de atuação culposa, pelo não pode vir agora peticionar o pagamento de danos não patrimoniais, porquanto o ressarcimento desses danos pressupõe a existência de responsabilidade agravada da sua entidade empregadora que não foi sequer suscitada na fase conciliatória.”
W. A este respeito pode ler-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8-11-2010, in www.dgsi.pt, “os AA., beneficiários legais, não alegaram na tentativa de conciliação a culpa da entidade empregadora, nem reclamaram qualquer verba a título de indemnização por danos morais. E não o tendo feito, ocorre a preclusão do eventual direito à reparação de danos morais, já que, depois do trânsito em julgado do despacho homologatório do acordo, a questão não pode mais ser suscitada.”
X. Nestes autos o Ministério Público não apurou, em fase instrutória, nem correspondentemente o fez consignar no auto de tentativa de conciliação, a existência de causa de agravamento da reparação e concomitante definição da pessoa do responsável (o empregador, a título principal, em vez da seguradora).
Y. Por outro lado, tal como se refere no acórdão citado, também no caso sub judice “devemos presumir que a seguradora, quando aceitou a sua responsabilidade a título principal, estava consciente de que a mesma lhe cabia por lei, e, convenhamos, qualquer seguradora realiza um apuramento (prévio às suas declarações a prestar em tentativa de conciliação) das condições em que ocorreu o acidente, para ter a certeza que a responsabilidade é sua e não antes do sinistrado, de terceiro, do empregador ou de caso de força maior.”
Z. “No momento processual institucionalizado para a prestação de declarações com vista a acordo, isto é, na tentativa de conciliação, deve portanto entender-se que as causas do acidente são conhecidas de todos os intervenientes e que as partes as conhecem e ponderam e que, quando chegam a acordo, o fazem porque entendem que todos os direitos e deveres resultantes do acidente ficam garantidos.”
AA. A sentença e o Acórdão proferidos no processo emergente de acidente de trabalho já terminado constituem “a definição dos direitos resultantes do acidente com valor definitivo”, pelo que estamos perante uma situação de “caso julgado”, com preclusão do direito de reclamar qualquer outra e diversa responsabilidade.
Acresce que,
BB. O contrato de serviço doméstico celebrado entre Autora e Réu cessou, por caducidade em virtude da impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de a Autora prestar trabalho e, em especial, executar as tarefas de serviço doméstico para que havia sido contratada, no momento em que teve alta após ter sofrido um acidente de trabalho (ou seja, em 29 de Maio de 2013), nos termos da al. b) do artº 27º e da al. b) do nº1 do artº 28º do DL 235/92, de 24 de Outubro.
CC. A este contrato é aplicável o regime especial do contrato de serviço doméstico previsto no DL 235/92 de 24 de Outubro, só lhe são aplicáveis normas do regime laboral comum quando a situação não estiver especialmente prevista e quando as mesmas não sejam incompatíveis com a especificidade deste regime, como resulta do artº 9º do Código do Trabalho.
DD. Apenas para o caso de cessação do contrato por caducidade previsto na alínea d) do n.º 1 do artº 28º, n do Dec-Lei nº 235/92, de 24 de Outubro (Ocorrendo alteração substancial das circunstâncias de vida familiar do empregador que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho) é que a lei prevê que o trabalhador tenha direito a uma compensação de valor correspondente à retribuição de um mês por cada três anos de serviço, até ao limite de cinco, independentemente da retribuição por inteiro do mês em que se verificar a caducidade do contrato.
EE. Em todos os outros casos de caducidade, o trabalhador não tem direito a qualquer compensação.
FF. A Autora não tem, pois, direito a qualquer compensação pela cessação do contrato de trabalho de serviço doméstico, de harmonia com o regime especial a que este contrato está submetido.
GG. Ainda que fosse aplicável o regime previsto no Código do Trabalho, a Autora não teria igualmente direito a qualquer compensação, pois apenas nas situações em que a caducidade ocorre por impossibilidade atinente ao empregador é que a lei consagra o direito do trabalhador a uma compensação, pela qual é responsável o património da empresa (essa compensação está expressamente prevista no nº5 do artº 346º e no nº5 do artº 347º do Código do Trabalho).
HH. No caso em apreço a caducidade ocorreu por motivo atinente à trabalhadora (e não pelo desaparecimento do seu local de trabalho);
II. A pretensa culpa da entidade empregadora – que, aliás, não existiu – jamais poderia justificar a atribuição de uma compensação pela caducidade do contrato de trabalho por motivo atinente à trabalhadora e verificado na esfera desta, se a própria lei não o prevê.
JJ. A sentença recorrida não violou, por conseguinte, qualquer disposição legal.
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8. O Exº. Sr.º Procurador-Geral Adjunto deu o seu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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9. Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II - QUESTÕES A DECIDIR
Tendo em conta que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações do recorrente - artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho -, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões a decidir são as seguintes:
1. DO RECURSO DA AUTORA:
A) - SABER SE A RECORRENTE AO INSTAURAR A PRESENTE ACÇÃO COM VISTA A SER RESSARCIDA PELOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS SOFRIDOS NO ACIDENTE DE TRABALHO DE QUE FOI VÍTIMA ADOTOU NA PRESENTE ACÇÃO UMA CONDUTA INCOMPATÍVEL E CONTRADITÓRIA COM A QUE HAVIA TOMADO NO DECURSO DA ACÇÃO ESPECIAL POR ACIDENTES DE TRABALHO, AFRONTADORA DA EXPETATIVA DO AQUI RÉU QUANTO ÀS CONSEQUÊNCIAS REPARADORAS DO ACIDENTE, AGINDO, ASSIM, COM ABUSO DE DIREITO.
B) – SABER SE A AUTORA TEM DIREITO A ALGUMA COMPENSAÇÃO DECORRENTE DA CADUCIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO
2. DA AMPLIAÇÃO DO RECURSO:
– SABER SE A AUTORA AO NÃO RECLAMAR NO PROCESSO DE ACIDENTE DE TRABALHO A INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS VIU PRECLUDIDO O DIREITO DE A RECLAMAR NA PRESENTE ACÇÃO.
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III – FUNDAMENTOS 1. A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:
1. A autora B… celebrou em 01.JAN.04 com o réu C… um contrato de serviço doméstico mediante o qual a A. se obrigou, mediante retribuição mensal, a prestar ao réu, com carácter regular, sob a sua direção e autoridade, atividades destinadas à satisfação das necessidades próprias ou específicas de todo o agregado familiar do réu, nomeadamente a prestação de cuidados domésticos, designadamente a confeção de refeições, lavagem e tratamento da roupa e limpeza, tratamento ou arrumo da casa.
2. A autora sofreu um acidente de trabalho em 02.JUN.11 quando desempenhava as referidas funções na residência do réu.
3. Por tal facto, corre termos nesta 1.ª Secção do Trabalho o processo n.º 947/11.9TTPRT, em que são partes a aqui autora e ré a companhia de seguros D…, S.A.
4. No âmbito desse processo, ocorreu em 10.OUT.13 a tentativa de conciliação, no decurso do qual o legal representante da seguradora responsável declarou reconhecer o acidente dos autos como de trabalho, a existência de nexo de causalidade entre as lesões e o acidente e a transferência da responsabilidade pelo salário mensal d e € 496,01x14 meses.
5. Essa conciliação não se conseguiu em virtude de a seguradora responsável não estar de acordo com o resultado do exame médico a que a sinistrada foi submetida, aceitando contudo que a mesma se encontra com incapacidade absoluta para a atividade profissional habitual.
6. Realizada qua foi junta médica, requerida pela seguradora responsável, foi proferida sentença em 23.JAN.14, pela qual se condenou aquela a pagar à aqui autora a pensão anual e vitalícia de € 4.589,55 bem como a pagar-lhe subsídio por elevada incapacidade (no valor de € 5.209,43) e o montante mensal de €461,14x14 meses a título de pensão por assistência diária de terceira pessoa.
7. A seguradora responsável interpôs recurso dessa sentença.
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2. DO OBJECTO DO RECURSO
Analisemos então as questões que nos foram trazidas pelo presente recurso.
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2.1. SABER SE A RECORRENTE AO INSTAURAR A PRESENTE ACÇÃO COM VISTA A SER RESSARCIDA PELOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS SOFRIDOS NO ACIDENTE DE TRABALHO DE QUE FOI VÍTIMA ADOTOU NA PRESENTE ACÇÃO UMA CONDUTA INCOMPATÍVEL E CONTRADITÓRIA COM A QUE HAVIA TOMADO NO DECURSO DA ACÇÃO ESPECIAL POR ACIDENTES DE TRABALHO, AFRONTADORA DA EXPETATIVA DO AQUI RÉU QUANTO ÀS CONSEQUÊNCIAS REPARADORAS DO ACIDENTE, AGINDO, ASSIM, COM ABUSO DE DIREITO.
A decisão recorrida perfilhou o entendimento de que não tendo a Autora peticionado, como podia e devia, os danos não patrimoniais na acção especial por acidente de trabalho criou no aqui réu a expectativa legítima que não o viria a fazer, conformando-se com a reparação do acidente que fora vítima apenas e só por meio das prestações em dinheiro e em espécie que acordara com a seguradora responsável, pelo que ao vir nesta ação peticionar do réu uma indemnização pelos danos não patrimoniais, com fundamento na alegada culpa do réu na eclosão do acidente que a vitimou, a autora frustrou aquela expectativa sedimentada na mente do demandado em como não seria interpelado pela trabalhadora requerente por outros danos para além daqueles estabilizados e arguidos em sede da ação especial de acidentes de trabalho. Em resumo, a aqui autora adotou na presente acção uma conduta incompatível e contraditória com a que havia tomado no decurso da acção especial por acidentes de trabalho.
Contra este entendimento está a recorrente para quem inexiste qualquer abuso de direito ao nesta ação peticionar os alegados danos não patrimoniais.
Vejamos:
O artigo 334.º do Código Civil consigna que «[é] ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». O abuso do direito traduz-se, assim, no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular, ao exercê-lo, exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Para que o exercício do direito seja considerado abusivo, é necessário que o titular exceda, visível, manifesta e clamorosamente, os limites que lhe cumpre observar, impostos quer pelo princípio da tutela da confiança (boa fé), quer pelos padrões morais de convivência social comummente aceites (bons costumes), quer, ainda, pelo fim económico ou social que justifica a existência desse direito, de tal modo que o excesso, à luz do sentimento jurídico socialmente dominante, conduz a uma situação de flagrante injustiça[1].
Como se refere no Acórdão do STJ de 06/11/2007[2] «[a]proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito – art.º 334º do CC – e, nessa medida, é de conhecimento oficioso. No entanto, não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório, ou, dito de outro modo, “uma regra geral de coerência do comportamento dos sujeitos jurídico-privados, juridicamente exigível”[3]. Assim, o indivíduo é livre de mudar de opinião e de conduta fora dos casos em que assumiu compromissos negociais. Daí que, em princípio, o mecanismo disponibilizado pela ordem jurídica para possibilitar a formação da confiança na palavra dada e, consequentemente, na conduta futura dos contraentes seja só o negócio jurídico. Sabido, porém, que uma das funções essenciais do direito é a tutela das expectativas das pessoas, facilmente se intui que por si só o negócio jurídico, sob pena de cometimento de flagrantes injustiças em muitas situações concretas, não pode constituir o único modo de protecção das expectativas dos sujeitos na não contradição da conduta da contraparte; casos há em que, ainda antes do limiar da vinculação contratual, o agente deve ser obrigado a honrar as expectativas que criou, podendo exigir-se-lhe, então, que actue de forma correspondente à confiança que despertou; casos, isto é, em que não pode venire contra factum proprium. A delimitação de tais casos obrigou a doutrina e a jurisprudência a terem que precisar com o máximo de rigor possível os pressupostos da proibição desta modalidade do abuso, desde logo por se ter a noção de que este instituto, construído, todo ele, a partir da cláusula geral da boa fé, apenas deve funcionar em situações limite, como verdadeira válvula de segurança e de escape do sistema, e não como uma tal ou qual panaceia de que se lança mão sempre que a aplicação das regras de direito estrito parece ser insuficiente para assegurar a solução justa do caso. Importa evitar a todo o custo, como escreveu o autor atrás citado, “a utilização da boa fé como um “nevoeiro” que serve para tudo”[4].
Assim, há desde logo um primeiro e fundamental pressuposto a considerar: a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. Em segundo lugar exige-se que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a actual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente. Em terceiro lugar, que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé, vale por dizer, que tenha confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contraria do agente. Em quarto lugar, que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa actividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente[5]. Por último, exige-se que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjectiva objectivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano. Os pressupostos enumerados não podem em caso algum ser aplicados automaticamente. Como observa o autor que vimos a acompanhar, “antes todos deverão ser globalmente ponderados, em concreto, para se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo”[6]».
Ora, no caso em apreço, se analisarmos devidamente a situação logo constatamos que de forma alguma podemos dizer que a aqui recorrente atuou na modalidade de venire conta factum propium. Na verdade, não se vislumbra qualquer facto provado donde se retire que o comportamento da recorrente ao peticionar na presente ação um indemnização por danos não patrimoniais que podia e deveria ter peticionado na ação especial de acidentes de trabalho, esteja em contradição com a sua posição assumida anteriormente, ou seja, na aludida ação.
É verdade que a sinistrada, aqui recorrente, autora nesta ação, formula um pedido de indemnização assente em danos não patrimoniais eventualmente sofridos e que têm na sua base um acidente de trabalho [cuja responsabilidade imputa à entidade empregadora por inobservância desta das regras de segurança], pelo que poderia e deveria ter peticionado tal indemnização na ação especial emergente de acidente de trabalho. Ao contrário do que alega a recorrente, a lei dos acidentes de trabalho – Lei nº 98/2009, de 04 de setembro – contempla a possibilidade da sinistrado deduzir contra a entidade empregadora pedido de indemnização por danos não patrimoniais. É o que resulta do artigo 18º, que sob a epígrafe “ Atuação culposa do empregador”, estatui no seu nº 1 que «[q]uando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais».
Todavia, esta omissão, ou melhor dizendo, o facto de a sinistrada não ter deduzido qualquer pedido indemnizatório derivado de danos não patrimoniais na ação especial emergente de acidente de trabalho, não pode inculcar a ideia de que tal comportamento omissivo tenha criado a legítima convicção ou expetativa na sua entidade empregadora de que a mesma nunca mais iria peticionar tal indemnização e que ao vir agora reivindicá-la tenha frustrado aquela expetativa. Não existe um único facto que sustente esta posição.
E também não existe qualquer facto que comprove que tenha havido efetivamente um comportamento contraditório da aqui recorrente na ação especial de acidente de trabalho em relação à presente ação. Isto porque, independentemente da questão que adiante apreciaremos sobre a eventual preclusão de tais danos não patrimoniais apenas poderem ser reclamados em sede de ação especial de acidente de trabalho [questão, diga-se, que foi a que efetivamente o Réu arguiu em se de contestação], nada resulta dos autos que a Autora sabia e tinha conhecimento de que apenas naquela ação poderia e deveria ter peticionado tais danos não patrimoniais, sob pena de preclusão. O que resulta dos autos é que a Autora está convencida de que só pode exercer o seu direito – indemnização por danos não patrimoniais - nesta ação.
Se a Autora, na tese da decisão recorrida, apenas na ação especial emergente de acidente de trabalho, poderia (e deveria) ter peticionada a aludida indemnização, então, nesta ação deixou de ter esse direito, pelo que, face à inexistência deste direito, nunca poderemos estar perante o exercício abusivo do mesmo, que já precludiu.
Assim sendo, salvo o devido respeito por opinião contrária, a Autora não agiu com abuso do direito – não excedeu manifestamente, como a lei exige, os limites impostos pela boa-fé ao seu direito; logo, procedem, nesta parte, as conclusões do recurso.
◊◊◊
2.2. SABER SE A AUTORA TEM DIREITO A ALGUMA COMPENSAÇÃO DECORRENTE DA CADUCIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO
Enfrentemos agora a questão de saber se a Autora tem direito a alguma compensação decorrente da caducidade do contrato de trabalho. Defende a recorrente que tendo o contrato de trabalho que a ligava ao Réu cessado por caducidade – impossibilidade superveniente absoluta e definitiva da trabalhadora prestar seu trabalho – tem direito a ser compensada por essa caducidade, uma vez que o acidente que esteve na origem da sua impossibilidade é imputável única e exclusivamente ao reu, seu empregador. Entendimento diverso teve a decisão recorrida.
Decidamos:
Está assente entre as partes que estas celebraram, entre si, um contrato de trabalho doméstico e que o mesmo cessou por caducidade, com fundamento de se ter verificado uma impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de a trabalhadora prestar o seu trabalho. Também está assente que essa impossibilidade foi fruto de uma incapacidade permanente de que a Autora ficou portadora em virtude de um acidente de trabalho que sofreu.
Assim, apenas está em causa a decisão de atribuir ou não à trabalhadora uma compensação por tal caducidade.
A decisão recorrida quanto a esta questão referiu que «a lei (quer a geral, vertida no C. Trab., como o diploma que especificamente disciplina o contrato de serviço doméstico) não prevê a possibilidade de o trabalhador ser compensado pela entidade empregadora quando a caducidade do contrato de trabalho resulte da impossibilidade de aquela receber o trabalho dele; apenas nos casos acima referidos (morte da entidade empregadora; encerramento do estabelecimento; insolvência da entidade empregadora; alteração substancial das circunstâncias de vida familiar do empregador) é que tal compensação está expressamente consagrada».
Adiantamos desde já que concordamos.
E concordamos porque outra solução jurídica com fundamento legal não vislumbramos.
Não restam dúvidas, sendo por ambas as partes aceite, que estamos perante um contrato individual de trabalho de serviço doméstico, cujo regime jurídico se encontra regulado pelo DL n.º 235/92, de 24 de Outubro.
Este contrato individual de trabalho de serviço doméstico é um contrato de trabalho comum ou especial?
Segundo MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO existe a seguinte tipologia nos contratos de trabalho que importa diferenciar: “contrato de trabalho comum, que constitui a categoria residual e de referência”, “contratos de trabalho especiais, que integram as modalidades de contrato de trabalho sujeitas a um regime especial, por motivos atinentes aos sujeitos envolvidos, às características da prestação ou à duração do contrato” e “contratos de trabalho sujeitos a regras específicas, categoria que abrange as situações laborais para as quais a lei prescreveu regras especiais, atendendo a certas características dos sujeitos envolvidos e independentemente do carácter comum ou especial do próprio contrato”[7].
Refere ainda a aludida Autora que «[a] classificação dos contratos de trabalho especiais pode ser feita tomando como critério a fonte da sua especialidade: o objeto da prestação laboral; ou o factor temporal, que pode ser reportado ou à duração do contrato ou à modelação do tempo de trabalho.
O reconhecimento da especialidade de alguns contratos de trabalho, em razão da especificidade do objeto da prestação laboral tem grande tradição entre nós e não carece de particular justificação: trata-se de situações em que as caraterísticas da própria atividade desenvolvida não se coadunam com o regime laboral comum, sendo, por isso, necessário proceder à adaptação deste regime”[8]. E, como exemplo, de contrato de trabalho especial, refere, entre outros, o contrato de serviço doméstico.
ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, salienta que «existem verdadeiros contratos de trabalho (isto é, obedecendo à caracterização essencial do art. 11º) que estão sujeitos a regulamentação especial. Isso não descarateriza as correspondentes relações de trabalho (como relações de trabalho subordinado), nem, portanto, as afastam do âmbito do Direito do Trabalho. Ocorre apenas que se trata de contratos de trabalho especiais, carecendo de regulamentação adequada às suas particularidades»[9]. Como exemplo, de contrato de trabalho especial, refere também, entre outros, o contrato de serviço doméstico.
JOÃO LEAL AMADO diz que “o pluralismo tipológico do contrato de trabalho se manifesta, desde logo, nos chamados «contratos especiais de trabalho»: o contrato de trabalho doméstico, o contrato de trabalho rural, o contrato de trabalho portuário, o contrato de trabalho a bordo, o contrato de trabalho artístico, o contrato de trabalho docente, o contrato de trabalho desportivo…»[10].
Assente que entre as partes foi celebrado um contrato de serviço doméstico e que o mesmo é um contrato de trabalho especial, haverá que lançar mão do artigo 9º do Código do Trabalho de 2009, segundo o qual “[a]o contrato de trabalho com regime especial aplicam–se as regras gerais deste Código que sejam compatíveis com a sua especificidade.”
Recorrendo, mais uma vez, aos ensinamentos de MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, dir-se-á que «o reconhecimento de contratos de trabalho especiais exige um maior cuidado no manuseamento das fontes a aplicar a estes contratos, que passa por uma relação de dupla subsidiariedade. Assim:
- aos contratos de trabalho especiais cabe aplicar, em primeiro lugar, as regras especiais que a lei preveja para eles; todavia, quando este regime não conste do Código do Trabalho e lhe seja anterior (o que sucede em diversas situações), deve ter-se um cuidado suplementar na articulação entre estas regras especiais e as normas do Código, bem como na interpretação das remissões do diploma especial para a legislação laboral geral, que foi, entretanto, substituída; em suma, cabe proceder à interpretação destes contratos à luz do Código do Trabalho;
- nos aspectos não regulados de forma especial serão aplicáveis as normas laborais gerais que sejam compatíveis com a especificidade de cada contrato ( art. 9º do CT); o Direito Laboral comum funciona, assim, como direito subsidiário para efeitos do regime jurídico destes contratos;
- por último, as lacunas regulativas que ainda subsistam podem ser integradas através da aplicação das regras civis gerais, desde que não incompatíveis com as especificidades do contrato em questão nem com princípios próprios do Direito do Trabalho, por força da autonomia dogmática que assiste a este ramo jurídico»[11].
O artigo 9º do Código do Trabalho ao estatuir que são aplicáveis aos contratos de trabalho especiais as regras gerais daquele código que não sejam incompatíveis com a suas especificidades, não está a fazer uma verdadeira exclusão do âmbito de aplicação do mesmo, mas sim a sujeitar tais contratos à combinação duma lei geral, como é o Código do Trabalho, com uma regulamentação especial[12].
PEDRO ROMANO MARTINEZ refere que o normativo em apreço «pretende esclarecer que entre a parte geral e a parte especial do direito do trabalho subsiste uma relação comum: o regime geral (do Código do Trabalho) aplica-se aos contratos de trabalho especiais salvo quanto às particularidades justificadas pelos tipos contratuais em concreto. (…). Refira-se, ainda, que as regras especiais estabelecidas nesses contratos têm de ser interpretadas e integradas à luz do disposto no Código do Trabalho; ou seja, antes de a legislação respeitante aos contratos em especial ser alterada, as respetivas normas devem ser interpretadas de acordo com o regime do Código e as lacunas integradas segundo as soluções neste consagradas»[13].
Ora, como é salientado no preâmbulo do DL nº 235/92, de 24 de Outubro, a circunstância de o mesmo ser prestado a agregados familiares (artigo 2º), e por isso gerar relações profissionais com acentuado carácter pessoal que postulam uma permanente relação de confiança, exige, a par das condições económicas dos agregados familiares, que o seu regime se continue a considerar como especial em certas matérias, sendo que no que concerne a faltas, férias e subsídios houve uma aproximação ao regime geral.
A razão de ser desta diferenciação dos regimes legais está relacionada com o caráter acentuadamente pessoal e de confiança, fruto do trabalhador prestar a sua atividade na habitação do empregador e de tal prestação não estar inserida, nem enquadrada, numa atividade lucrativa, numa empresa, seja em nome individual ou sociedade.
Daí que os regimes aplicáveis sejam o espelho dessa mesma diferenciação. Enquanto, no âmbito do Código do Trabalho, a caducidade do contrato de trabalho resultante da morte do empregador, da extinção da pessoa coletiva empregadora e do encerramento total e definitivo da empresa, dá lugar a que o trabalhador tenha direito a uma compensação calculada nos termos do artigo 366º do Código do Trabalho – cfr. artigo 346º nº 5 do CT -, já no domínio do regime jurídico do serviço doméstico a cessação do contrato por caducidade apenas concede ao trabalhador o direito a uma compensação no caso da al. d) n.º1 do art.º 28, do DL n.º 232/92 - ocorrendo alteração substancial das circunstâncias da vida familiar do empregador que torne praticamente impossível a subsistência da relação laboral (artigo 28º, nº 3). Mesmo nesta situação, a compensação é inferior, à prevista no regime geral, pois corresponde apenas à retribuição de um mês por cada três anos de serviço até ao limite de cinco anos.
Como é acentuado no Acórdão da Relação de Lisboa de 08/02/2006[14] «porque está em causa uma atividade iminentemente pessoal e não lucrativa a lei especial trata as consequências da caducidade do contrato de serviço doméstico de forma diversa. Com efeito, de jure constituindo não nos repugna que tal disposição possa sofrer alterações de forma a que em mais situações, para além da prevista na al. d) do n.º1, do referido art.º 28, se contemple ao trabalhador o reconhecimento de um montante indemnizatório em outras situações de caducidade».
Por outro lado, continuando a citar o aludido aresto, diremos que inexiste qualquer violação do princípio da igualdade, pois este «tem a ver fundamentalmente com igual posição em matéria de direitos e os deveres, exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes. E ao legislador pertence dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Assim, só quando uma medida legislativa não tem o adequando suporte material é que existe uma violação do princípio da igualdade, ver anotações ao art.º 13 da Constituição Anotada, Gomes Canotilho e Vital Moreira.
Na verdade, o que se exige é que as medidas de diferenciação o sejam materialmente fundamentadas e não se baseiam em qualquer motivo constitucionalmente impróprio, podendo ser legítimas quando se baseiem numa distinção objetiva de situações, não se fundamentem em qualquer motivo discriminatório, designadamente os enunciados n.º 2 do art.º 13 da CRP, e tenham um fim constitucionalmente legítimo.
Ora, no caso, o legislador laboral consignou um regime especial para o trabalho doméstico face às relações iminentemente pessoais que nele se estabelecem e desinseridas de uma atividade lucrativa que integram, por isso, realidades factuais bem diversas das que ocorrem numa relação laboral comum, sujeita ao regime geral».
Revertendo estes ensinamentos para o caso que nos ocupamos, logo resulta que, tendo o contrato de serviço doméstico cessado por caducidade com fundamento em impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de a trabalhadora, aqui recorrente, prestar o seu trabalho – alínea b) do nº 1 do artigo 28º do DL nº 235/92, de 24 de Outubro, inexiste, por parte da trabalhadora, nesta situação, qualquer direito a compensação. Pois, a compensação, como já vimos, só existe para as situações de caducidade do contrato com fundamento na d) n.º1 do art.º 28, do DL n.º 232/92 -ocorrendo alteração substancial das circunstâncias da vida familiar do empregador que torne praticamente impossível a subsistência da relação laboral (artigo 28º, nº 3) - o que manifestamente não é o caso.
Se assim é, não tendo o legislador previsto qualquer direito a compensação pela caducidade do contrato na situação em apreço, e, sendo essa não previsão intencional, não há que lançar mão da analogia (cf. artigo 10º, nº 2 do Código Civil). Por outro lado, o direito a compensação com fundamento na d) n.º1 do art.º 28, do DL n.º 232/92 - ocorrendo alteração substancial das circunstâncias da vida familiar do empregador que torne praticamente impossível a subsistência da relação laboral, é uma norma excecional e, como tal, insuscetível de aplicação analógica (cf. artigo 11º do Código Civil).
Além do mais, mesmo que se defendesse que nestas situações se poderia lançar mão do regime geral, a solução não seria diversa. E não o seria, porque, como já vimos, no âmbito do Código do Trabalho, apenas a caducidade do contrato de trabalho resultante da morte do empregador, da extinção da pessoa coletiva empregadora e do encerramento total e definitivo da empresa, dá lugar a que o trabalhador tenha direito a uma compensação calculada nos termos do artigo 366º do Código do Trabalho – cfr. artigo 346º nº 5 do CT. O Código do Trabalho apesar de prever que o contrato possa cessar por caducidade em virtude de impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o trabalhador prestar o seu trabalho – artigo 343º, alínea b) – exclui de forma intencional qualquer direito a compensação por essa cessação.
Assim, pelas razões acima apontadas, inexiste qualquer lacuna legal que necessite de aplicação analógica e que leve ao recurso do cálculo previsto no artigo 366º do Código do trabalho. Onde o legislador diferenciou ou não diferenciou deliberadamente, não cabe ao intérprete diferenciar ou não diferenciar. No caso, o legislador diferenciou e, como tal, não há que igualar.
Todavia, não deixaremos de escrever umas outras palavras sobre o assunto. Mesmo que se defendesse que nesta situação concreta que o que levou à caducidade do contrato de trabalho teve por causa uma comportamento ilícito e culposo do réu (entidade empregadora) – por não cumprido determinadas normas legais relacionadas com a saúde e segurança no trabalho - e, como tal, deveria ser responsabilizado por esse seu comportamento, a verdade é que, pelas razões acima explanadas, a eventual indemnização apenas poderia ter como fundamento as regras gerais. Assim, quer se entenda que estamos perante uma responsabilidade contratual ou extracontratual, para haver direito a indemnização, haverá que alegar e provar uma conduta violadora de direitos resultantes ou do incumprimento de um contrato ou de leis ou regulamentos, a ilicitude de tal violação, a culpa sob a forma de dolo ou negligência, o dano e o nexo de causalidade entre o comportamento e o dano.
No caso em apreço, quer se entenda que o dano é fruto de uma perda de chance ou de oportunidade, ou, mesmo resultante de uma eventual diferenciação entre a retribuição auferida como contrapartida da prestação de trabalho e o recebido pela incapacidade permanente no âmbito do acidente de trabalho, ou qualquer outra, incumbia à autora (artigo 342º, nº 1 do Código Civil) alegar e provar, tais danos.
Acontece que a Autora não alegou quaisquer danos. Limitou-se, antes, a dizer que tem direito a receber uma compensação por antiguidade ao abrigo do disposto no artigo 343.º, al. b) e 366º do C.T. ex vi art. 10º do C.C. e arts. 790 e ss. do C.C., o que, como já vimos, não tem direito. Mas esta compensação resulta de critérios legais – factos lícitos – que nada tem a ver com a indemnização propiamente dita derivada de uma conduta violadora de direitos resultantes ou do incumprimento de um contrato ou de leis ou regulamentos. Ora, sem alegação de danos não pode haver indemnização.
Mas mais. Independentemente do que afirmamos anteriormente, a entender-se que esse dano poderia ser apreciado fora do âmbito do Código do Trabalho, ou seja, fora das normas que preveem a compensação em virtude da caducidade e que acima referimos, então a responsabilidade do Réu teria de ser apreciada no âmbito da ação especial emergente de acidente de trabalho. É que, resultando o acidente, como alega a Autora, da falta de observação, pelo empregador, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais – cf. artigo 18º da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro. Ora, este normativo é bem mais abrangente do que o anterior artigo 18º da lei nº 100/97, de 13 de Setembro, onde, resultando o acidente, da falta de observação, pelo empregador, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, além da agravação das prestações ditas normais (como acontece com o atual artigo 18º, nº 4), estava prevista a responsabilização por danos morais nos termos da lei geral – artigo 18º, nº 2.
Atualmente ao dizer-se que a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais, está a contemplar-se toda a situação de danos, quer patrimoniais, quer não patrimoniais, derivados da eclosão do acidente de trabalho, entre os quais, assim nos parece, aqueles que derivam da caducidade do contrato de trabalho em virtude do sinistrado ficar incapaz de prestar a sua atividade.
Só que tal indemnização, como iremos desenvolver no ponto seguinte, terá de ser obrigatoriamente reclamada na respetiva ação emergente de acidente de trabalho, sob pena de preclusão. O que no caso não aconteceu.
Se assim é, também por esta razão, a pretensão da recorrente soçobraria.
Improcede, assim, o recurso nesta parte.
◊◊◊
2.3. DA AMPLIAÇÃO DO RECURSO: SABER SE A AUTORA AO NÃO RECLAMAR NO PROCESSO DE ACIDENTE DE TRABALHO A INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS VIU PRECLUDIDO O DIREITO DE A RECLAMAR NA PRESENTE ACÇÃO.
Por fim, analisemos a última das questões, ou seja, a questão que nos é trazida pelo recorrido, na sua ampliação do objeto do recurso: saber se a autora ao não reclamar no processo de acidente de trabalho a indemnização por danos não patrimoniais viu precludido o direito de a reclamar na presente acção.
Alega o recorrido que a questão da indemnização/compensação por danos não patrimoniais resultantes do acidente de trabalho tinha de ter sido discutida na acção emergente de acidente de trabalho que correu termos na extinta 3ª Secção do Tribunal do Trabalho do Porto, sob o nº 947/11.9TTPRT, pelo que não tendo a responsabilidade do Recorrido sido discutida no processo próprio (acção emergente de acidente de trabalho) ficou precludido o direito de a Autora discutir nesta acção (com processo comum, emergente de contrato de trabalho) a pretensa “atuação culposa do Réu” e de reclamar uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos em virtude de acidente de trabalho. Conclui, pois, que estamos perante uma situação de “caso julgado”, com preclusão do direito de reclamar qualquer outra e diversa responsabilidade.
Esta questão foi suscitada pelo recorrido logo na sua contestação, não a tendo a decisão recorrida conhecido tendo-a substituído pelo abuso de direito.
Vejamos se lhe assiste razão.
A Autora veio nesta ação peticionar uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos em virtude de um acidente de trabalho, alegando resumidamente que a eclosão desse acidente é imputável ao Réu por ter violado regras legais de segurança no trabalho, causais do acidente.
Como é sabido o pedido de indemnização por danos não patrimoniais só é admissível nos casos contemplados no artigo 18º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro[16], ou seja, quando o acidente tenha sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou se o mesmo for resultado da falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.
A fixação judicial das indemnizações e pensões devidas eventualmente por aqueles que a NLAT considera responsáveis pela reparação do acidente de trabalho deverá ser feito na acção especial emergente de acidente de trabalho prevista no Código de Processo do Trabalho.
O processo emergente de acidente de trabalho é um processo especial que se inicia por uma fase conciliatória dirigida pelo Ministério Público, tendo por base a participação do acidente (artigo 99º, nº 1 do CPT), tendo como finalidade instruir o processo com todos os elementos necessários para a identificação dos possíveis beneficiários e responsáveis e para a definição dos direitos e obrigações de uns e de outros, de modo a que seja possível reunir em juízo todos os interessados, num ato presidido pelo Ministério Público (Magistrado) – tentativa de conciliação – onde se procura que cheguem a acordo, segundo os parâmetros legais.
À tentativa de conciliação são chamadas o sinistrado ou seus beneficiários legais, as entidades empregadoras ou seguradoras, conforme os elementos constantes da participação (artigo 108º, nº 1 do CPT).
Na tentativa de conciliação, presidida pelo Ministério Público, este promove o acordo de harmonia com os direitos consignados na lei, tomando por base os elementos fornecidos pelo processo, nomeadamente o resultado de exame médico e as circunstâncias que possam influir na capacidade de ganho do sinistrado (artigo 109º do CPT).
Perante essa proposta ou as partes estão de acordo, aceitando-o, ou não estão de acordo, rejeitando-o.
Se houver acordo, de harmonia com o disposto no artigo 111º do CPT, têm de constar dos autos:
- A identificação completa dos intervenientes;
- A indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são atribuídos;
- A descrição pormenorizada acidente;
- A descrição pormenorizada dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações.
Nos casos de falta de acordo, face ao estatuído no artigo 112º do CPT, deve constar nos autos o seguinte:
Consignação dos factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve acordo ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída.
Diga-se, ainda, que o interessado que se recuse a tomar posição sobre cada um dos factos atrás mencionados, estando já habilitado a fazê-lo é, a final, condenado como litigante de má-fé (artigo 112º, nº 2 do CPT).
Obtido o acordo é o mesmo de imediato submetido à apreciação do juiz que o homologa por simples despacho exarado no próprio auto se verificar a sua conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e pelas normas legais, regulamentares ou convencionais (artigo 114º, nº 1 do CPT).
Homologado o acordo e transitado o despacho homologatório, finda a fase conciliatória do processo, não havendo, neste caso, lugar à fase contenciosa prevista no artigo 117º e ss. do CPT.
Não havendo acordo passa-se para a fase contenciosa.
De acordo como disposto no artigo 119º do CPT a fase contenciosa do processo emergente de acidente de trabalho pode iniciar-se de dois modos diferentes, com regimes diferentes, consoante o âmbito da discordância entre as partes na fase conciliatória do processo.
1º- Quando na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade (artigo 138º, nº 2 do CPT), a fase contenciosa do processo inicia-se mediante requerimento, do interessado que não se tiver conformado com o resultado do exame médico realizado na fase conciliatória do processo (artigo 117º, nº 1, alínea b) do CPT), no qual formula pedido de junta médica. Após segue-se a realização do exame pedido (artigo 139º do CPT) e a sentença onde se fixa de modo definitivo a natureza, o grau de desvalorização do sinistrado e o valor da causa (artigo 140º, nº 1 do CPT).
2º- Quando a questão da discordância entre as partes não é a anteriormente referida ou não é só essa, a fase contenciosa tem o seu início com a petição inicial, em que o sinistrado, doente ou respetivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos (artigo 117º, nº 1, alínea a) do CPT), contra a entidade responsável, seguindo-se a citação (artigo 128º do CPT), a contestação (artigo 129º do CPT), a eventual resposta (artigo 129º, nº 3 do CPT), o saneamento e condensação processual (artigo 131º do CPT), a instrução (artigo 63º e ss, por remissão do artigo 131º, nº 2 do CPT) – realizando-se exame por Junta Médica, se for caso disso (artigo 138º, nº 1 do CPT), o qual corre por apenso (artigo 131º, nº 1, alínea e) e 132º, ambos do CPT) – o julgamento e a sentença (artigo 135º do CPT), em que se decide globalmente a causa.
No primeiro caso a tramitação é processualmente mais simples, uma vez que a única questão que se mantém em pé apenas demanda a realização de prova pericial (Junta Médica), pois a parte ou as partes não se conformaram com o resultado do exame efetuado pelo perito médico na fase conciliatória.
Pode-se dizer que a fase contenciosa destina-se apenas a provocar uma decisão judicial que supere o litígio que subsiste.
É no auto de conciliação que globalmente se equacionam todos os pontos decisivos à determinação dos direitos do sinistrado, conforme resulta dos artigos 111º e 112º do CPT, seja no caso de acordo, seja na falta dele.
Na fase contenciosa apenas se pode exercitar os pontos ou factos por que o pedido não logrou acordo na fase conciliatória, ou seja, aqueles que ficaram por dirimir na fase conciliatória e que obstaram ao acordo total, à plena reparação, relativamente à pretensão e direitos que o sinistrado reclamou.
Do confronto daqueles normativos (artigos 111º e 112º do CPT) podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto.
É por isso que, conforme refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 06-03-2002[16], “se durante a fase conciliatória a questão do direito do sinistrado a indemnização por danos morais, não foi equacionada, nem se hipotizou, nem discutiu que o acidente tivesse ocorrido por culpa da entidade patronal, não pode agora o recorrente, pretextar a causa de pedir e formular, com base nela, o pedido de condenação da co-ré patronal numa quantia a titulo de danos morais.”
No caso em apreço, independentemente da questão de a aqui recorrente ter deduzido o aludido pedido de indemnização por danos não patrimoniais numa acção com processo comum – e não vamos discutir aqui a admissibilidade ou não de tal pedido nesta ação, uma vez que a mesma não é objeto deste recurso, nem oficiosamente pode ser conhecida –, haverá que aplicar todos os princípios que se aplicariam caso a questão fosse colocada no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho.
Ora, no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho constata-se que à tentativa de conciliação apenas foram chamadas a aqui recorrente e a seguradora. E da tentativa de conciliação (e restante processo) resulta que nunca a sinistrada ou a seguradora alegaram que o acidente se deveu a violação das regras de segurança ou de saúde por parte do empregador, tendo havido discordância tão só no que concerne ao grau de incapacidade de que a sinistrada seria portadora. Em suma, nunca a sinistrada no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho equacionou, hipotizou ou discutiu a questão do direito a indemnização por danos não patrimoniais ou que o acidente tivesse ocorrido por culpa da sua entidade empregadora. E, foi por essa razão, que a fase contenciosa do processo emergente de acidente de trabalho se iniciou mediante requerimento, da seguradora que não se tendo conformado com o resultado do exame médico realizado na fase conciliatória do processo (artigo 117º, nº 1, alínea b) do CPT), formulou pedido de junta médica. E, após a realização do exame pedido (artigo 139º do CPT) foi proferida sentença onde se condenou a seguradora a pagar à sinistrada uma pensão anual e vitalícia, bem como outras importâncias a título de subsídio por situação de elevada incapacidade permanente e prestação suplementar para assistência a terceira pessoa.
Devemos chamar a atenção que o efeito delimitador da tentativa de conciliação dos direitos resultantes do acidente, é fruto das próprias declarações e vontades dos seus participantes e interessados que serviram de base à proposta apresentada pelo Ministério Público, ou seja, com plena consciência das circunstâncias em que o acidente ocorreu e que permitiram a caracterização das responsabilidades resultantes da lei. E, partindo-se do princípio de que as declarações foram feitas de forma livre e voluntária, sem pressões e coações, devemos presumir que as mesmas assumiram a consciência dos deveres e direitos que lhes cabem, atento o seu papel no litígio. E se é verdade que a aqui recorrente não põe em causa essa liberdade declaratória, vem agora defender que não reclamou tudo a que tinha direito por entender que legalmente o não poderia fazer, uma vez que, no seu entendimento, os danos não patrimoniais não podiam ser reclamados no âmbito da acção emergente e acidente de trabalho. Di-lo, mas, ressalvando o devido respeito, sem qualquer razão.
Como vimos, é no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, e não fora dele, que o sinistrado pode e deve obrigatoriamente reclamar os danos não patrimoniais, caso entenda que o acidente tenha sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou se o mesmo for resultado da falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho – artigo 18º da NLAT.
O que o sinistrado não pode reclamar são quaisquer danos não patrimoniais quando o acidente não provenha de alguma das situações elencadas no aludido artigo 18º. Mas isso, não o pode fazer nem no processo comum, nem no processo emergente de acidente de trabalho, na medida em que a lei, nestes casos, não prevê qualquer direito a indemnização pelos danos não patrimoniais. E, isso, como é lógico, tem explicação pela génese da responsabilidade por acidentes de trabalho.
Tendo transitado a decisão que definiu os direitos da sinistrada advenientes do acidente de trabalho e não tendo a sinistrada, na tentativa de conciliação, equacionado ou discutido que o acidente, de que foi vítima, tivesse ocorrido, por culpa da sua entidade empregadora, nem reclamado quaisquer danos não patrimoniais, e, tendo a tentativa de conciliação a finalidade de delimitar e definir os direitos resultantes do acidente, é manifesto, no nosso ponto de vista, que já o não pode fazer depois, seja no âmbito da acção emergente de acidente de trabalho, seja através da acção de processo comum. Isto porque estamos no âmbito do caso julgado, com preclusão do direito de reclamar qualquer outra e diversa responsabilidade.
Se isso fosse permitido estar-se-ia a contrariar o já decidido e transitado em julgado. Só mediante revisão da sentença se pode por em causa o já decidido - artigo 291º, nº 2 do CPC.
Na verdade, o caso julgado é, de acordo com o que estatui a alínea i) do artigo 577º do Código de Processo Civil, uma exceção dilatória, sendo a mesma de conhecimento oficioso [artigo 578º do CPC], que, a verificar-se, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância [artigo 576º, nº 2 do CPC].
Segundo o nº 1 do artigo 580º do CPC, “as exceções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado”.
“Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior” – nº 2 do mesmo artigo.
Daqui resulta que a exceção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso, desde que em ambas se verifique uma tripla identidade.
E, repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, havendo identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica[17], identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende o mesmo efeito jurídico, e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico – artigo 581º do CPC.
Por outro lado, a exceção de caso julgado tem por finalidade evitar que o tribunal, duplicando as decisões sobre o mesmo objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior – artigo 580º, nº 2 do CPC –, pressupondo, assim, que o pedido já fora anteriormente submetido à apreciação do tribunal e que, sobre o mesmo, recaíra uma decisão já transitada em julgado. Significa isto que, para a verificação desta exceção de caso julgado, o que importa é que a segunda acção seja instaurada para exercer o mesmo direito que se exerceu através da primeira[18].
Todavia, a exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado. Pela exceção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade de caso julgado tem apenas o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito[19].
Dispõe o artigo 619º, nº 1 do CPC que «[t]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.»
Já o artigo 621º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe ”Alcance do caso julgado”, determina que «[a] sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga[…]».
Estes normativos aludem ao caso julgado material, isto é, atribuído à decisão transitada em julgado que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial – artigo 628º do CPC.
O caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa[20].
A primeira daquelas funções, ou seja, a função positiva, é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida mediante a exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artigo 580º nº 2 do C.P.C.).
Podemos, pois, afirmar que a autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a exceção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica[21].
Assim, enquanto que a exceção de caso julgado tem em vista obstar à repetição de causas e implica a tripla identidade a que se refere o artigo 581º do CPC (de sujeitos, pedido e causa de pedir), a autoridade de caso julgado de sentença transitada pode atuar independentemente da verificação de tais requisitos[22], implicando, contudo, a proibição de novamente apreciar ou discutir certa questão[23].
A distinção entre exceção de caso julgado e autoridade de caso julgado é feita pelo Prof. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[24] da seguinte forma: “A exceção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”. E mais à frente: “ verifica-se que o caso julgado material pode valer em processo posterior como autoridade de caso julgado, quando o objeto da acção subsequente é dependente do objeto da acção anterior, ou como exceção de caso julgado, quando o objeto da acção posterior é idêntico ao objeto da acção antecedente.
Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu especto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior”[25].
Também o Prof. JOSÉ LEBRE DE FREITAS [26] acentua que “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
Além do mais, acrescentaremos, que a autoridade do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado[27].
Seguindo os ensinamentos do Prof. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[28] “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.»
No caso em apreço, é manifesto que não se verifica qualquer violação de caso julgado, enquanto exceção dilatória, pois, não existe identidade de pedidos, pela simples razão de que a reconvenção deduzida pelo aqui Autor na primeira acção não foi admitida.
Todavia, verifica-se uma ofensa à autoridade de caso julgado, que, como vincamos, não se confunde com a exceção dilatória de caso julgado.
É manifesto que nesta acção a indemnização peticionada pela Autora/recorrente não foi reclamada, nem objeto de qualquer decisão, no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho de que a aqui recorrente foi parte. Portanto, não existe aqui qualquer repetição de causa.
A questão tem a ver com os efeitos delimitadores da tentativa de conciliação no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho que limitam, conforme vimos, a reclamação ou a proibição de questões que aí não foram suscitadas.
Significa isto que, no caso em apreço, mais do que a típica situação de exceção dilatória de caso julgado, decorrente de se repetir, em acção subsequente, pedido idêntico ao já apreciado em acção anterior, mediante sentença vinculativa das partes, e fundado na mesma causa de pedir, estamos confrontados com o tema da eficácia preclusiva da decisão que apreciou definitivamente certa pretensão, plenamente equiparável à figura do caso julgado. Ou seja: a exceção dilatória de caso julgado não se funda aqui na exata repetição de uma acção, objetiva e subjetivamente idêntica à que foi prévia e definitivamente julgada, mas na figura do efeito preclusivo que a doutrina vem equiparando e integrando no instituto do caso julgado, de modo a que a indiscutibilidade da decisão abranja, não apenas as questões nela expressamente decididas, mas todas as que o demandado tinha o ónus de suscitar durante o processo, como meio de influenciar a decisão final sobre o mérito da causa[29], ou seja, o efeito preclusivo do caso julgado tanto abrange o que foi deduzido pela sinistrada no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho na configuração já exposta, como o dedutível, ou seja, aquilo que poderia e deveria ter sido deduzido, mas não o foi. E, como vimos, a sinistrada podia e devia ter deduzido na respetiva ação emergente de acidente de trabalho a indemnização por danos não patrimoniais derivada da atuação culposa da sua entidade empregadora – o aqui réu nesta ação. Como o não fez, viu precludido o direito de o fazer, por força do caso julgado. E, como se refere no acórdão do STJ de 24 de Fevereiro de 2015[30], “o alcance do caso julgado, por razões de certeza e de segurança jurídica e de prestígio dos tribunais, não se limita aos estreitos contornos definidos, nos artigos 580.º e seguintes do CPC, para a excepção do caso julgado, antes se estendendo a situações em que apesar da ausência formal de identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento daquela figura jurídica está notoriamente presente”.
E, para finalizarmos esta questão, diremos que não é obstáculo ao que temos exposto, o facto de no âmbito dos processos por acidentes de trabalho (ou doenças profissionais) estarmos perante direitos indisponíveis e irrenunciáveis, conforme decorre dos artigos 12º e 78º, ambos da NLAT, sendo as normas adjetivas e substantivas de interesse e ordem pública e de natureza imperativa que se sobrepõem aos interesses e expectativas das partes, com consagração constitucional – artigo 59º, nº 1, alínea f) da CRP. Em primeiro lugar, o acordo e a decisão estão em conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais (artigo 114º, nº 1 do CPT). Em segundo lugar, não é pelo facto de, nestas situações de preclusão, o sinistrado ficar impedido de reclamar uma indemnização poe danos não patrimoniais que se porem em causa a indisponibilidade ou a renúncia dos seus direitos. É que não devemos esquecer, conforme se destaca no Acórdão desta Relação de 30/05/2013[31] “a autoridade do caso julgado justifica-se/impõe-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas. E essa autoridade não é retirada, nem posta em causa mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado corretamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei: no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça.”
Por fim, apesar dessa irrenunciabilidade e indisponibilidade dos créditos provenientes à reparação por acidentes de trabalho, ninguém levanta a voz nas situações em que, não pelo efeito preclusivo, mas pela sua demora na petição, o direito de ação respeitante aos aludidos créditos caducou – artigo 179º, nº 1 da NLAT.
Verifica-se, assim, o efeito preclusivo do caso julgado, razão pela qual procede a ampliação do recurso, e, como tal, o aqui recorrido/reu deve ser absolvido da instância.
◊◊◊
5. RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
As custas do recurso ficam a cargo da recorrente/autora [artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil].
◊◊◊ ◊◊◊
IV - DECISÃO
Em face do exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em: a) – Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela Autora, e, em consequência revogar a decisão recorrida na parte em que julgou verificar-se a exceção perentória do abuso de direito, mantendo no restante (compensação pela caducidade do contrato de trabalho) a sentença recorrida. b) – Julgar procedente a ampliação do recurso deduzida pelo réu e em consequência julgar verificado o efeito preclusivo do caso julgado, absolvendo-se no que concerne ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais, o réu da instância. c) – Condenar a recorrente/autora no pagamento das custas do recurso [artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil].
◊◊◊
Anexa-se o sumário do Acórdão – artigo 663º, nº 7 do CPC.
◊◊◊
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos (artº 131º nº 5 do Código de Processo Civil).
Porto, 07 de Setembro de 2015
António José Ramos
Eduardo Petersen Silva
Paula Maria Roberto
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[1] cf. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Volume I, 2.ª Edição, Livraria Almedina, Coimbra, 1973, p. 422-423; PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 1967, p. 217.
[2] Processo nº 07A2960, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido podemos ver Acórdão do STJ de 29/10/2013, Processo nº 364/03.4TBVRM.G1.S1, in www.dgsi.pt.
[3] PAULO MOTA PINTO, “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil”, BFDUC, Volume Comemorativo (2003), pág. 276.
[4] Obra e loc. cit, pág. 302.
[5] Neste exato sentido, Meneses Cordeiro, “Contrato Promessa – Art.º 410º, nº 3, do Código Civil – Abuso di Direito - Inalegabilidade Formal”, ROA, Julho de 1998, II, pág. 964.
[6] Obra e loc. cit, pág. 305.
[7] MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Direito do Trabalho, Parte II - Situações Laborais Individuais, 2009,Almedina, p. 98.
[8] MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, obra cit., pp. 99/100.
[9] ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 16ª Edição, 2012, p. 133.
[10] JOÃO LEAL AMADO, Contrato de trabalho prostitucional?, Temas Laborais, Coimbra Editora, 2005, pp. 35/36.
[11] MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, obra cit., pp. 99.
[12] Neste sentido ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, obra cit. P. 133.
[13] PEDRO ROMANO MARTINEZ (e outros), Código do trabalho Anotado, 2013, 9ª Edição, p. 124.
[14] Processo nº 6085/2005-4, in www.dgsi.pt.
[15] Doravante designada apenas por NLAT.
[16] Processo nº 3683/2002, in www.dgsi.pt.
[17] Como se refere no Acórdão do STJ de 09/10/1997, Processo 97B378, in www.dgsi.pt, “O que releva no caso julgado para efeito de identidade de sujeitos não é que as partes sejam fisicamente as mesmas - muito menos que se encontrem na mesma posição de autores e réus - mas que as partes sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, pouco importando que sejam diferentes, fisicamente consideradas”.
[18] A repetição de causas, como já aludimos, é aferida por uma tríplice identidade entre os elementos objetivos e subjetivos que delimitam a instância, exigindo-se, pois, que os sujeitos, a causa de pedir e o pedido sejam idênticos nas duas ações que estejam em causa.
[19] Cfr. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, II, pp 770/771.
[20] Cfr. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pp.92/93.
[21] Cfr. nesse sentido, entre outros, o Acórdão do STJ de 13/12/2007, Processo 07A3739, Acórdãos da Relação de Guimarães de 17/09/2013 e de 17/12/2013, respetivamente, Processo 307/12.4TCGMR.G1 e 3490/08.0TBBCL.G1, todos in www.dgsi.pt.
[22] Podemos configurar três situações em que ocorre caso julgado independentemente da verificação típica da tríplice identidade.
(i) - O caso julgado abarca o deduzido e o dedutível; ou seja, estão abrangidos pela força do caso julgado todas as alegações e meios de defesa deduzidas, como também as que não foram deduzidas, mas eram dedutíveis, desde que pertinentes para a resolução do litígio. Esta abrangência da força do caso julgado está relacionada com a eficácia preclusiva derivada dessa mesma força. Significa isto que a autoridade do caso julgado abrange não só o que foi efetivamente deduzido, mas, também, o que poderia ter sido deduzido e o não foi. Na segunda acção não pode a parte alegar factos e provas que deveria ter apresentado e alegado na primeira acção, mas, por qualquer razão, o não fez.
“Fala-se do efeito preclusivo do caso julgado para caracterizar esta inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida (…)”[LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de processo Civil Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2ª Edição, 2001, p. 679], embarcando, assim, o caso julgado, não só o que foi objeto de discussão no processo, mas também tudo aquilo que, a ela respeitando, tivesse o réu o ónus de submeter também à discussão[Cfr. CASTRO MENDES, “Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil”, pp. 178 e segs].
Nas palavras do Prof. MANUEL DE ANDRADE [Noções Elementares, 1979, p. 324]“se a sentença reconheceu no todo ou em parte o direito do Autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do Réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir, e até os que ele poderia ter deduzido com base num direito seu”.
(ii) - O caso julgado impede ações de sentido contrário que esvaziem de conteúdo o decidido;
(iii) - O caso julgado implícito (na decisão proferida estão contidas outras decisões que a mesma pressupõe necessariamente, que a maior parte das vezes se reconduzem às outras duas mencionadas, mas que pode ter alguma autonomia).
[23] Nesse sentido Acórdãos do STJ de 13/12/2007 e de 06/03/2008 e de 23/11/2011, respetivamente, Processo 07A3739,08B402 e 644/08.2TBVFR.P1.S1, todos in www.dgsi.pt.
[24] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Objeto da Sentença e Caso Julgado Material”, BMJ nº 325, p. 176.
[25] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, obra cit. pp. 178/179.
[26] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, p. 325.
[27] Nesse sentido Acórdãos do STJ de 12/07/2011 e de 23/11/2011, respetivamente, Processo 129/07.4.TBPST.S1 e 644/08.2TBVFR.P1.S1, ambos in www.dgsi.pt.
[28] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pp 578/579.
[29] Cfr. Acórdãos do STJ de 21/04/2010 e 28/06/2012, respetivamente, processo nº 6640/07.0TBSTB.E1.S1 e 24635/05.6YYPRT-C.P1.S1, ambos in www.dgsi.pt.
[30] Processo nº 915/09.0TBCBR.C1.S1., in www.dgsi.pt.
[31] Processo nº 1042/10.3TBCHV.P1, in www.dgsi.pt.
_____________ SUMÁRIO – a que alude o artigo 663º, nº 7 do CPC.
I - Para que o exercício do direito seja considerado abusivo, é necessário que o titular exceda, visível, manifesta e clamorosamente, os limites que lhe cumpre observar, impostos quer pelo princípio da tutela da confiança (boa fé), quer pelos padrões morais de convivência social comummente aceites (bons costumes), quer, ainda, pelo fim económico ou social que justifica a existência desse direito, de tal modo que o excesso, à luz do sentimento jurídico socialmente dominante, conduz a uma situação de flagrante injustiça.
II - O facto de a sinistrada/autora no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho não ter deduzido qualquer pedido indemnizatório derivado de danos não patrimoniais na ação especial emergente de acidente de trabalho, não pode inculcar a ideia de que tal comportamento omissivo tenha criado a legítima convicção ou expetativa na sua entidade empregadora de que a mesma nunca mais iria peticionar tal indemnização e que ao vir agora reivindicá-la tenha frustrado aquela expetativa.
III - Tendo o contrato de serviço doméstico cessado por caducidade com fundamento em impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de a trabalhadora, aqui recorrente, prestar o seu trabalho – alínea b) do nº 1 do artigo 28º do DL nº 235/92, de 24 de Outubro, inexiste, por parte da trabalhadora, nesta situação, qualquer direito a compensação. Pois, a compensação, como já vimos, só existe para as situações de caducidade do contrato com fundamento na d) n.º1 do art.º 28, do DL n.º 232/92 - ocorrendo alteração substancial das circunstâncias da vida familiar do empregador que torne praticamente impossível a subsistência da relação laboral (artigo 28º, nº 3) - o que manifestamente não é o caso.
IV - Se assim é, não tendo o legislador previsto qualquer direito a compensação pela caducidade do contrato na situação em apreço, e, sendo essa não previsão intencional, não há que lançar mão da analogia (cf. artigo 10º, nº 2 do Código Civil). Por outro lado, o direito a compensação com fundamento na d) n.º1 do art.º 28, do DL n.º 232/92 - ocorrendo alteração substancial das circunstâncias da vida familiar do empregador que torne praticamente impossível a subsistência da relação laboral, é uma norma excecional e, como tal, insuscetível de aplicação analógica (cf. artigo 11º do Código Civil).
V - Além do mais, mesmo que se defendesse que nestas situações se poderia lançar mão do regime geral, a solução não seria diversa. E não o seria, porque, como já vimos, no âmbito do Código do Trabalho, apenas a caducidade do contrato de trabalho resultante da morte do empregador, da extinção da pessoa coletiva empregadora e do encerramento total e definitivo da empresa, dá lugar a que o trabalhador tenha direito a uma compensação calculada nos termos do artigo 366º do Código do Trabalho – cfr. artigo 346º nº 5 do CT. O Código do Trabalho apesar de prever que o contrato possa cessar por caducidade em virtude de impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o trabalhador prestar o seu trabalho – artigo 343º, alínea b) – exclui de forma intencional qualquer direito a compensação por essa cessação.
VI - Mesmo que se defendesse que nesta situação concreta que o que levou à caducidade do contrato de trabalho teve por causa uma comportamento ilícito e culposo do réu (entidade empregadora) – por não cumprido determinadas normas legais relacionadas com a saúde e segurança no trabalho - e, como tal, deveria ser responsabilizado por esse seu comportamento, a verdade é que, pelas razões acima explanadas, a eventual indemnização apenas poderia ter como fundamento as regras gerais. Assim, quer se entenda que estamos perante uma responsabilidade contratual ou extracontratual, para haver direito a indemnização, haverá que alegar e provar uma conduta violadora de direitos resultantes ou do incumprimento de um contrato ou de leis ou regulamentos, a ilicitude de tal violação, a culpa sob a forma de dolo ou negligência, o dano e o nexo de causalidade entre o comportamento e o dano.
VIII – A entender-se que esse dano poderia ser apreciado fora do âmbito do Código do Trabalho, ou seja, fora das normas que preveem a compensação em virtude da caducidade e que acima referimos, então a responsabilidade do Réu teria de ser apreciada no âmbito da ação especial emergente de acidente de trabalho. É que, resultando o acidente, como alega a Autora, da falta de observação, pelo empregador, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais – cf. artigo 18º da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro. Ora, este normativo é bem mais abrangente do que o anterior artigo 18º da lei nº 100/97, de 13 de Setembro, onde, resultando o acidente, da falta de observação, pelo empregador, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, além da agravação das prestações ditas normais (como acontece com o atual artigo 18º, nº 4), estava prevista a responsabilização por danos morais nos termos da lei geral – artigo 18º, nº 2.
IX - Atualmente ao dizer-se que a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais, está a contemplar-se toda a situação de danos, quer patrimoniais, quer não patrimoniais, derivados da eclosão do acidente de trabalho, entre os quais, assim nos parece, aqueles que derivam da caducidade do contrato de trabalho em virtude do sinistrado ficar incapaz de prestar a sua atividade.
X - É no auto de conciliação que globalmente se equacionam todos os pontos decisivos à determinação dos direitos do sinistrado, conforme resulta dos artigos 111º e 112º do CPT, seja no caso de acordo, seja na falta dele.
XI - Na fase contenciosa apenas se pode exercitar os pontos ou factos por que o pedido não logrou acordo na fase conciliatória, ou seja, aqueles que ficaram por dirimir na fase conciliatória e que obstaram ao acordo total, à plena reparação, relativamente à pretensão e direitos que o sinistrado reclamou.
XII - Do confronto daqueles normativos (artigos 111º e 112º do CPT) podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto.
XIII - É no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, e não fora dele, que o sinistrado pode e deve obrigatoriamente reclamar os danos não patrimoniais, caso entenda que o acidente tenha sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou se o mesmo for resultado da falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho – artigo 18º da NLAT.
XIV - Tendo transitado a decisão que definiu os direitos da sinistrada advenientes do acidente de trabalho e não tendo a sinistrada, na tentativa de conciliação, equacionado ou discutido que o acidente, de que foi vítima, tivesse ocorrido, por culpa da sua entidade empregadora, nem reclamado quaisquer danos não patrimoniais, e, tendo a tentativa de conciliação a finalidade de delimitar e definir os direitos resultantes do acidente, é manifesto, no nosso ponto de vista, que já o não pode fazer depois, seja no âmbito da acção emergente de acidente de trabalho, seja através da acção de processo comum. Isto porque estamos no âmbito do caso julgado, com preclusão do direito de reclamar qualquer outra e diversa responsabilidade.