PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
PROVA INDICIÁRIA
CONTRA INDÍCIOS
ANTECEDENTES CRIMINAIS
Sumário

I - Em face do princípio da livre apreciação da prova o juiz é livre de relevar ou não os elementos de prova que sejam submetidos á sua apreciação: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido em detrimento dos depoimentos de uma ou várias testemunhas; pode absolver um arguido que confessa; pode desvalorizar o depoimento de várias testemunhas e considerar decisiva apenas o depoimento de uma só, não está obrigado a aceitar ou a rejeitar acriticamente e em bloco as declarações do arguido, do assistente ou lesado ou o depoimento das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe parece credível.
II - Os limites a essa liberdade de valoração da prova no âmbito penal são as regras da lógica e da razão, as máxima das experiência e os conhecimentos técnicos e científicos.
III - O principio in dubio pro reo configura-se como uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, o juiz deve decidir a favor do arguido dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
IV - O principio in dubio pro reo, na fase recursiva, impõe que seja demonstrável em face do texto da decisão recorrida e só vale para:
- a dúvida insanável sobre a verificação ou não de factos;
- a dúvida razoável, objectiva que impeça a formação da convicção do tribunal;
- a dúvida sobre os factos tem de ser do tribunal;
V - Saber se o tribunal em face das provas produzidas devia ter ficado na dúvida sobre os factos é questão relativa ao processo de formação da convicção e ao erro na apreciação e valoração da prova, o que ocorrerá se se puder censurar o processo lógico e racional que conduziu à formação dessa convicção.
VI - O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova ou grau de certeza exigível no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável”, que não exclui qualquer “sombra de dúvida”.
VII - Quer a prova directa, quer a indirecta ou indiciária são igualmente modos legítimos de chegar ao conhecimento da realidade do facto a provar, importando nesta as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção que se encontram na base de qualquer juízo probatório.
VIII – No uso da prova indiciária, os factos indiciantes devem estar expressos e individualizados na fundamentação da sentença e da motivação desta deve constar o juízo de inferência, ou seja, deve explicitar o raciocínio através do qual, partindo dos factos-base, se chegou à convicção da verificação do facto punível e que o acusado o praticou ou nele participou.
IX - A base indiciária deve ser constituída, preferencialmente, por uma pluralidade de indícios (concordantes ou convergentes de modo a que se reforcem mutuamente) mas é admissível que um só seja suficiente se o seu significado for determinante.
X - Essencial na prova indiciária é que a conexão que tem de existir entre o facto base e o facto consequência seja fundamentada no princípio da normalidade conectado a uma máxima da experiência.
XI - A prova indiciária só não terá a virtualidade de afastar a presunção de inocência e constituir prova bastante do facto probandum quando os indícios sejam ambíguos e a inferência seja ilógica ou de tal modo aberta que em si mesmo comporte uma tal pluralidade de conclusões alternativas que nenhuma delas pode dar-se por provada.
XI - Contra-indícios são indícios e outros meios de prova trazidos ao processo que enfraquecem ou neutralizam a força probatória e a eficácia dos indícios culpabilizantes e têm de ser concretizados e sustentados em julgamento para serem analisados e ponderados pelo juiz quando forma a sua convicção.
XII - Se o arguido revela através dos seus antecedentes criminais uma personalidade com tendência para delinquir, essa circunstância pode relevar como indício da prática do crime em investigação.

Texto Integral

Processo n.º 2/13.07 GCETR.P1
Recurso Penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 2/13.07 GCETR, corre, agora, termos pela 1.ª Secção Criminal (Juiz 1) da Instância Central da Comarca de Aveiro, B…, C… e D…, todos devidamente identificados nos autos, foram submetidos a julgamento em tribunal colectivo, acusados pelo Ministério Público da prática, os dois primeiros, em concurso real e em co-autoria, de quatro crimes de furto, sendo um simples e três qualificados, e a terceira, em co-autoria material e em concurso real, de três crimes de furto qualificado[1].
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, após deliberação do Colectivo, foi proferido o acórdão datado de 24.07.2014 (fls. 1329 e segs.), com o seguinte dispositivo:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo, em:
I) Absolver os arguidos C… e B… da prática em co-autoria de um crime de furto p. e p. pelo artigo 203°, n.º 1 do Código Penal.
II) Absolver o arguido C… e B… da prática em co-autoria de um crime de furto qualificado p. e p. pelo artigo 26°, 202°, al. f); 203°, n.º 1 e 204°, n.º 1, al. h) e n.º 2, al. e) todos do Código Penal.
III) Absolver os arguidos C… e B… da prática em co-autoria, de dois crimes de furto qualificado p. e p. pelo art. 203°, n.º 1 e 204°, n.º 1, al. h) do CP.
IV) Absolver a arguida D… da prática em autoria material e em co-autoria de 3 (três) crimes de furto qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos art. 202°, al. d) e e); 203°, n.º 1 e 204°, n.º 1, al. h) e n.º 2, al. e) do Código Penal.
V) Condenar o arguido C… pela prática em autoria material de 1 (um) crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art. 202°, al. f); 203°, n.º 1 e 204°, n.º 2, al. e) todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão.
VI) Condenar os arguidos C… e B… da prática em co-autoria de 2 (dois) crimes de furto qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos art. 202°, al. e); 203°, n.º 1 e art. 204°, n.º 2, al. e) todos do Código Penal, sendo o arguido C… condenado na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um dos crimes e o arguido B… na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão por cada um dos crimes.
VII) Ao abrigo do disposto no art. 77°, n°. 1 e 2 do Código Penal decide-se condenar o arguido C… na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão e o arguido B… na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão”.
Inconformados com a decisão condenatória, e almejando a sua absolvição, os arguidos C… e B… dela interpuseram recurso para este Tribunal da Relação.

O arguido C… “condensou” nas seguintes “conclusões” os fundamentos do seu recurso:

a) Não concorda o Recorrente com o douto Acórdão recorrido, entendendo que foi incorrectamente julgada a matéria de facto, bem como que foi incorrectamente aplicado o direito aos factos;

b) No que concerne aos factos, entende o Recorrente que foram incorrectamente julgados, face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, todos os factos, com excepção do vertido com o n.º 16. [16 - O Arguido B… encontra-se em liberdade condicional, tendo sido condenado por factos da mesma natureza.]

c) Entende o Recorrente não ter sido produzida prova que permitisse concluir que o ora Recorrente teve qualquer participação nos três furtos, objecto dos presentes autos, ou sequer que algum dia tivesse estado nos lugares em causa no dia e hora em que ocorreram os factos que lhe vêm imputados;

d) O simples facto de não ter apresentado qualquer justificação para ter estado na posse dos objectos furtados, não se pode afigurar como elemento de prova indubitável da sua presença e participação nos furtos;

e) O Recorrente tem consciência que não é o mero facto de ter uma versão diferente da acusação, que imporia a sua absolvição, no entanto, tratando-se no presente de um processo-crime, a prova utilizada para se obter a convicção quanto à prática dos factos incriminados tem que ser absolutamente segura, inabalável, e já não temerária ou duvidosa.

f) O Tribunal enquadrou e subsumiu erradamente os factos às normas legais aplicáveis, ao ter condenado pela prática em autoria material de 1 (um) crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 202.ºal f), 203.º n.º 1 e 204.º n.º 2 al e), todos do Código Penal (doravante abreviadamente CP) e pela prática em co-autoria de 2 (dois) crimes de furto qualificado p. e. p. pelas disposições conjugadas dos arts. 202.º al e), 203.º n.º 1 e 204.º n.º 2 al e), todos do CP;

g) O Tribunal foi muito para além da prova que efectivamente se fez em audiência de discussão e julgamento, fundamentando a sua decisão na convicção formada pelos depoimentos das testemunhas, sendo certo que, todavia, NINGUÉM viu qualquer assalto, o que, aliás, é confirmado pelo douto Acórdão – [P. 25, 1.º Parágrafo], e/ou carreou qualquer prova concreta que permita a afirmação de quem foi o seu autor ou autores, violando-se, assim, o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127° do CPP;

h) Quanto ao crime de furto qualificado ocorrido no dia 24 de Outubro de 2012, o Tribunal deu como provados os factos n.º 1 a 4, baseando-se no depoimento da testemunha E… que, na verdade, não esclareceu com clareza, antes deixando transparecer uma dúvida consistente sobre se, naquele dia, ao ausentar-se da sua habitação, teria fechado ou não o portão da sua casa, recordando, a propósito, o embate de um carro no referido portão o que terá levado a que o mesmo não esteja a fechar correctamente “Se não estavam os fechos bem postos, que eu tenho agora muito cuidado de pôr os fechos bem postos. (…) Aquela tem de ter os fechos postos.” (…) “Pois dá para abrir…”, “A minha ideia é que seria que se o fecho de baixo não ficou bem posto, [podiam ter entrado por aí], mas ao sair já saíram com todo o cuidado só deixaram encostado (…)”;

i) O Tribunal, para a condenação quanto a este crime, atendeu ao testemunho de F…, Cabo da GNR, o qual apenas confirmou em tribunal que foi recebida a informação de que em Viseu teriam sido vendidos alguns objectos relacionados com o furto ocorrido na casa da testemunha E…, sendo que tais objectos teriam sido vendidos por intermédio da testemunha G…; tendo-se esta limitado a confirmar que, quando se encontrava a residir em Viseu, e num período em que mantinha um relacionamento com o Arguido C…, o mesmo lhe pediu para vender alguns objectos em ouro, o que, aliás, foi confirmado pelo Arguido C…, tendo perante esta factualidade de se concluir tratar-se de provas muito frágeis e inconclusivas quanto ao crime de furto.

j) Do depoimento das testemunhas E…, F…, e G…, não é possível dar-se como provado de forma inequívoca que foi o Arguido C… que assaltou a residência da testemunha E… – ninguém viu e não há referência a qualquer outro tipo de prova –, e, para além disto, que o fez usando chaves falsas – não foram apreendidas e, consequentemente exibidas tais chaves falsas –, sendo, pois, o depoimento destas testemunhas, demasiado frágil e inconclusivo para permitir condenar o Arguido C… pela prática do crime de furto qualificado;

k) Quanto ao crime de furto qualificado ocorrido no dia 28 de Dezembro de 2012, o Tribunal baseou a sua convicção:

a. no testemunho de H… que apenas esclareceu a forma como o acesso à sua casa terá sido feito;
b. no depoimento prestado pelo Cabo da GNR F…, que [apenas] esclareceu terem sido feitas diligências em vários estabelecimentos onde havia indicações de que o Arguido C… e o B… teriam estado a vender alguns artigos em ouro, nada mais adiantando quanto a outras diligencias de prova que permitissem identificar o autor deste furto;
c. No testemunho de I…, a qual [apenas] declarou que trabalhou na loja “J…” em Estarreja, sendo que a mesma confirmou a compra de artigos em ouro ao Arguido B…, o qual não estaria sozinho e estaria acompanhado pelo Arguido C…, tendo este admitido que esteve presente nesta ocasião no estabelecimento e que facultou a sua identificação para o preenchimento da declaração que consta de fls. 54;
- Concluindo o Tribunal, como concluiu, “tendo os Arguidos em seu poder um fio em ouro, o qual foi subtraído da casa da ofendida nas condições indicadas e sem o consentimento da legítima proprietária e tendo os Arguidos diligenciado pela venda desse fio em ouro, no próprio dia do furto, não resultam dúvidas de que os Arguidos praticaram em co-autoria o crime de furto de que estavam acusados.”, fê-lo sem um verdadeiro suporte factual claro e inequívoco quanto à pessoa ou pessoas que se terão apropriado dos objectos em causa;
l) Para dar como provado o crime de furto qualificado ocorrido no dia 1 de Janeiro de 2013 no …, o Tribunal considerou:
a. o depoimento prestado pelas testemunhas F… e K…, ambos militares da GNR que referiram nos seus depoimentos as diligências que efectuaram nos estabelecimentos de ourivesaria “L…” e “J…”, bem como confirmaram que se deslocaram a Santo Tirso onde procederam à apreensão de vários objectos em ouro;
b. no depoimento da testemunha M…, esclarecendo o tribunal sobre as circunstâncias de TEMPO E LUGAR em que ocorreu o furto à sua residência;
c. nas testemunhas N… e O… que apenas testemunharam quanto à venda do ouro;
d) que os Arguidos B…, C… e D… no dia em que ocorreu o furto à residência da testemunha M…, foram vistos em local próximo dessa residência;
e. a testemunha indicada sob o n.º 8 no rol apresentado em sede de acusação, que declarou que no estabelecimento onde trabalhava, ou seja, a L…, sita em Estarreja, se deslocaram uns indivíduos, os quais tentaram vender um anel em ouro que, mais tarde, reconheceu como sendo o Arguido B… e o Arguido C…;
f. os Arguidos acompanhados por duas senhoras, foram vistos a circular nesse período por diversas vezes e estando juntos e em local próximo do seu estabelecimento;
-- Esta factualidade não permite ao Tribunal concluir como concluiu, pois além de ser, por si só, uma prova frágil, mais débil se torna quando, segundo o depoimento da testemunha F… [Ao minuto 17:16], podemos concluir que o Arguido B… habitava numa casa a cerca de quinhentos metros do local do furto, e daí que que seja razoável que os Arguidos tenham sido vistos por ali pelo que, não permite concluir da forma do douto Acórdão: P. Mas há pouco também referiu que foi feita uma busca na casa do Senhor, Arguido aqui também, B… que é na mesma rua… R. É no seguimento da rua, é no seguimento da Rua...(…) A Rua … culmina no …. (….) P. Qual é a distância entre a casa aonde foram feitas as buscas, aqui do Arguido B… e esse local? É perto, é longe… R. Quinhentos metros talvez.;
-- Não pode o Tribunal tirar conclusões desta proximidade, sobretudo quando, o Arguido B… residia naquela zona, e, como foi admitido pela arguida D… e pelo Arguido C…, a D… tinha uma relação de natureza afectiva como o B… e o Arguido C… é seu filho.
-- Concluindo o Tribunal a quo, como concluiu, “da conjugação de toda esta factualidade, dúvidas não existem de que os Arguidos de comum acordo e na execução de um plano comum, decidiram deslocar-se a casa da testemunha M… para se apoderarem de objectos de valor, o que vieram a realizar. Os Arguidos na posse desses objectos procederam depois à venda dos artigos que furtaram.”, fê-lo sem um verdadeiro suporte factual provado, claro e inequívoco.
m) não foi prestado nenhum depoimento a relatar que os Arguidos foram vistos a entrar ou a sair das três residências referidas, o que, aliás, é confirmado pelo douto Acórdão – [P. 25, 1.º Parágrafo], nem foi feita qualquer outro tipo de prova da sua introdução naqueles locais.;

n) Da prova produzida não seria possível concluir de forma indubitável que o Recorrente participou nos factos que lhe vinham imputados ou sequer que se encontrasse presente no dia e lugar em questão;

o) A dúvida sobre a efectiva presença e participação do Arguido nos factos em questão decorre ao longo de todo o douto Acórdão;

p) O Tribunal, especialmente em processo penal, não pode por ilação concluir a identificação de uma pessoa como responsável pela prática de quaisquer factos, mas apenas dos considerados provados de forma indubitável;

q) Em processo penal, a identificação e conclusão sobre a participação de determinada pessoa em determinados factos que consubstanciam a prática de crimes, tem de ser indubitável, aproveitando, pelo contrário a dúvida ao Arguido;

r) O simples facto de o Arguido ter procedido à venda de objectos furtados, não basta, por si só, para que se considere feita prova bastante para condenar o Arguido nos crimes de furto qualificado;

s) O tribunal a quo considerou indevidamente e, devido a erro na apreciação da prova testemunhal, nos termos do art. 410º, nº 2, c), do CPP estar demonstrada a prática, pelo Arguido C…, de três crimes de furto qualificado e, pelos quais, foi CONDENADO, quando, de facto, da prova realizada em audiência de discussão e julgamento não resultaram provados os pontos de facto impugnados que ficaram dados como provados no douto Acórdão Recorrido;

t) O Tribunal a quo foi muito para além da prova, em concreto produzida em audiência de discussão e julgamento, não tendo procedido a uma cuidadosa interpretação como se impunha, levando a uma convicção que efectivamente dela não resulta;

u) Ninguém assistiu a qualquer dos identificados furtos, nem foi produzida qualquer outra prova, violando-se, assim, o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127° do CPP;

v) A decisão enferma, ainda, de erro notório na apreciação da prova, no que tange aos pontos da matéria dada como provada e que se deixaram identificados na motivação, uma vez que inexiste prova que os sustente;

w) Estamos perante uma condenação com base em prova indiciária, que apesar de admissível obedece a requisitos cumulativos e rigorosos, que salvo o devido respeito por opinião diversa, não se verificam in casu;

x) No caso em apreço os indícios recolhidos não podem considerar-se graves, precisos e concordantes, de molde a permitir inferir pela participação do Arguido Recorrente como autor e/ou co-autor dos crimes que lhe são imputados;

y) O simples facto de o Arguido ter tido em seu poder algumas peças furtadas que, posteriormente, vendeu, não permite, sem mais, concluir que o Arguido foi o autor ou o co-autor do furto, já que esta dedução não se ajusta nem às regras da lógica, nem aos princípios da experiência;

z) O Arguido sempre poderia ter entrado na posse das coisas furtadas por as ter recebido de um terceiro sem ter tido qualquer participação no furto;

aa) Atenta a falta de provas que permita concluir que o Arguido praticou os crimes pelos quais foi condenado, pugna-se pela sua absolvição, uma vez que o Arguido foi injustamente condenado;

bb) Ao condenar-se o Arguido na pena de 5 anos e 3 meses de prisão pela prática dos crimes supra descritos, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 71° do CP, traduzindo-se a pena aplicada numa pena demasiado severa;

cc) Para a condenação exige-se um juízo de certeza e não de mera probabilidade, e na ausência desse juízo, vale o princípio de presunção de inocência do Arguido (artigo 32º, nº 2, da Constituição) e a regra, seu corolário, in dubio pro reo, pelo que, até por isto, não deveria ter-se verificado a condenação;

dd) O facto de o Arguido ter vendido objectos furtados é insuficiente para concluir, para além de toda a dúvida razoável, que tenha sido ele o autor dos mencionados furtos;

ee) Não competia ao Arguido, mas sim à acusação, provar a forma como os objectos chegaram à posse daquele e alicerçamos esta posição no douto Acórdão da Relação de Guimarães de 19 de Janeiro de 2009, processo nº 2025/08-2, relatado por Cruz Bucho, in www.dgsi.pt; no douto Acórdão da Relação do Porto de 16 de Janeiro de 2013, processo n.º 4/02.9TBLMG.P1, cujo relator é Pedro Vaz Pato, sum. In www.dgsi.pt; e, no mesmo sentido, no Acórdão desta Relação de 11 de Janeiro de 2012, proc. nº 136/06.4GAMCD.P1, relatado por Pedro Vaz Pato, sum. in www.dgsi.pt;

ff) No respeito pelo princípio da livre convicção do julgador, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, o Tribunal está obrigado (artigo 205º da CRP e 374º, nº2 do Código de Processo Penal) a expor as razões concretas e objectivas da opção tomada, como aliás salienta HENRIQUES EIRAS in "Processo Penal Elementar", Quid Iuris, 2003, 4ª edição, p. 102, refere que este princípio "(...) não significa que o tribunal possa utilizar essa liberdade à sua vontade, de modo discricionário e arbitrário, decidindo como entender, sem fundamentação. O juiz tem de orientar a produção de prova para a busca da verdade material e, ao decidir, há-de fundamentar as suas decisões: a apreciação da prova que faz reconduz-se a critérios objectivos, controláveis através da motivação. A sua convicção, que o levará a decidir de certa maneira e não de outra, embora pessoal, é objectivável.";

gg) O Julgador pode ter como pressuposto valorativo o critério da experiência comum e da lógica do homem médio, no entanto não pode o Tribunal extravasar claramente a matéria que ficou demonstrada e basear as suas conclusões e parte da sua fundamentação única e exclusivamente na suposição do que terá sucedido, porque isto nem o processo nem a lei autorizam;

hh) O princípio in dubio pro reo, estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o Arguido, pelo que o julgador tem de valorar sempre em favor do Arguido um non liquet, à semelhança do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui que “todo o Arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”;

ii) Os furtos não foram presenciados por nenhuma testemunha, não foi encontrado qualquer vestígio relativo ao Arguido ora Recorrente, e também não foi encontrado na posse do Arguido e Recorrente algum outro objecto furtado;

jj) Para a condenação exige-se um juízo de certeza e não de mera probabilidade e, na ausência desse juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), vale o princípio de presunção de inocência do Arguido (artigo 32º, nº 2, da Constituição) e a regra, seu corolário, IN DUBIO PRO REO”.

Por seu turno, o arguido B… rematou a motivação do seu recurso com o seguinte quadro conclusivo:
1. O arguido entende que os pontos n°s 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 17 da matéria de facto provada não podiam ter sido dados como provados em relação ao arguido B… face à total ausência de prova, pelo que a decisão que se impunha era a sua absolvição.
2. Com efeito, não se produziu prova bastante em relação ao arguido B…, que pudesse levar a que tais factos tivessem sido provados, nem o douto Acórdão consegue explicar o raciocínio lógico e objetivo que levou a que se concluísse pela prática das aludidas ações que determinaram a condenação deste arguido.
3. Na verdade, não foi encontrado na posse do arguido B… nenhum objeto furtado, nem este arguido foi visto a sair ou a entrar nas duas residências de onde foram furtados os objetos, nem nesses locais foram recolhidos quaisquer vestígios que sinalizassem a sua presença.
4. A única prova que foi feita na audiência de julgamento, em relação a este arguido, resume-se ao facto de viver em união de facto com a arguida D…, de ambos residirem em Estarreja, de ter estado com todos os outros arguidos e terem sido todos vistos junto a uma das residências assaltadas - no período em que terá ocorrido um desses furtos - designadamente na residência que se situava na Rua … que era a mesma rua onde o arguido B… morava, e, finalmente, provou-se que o B… estava com o arguido C…, quando este foi às lojas de compra e venda de ouro, vender o ouro.
5. Efetivamente, corroborando os depoimentos e os documentos nos autos bem como a confissão do arguido C… referindo que todo o ouro tinha sido vendido por si - conforme se alcança do seu depoimento da ata referente à 4a sessão de julgamento, com o n° 22699629, gravado no sistema de gravação áudio disponível no tribunal de Estarreja, referente à gravação do dia 10/07/2014, das 12:53:28 às 13:02:40 - não devia ter sido dado como provada a posse do ouro furtado por parte do arguido B…: Minuto 0:18
(segue-se a transcrição das declarações do arguido C…, que aqui omitimos, por desnecessária).
6. Também do depoimento do Cabo da GNR F…, não se alcança qualquer facto que permita dar como provado a prática dos furtos pelo arguido B… como se alcança do seu depoimento da ata da 1a sessão de julgamento, com o n° 22489355, gravada no sistema de gravação áudio disponível no tribunal de Estarreja - Juízo de Instância Criminal, referente à gravação do dia 20/06/2014, das 14:40:14 às 15:02:55:
Minuto 1:47 (segue-se a transcrição de parte do referido depoimento, que aqui omitimos, por desnecessária).
7. Para prova dos factos n° 5 a 14° considerou o tribunal a quo que: "É certo que não foi prestado nenhum depoimento a relatar que os arguidos foram vistos a entrar ou a sair das duas residências referidas" "No entanto, na ocasião em que ocorreram os furtos, ou seja, em Dezembro e Janeiro, os arguidos relacionavam-se e foram vistos por várias vezes juntos e em local próximo até de uma residência onde ocorreu um dos furtos." "Os mesmos deslocaram-se ainda a lojas que se dedicam à compra de artigos em ouro usado e procederam à venda de artigos em ouro, sendo que posteriormente foi detetado que os mesmos pertenciam aos ofendidos" "Assim sendo e não tendo os arguidos apresentado justificação para a posse dos artigos em ouro e tendo em atenção que alguns desses artigos se encontravam personalizados, dúvidas não existem de que os arguidos procederam da forma descrita para a sua obtenção, sendo que posteriormente procederam à sua venda, o que fizeram de comum acordo. "- pág. 15, 2° parágrafo e seguintes do douto Acórdão.
8. Ora, não é aos arguidos que cabe o ónus de provar que os objetos furtados estavam na sua posse por motivo que não o da co-autoria nos furtos, é sobre a acusação que recai o ónus de provar o contrário e na dúvida não se deve condenar mas sim absolver.
9. Como é que o tribunal a quo chega à conclusão de que os arguidos C… e B… venderam o ouro de comum acordo?
10. Aliás, a arguida D… - que foi absolvida - também foi vista a acompanhar os arguidos C… e B…, quando estes entraram na L…, só que a D… ficou cá fora.
11. É apenas o facto de a arguida não ter entrado dentro da ourivesaria que é determinante para a sua absolvição, no entanto, entendemos que o facto de o arguido B… ter entrado dentro dos estabelecimentos de compra e venda de ouro permite concluir - pelas regras da experiência - ter este arguido um comportamento mais consentâneo com o desconhecimento da proveniência ilícita dos objetos de ouro do que o comportamento da arguida D….
12. Deveria o douto Acórdão fundamentar devidamente o motivo pelo qual teve dois pesos e duas medidas.
13. Mais, o facto de o arguido B… estar a acompanhar o arguido C… ou até mesmo a vender ouro (o que em nossa opinião não se provou) dentro dos estabelecimento de compra e venda de ouro não permite, por si só, concluir pela prática dos furtos pelo quais este arguido foi efetivamente condenado.
14. Aliás, o acórdão sob recurso e em relação à arguida D… que também foi vista a acompanhar os arguidos B… e C…, que só não entrou nos estabelecimentos de venda de ouro, mas ficou cá fora num dessas vendas, absolveu esta arguida precisamente porque entendeu que em relação à D… não foi feita qualquer prova para além das circunstâncias já referidas.
15. O princípio da livre apreciação da prova do artigo 127° do C.P.P. não se traduz num poder discricionário e sem qualquer hipótese de controlo, traduz-se no poder do tribunal, face a toda a prova produzida, formar a sua convicção num determinado sentido e não noutro, mas de tal forma que o raciocínio feito seja claro e percetível para quem lê a decisão.
16. Ora, na decisão da qual se recorre não se percebe de forma lógica e objetiva o motivo pelo qual o tribunal decide condenar o arguido B…, atribuindo-lhe ações que não resultaram minimamente provadas.
17. Não foi afastada - para além de toda a dúvida razoável - a possibilidade de o arguido B… não saber da proveniência ilícita dos objectos que o C… vendeu.
18. e, mesmo que o arguido B… tivesse vendido algum objeto furtado, a questão a resolver é se esse facto, por si só, seria suficiente para concluir, para além de toda a dúvida razoável, que tenha sido ele o autor dos furtos, pois esta possibilidade não é mais do que uma de entre várias possíveis e, ainda para mais, é a possibilidade mais gravosa para o arguido.
19. E, como o princípio estruturante do processo penal exige um juízo de certeza e não uma mera probabilidade, na falta deste juízo de certeza vale o principio de presunção de inocência do arguido e a regra in dúbio pro reo - artigo 32° da CRP.
20. O arguido foi condenado com base na prova indiciária, que é uma prova indireta, através da qual se infere, por meio de raciocínio alicerçado nas regras de experiência comum ou da ciência ou da técnica, o facto que se quer provar.
21. Para dar solidez à prova indiciária é preciso afastar todas as possibilidades menos uma, para não colidir com o princípio constitucional in dubio pro reo enquanto expressão do princípio da presunção de inocência.
22. Como dispõe o artigo 127° do C.P.P., a prova é apreciada "segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".
23. E "são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei" - artigo 125° do C.P.P. - nelas incluídas as presunções judiciais, ou seja, "as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido" - artigo 349° do C. Civil.
24. Mas a produção da prova não é uma operação limitada a um único meio de prova, há que ter em conta os vários contributos probatórios para se atingir a verdade judicial que se pretende que seja a verdade material - tem de haver uma certeza jurídica baseada numa sólida produção de prova.
25. Ora, a prova por relacionação entre um facto desconhecido e outro que se pretende conhecer é um indício provável.
26. Além de que, como já se disse, a presunção não pode colidir com o principio constitucional in dubio pro reo.
27. Aplicar apenas as presunções para apurar a prática dos crimes de furto, neste caso concreto, violou o princípio in dubio pro reo, pois o Tribunal não podia eliminar essa dúvida razoável quanto ao arguido ter praticado factos subsumíveis a esse tipo de crime, deveria ter tido dúvidas acerca dessa intenção, por se tratar de uma dúvida insanável e, não obstante esta dúvida, decidiu-se condenar o arguido.
28. O principio in dubio pro reo é uma emanação do princípio da presunção de inocência e surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo que um non liquet na questão da prova seja sempre valorado a favor do arguido.
29. Pelo que o douto Acórdão enferma do vício do artigo 410, n° 2, alíneas a) e c) do C.P.P., por violação do principio da livre apreciação da prova consignado no artigo 127° do C.P.P. e violou o principio in dubio pro reo, consagrado no artigo 32 da C.R.P.”.

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Admitidos os recursos (despacho a fls. 1429) e notificados os sujeitos processuais por eles afectados, o Ministério Público veio apresentar resposta à respectiva motivação, concluindo que o acórdão recorrido deve ser confirmado “nos seus exactos termos”.
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Ordenada a subida dos autos ao tribunal de recurso, e já nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, emitiu douto parecer em que, depois de se debruçar sobre as questões suscitadas pelos recorrentes, concluiu que nenhum dos recursos merece provimento.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, sem resposta dos recorrentes.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II Fundamentação
São as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[2] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
Sendo uma síntese das razões do(s) pedido(s), as conclusões não podem apresentar-se como uma mera reprodução da motivação.
Não pode dizer-se que as conclusões dos recursos respeitam aquela exigência de serem proposições sintéticas e, no caso do recurso do recorrente B…, isso está bem patente nas “conclusões” 5.ª e 6.ª, em que são transcritos extensos excertos das declarações do arguido C… e do depoimento da testemunha F….
Em bom rigor, impunha-se um convite aos recorrentes para apresentarem conclusões que satisfaçam as exigências legais, mas visando estas (as conclusões), em primeira linha, habilitar o tribunal superior a conhecer as razões (de facto e de direito) da discordância dos recorrentes relativamente à decisão recorrida, a indicação especificada dos fundamentos do recurso tem, também, uma função garantística: que seja o recorrente a seleccionar as questões que pretende sejam examinadas e decididas, e não que se deixe ao livre arbítrio do tribunal essa selecção. Por isso temos entendido e, na prática, repetidamente seguido o entendimento de que, quando as razões da discordância do recorrente sejam facilmente identificáveis, há que ter alguma maleabilidade na apreciação do cumprimento das mencionadas exigências legais.
Na sua essencialidade, as questões suscitadas pelos recorrentes são as mesmas e idênticos são os argumentos que esgrimem.
Ambos impugnam a decisão sobre matéria de facto e fazem-no pelas duas vias legalmente possíveis: invocando um dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal e erro de julgamento, por incorrecta apreciação e valoração da prova.
Neste âmbito, seguindo a linha argumentativa habitual em casos idênticos, imputam ao tribunal a violação de vários princípios: da livre apreciação da prova, da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Ambos impugnam a decisão em matéria de direito, mas não explicitam as razões da sua discordância. A ideia que transparece da motivação é a de que a sua tese resume-se ao óbvio: a considerar-se não provado nenhum dos factos que lhes são imputados, como defendem, não podem considerar-se preenchidos os elementos constitutivos dos crimes de furto por que foram condenados.
Por último, insurgem-se os recorrentes contra a medida das penas aplicadas, que consideram excessivas.
Assim, as questões que os recorrentes submetem à consideração do tribunal de recurso e que iremos, de seguida, apreciar e decidir podem ser assim enunciadas:
● se o acórdão recorrido está afectado por algum vício decisório, nomeadamente por erro notório na apreciação da prova;
● se tribunal recorrido incorreu erro de julgamento em matéria de facto, com violação dos princípios da livre apreciação da prova, da presunção de inocência e do in dubio pro reo;
● se é correcto o enquadramento jurídico-penal dos factos;
● se foram correctamente doseadas as penas aplicadas.
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Delimitado o objecto do recurso, para uma correcta decisão das questões identificadas, é fundamental conhecer a factualidade em que assentam as condenações proferidas:
Factos provados
1. No dia 24 de Outubro de 2012, entre as 20h30 e as 7h30, o arguido C… decidiu assaltar a habitação sita na Rua …, n° .., no …, pertença da ofendida E….
2. Para esse efeito, deslocou-se para o local e através de chave falsa, conseguiu introduzir-se na habitação supra mencionada.-
3. Do local onde se encontravam, o arguido retirou diversas peças em ouro, nomeadamente:
- Um par de brincos com a imagem do tio da ofendida
- Uma aliança em ouro
- Um anel em ouro com pedra de diamante
- Uma carteira com documentos e cartão multibanco,
Tudo no valor de sensivelmente 500,91.
4. Na posse dos referidos objectos, o arguido abandonou o local, levando-os consigo, tendo o arguido diligenciado pela venda do ouro retirado da habitação sita na Rua …, n.º .., no …, numa loja em Viseu.
5. No dia 28 de Dezembro de 2012, entre as 12h00 e as 17h00, os arguidos B… e C… decidiram assaltar a habitação pertencente a H…, sita na …, em … com o intuito de se apropriarem de dinheiro ou objectos de valor que ali encontrassem.
6. Em execução de tal propósito, os arguidos subiram ao muro que ladeia tal habitação, após o que se introduziram no seu interior através da janela de casa de banho.
7. Dos locais onde se encontravam, os arguidos retiraram:
- TV Lcd marca Crown no valor de 169€
- Duas peças em prata cujas características não foi possível apurar
- 2 fios em ouro cujas características não foi possível apurar
tudo com o valor patrimonial não concretamente apurado, mas superior a uma UC.
8. Na posse dos referidos objectos, os arguidos abandonaram o local, levando-os consigo.
9. De igual modo, no dia 1 de Janeiro de 2013, entre as 12h50 e as 17h55, os arguidos B… e C… decidiram assaltar a residência sita na Rua …, n.º ., em …, com o intuito de se apropriarem de dinheiro ou objectos de valor que ali encontrassem.
10. Em execução de tal propósito, os arguidos subiram ao muro que ladeia tal habitação, após o que partiram o vidro da cozinha aí existente e por aí se introduziram no seu interior.
11. Dos locais onde se encontravam, os arguidos retiraram:
- Uma medalha em ouro com a imagem de Nossa Senhora com uma argola partida.
- Uma aliança de casamento em ouro com a inscrição "M… 13-10-68".
- Um brinco em ouro de criança com brilhante.
- Um anel de noivado em ouro branco com uma pérola e um brilhante.
- Um colar de prata dourada com pérolas e pulseira igual
- Um colar em terço com pérolas e medalha em forma de cruz com inscrição "P…".
- Um alfinete em prata e ouro em forma rectangular e um em forma oval.
- Um relógio de marca "Timex" em cor dourada e branca, de senhora.
- Uma medalha em ouro com madrepérola.
- Uma medalha em ouro trabalhada com fundo azul.
- Um alfinete com tons de verde-escuro e dourado trabalhado.
- Um par de brincos redondos de mola em verde.
tudo com o valor patrimonial não concretamente apurado, mas superior a uma UC.
12. Na posse dos referidos objectos, os arguidos abandonaram o local, levando-os consigo.
13. Os arguidos B… e C… agiram do modo descrito, em conjugação de esforços e intentos, com o propósito de retirarem os objectos referidos e de os integrar no seu património e com o intuito de mais tarde os venderem, sabendo bem que não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade dos respectivos donos, os ora ofendidos.
14. Efectivamente, os arguidos dirigiram-se depois a lojas de compra e venda de Ouro, sitas em Estarreja, como por exemplo a "L…" e a "J…", onde procederam à venda do ouro furtado e que foi encontrado nessas mesmas lojas.
15. O arguido C… agiu do modo descrito, com o propósito de retirar os objectos referidos e existentes na casa da ofendida E… e de os integrar no seu património e com o intuito de mais tarde os vender, sabendo bem que tais bens não lhe pertenciam e que actuavam contra a vontade do respectivo dono.
16. O arguido B… encontra-se em liberdade condicional, tendo sido condenado por factos da mesma natureza.
17. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.

Mais se provou que:
18. O arguido C… tem averbado no seu certificado de registo criminal as seguintes condenações:
- Por factos praticados em 11.05.2011 foi o arguido condenado por decisão proferida em 11.05.2011, transitada em julgado em 17.06.2011, como autor de um crime de condução sem habilitação legal, tendo sido o arguido condenado em pena de multa.
- Por factos praticados em 3.07.2011 foi o arguido condenado por decisão proferida em 14.07.2011, transitada em julgado em 30.09.2011, como autor de um crime de condução sem habilitação legal, tendo o arguido sido condenado em pena de multa.
- Por factos praticados em 26.04.2009, 13.03.2009, 4.2009 e 29.03.2009, foi o arguido condenado por decisão proferida em 30.01.2012, transitada em julgado em 14.11.2013, como autor de um crime de roubo, três crimes de furto qualificado e um crime de introdução em lugar vedado ao público, na pena única de 4 anos e 8 meses de prisão.
- Por factos praticados em 2011, foi o arguido condenado por decisão proferida em 15.10.2012, transitada em julgado em 18.09.2013, como autor de um crime de denúncia caluniosa, tendo sido condenado em pena de multa.
- Por factos praticados em 22.03.2011 e 6.03.2011 foi o arguido condenado por decisão proferida em 10.04.2013, transitada em julgado em 11.12.2013, como autor de dois crimes de roubo, tendo sido condenado na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, com sujeição a regime de prova.
- Por factos praticados em 24.10.2012, foi o arguido condenado por decisão proferida em 4.06.2013, transitada em julgado em 24.06.2013, como autor de um crime de condução sem habilitação legal, tendo sido condenado em pena de multa.
- Por factos praticados em 26.10.2013, foi o arguido condenado por decisão proferida em 15.11.2013, transitada em julgado em 16.12.2013, como autor de um crime de condução sem habilitação legal, tendo sido condenado na pena de 6 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 1 ano, com sujeição a regime de prova,
19. O arguido B… tem averbado no seu certificado de registo criminal as seguintes condenações:
- Por factos praticados em 17.06.2005, 9.2005, 8.10.2005, 20.12.2005, e 29.12.2005, foi o arguido condenado por decisão proferida em 26.01.2007, transitada em julgado em 12.02.2007, como autor de crime de ofensa à integridade física simples; quatro crimes de roubo, um crime de furto e de um crime de apropriação ilegítima de coisa achada, tendo o arguido sido condenado na pena única de 5 anos de prisão.
- Por factos praticados em 10.04.2007, foi o arguido condenado por decisão proferida em 12.11.2008, transitada em julgado em 12.12.2008, como autor de um crime de furto qualificado, tendo sido condenado na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, a qual foi suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo.
- Por factos praticados em 1.01.2007, foi o arguido condenado por decisão proferida em 22.05.2009, transitada em julgado em 22.06.2009, como autor de um crime de evasão, tendo sido condenado na pena de 7 meses de prisão.
- Por factos praticados em 21.03.2003, foi o arguido condenado por decisão proferida em 29.07.2009, transitada em julgado em 1.10.2009, como autor de um crime de roubo tentado; um crime de furto qualificado tentado e de um crime de ofensa à integridade física simples, tendo sido condenado na pena única de 3 anos de prisão.
20. A arguida D… tem antecedentes criminais pela prática de crime de tráfico de estupefacientes, condução sem habilitação legal, ofensa à integridade física simples crime de emissão de cheque sem provisão, crime de sequestro e Lenocínio e de crime de detenção de arma proibida.
21. De acordo com o teor do relatório social junto aos autos do arguido C… "O arguido é C… é o quinto elemento de uma fratria de oito, sendo fruto de um relacionamento ocasional da mãe com um indivíduo que não veio a assumir a paternidade. Nos primeiros anos de vida foi enquadrado no agregado da bisavó e tia-bisavó, até ao falecimento desta última, teria 4 anos de idade. Passou na altura a integrar o agregado de uma madrinha de um dos irmãos a quem viria mais tarde a ser atribuída a sua tutela pelo Tribunal Judicial de Viseu. Com a mãe manteve contactos com periodicidade variável, não só porque esta não o procurava, mas porque tem registado períodos de reclusão (de 1997-2001 e de 2007 em diante). Também com os irmãos os contactos foram intermitentes. O seu percurso escolar foi regular até ter completado o 1 ° ciclo do ensino básico. Na transição para o 2° ciclo começou a registar decréscimo no rendimento escolar e uma crescente instabilidade comportamental. A partir dos 13-14 anos agravaram-se os problemas de relacionamento interpessoal com pares e agentes educativos, com recurso habitual a agressões verbais e físicas e frequentes atitudes de indisciplina, que originaram várias participações e suspensão das actividades lectivas. O processo de desenvolvimento do arguido tinha decorrido de formal globalmente ajustada no contexto da família de acolhimento até 2007, altura em que a par da problemática manifestada em contexto escolar, começou a evidenciar problemas de integração na família, traduzidos em incumprimento das orientações, atitudes de desrespeito e desobediência para com as figuras parentais e furto de objectos em casa (que o arguido explica como reacção à reclusão da mãe). Em 2008 esta família comunicou ao tribunal a sua indisponibilidade para continuar a assumir a guardado arguido. A partir de então a sua vivência passou a apresentar ainda maior instabilidade pese emboras as tentativas realizadas em sede de processo de promoção e protecção para travar o comportamento pré-delinquencial que vinha adoptando, os quais passaram por duas institucionalizações e colocação numa família. O insucesso destas intervenções aliado à prática de ilícitos deram origem a processos tutelares educativos, sendo que em 07/05/2009 C… deu entrada no Q… (Porto) para cumprimento de medida cautelar de guarda em regime fechado. Mais tarde foi-lhe aplicada medida de internamento que cumpriu até 06/08/2010, tendo concluído o 9° ano através de curso …. Quando saiu integrou temporariamente o agregado de uma irmã, S…, residente em …. Na data da prática dos factos o arguido refere que vivia sozinho, num quarto arrendado na Rua … em Viseu. Encetou entretanto uma relação afectiva com T…, 28 anos, com quem passou a coabitar em Dezembro 2012. Esta é mãe de um menor de 5 anos e funcionária no U… de Viseu. Afirma que estava a trabalhar como segurança em bares desde o início de 2012, pelo que tinha recursos suficientes para se sustentar. Por vezes ia o Algarve prestar idênticos serviços num bar do mesmo patrão. Foi entretanto preso preventivamente em 24/01/2013 à ordem dos presentes autos e libertado em17/07/2013, tendo retomado a relação com a companheira. O arguido retomou entretanto o seu trabalho como segurança em bares em Viseu, actividade que manteve até ser novamente preso, em 08/11/2013, à ordem do Proc. 374/09.8PBVIS (condenado numa pena de 4 anos e 8 meses de prisão). A sua permanência na EP Guarda, onde se encontra desde 02/12/2013 tem sido globalmente adequada. De momento não se encontra ocupado. Recebe visitas da companheira com quem contraiu matrimónio civil em 26/02/2014. (...) EP também se encontra um irmão do recluso, V…. O arguido denota alguma inconformidade face ao teor da acusação de que é alvo nos presentes autos embora reconheça algum envolvimento na situação, considerando ter-se deixado influenciar negativamente pela progenitora e companheiro desta. O arguido C… evidencia consciência da gravidade dos crimes de que vem acusado e alguma reflexão crítica em relação à sua conduta delituosa, não tanto no que se refere ao processo em apreço, mas em relação aos demais processos de que tem sido alvo."
22. De acordo com o teor do relatório social junto aos autos do arguido B… consta que "B… nasceu no seio de uma família de modesta condição socioeconómica, sendo constituída pelos pais e 6 irmãos. Aqueles vieram a separar-se, quando o arguido tinha poucos anos de vida, ficando o mesmo ao cuidado da mãe e dos irmãos mais velhos, já que o progenitor se desresponsabilizou completamente da educação e do apoio aos filhos. Neste contexto, o arguido foi assumindo de forma inconsistente os modelos educativos, tendo perpetrado o primeiro contacto como sistema de justiça, cerca dos 20 anos de idade. Enquanto jovem, o arguido frequentou a escolaridade, não concluindo o ensino obrigatório em idade própria (frequentou depois o 12° ano, já enquanto recluso no EP), revelando fraco aproveitamento e falta de assiduidade, acabando por abandonar a escola aos 16 anos. Desde aquela data, terá iniciado os consumos de estupefacientes, tendo, esta problemática, interferido no seu relacionamento familiar, especialmente com a progenitora. Exerceu actividade profissional como sucateiro/mecânico, com irregularidade, especialmente motivada pela problemática aditiva. Da primeira união afectiva com a companheira, W… (que culminou em ruptura), nasceu uma menor (X…), e dada a negligência familiar do casal, a mesma foi-lhes retirada pelo Tribunal de Menores, e entregue a uma família para adopção. Após o falecimento da progenitora, que veio ao correr há cerca de 10 anos, o arguido passou a residir com uma irmã (Y…).O arguido já foi condenado em várias penas, por crimes contra a propriedade, e após um período de liberdade condicional de uma pena de 7 anos e 6 meses, foi de novo recluído preventivamente no âmbito do presente processo, vindo a ser libertado, posteriormente, aguardando julgamento com termo de identidade e residência. O arguido reside junto da nova companheira, Z… (43 anos, empregada doméstica efectiva num empregador, auferindo €550,00 mensais), e de uma filha desta (11 anos, estudante), no centro da cidade de Aveiro. A família sobrevive graças ao vencimento fixo da companheira do arguido e os proventos do trabalho na agricultura e biscates da construção civil do arguido (em valores não fixos). O arguido manifesta uma atitude de preocupação relativamente a esta área, e, perspectiva manter-se na procura de trabalho fixo através do Centro de Emprego de Aveiro. O arguido continuava abstinente de consumos de estupefacientes, mantendo acompanhamento, com toma regular de metadona, no Centro de Respostas Integradas (CRI) de Aveiro. Segundo apurámos no meio urbano de grande densidade populacional que habita, o arguido não é conhecido, e não constará nos OPC"s, registos de contactos com as instâncias judiciais".
Factos não provados
1- No dia 24 de Outubro de 2012, entre as 20h30 e as 7h30, os arguidos D… e B… decidiram assaltar a habitação sita na Rua …, n° .., no …, pertença da ofendida E….
2- Os arguidos D…, B… e C… para esse efeito deslocaram-se para o local usando o veículo marca Rover, modelo …, de propriedade da arguida AB….
3- Chegados ao local, os arguidos D… e B… através de chave falsa, conseguiram introduzir-se na habitação supra mencionada.
4- Os arguidos D… e B… do local onde se encontravam, retiraram diversas peças em ouro, nomeadamente:
Uma moeda de 5000 reis
Um par de brincos com a imagem do tio da ofendida
Uma aliança em ouro
Um anel em ouro com pedra de diamante
Uma carteira com documentos e cartão multibanco,

5- O arguido C… dessa residência retirou e levou consigo uma moeda de 5000 reis.

6- Na posse dos referidos objectos, que colocaram dentro de sacos de plástico, os arguidos D… e B… abandonaram o local, levando-os consigo.

7- No dia 28 de Dezembro de 2012, entre as 12h00 e as 17h00, a arguida D… decidiu assaltar a habitação pertencente a H…, sita na …, em … com o intuito de se apropriar de dinheiro ou objectos de valor que ali encontrasse.

8- Em execução de tal propósito, a arguida subiu ao muro que ladeia tal habitação, após o que se introduziu no seu interior através da janela de casa de banho.

9- Dos locais onde se encontravam, a arguida D… retirou:

TV Lcd marca Crown no valor de 169€

Duas peças em prata cujas características não foi possível apurar

2 fios em ouro cujas características não foi possível apurar

10- Na posse dos referidos objectos, que colocou dentro de sacos de plástico, a arguida abandonou o local, levando-os consigo.

11- De igual modo, no dia 1 de Janeiro de 2013, entre as 12h50 e as 17h55, a arguida D… decidiu assaltar a residência sita na Rua …, n° ., em …, com o intuito de se apropriar de dinheiro ou objectos de valor que ali encontrasse.

12- Em execução de tal propósito, a arguida subiu ao muro que ladeia tal habitação, após o que partiu o vidro da cozinha aí existente e por aí se introduziu no seu interior.

13- Dos locais onde se encontravam, a arguida retirou:

-Uma medalha em ouro com a imagem de Nossa Senhora com uma argola partida.
- Uma aliança de casamento em ouro com a inscrição "M… 13-10-68".
- Um brinco em ouro de criança com brilhante.
- Um anel de noivado em ouro branco com uma pérola e um brilhante.
- Um colar de prata dourada com pérolas e pulseira igual
- Um colar em terço com pérolas e medalha em forma de cruz com inscrição "P…".
- Um alfinete em prata e ouro em forma rectangular e um forma oval.
- Um relógio de marca "Timex" em cor dourada e branca, de senhora.
- Uma medalha em ouro com madrepérola.
- Uma medalha em ouro trabalhada com fundo azul.
- Um alfinete com tons de verde-escuro e dourado trabalhado.
- Um par de brincos redondos de mola em verde.

14- Na posse dos referidos objectos, que colocou dentro de sacos de plástico, a arguida abandonou o local, levando-os consigo.

15- A arguida D… agiu do modo descrito, em conjugação de esforços e intentos, com os restantes arguidos, com o propósito de retirar os objectos referidos e de os integrar no seu património e o intuito de mais tarde os vender, sabendo bem que não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade dos respectivos donos, os ora ofendidos.

16- A arguida D… dirigiu-se depois a lojas de compra e venda de Ouro, sitas em Estarreja, como por exemplo a "L…" e a "J…", onde procedeu à venda do ouro furtado.

17- No dia 17 de Janeiro de 2013, os arguidos L… e C… dirigiram-se ao estabelecimento comercial "AC…", sito em Estarreja e aproveitando o facto de a proprietária se ter ausentado, retiraram da caixa registadora a quantia de 150 euros.

18- Após, na posse do dinheiro, os arguidos puseram-se em fuga, usando para o efeito um velocípede.

19- Os arguidos não exercem qualquer actividade remunerada, fazendo da prática dos factos acima mencionados o seu modo de vida.

20- A arguida D… agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
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O alegado vício de erro notório na apreciação da prova.
Como já se assinalou, ambos os recorrentes vislumbram no acórdão recorrido o vício decisório de erro notório na apreciação da prova.
O recorrente C… afirma a existência desse vício porque “o tribunal a quo considerou indevidamente e, devido a erro na apreciação da prova testemunhal, nos termos do art. 410º, nº 2, c), do CPP estar demonstrada a prática, pelo Arguido C…, de três crimes de furto qualificado e, pelos quais, foi CONDENADO, quando, de facto, da prova realizada em audiência de discussão e julgamento não resultaram provados os pontos de facto impugnados que ficaram dados como provados no douto Acórdão Recorrido” (conclusão s)).
O recorrente C… vai mais longe e vê na decisão recorrida, não só o mesmo vício de erro notório na apreciação da prova, mas também a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (conclusão 29.ª), pois que “aplicar apenas as presunções para apurar a prática dos crimes de furto, neste caso concreto, violou o princípio in dubio pro reo, pois o Tribunal não podia eliminar essa dúvida razoável quanto ao arguido ter praticado factos subsumíveis a esse tipo de crime, deveria ter tido dúvidas acerca dessa intenção, por se tratar de uma dúvida insanável e, não obstante esta dúvida, decidiu-se condenar o arguido” (conclusão 27.ª).
Sendo patente o equívoco em que incorrem os recorrentes, importa, desde já, desfazê-lo, destacando alguns aspectos do regime legal.
O Código de Processo Penal, além de um regime específico de nulidades da sentença (artigos 374.º e 379.º), contém um regime jurídico de impugnação da decisão de facto (basicamente contido nos artigos 410.º e 412.º).
Desse normativo decorre, com meridiana clareza, que a impugnação da decisão sobre matéria de facto pode fazer-se por duas vias: invocando os vícios da sentença enunciados no citado n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal ou a existência de erro de julgamento, detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência de 1.ª instância[4].
Os vícios contemplados no n.º 2 do artigo 410.º do Cód. Proc. Penal são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, ou, como é afirmação recorrente, são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respectivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir, tanto ao nível da matéria de facto, como de direito.
Tais vícios (ou, como também são designados, erros-vícios) não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
Aqueles (vícios decisórios) examinam-se, indagam-se através da análise do texto da sentença; esta (a errada apreciação e valoração das provas), porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas, do que resulta a formulação de um juízo que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício não se estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto (cfr. acórdão do STJ, de 15.09.2010, www.dgsi.pt/jstj; Cons. Fernando Fróis).
O recorrente C…, ao afirmar que o vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º se traduz no erro na apreciação da prova testemunhal, não se ateve ao texto da decisão recorrida. Em boa verdade, o recorrente não concretiza onde vislumbra, no texto da decisão recorrida, o erro notório na apreciação da prova.
O mesmo sucede com o recorrente B… que, quiçá por ter a noção da sua sem razão, acrescenta o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, confundindo-o com a falta ou insuficiência da prova para a decisão de facto adoptada pelo tribunal, pois considera que este não ultrapassou “a dúvida razoável quanto ao arguido ter praticado factos subsumíveis a esse tipo de crime”.
O in dubio pro reo não é, propriamente, um princípio de direito probatório, mas uma regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos: se ao juiz se apresentam várias possibilidades sobre a conformação factual, sem poder fixar-se apenas numa delas, encontra-se ainda na incerteza, isto é, na dúvida. Impõe-se-lhe, então, que decida pro reum.
Porque respeita a matéria de facto e constitui uma regra fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, a sua violação gera, não qualquer dos referidos vícios decisórios, mas o erro de julgamento em matéria de facto, por incorrecta apreciação da prova.
Mas a circunstância de os recorrentes não terem concretizado, com base no texto do acórdão recorrido, qualquer vício decisório não significa, necessariamente, que a sentença esteja isenta dessa anomalia e que essa questão fique, definitivamente, arrumada.
Se do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as máximas da experiência, resultar a existência de algum ou alguns desses vícios, cabe ao tribunal de recurso apreciá-los, pois são de conhecimento oficioso.
O tribunal deu como provado que foram os arguidos/recorrentes os autores dos furtos cometidos, em 24.10.2012, em 28.12.2012 e em 01.01.2013, nas casas de habitação, respectivamente, de E…, H… e M… e para assim concluir baseou-se em prova indirecta ou por indícios, pois foi com base no facto de os arguidos, imediatamente a seguir à execução dos actos de subtracção dos bens (quase todos artefactos em ouro), os terem na sua posse e terem procedido à sua venda em estabelecimentos comerciais de compra e venda de ouro (em dois dos casos, estabelecimentos localizados na mesma zona onde foram cometidos os furtos) que o tribunal inferiu essa (co)autoria.
Poderá afirmar-se que, ao assim decidir com base nesses indícios, o tribunal incorreu em erro notório na apreciação da prova?
Notório é o erro indiscutível, perceptível pelo comum dos observadores, que é facilmente cognoscível pela generalidade das pessoas, de tal modo que não haja motivo para duvidar da sua ocorrência[5].
Há erro notório “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida” (acórdão do STJ, de 04.10.2001, CJ/Ac STJ, IX, T. III, 182)[6].
Em síntese, pode dizer-se que o “erro notório na apreciação da prova” é uma deficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação do homem médio.
A questão está, então, em saber se para o cidadão comum dotado de bom senso, capacidade de discernimento e de ponderação e da normal experiência de vida é logicamente insustentável, por manifestamente arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum, a inferência feita pelo tribunal de que foram os arguidos/recorrentes quem assaltou as casas de habitação de E…, H… e M… porque, imediatamente após os assaltos, eles estavam na posse de objectos em ouro, que venderam em estabelecimentos comerciais da zona, comprovadamente pertencentes aos ofendidos e a estes subtraídos.
Ora, cremos que ninguém ousará contestar que, para o homem médio a que se faz apelo, essa conclusão, não só não é inaceitável, como será a única logicamente aceitável.
O traço comum a estas invocações do vício decisório de erro notório na apreciação da prova é a pretensão (aliás frequente) dos recorrentes de contraporem a apreciação que fazem da prova e da sua visão sobre qual deveria ser o resultado do processo probatório à convicção que o tribunal de 1.ª instância formou sobre os factos na base da prova produzida, livremente apreciada segundo as regras da lógica e da experiência comum, invocando então o erro notório na apreciação da prova, mas estão a confundir os vícios decisórios (que são, essencialmente, vícios de raciocínio na apreciação das provas, que a simples leitura do texto da decisão evidencia) com o erro de julgamento, logicamente anterior.
Na realidade, os recorrentes manifestam a sua divergência ou discordância em relação à análise e à valoração das provas que o tribunal fez e consideram que a prova produzida, apreciada e valorada de acordo com os critérios que, na sua perspectiva, deviam ter prevalecido, levariam a que o resultado do processo probatório fosse outro no que tange à prova dos factos que lhes são imputados.
Divergência que é compreensível, pois os recorrentes não têm preocupações de objectividade e isenção na apreciação que fazem, mas não pode fundamentar a invocação deste, ou de qualquer outro, vício decisório.
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O alegado erro na apreciação e valoração da prova
Diferentemente do que acontece com a invocação dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, em que temos uma impugnação de âmbito restrito porque o recorrente tem de cingir-se ao texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, no erro de julgamento a apreciação alarga-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento dos ónus de especificação impostos pelos citados n.º 3 e 4 do art. 412.º do Cód. Proc. Penal.
O recorrente B… censura a decisão recorrida porque o tribunal teria feito uso incorrecto do princípio da livre apreciação da prova, pois que na decisão recorrida “não se percebe de forma lógica e objetiva o motivo pelo qual o tribunal decide condenar o arguido B…, atribuindo-lhe ações que não resultaram minimamente provadas” (conclusão 16.ª).
Em termos simples e sintéticos, o princípio da livre apreciação da prova pretende exprimir a ideia de que no ordenamento jurídico que o acolhe, e particularmente no processo penal, não existe prova tarifada (portanto, não há regras de valoração probatória que vinculem o julgador, como acontecia no sistema da prova legal), pelo que, por regra, qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com a livre convicção do julgador.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g. por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só[8]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos de testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Mas a liberdade[9] do convencimento que conforma o modelo da livre apreciação não significa ausência de obstáculos ou limites na amplitude da actividade de investigação e valoração do juiz, que não é inteiramente livre de valorar, adquirir, admitir e escolher a prova.
A liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva[10].
Como salienta o Professor G. Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, 185), do que se trata é de uma “liberdade para a objectividade” (não a objectividade científica, sistemático-conceitual e abstracto-generalizante, mas antes uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodíctica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, e que se manifesta não em termos de intelecção, mas de convicção[11]), o mesmo é dizer, “por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”.
A convicção do julgador é, sempre e necessariamente, uma convicção pessoal, mas também “uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros” (J. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal, I, 1974, pág. 203).
Os limites da liberdade valorativa da prova no âmbito penal são as já mencionadas regras da lógica e da razão, as máximas da experiência e os conhecimentos técnicos e científicos.
Por isso é absolutamente fundamental que o juiz explique e fundamente a sua decisão e deve preocupar-se em ser claro, racional[12] e objectivo na motivação da sua decisão (e não escudar-se em meras impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação), de modo que se perceba o raciocínio seguido e este possa ser objecto de controlo, podendo considerar-se suficientemente motivadas as decisões “que se encontram racional e esclarecidamente fundadas, surgindo na sequência da exposição dos factos e do direito que foram previamente formulados pela acusação e pela defesa, possibilitando-se tanto a uma como à outra o controlo do juízo decisório”[13].
É este o entendimento há muito sedimentado no âmbito da jurisdição constitucional (cfr., por todos, o Acórdão n.º 1165/96, acessível em www.dgsi.pt) e na jurisprudência do STJ (cfr., entre muitos outros, o acórdão de 12.05.1999, Rec. n.º 406/99, 3.ª secção, parcialmente reproduzido e comentado por Eduardo Maia Costa na Revista do Ministério Público n.º 78, 144 e segs.).
Jurisprudência que se revela em perfeita sintonia com a doutrina que vem dando particular relevo e atenção ao tema da fundamentação probatória da decisão penal[14].
Como se pode verificar pela leitura da fundamentação probatória da sentença em crise, o tribunal alicerçou e objectivou a sua livre convicção em meios de prova pessoal e documental e explicitou as razões por que lhe mereceram crédito os depoimentos das testemunhas. Aliás, os recorrentes não questionam a idoneidade e a credibilidade desses meios de prova. O que não aceitam é que, na ausência de prova directa, tais provas permitam a ilação de que foram eles os autores dos assaltos às casas de habitação dos ofendidos.
Não é difícil perceber as razões[15] de uma maior exigência de fundamentação quando a convicção do tribunal se alicerça em prova indiciária.
No entanto, o tribunal desenvencilhou-se satisfatoriamente dessa exigente tarefa, como se pode verificar pelos seguintes excertos da motivação probatória da decisão:
Quanto aos factos do dia 24.10.2012, depois da indicação dos meios de prova e das razões que levaram o tribunal a considerar, plenamente, provado que, nas circunstâncias descritas nos pontos 1 e 2 do elenco de factos provados, a casa de habitação de H… foi assaltada e de lá foram subtraídos, sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, vários objectos em ouro que, três dias depois, foram vendidos num estabelecimento comercial (“AD…”) por G… a pedido do arguido C… que, para o efeito, lhos entregou, discorreu-se assim:
“Ora, conjugando as características e valor dos bens furtados do interior da casa da ofendida E… e a data em que tal ocorreu e conjugando essas circunstâncias com o facto de decorridos poucos dias a testemunha G… ter procedido à venda de pelo menos alguns desses artigos, dúvidas não existem de que foi o arguido C… a pessoa que entrou na casa da ofendida e que do interior da mesma retirou os objectos em ouro, levando os mesmos consigo.
Efectivamente a testemunha G… declarou sem manifestar qualquer dúvida que foi o arguido C… que lhe entregou os objectos para a mesma vender.
O arguido C… admitiu que foi ele a pessoa que entregou os artigos em ouro à testemunha G… e para que a mesma procedesse à sua venda.
Ora o arguido C… não justificou de que modo tais objectos chegaram à sua posse, não existindo dúvidas de que os mesmos foram retirados da casa da ofendida contra a vontade da mesma.
O arguido declarou que desconhecia que os artigos eram furtados.
No entanto e atentas as características dos bens, concretamente atendendo a que no lote de artigos furtados se encontravam uns brincos, com a fotografia do tio da ofendida, não se apresenta credível a versão do arguido.
Assim e apelando às regras da experiência comum resulta que só poderá ter sido o arguido a pessoa que praticou os factos em análise”.
Relativamente aos factos do dia 28.12.2012, depois de idêntica indicação dos meios de prova em que se baseou para concluir, sem qualquer dúvida, que, nessa data, a casa de habitação de H… foi assaltada e os assaltantes de lá subtraíram, sem o conhecimento e contra a vontade da respectiva proprietária, vários objectos em ouro que, no mesmo dia, foram vendidos num estabelecimento comercial de Estarreja pelos arguidos C… e B…, que os tinham em seu poder, o tribunal fez o seguinte juízo de inferência:
“Ora, tendo os arguidos em seu poder um fio em ouro, o qual foi subtraído da casa da ofendida nas condições indicadas e sem o consentimento da legítima proprietária e tendo os arguidos diligenciado pela venda desse fio em ouro, no próprio dia do furto, não resultam dúvidas de que os arguidos praticaram em co-autoria o crime de furto de que estavam acusados.
Os arguidos para o efeito tiveram de aceder ao interior da casa da ofendida, e do interior da mesma retiraram os objectos indicados e com o valor indicado, sendo que os arguidos em conjunto diligenciaram pela venda e no próprio dia do furto, de um dos objectos furtados, o qual foi apreendido e reconhecido posteriormente pela proprietária.
Pelo exposto, o tribunal deu como provada a intervenção dos dois arguidos nesses factos”.
Por último, sobre os factos do dia 01.01.2013, também ficou, inequivocamente, demonstrado pela prova produzida que, nessa data, a casa de habitação de M… foi assaltada e os assaltantes de lá subtraíram, sem o conhecimento e contra a vontade do respectivo dono, vários objectos em ouro e, logo no dia seguinte, alguns desses objectos foram vendidos em estabelecimentos comerciais de Estarreja pelos arguidos C… e B…, que os tinham em seu poder, e para estabelecer a ligação entre esses factos e a conclusão de que foram estes arguidos quem os subtraiu da casa de habitação do ofendido, o tribunal ponderou:
“Como foi admitido pela arguida D… e pelo arguido C…, a D… tinha uma relação de natureza afectiva como o B… e o arguido C… é seu filho.
Ou seja, da conjugação de toda esta factualidade, dúvidas não existem de que os arguidos de comum acordo e na execução de um plano comum, decidiram deslocar-se a casa da testemunha M… para se apoderarem de objectos de valor, o que vieram a realizar. Os arguidos na posse desses objectos procederam depois à venda dos artigos que furtaram.
Cumpre referir que para a verificação de uma actuação em co-autoria não se exige que os vários participantes executem todos os actos necessários à realização de um objectivo, neste caso o furto dos objectos que estavam no interior da residência da vítima. O que é necessário é que exista esse acordo, que haja a adesão de todos os participantes a esse acordo e que todos actuem com a vontade de o concretizar, sendo que a sua participação terá que se revelar essencial à concretização do plano que foi traçado.
É certo que não foi prestado nenhum depoimento a relatar que os arguidos foram vistos a entrar ou a sair das duas residências referidas.
No entanto, na ocasião em que ocorreram os furtos, ou seja, em Dezembro e Janeiro, os arguidos relacionavam-se e foram vistos por várias vezes juntos e em local próximo até de uma residência onde ocorreu um dos furtos.
Os mesmos deslocaram-se ainda a lojas que se dedicam à compra de artigos em ouro usado e procederam à venda de artigos em ouro, sendo que posteriormente foi detectado que os mesmos pertenciam aos ofendidos.
Assim sendo e não tendo os arguidos apresentado justificação para a posse dos artigos em ouro e tendo em atenção que alguns desses artigos se encontravam personalizados, dúvidas não existem de que os arguidos procederam da forma descrita para a sua obtenção, sendo que posteriormente procederam à sua venda, o que fizeram de comum acordo”.
Como, facilmente, se pode verificar, é cristalina a explicitação feita pelo tribunal das razões da sua decisão.
Os recorrentes insurgem-se contra esta avaliação da prova feita na 1.ª instância, mas uma coisa é apreciação arbitrária, caprichosa ou não motivada da prova, que, manifestamente, aqui não ocorreu; outra coisa, bem diferente, é a divergência em relação à apreciação e valoração da prova efectuada pelo tribunal, sobretudo quanto ao raciocínio inferencial sobre a autoria dos assaltos às residências, que é o que, no caso, se verifica.
Mais adiante veremos se são atendíveis as razões dessa discordância, ao ponto de imporem uma decisão diversa da recorrida.
*
Entre o princípio da livre apreciação da prova e o princípio basilar da presunção de inocência - de que o “in dubio pro reo” é uma das suas várias dimensões - existe uma estreita conexão.
Quando se fala em presunção de inocência não se está a referir a uma presunção em sentido técnico-jurídico, mas antes a um princípio com importantes implicações e que é estruturante do processo penal.
Sendo, também, um comando dirigido ao legislador ordinário a impor-lhe que as normas que definem ilícitos - penais, disciplinares, contra-ordenacionais ou outros - e estatuem sanções para que não consagre presunções de culpa, o que aqui importa aqui destacar é a dimensão de comando dirigido aos sujeitos processuais, sobretudo ao julgador.
Com efeito, a presunção de inocência é um princípio - fundamental num Estado de Direito democrático - cuja função é, sobretudo, a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova[16] [17].
É uma garantia subjectiva ou, como preferem alguns autores[18], um direito subjectivo público.
Visando o processo penal apurar se, no caso concreto, estão verificados os pressupostos para que o Estado exerça o seu jus puniendi através da aplicação de uma sanção penal, o princípio da presunção de inocência garante que a condenação só será proferida se e quando se fizer prova inequívoca, através de meios legalmente admissíveis e válidos, de que o acusado praticou os factos que lhe são imputados. Na falta dessa prova inequívoca, o acusado deve ser absolvido[19].
Porque na dúvida sobre a culpa do arguido (um non liquet em matéria de prova dos factos) se impõe a sua absolvição, o princípio da presunção de inocência é identificado por alguns autores com o in dubio pro reo.
O “in dubio pro reo”, sendo, como já dito, uma das várias dimensões do princípio basilar da presunção de inocência, configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos[20], ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Um non liquet sobre um facto da acusação recai materialmente sobre o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, pois que sobre o arguido não impende qualquer dever de colaboração na descoberta da verdade[21].
Assim, um primeiro aspecto cumpre realçar: o in dubio pro reo só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa.
O segundo aspecto a assinalar é o de que não é qualquer dúvida que há-de levar o tribunal a decidir “pro reo”. Tem de ser uma dúvida razoável, objectiva, que impeça a convicção do tribunal.
Não é razoável, porque meramente subjectiva, a dúvida que brota como efeito de uma consciência indefinidamente hesitante ou exasperadamente escrupulosa, ou até de um deficiente estudo do material probatório.
O terceiro ponto que se nos afigura curial aqui pôr em relevo é o seguinte: não se trata aqui de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido devia ter tido, mas não teve, pois o “in dubio” não se aplica quando o tribunal não ficou na dúvida sobre qualquer facto. Ou seja, o princípio “in dúbio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente[22] sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e não tendo esse juízo factual por fundamento uma inversão do ónus da prova[23] (inversão constitucionalmente proibida por força da presunção de inocência), antes resultando do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República), fica afastado o princípio da presunção de inocência e o in dubio pro reo (cfr. acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).
Sendo o in dubio pro reo imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar em favor do arguido/réu quando, produzida a prova, não estiver seguro sobre a realidade de um ou mais factos, como poderemos saber se, num caso concreto, a regra foi violada?
Tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal, a eventual violação do in dubio pro reo há-de resultar, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há-de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto[24].
Ao contrário do que afirma o recorrente C… (conclusão o)), do texto do acórdão não decorre a dúvida sobre a participação dos arguidos na prática dos factos que consubstanciam os referidos crimes de furto.
Resulta bem claro do texto da decisão recorrida que o tribunal não teve quaisquer dúvidas de que, por um lado, os factos narrados na acusação (ou seja, os assaltos às casas de habitação de E…, H… e de M…) traduzem a realidade, aconteceram mesmo e, por outro, que, em dois deles, intervieram, como co-autores materiais, os arguidos C… e B… e no terceiro, como autor material, o arguido C…, e explicitou, de forma perfeitamente perceptível para quem o leia, as razões dessa firme convicção.
Se o tribunal recorrido, analisada e valorada a prova produzida, não ficou na dúvida em relação a qualquer facto, não pode dizer-se que, na dúvida, decidiu contra os arguidos, ou seja, não tem base de sustentação a imputação, feita pelos recorrentes, de violação do princípio da presunção de inocência e do “in dubio pro reo”.
Coisa diversa é saber se o tribunal a quo, em face do material probatório de que dispôs, devia ter ficado em estado de dúvida sobre os factos e se os arguidos os praticaram, se o resultado do processo probatório deveria ser uma dúvida insanável, o que nos remete para o processo de formação da convicção e para o erro na apreciação e valoração da prova.
O que pode, então, discutir-se em sede recursiva é se há algo a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação dessa convicção (“um procedimento cognoscitivo complexo que se desenvolve segundo directivas jurídicas e racionais e acaba num juízo racionalmente justificado”, nas palavras de Michele Taruffo, “La Prueba de los Hechos”, Ed. Trotta, Madrid, 2005, 69) e se pode considerar-se suficiente a fundamentação, ou se o tribunal errou na apreciação e valoração da prova produzida na audiência. Ou, como se expende no acórdão do STJ, de 14.03.2007, disponível em www.dgsi.pt (Cons. Santos Cabral), pode-se analisar um depoimento, um esclarecimento de um perito, as declarações de um arguido ou de um ofendido e outros meios de prova e, a partir daí, controlar o raciocínio indutivo efectuado, pois já não é essencial a imediação e do que se trata é de “uma questão de verosimilhança ou plausibilidade das conclusões contidas na sentença”.
Os recorrentes, está bem de ver, entendem que sim, que merece censura o processo decisório e ambos esgrimem o mesmo argumento: para uma condenação exige-se um juízo de certeza, e não de mera probabilidade, pelo que, na ausência daquele juízo, prevaleceria o princípio da presunção de inocência e o seu corolário que é o in dubio pro reo (conclusões cc) do recurso de C… e 19.ª do recurso de B…).
Em que termos é que o princípio da presunção de inocência obriga e limita a autoridade judiciária no processo de formação de convicção e de descoberta da verdade? Qual o grau de certeza exigível para que se dê como provado um facto?
A certeza da verdade é um ideal que deve ser perseguido em qualquer julgamento, mas a verdade que se logra alcançar num processo, devendo ser uma verdade lógica, racional, é sempre uma verdade aproximativa ou histórica e a certeza que se alcança é sempre a certeza possível, uma firme persuasão da verdade e nunca a certeza absoluta.
A prova de determinado facto não visa obter a certeza absoluta, irremovível da (sua) verificação, antes se reporta “apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador ou, o que vale por dizer, apenas aponta para a certeza relativa dos factos pretéritos da vida social, e não para a certeza absoluta do fenómeno de carácter científico” (A. Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, 116.º, pág. 339).
A verdade que se busca em processo penal não é uma verdade absoluta, ontológica que, como se sabe, é inalcançável, mas uma verdade histórico-empírica e processualmente válida.
Qualquer conceito de verdade é sempre condicionado por uma dose de contingência e de aproximação.
Michele Taruffo, referência incontornável nesta matéria, alude à verdade “como aproximação na reconstrução processual dos factos à sua realidade empírica e histórica”[25].
Na “verdade judicial” (tal como na verdade científica), “quando se afirma a «verdade» de uma ou várias proposições, a única coisa que se diz é que estas são (plausivelmente) verdadeiras pelo que sabemos sobre elas, ou seja, em relação ao conjunto de conhecimentos confirmados que delas possuímos” (Ferrajoli, citado por J.A. Mouraz Lopes, Ob. Cit., 44).
G. Marques da Silva (Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, p. 160, nota de pé de página) afirma que “o raciocínio do juiz conduz a uma decisão e não a uma verdade. A decisão expressa uma verdade provável. Nunca se tem a certeza que a verdade é obtida no processo. O que se obtém é, no máximo, um juízo de probabilidade, uma verdade provável”.
O mesmo autor (ob. cit., p. 161) faz notar que a lei processual não impõe a busca da verdade absoluta (inatingível) e é também por isso que as autoridades judiciárias, mormente o juiz, têm um poder limitado em matéria de produção de prova. Não só porque “o thema probandi vai sendo delimitado em cada fase processual”, mas também porque são limitados “os meios de prova admissíveis no processo, os métodos para a sua obtenção e o momento e forma da sua produção: a verdade obtida com tais limitações nos métodos e meios há-de ser por isso também apenas uma verdade histórico-prática, uma determinação humanamente objectiva de uma realidade humana”.
O julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além da dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada.
Afirmando que “para uma condenação exige-se um juízo de certeza, e não de mera probabilidade”, os recorrentes parece esquecerem que, “como todos os juízos históricos, o juízo de convicção do julgador da matéria de facto não é mais do que um juízo de probabilidades sobre a verdade ou falsidade de certas proposições. Quando o juiz dá como provado um determinado facto, isso significa, no nosso ordenamento jurídico, que, com os meios limitados à sua disposição e a imperfeição inerente à natureza humana, atingiu a «certeza subjectiva» da veracidade da correspondente afirmação de facto” (Margarida Lima Rego, Decisões em ambiente de incerteza: probabilidade e convicção na formação das decisões judiciais, Revista Julgar, n.º 21, Set/Dez de 2013, p. 121).
Tudo o que vimos de expor está, exemplarmente, sintetizado no sumário com que foi publicado o acórdão da Relação de Lisboa, de 13.02.2013 (Des. Carlos Almeida), acessível em www.dgsi-pt, e que, pela sua pertinência, cabe aqui reproduzir:
I - «Nas questões humanas (por oposição, diga-se, à matemática e à lógica) não pode haver certezas». E, mais do que isso, neste campo também não se pode pensar que é possível, sem mais, descobrir “a verdade”. «A verdade absoluta não pertence ao mundo das coisas humanas».
II - Ela não é alcançável devido às limitações próprias do ser humano, à quantidade e qualidade dos elementos de prova disponíveis em cada julgamento, às condicionantes de natureza temporal que rodeiam o processo judicial e mesmo à necessidade de nele salvaguardar outros valores relevantes para a sociedade que se encontram consagrados na ordem jurídica, os quais, em alguns casos, têm natureza contra-epistémica.
III - Isto não significa, no entanto, que o objectivo do tribunal não seja o de procurar chegar o mais perto possível da verdade, o de procurar conhecer, até onde isso for possível, a realidade.
IV - Mas a reconstrução que o tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados irrepetíveis assenta essencialmente na utilização de raciocínios indutivos que, pela sua própria natureza, apenas propiciam conclusões prováveis. Mais ou menos prováveis, mas nunca conclusões necessárias como são as que resultam da utilização de raciocínios dedutivos, cujo campo de aplicação no domínio da prova é meramente marginal.
V - Chegamos, assim, à conclusão que o cerne da prova penal assenta em juízos de probabilidade e que a obtenção da verdade é, em rigor, um objectivo inalcançável, não tendo por isso o juiz fundamento racional para afirmar a certeza das suas convicções sobre os factos.
VI - A decisão de considerar provado um facto depende do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem.
VII - Esta exigência de confirmação impõe a definição de um “standard” de prova de natureza objectiva, que seja controlável por terceiros e que respeite as valorações da sociedade quanto ao risco de erro judicial, ou seja, que satisfaça o princípio “in dubio pro reo”.
VIII - Podemos, para o efeito, aceitar o critério definido por Ferrer Beltrán segundo o qual «para se considerar provada uma hipótese de culpabilidade devem encontrar-se preenchidas simultaneamente as seguintes condições:
1) A hipótese deve ser capaz de explicar os dados disponíveis, integrando-os de forma coerente, e as previsões de novos dados que a hipótese permita formular devem ter resultado confirmadas;
2) Devem ter-se refutado todas as demais hipóteses plausíveis explicativas desses mesmos dados que sejam compatíveis com a inocência do acusado, excluídas as meras hipóteses “ad hoc”».
O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável”[26].
No entanto, também é geralmente reconhecido o carácter vago do conceito e a dificuldade em concretizar uma definição precisa do que seja uma “dúvida razoável” ou a “prova para além da dúvida razoável”[27].
Como, habitualmente, acontece quando se usam conceitos vagos e indeterminados, põe-se a cargo do julgador a responsabilidade de os densificar, de atingir uma determinação precisa do conceito na apreciação da concreta situação que se julga, o que é dizer que não tem de se aplicar um standard uniforme para todos os casos.
Na superação dessas dificuldades, a densificação negativa pode fornecer um contributo importante.
Assim, quando se afirma a necessidade da “prova para além de qualquer dúvida razoável” não se pretende excluir qualquer “sombra de dúvida” (“proof beyond the shadow of a doubt”), que corresponderia ao grau máximo de convicção, praticamente, uma certeza absoluta.
Há aqueles que cultivam a dúvida metódica e os que revelam “uma consciência indefinidamente hesitante ou exasperadamente escrupulosa”, mas, como já se assinalou, a dúvida meramente subjectiva não é razoável.
Se a hipótese contrária à da acusação se apresenta, apenas, com uma remota probabilidade de ter acontecido, isso não obsta à condenação, o que é dizer que a neutralização da acusação pela hipótese defensiva não deve ser, apenas, teoricamente, abstractamente possível. Nas palavras de Iacovelo (citado por J.A. Mouraz Lopes, ob. cit., p. 237, que neste ponto seguimos de perto), a neutralização da acusação pela hipótese defensiva “deve ser razoavelmente possível com base nas evidências disponíveis”, tendo sempre em consideração o caso concreto.
Em jeito de remate, diremos que é bom não esquecer que certeza e verdade não são a mesma coisa, pois pode ter-se a certeza daquilo que, apesar de tudo, é falso.
*
Uma das questões mais complexas e delicadas acerca da prova é a da sua análise e valoração. É o ponto axial do processo probatório, já que, da amálgama das provas produzidas, o tribunal tem de “separar o trigo do joio”, seleccionar as informações válidas e rejeitar as outras, de acordo com os critérios da experiência comum, mas também à luz dos conhecimentos científicos e técnicos postos à sua disposição.
Como vimos, o tribunal a quo motivou a sua decisão em termos que satisfazem a exigência legal.
Ora, perante uma sentença devidamente fundamentada, para que possa (deva) ser revogada ou alterada, não basta apontar o error in judicando, “impõe-se que sejam rebatidos, com base em razões materiais minimamente persuasivas, os seus fundamentos materiais, o mesmo é dizer, ou a legalidade dos meios de prova utilizados, ou o conteúdo das declarações ou de outros meios de prova valorados pela sentença, ou a inconsistência, á luz dos princípios legais atinentes, da análise crítica e da apreciação em que repousa a decisão” (acórdão da Relação de Coimbra, de 30.03.2010, disponível em www.dgsi.pt/jtrc).
Se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (cfr. n.º 3 do citado art.º 412.º):
● os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido (obrigação que “só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida”[28]);
● as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”[29]).
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (Loc. Cit.), “o cerne do dever de especificação”, com o que se visa impor-lhe “que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado”.
Este é um ponto que tem sido sublinhado na jurisprudência dos tribunais superiores e tem merecido geral aceitação: para provocar uma alteração da decisão em matéria de facto, não basta a existência de provas que, simplesmente, permitam ou até sugiram conclusão diversa; exige-se que imponham decisão diversa daquela que o tribunal proferiu.
Como bem se faz notar no acórdão da Relação de Coimbra de 08.02.2012 (Des. Brízida Martins), disponível em www.dgsi.pt, “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1.ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1.ª instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127.º, e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Por outro lado, duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre este ponto, cfr. os acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, disponíveis em www. dgsi.pt).
O recorrente C… impugna “todos os factos, com excepção do vertido com o n.º 16” (sendo que este nem sequer lhe diz respeito) – conclusão b).
O recorrente B… alega que não podiam ter sido considerados provados os “pontos n°s 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 17”, ou seja, todos os factos que lhe dizem respeito (conclusão 1.ª).
Não existe diferença entre remeter genericamente para a globalidade de factos que constitui o suporte factual da imputação dos crimes (como fez o recorrente C…) e indicar os números sob os quais esses factos estão descritos (como fez o recorrente B…).
A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso, mas os recorrentes não cumpriram esse encargo.
O reexame da matéria de facto é, necessariamente, segmentado, tem em vista a correcção de pontuais erros de julgamento e não todo o conglomerado factual.
Como se expendeu no acórdão do STJ, de 13.02.2008 (Proc. n.º 4564/07-3.ª), “impugnar especificadamente (os factos) é enumerá-los[30] um a um: primeiro, porque o novo julgamento que deles se pede à Relação, para assegurar um efectivo grau de jurisdição de recurso em sede de matéria de facto, é um julgamento segmentado, respeitando a aspectos parcelares, um remédio para questões pontuais e nunca uma reapreciação global daquela matéria”, exigindo-se “…numa óptica de colaboração, de lealdade, mas sobretudo de celeridade processual, a satisfação daquela enumeração, bem como das concretas provas que autorizam uma diferente solução, por referência aos suportes magnéticos onde constam as provas”.
Os recorrentes não cumpriram, de forma satisfatória, aquele ónus. No entanto, do “corpo da motivação” de cada um dos recursos decorre, como já aludimos, que os recorrentes não põem em causa que as casas de residência dos ofendidos foram assaltadas e que os assaltantes de lá retiraram, fazendo-os seus, os objectos enumerados nos pontos 3, 7 e 11 do elenco de factos provados. O que, verdadeiramente, impugnam é a sua participação nesses assaltos.
Por isso, porque é possível identificar o exacto ponto de facto impugnado, não deixaremos de conhecer da impugnação.
O ónus de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida exige do recorrente que indique, concretamente, as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes para a boa decisão da causa (n.ºs 4 e 6 do artigo 412.º do Cód. Proc. Penal).
Sendo curial que transcreva essas passagens (pois só assim é possível relacionar o conteúdo específico do meio de prova que, alegadamente, impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado), a tanto não o obriga a lei.
Importa recordar a jurisprudência uniformizada sobre esta matéria.
O cumprimento de tal ónus exige do recorrente que, por referência ao consignado na acta, indique concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação e pelo AUJ n.º 3/2012, de 08.03.2012 (DR, I, n.º 77, de 18.04.2012), o STJ manifestou o entendimento de que, para o efeito, basta “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”.
O recorrente C… é bem claro na explicitação das “provas” (ou melhor, na falta delas) que imporiam decisão diversa da recorrida: afirma e reafirma que “ninguém viu qualquer assalto” (conclusão g)), que “não foi prestado nenhum depoimento a relatar que os Arguidos foram vistos a entrar ou a sair das três residências referidas (…) nem foi feita qualquer outro tipo de prova da sua introdução naqueles locais” (conclusão m)).
O recorrente B… afina pelo mesmo diapasão: não foi encontrado na sua posse nenhum objecto furtado “nem (…) foi visto a sair ou a entrar nas duas residências de onde foram furtados os objetos, nem nesses locais foram recolhidos quaisquer vestígios que sinalizassem a sua presença” (conclusão 3.ª) e, em apoio da sua alegação, invoca, transcrevendo, declarações do co-arguido C… e da testemunha F….
Quer isto dizer que, na tese dos recorrentes, só com testemunhas presenciais (e da “primeira fila da plateia” para poderem ter uma boa percepção do acontecimento que presenciam), só com prova directa, seria possível dar como provados os factos que suportam as condenações.
Puro engano!
Se assim fosse, estar-se-ia a abrir caminho à criação de amplos espaços de impunidade[31].
Nem só quando o arguido faz uma confissão integral e sem reservas dos factos ou quando ocorrem situações de flagrante delito ou em que há testemunhas presenciais ou outras fontes de prova directa pode haver condenações.
São muito variadas e frequentes as situações em que não há prova directa porque, normalmente, o agente do crime procura cometê-lo sem ser notado, às escondidas, dissimuladamente, sorrateiramente, e nem por isso pode deixar de ser punido.
Por isso que a chamada prova indirecta tem um papel fundamental e já ninguém lhe nega virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência.
Com efeito, apesar das reservas e objecções[32] que, ainda, lhe são opostas, está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indirecta[33], também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade[34]) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
Uma vez que em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do Código de Processo Penal), delas (das provas admissíveis) não pode ser excluída a prova por presunções (prevista, como noção geral, no artigo 349.º do Código Civil, mas prestável e válida como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos no processo penal) em que se parte de um facto conhecido (o facto base, facto indiciante ou, simplesmente, indício) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum ou facto consequência) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.
Neste âmbito, importam as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção, que se encontram na base de qualquer juízo probatório. São meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo)[35] e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjectivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indirecta[36].
Como alguém já afirmou, é precisamente nas situações em que não há prova directa, mas existe prova indiciária, que intervêm decisivamente a inteligência e a lógica do juiz. Primeiramente, a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou a uma regra científica. Depois intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos à inferência feita maior ou menor eficácia probatória.
Que características ou requisitos deve reunir a prova indiciária para superar a presunção de inocência e determinar a participação no facto punível?
Há que contar com requisitos formais ou processuais e requisitos materiais.
Quanto aos primeiros, na fundamentação da sentença, os factos indiciantes devem, como tal, estar expressos e individualizados; por outro lado, da fundamentação da sentença deve constar a motivação do juízo de inferência, é dizer, deve explicitar o raciocínio através do qual, partindo dos factos-base, se chegou à convicção da verificação do facto punível e que o acusado o praticou ou nele participou, explicitação que é fundamental para avaliar a racionalidade da inferência.
Importa sublinhar que também a prova indiciária está sujeita a livre apreciação e por isso a convicção do tribunal há-de estar motivada e objectivada.
O que tem de particular este tipo de prova é, como se referiu, uma maior exigência de (uma mais cuidada) fundamentação.
Ora, já tivemos oportunidade de verificar que no acórdão recorrido está devidamente plasmado o raciocínio inferencial efectuado pelo tribunal.
Como requisitos materiais, desde logo, a exigência de que os factos-base estejam, plenamente, provados (desejavelmente, mediante prova directa).
Por isso não faz qualquer sentido falar aqui em suspeitas, suposições, especulações, como fazem os recorrentes (aliás, dizer que na prova indiciária tudo não passa de especulação é chavão com que, frequentemente, se esgrime).
Vejamos então os factos que, com virtualidade para afastar a presunção de inocência, podemos seleccionar para integrarem a base indiciária sobre a qual repousa o juízo de inferência que permitirá (ou não) chegar ao factum probandum:
- o arguido C… é filho da arguida D… que, à data dos factos, tinha uma ligação afectiva com o arguido B…;
- no período de pouco mais de dois meses (entre 24.10.2012 e 01.01.2013), as casas de habitação de E…, de H… e de M…, todas localizadas na zona de Estarreja, foram assaltadas, tendo os assaltantes, após introdução através de arrombamento, retirado do seu interior, fazendo-os seus, os objectos enumerados nos pontos 3, 7 e 11 (quase todos, artefactos em ouro), tudo sem autorização e contra a vontade dos respectivos donos;
- em momento posterior à subtracção dos objectos (no caso do assalto à casa de residência de E…, três dias depois, no caso do assalto à casa de residência de H…, no dia seguinte e no caso do assalto à casa de residência de M…, no próprio dia), os arguidos tinham-nos em seu poder (mais exactamente, estavam na posse dos artefactos em ouro subtraídos) e procederam à sua venda[37] em estabelecimentos comerciais de compra e venda de ouro localizados na zona de Estarreja (excepto no caso dos objectos subtraídos a E…, que foram vendidos numa loja em Viseu por G… a pedido do arguido C…, com quem ela mantinha um relacionamento);
- no dia e no período temporal (entre as 12H50 e as 17H55) em que ocorreu o assalto, os arguidos C…, D… e B… estiveram nas proximidades da casa de residência de M…;
- ambos os arguidos/recorrentes sofreram já condenações, incluindo em penas de prisão efectiva, pela autoria de vários crimes de roubo e de furto.
O factum probandum é este: foram os arguidos C… e B…, agindo em comunhão e conjugação de esforços e pondo em prática decisão conjunta, quem subtraiu os objectos (que depois venderam em lojas de Estarreja) das casas de residência de H… e de M… e foi o arguido C…, em autoria singular, quem assaltou a casa de residência de E… e de lá subtraiu os objectos depois vendidos em Viseu.
É corrente a afirmação de que os indícios, para fundamentarem o juízo de inferência que leve à condenação, devem ser plurais.
No entanto, também reúne largo consenso o entendimento de que pode bastar um só indício. Ponto é que revista relevância especial, que tenha uma particular força de convicção.
Escreve, a propósito, o Sr. Conselheiro José Santos Cabral (Prova indiciária e as novas formas de criminalidade, Revista Julgar, n.º 17, Maio/Agosto de 2012, p. 13 e segs.):
“Quando não se fundamentem em leis naturais que não admitem excepção, os indícios devem ser vários.
Todavia, a exigência formulada por alguns autores no sentido de existência de um determinado número de indícios concordantes não se afigura de todo razoável e antes se reconduzir a uma experiência matemática de algo que se situa no domínio da lógica. De concreto pensamos que apenas se pode formular a exigência daquela pluralidade de indícios quando os mesmos considerados isoladamente não permitirem a certeza da inferência.
Porém, quando o indício, mesmo isolado, é veemente, embora único, e eventualmente assente apenas na máxima da experiência o mesmo será suficiente para formar a convicção sobre o facto” (p. 31).
Está bem de ver que os indícios, sendo plurais e convergindo na mesma direcção (do facto desconhecido ou facto consequência), terão, naturalmente, maior força probatória.
Por isso, podemos assentar em que a base indiciária, desejavelmente, deve ser constituída por uma pluralidade de indícios (concordantes ou convergentes e inter-relacionados, de modo a que se reforcem mutuamente), embora se admita que um só será suficiente se o seu significado for determinante, é dizer, se tiver uma particular força persuasiva[38].
Também recorrente é a afirmação de que os indícios só permitem fundamentar uma condenação se forem graves, precisos e concordantes.
Para tanto, invoca-se o artigo 192.º do Código de Processo Penal italiano (assim, o acórdão da Relação de Guimarães de 19.01.2009, www.dgsi.pt, citado pelo recorrente C…).
Convém ter presente que a nossa lei processual penal não estabelece quaisquer requisitos específicos para a prova indiciária, nem se justifica que o faça.
Aliás, um autor como M. Taruffo (“La prueba…”, 472-473) considera que estes requisitos, no seu sentido e alcance, não são claros, tal como não são as consequências da falta do seu cumprimento.
Em bom rigor, os indícios (quando plurais) não têm que ser todos graves. Conjugado com outros, um pequeno indício pode ter uma importância determinante.
O que importa realçar é a necessidade de uma compreensão global dos indícios existentes através do estabelecimento de correlações intrínsecas e apelando à razão e às regras da lógica, que permite e avaliza a passagem da multiplicidade de probabilidades, mais ou menos adquiridas, para um estado de certeza sobre o facto probando.
Fundamental mesmo é que os indícios e as máximas da experiência (elementos de uma operação lógica, de um raciocínio indutivo) sejam aptos a converter-se em prova inequívoca, eliminando a dúvida razoável, sobre o facto-consequência.
Por conseguinte, o problema está em saber se, em cada caso concreto, os factos-base são suficientes para fundamentar o juízo de inferência do facto a provar.
A essência da prova indiciária reside na conexão entre o facto-base e o facto-consequência, fundamentada no princípio da normalidade conectado a uma máxima da experiência.
A força probatória de um indício será tanto maior ou menor consoante seja mais ou menos estreito o nexo lógico e prático entre ele (facto indiciante) e o facto probandum.
O juízo de inferência deve ser razoável e fundamentado.
A argumentação sobre que assente a conclusão probatória (seja qual for o sentido desta) tem de se revelar inteiramente razoável face a critérios lógicos do discernimento humano.
Há quem entenda que “…o simples facto de o arguido ter tido em seu poder um objecto roubado não permite, sem mais, concluir que o arguido foi o autor do roubo já que esta dedução/indução (…) não se ajusta nem às regras da lógica nem aos princípios da experiência” (cfr. o já citado acórdão da Relação de Guimarães, de 19.01.2009)[39].
Porém, com todo o respeito que nos merece tal opinião, o que se nos afigura razoável e se revela de harmonia com aquilo que podemos designar por “normalidade das coisas”, aquilo que é o normal acontecer (o id quod plerumque accidit) é que quem está em poder de (e vende) objectos (artefactos em ouro) que, muito pouco tempo antes, foram furtados de uma casa de residência assaltada, foi o autor do furto, ou participou na sua prática.
Cabe aqui assinalar a importância da proximidade temporal entre a ilegítima subtracção e apropriação e a venda dos objectos.
Ao decidir, o julgador convoca a sua experiência ou vivência pessoal, que mais não é do que o património de saberes e experiências comum ou da comunidade em que se insere[40].
O que é que nos dizem a razão, as máximas da experiência e mesmo as regras da lógica em situações tais?
Dizem-nos, antes de mais, que quem se dedica à prática de furtos e roubos procura apropriar-se de dinheiro e/ou objectos valiosos que possa alienar, fácil e rapidamente, para obter dinheiro.
O que acontece com os furtos de carteiras e os roubos, por esticão, de malas de mão de senhora[41] é bem revelador: na maioria das situações, as vítimas recuperam as carteiras e os documentos porque, normalmente, aos ladrões não interessam tais bens e, sobretudo, porque sabem que, se forem encontrados na posse desses objectos, sobre eles recairá uma forte suspeita de que foram os autores do(s) crime(s).
No caso em apreciação, imediatamente após os furtos (no próprio dia, no caso do assalto à casa de residência do ofendido M… e no dia seguinte, no caso do assalto à casa de residência da ofendida H…), os arguidos/recorrentes apressaram-se a vender os artefactos em ouro em lojas de Estarreja, pois sabiam que as empregadas dessas lojas desconheciam a sua proveniência e não lhes perguntariam se os objectos eram furtados.
Mas a experiência, também, nos revela que o detentor do objecto, se este não chegou à sua posse através de furto, roubo ou de outro facto ilícito contra o património, protesta, e veementemente, que o adquiriu licitamente e, mesmo quando há claros indícios de receptação, afirma, mais ou menos convictamente, que nunca desconfiou da sua proveniência ilícita, apesar do preço, inferior ao seu valor, por que o comprou.
Se o arguido não fornece qualquer explicação, ou apresenta uma justificação inverosímil, para ter em seu poder um objecto furtado, então é legítimo inferir que o tenha adquirido mediante a prática do crime de furto.
É este raciocínio inferencial que podemos constatar no acórdão da Relação de Coimbra de 11.05.2005, a que já se aludiu:
Comprovado que o arguido teve em seu poder a máquina roçadora subtraída ao ofendido B, e tendo-a vendido à testemunha C, considerou-se que este era “um dado indiciário de inquestionável credibilidade e de especial relevo” (o único no que concerne à autoria do crime) e discorreu-se assim:
“Ora, a partir de tal dado indiciário (…), mandam as regras da experiência e a lógica, se conclua ter sido aquele o autor do furto da máquina em apreço. Com efeito, como bem refere o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, de acordo com as regras da experiência, a quem é imputado o furto de determinado objecto, que comprovadamente vendeu, quando confrontado judicialmente com essa imputação, caso não seja o autor do crime, não se remeterá ao silêncio sobre a obtenção desse objecto”.
Mas, no nosso caso, havendo, também, um indício com uma especial força persuasiva, não é o único.
Importantes para o juízo probatório são os indícios dirigidos a estabelecer a presença física do acusado no local dos factos.
No acórdão recorrido deu-se relevo ao facto de, entre as 12H50 e as 17H55 do dia 01.01.2013 (período em que foi assaltada a casa de residência de M…, sita na Rua …, n.º ., em …), os arguidos C…, D… e B… terem estado nas proximidades da casa de residência de M….
Assim:
“Ora relativamente a esta factualidade foi ouvida a testemunha AE… e foram lidas as declarações da testemunha AF…. Da conjugação desses depoimentos retira-se que os arguidos B…, C… e D… no dia em que ocorreu o furto à residência da testemunha M…, foram vistos em local próximo dessa residência.
Já em sede de inquérito as referidas testemunhas tinham reconhecido os arguidos como sendo as pessoas que no dia do furto viram em local próximo da residência da testemunha M… (reconhecimentos cujo teor consta de fls. 182, 185, 234 e 240).
O furto à residência M… ocorreu no dia 1 de Janeiro de 2013, sendo que no dia 2 e 3 de Janeiro os arguidos encetaram diligências para venda dos artigos em ouro furtados.
A este respeito a testemunha indicada sob o n.º 8 no rol apresentado em sede de acusação, declarou de forma isenta, segura e séria, merecendo por isso o seu depoimento credibilidade, que ao estabelecimento onde trabalhava, ou seja, a L…, sita em Estarreja, se deslocaram uns indivíduos, os quais tentaram vender um anel em ouro. A testemunha referiu que posteriormente participou no reconhecimento pessoal e que nessa ocasião reconheceu as pessoas que foram ao seu estabelecimento para esse efeito. A testemunha referiu que como não aceitou o anel e não procedeu à avaliação do mesmo, os indivíduos abandonaram o local. A testemunha referiu ainda que decorridos uns dias e em local próximo do seu estabelecimento, foi encontrado uma parte desse anel, o qual foi posteriormente entregue às autoridades. Ora, consta dos autos, os autos de reconhecimento em que teve intervenção esta testemunha, concretamente de fls. 188 e ss; 197 e ss; 219 e ss e de fls. 237 a 238 e de fls. 560 e ss, de acordo com os quais se retira que a testemunha reconheceu o arguido B… e o arguido C…, como tendo sido os indivíduos que no dia 2 e 3 de Janeiro se dirigiram ao estabelecimento "L…" para tentar vender um anel de noiva, estando os mesmos acompanhados pela arguida D…, a qual terá ficado no exterior do estabelecimento.
A própria testemunha M… e os militares da GNR que foram ouvidos, confirmaram que posteriormente e nesse estabelecimento foi recuperada uma parte de um anel que havia sido retirado da casa da testemunha M….
Constam ainda dos autos as declarações de venda de artigos em ouro, as quais se encontram juntas aos autos a fls. 46, 47, 50, 53 e 54, e que se referem a artigos em ouro vendidos pelo arguido C… à firma "AG…, Lda." em 2 e 9 de Janeiro de 2013.
Foi ouvida a testemunha AH…, a qual declarou que no ano de 2009 trabalhava para a empresa "AG…, Lda." e era a responsável de loja. À testemunha foram exibidas as declarações de venda que se encontram juntas aos autos e a mesma confirmou que apesar de não ter tido intervenção nesses actos, que pelo que consta das declarações, a mesma poderia garantir que no caso foram observados todos os procedimentos normais, ou seja, foram recolhidos os dados de identificação da pessoa que vendeu os artigos e foi fotocopiado o cartão de identificação dessa pessoa.
Ora como já se referiu, o arguido C… admitiu que foi ele que procedeu à venda desses artigos e que assinou as declarações.
Foram lidas as declarações que a testemunha AI… prestou em inquérito (fls. 29 e 30), sendo que do teor das mesmas se retira que foi o arguido C… a pessoa que lhe vendeu os artigos que constam nas declarações juntas aos autos.
Os referidos artigos foram posteriormente apreendidos na sede da empresa "AG…, Lda." e eram artigos que haviam sido retirados da casa da testemunha M….
Os arguidos C… e B… tentaram vender um dos objectos retirados desta casa no estabelecimento de L…, precisamente em 2 e 3 de Janeiro.
Como foi referido pela testemunha indicada sob o n.º 8, os arguidos acompanhados por duas senhoras, foram vistos a circular nesse período por diversas vezes e estando juntos e em local próximo do seu estabelecimento.
Como foi admitido pela arguida D… e pelo arguido C…, a D… tinha uma relação de natureza afectiva com o B… e o arguido C… é seu filho.
Ou seja, da conjugação de toda esta factualidade, dúvidas não existem de que os arguidos de comum acordo e na execução de um plano comum, decidiram deslocar-se a casa da testemunha M… para se apoderarem de objectos de valor, o que vieram a realizar. Os arguidos na posse desses objectos procederam depois à venda dos artigos que furtaram.
Cumpre referir que para a verificação de uma actuação em co-autoria não se exige que os vários participantes executem todos os actos necessários à realização de um objectivo, neste caso o furto dos objectos que estavam no interior da residência da vítima. O que é necessário é que exista esse acordo, que haja a adesão de todos os participantes a esse acordo e que todos actuem com a vontade de o concretizar, sendo que a sua participação terá que se revelar essencial à concretização do plano que foi traçado.
É certo que não foi prestado nenhum depoimento a relatar que os arguidos foram vistos a entrar ou a sair das duas residências referidas.
No entanto, na ocasião em que ocorreram os furtos, ou seja, em Dezembro e Janeiro, os arguidos relacionavam-se e foram vistos por várias vezes juntos e em local próximo até de uma residência onde ocorreu um dos furtos.
Os mesmos deslocaram-se ainda a lojas que se dedicam à compra de artigos em ouro usado e procederam à venda de artigos em ouro, sendo que posteriormente foi detectado que os mesmos pertenciam aos ofendidos.
Assim sendo e não tendo os arguidos apresentado justificação para a posse dos artigos em ouro e tendo em atenção que alguns desses artigos se encontravam personalizados, dúvidas não existem de que os arguidos procederam da forma descrita para a sua obtenção, sendo que posteriormente procederam à sua venda, o que fizeram de comum acordo”.
O recorrente C… desvaloriza este indício, dizendo que, “além de ser, por si só, uma prova frágil, mais débil se torna” quando a testemunha F… afirmou que o arguido B… habitava numa casa a cerca de 500 metros do local do furto, a Rua …. Essa circunstância, aliada ao facto de existir uma relação afectiva entre o B… e a D…, mãe do arguido C…, tornaria “razoável que os Arguidos tenham sido vistos por ali” (conclusão l)).
A verdade é que do depoimento da testemunha F… o que resultou foi que os arguidos não tinham paradeiro certo (“residiam aqui na zona; residiam e iam embora; voltavam a vir”; “o C… e a AB… é que iam e vinham…deslocavam-se entre Viseu e Estarreja”). Mesmo aos arguidos B… e D…, que residiam habitualmente em Estarreja, eram-lhes conhecidos vários paradeiros (“três residências que lhe eram conhecidas aqui no concelho: uma em …, uma na … e outra no …, aqui em …”). Por isso é que foram efectuadas duas buscas domiciliárias, uma na casa situada no … e outra na casa do …. Aliás, esta última seria a casa de residência da irmã do arguido B….
Em todo o caso, não pode negar-se que a circunstância de os arguidos terem sido vistos a rondar a casa de M…, por si só, não é um indício “grave”.
No entanto, como já se sublinhou, os indícios têm de ser vistos numa perspectiva global, e não isoladamente.
Ora, só alguém muito indulgente e crédulo, se não mesmo ingénuo, admitirá que seja mera coincidência o facto de a casa de residência de M… ter sido assaltada, precisamente, no período temporal em que os arguidos foram vistos junto dessa casa de onde foram retirados objectos em ouro que, no mesmo dia, os arguidos/recorrentes foram vender em lojas de Estarreja.
O que se apresenta como conclusão lógica, normal, de acordo com as regras da experiência é que os arguidos procuraram assegurar-se que nessa casa que assaltaram não havia ninguém que pudesse constituir um obstáculo à concretização dos seus intentos.
Também a circunstância de ambos os arguidos/recorrentes terem condenações (em pena de prisão efectiva) pela prática de vários crimes de roubo e de furto é um indício que não pode ignorar-se.
No acórdão desta Relação de 11.01.2012 (Des. Pedro Vaz Pato), invocado pelo recorrente C…, defende-se a posição oposta, a irrelevância dos antecedentes criminais porque, de outro modo, criar-se-ia na mente do julgador um preconceito, que é contrário ao princípio in dubio pro reo.
Com todo o respeito devido, divergimos dessa opinião.
Se o arguido revela uma personalidade com tendência para delinquir, essa circunstância pode relevar como indício da prática do crime que se investiga, sem que daí se possa concluir que o julgador tem, em relação a ele, qualquer ideia preconcebida quanto à autoria do crime que lhe é imputado.
Rosas Castaneda[42] refere-se-lhe como “indícios de capacidad para delinquir” e concretiza: “Por lo que se sabe del conjunto de su caracter, de su conducta pasada, de sus costumbres y disposiciones, se deduce que el acusado era capaz de haber cometido el delito imputado o, inclusive, que fue llevado a ejecutarlo” e adverte que “constituye una condición necessária, pero no suficiente, de la culpabilidade: unas veces proporciona una simples posibilidad y otras una probabilidad o verosimilitud, pero no certeza”.
Ora, os antecedentes criminais dos arguidos/recorrentes legitimam a conclusão de que revelam uma clara tendência para delinquir, para cometer crimes contra a propriedade.
Aliás, essa tendência criminosa já o arguido C… a revelou antes de atingir a idade de imputabilidade penal, pois esteve institucionalizado várias vezes e o seu comportamento delinquente deu origem a processos tutelares educativos, tendo-lhe sido aplicada medida de internamento que cumpriu até 06/08/2010.
Por tudo isto, pode afirmar-se que o factum probandum flui como conclusão lógica e natural dos factos base comprovados, mostrando-se a inferência fundada, razoável e criteriosa.
A base indiciária de que partimos é suficientemente consistente para sustentar a afirmação, como altamente provável, da co-autoria dos arguidos/recorrentes nos furtos (cometidos em 28.12.2012 e 01.01.2013) de que foram vítimas H… e M… porque o normal acontecer (se se quiser, o padrão que na vida prática é tomado como certeza) exclui outra configuração da realidade dada como provada.
Se quisermos ser mais exigentes e escrupulosos, dir-se-á, como no citado acórdão desta Relação de 11.01.2012, que a posse e a venda, pelos arguidos, dos objectos furtados das casas de residência de H… e M… indicam como “muito provável”[43] essa co-autoria.
Seria estultice negar que há sempre a possibilidade de ter sido adquirido por outra via (inclusive por meios lícitos), que não por roubo ou furto, um objecto furtado ou roubado que alguém tem em seu poder.
Mas afirmar que, por existir essa possibilidade, impõe-se a rejeição liminar do juízo de inferência do factum probandum é levar a presunção de inocência do arguido a um extremo tal que acaba por redundar na proibição da formulação de juízos indiciários de culpabilidade da prática de um crime[44].
É, no fundo, exigir para a prova do facto desconhecido um juízo de certeza absoluta, em vez de um juízo de probabilidade, pois aquela inferência teria de ser a única correcta e possível.
Não é esse o entendimento que tem prevalecido na doutrina e na jurisprudência.
A prova indiciária só não terá a virtualidade de afastar a presunção de inocência e constituir prova bastante do facto probandum quando os indícios sejam ambíguos e a inferência seja ilógica ou de tal modo aberta que em si mesmo comporte uma tal pluralidade de conclusões alternativas que nenhuma delas pode dar-se por provada.
Não é o que aqui acontece, como cremos ter ficado demonstrado.
Mas uma análise deste tipo não fica completa sem uma referência a eventuais indícios que existam e se alinhem em sentido oposto ao da culpabilização do arguido – os chamados contra-indícios.
Trata-se de indícios e de outros meios de prova trazidos ao processo pelo arguido que enfraquecem ou neutralizam a força probatória e a eficácia dos indícios culpabilizantes.
Não são – note-se bem – meras possibilidades abstractas como é a afirmação de que “o arguido sempre poderia ter entrado na posse das coisas furtadas por as ter recebido de um terceiro sem ter tido qualquer participação no furto”.
Claro que, teoricamente, tudo é possível, mas não são hipóteses abstractas que têm a virtualidade de debilitar ou destruir o juízo de inferência do factum probandum.
Se não pode perder-se de vista que cabe sempre ao MP, como titular da acção penal, a demonstração probatória dos factos da acusação e que é dever do tribunal efectuar todas as diligências legalmente possíveis e necessárias para a descoberta da verdade, cabe ao acusado, se pretende impedir que se adquira a certeza bastante daqueles factos, indicar os factos antagónicos e introduzir, pelo menos, um princípio de prova, sem que isso signifique a imposição de qualquer ónus de prova e, muito menos, a violação das suas garantias de defesa, designadamente o seu direito a não prestar declarações sobre os factos e à presunção de inocência.
Esses factos susceptíveis de enfraquecer a força probatória dos indícios culpabilizantes hão-de poder ser analisados e ponderados pelo juiz quando forma a sua convicção e, para tanto, têm de ser concretizados e sustentados em julgamento.
É esse o sentido do acórdão da Relação de Évora de 06.12.2011 (Des. António João Latas) em que, depois de se citar o Professor Figueiredo Dias sobre “a convicção objectivável e a dúvida que a impede”, discorre-se assim:
“A referência do autor a razões para a dúvida traduz bem, em nosso ver, a exigência de que a versão que se opõe à da acusação seja plausível e demonstrável, pois só uma versão credível subjaz a uma dúvida racional. Não basta a mera plausibilidade e verosimilhança da versão para que estejamos perante dúvida séria e razoável. Isto é, só poderá ser tomada como séria a dúvida derivada de versão plausível dos factos minimamente fundada e sustentada, de tal modo que, mesmo sem atingir um grau prevalecente de probabilidade e ainda menos de prova ou quase prova, possa afirmar-se que só o afastamento dessa versão pela acusação ou o tribunal permite a este julgar provada a versão contrária ao arguido.
O essencial do conceito radicará, pois, na ideia de que a versão da defesa há-de poder reputar-se de tal forma verosímil e sustentada que impõe à acusação ou ao tribunal a tarefa de provocar o seu afastamento, sob pena de permanecer a situação objetiva de dúvida que leva a considerar não provada a versão factual incriminatória ou provada a versão de facto favorável ao arguido.
Mesmo que a produção dos correspondentes meios de prova não venha a ter lugar, em regra só a dúvida assente numa versão suscetível de prova pode considerar-se motivável, racional, objetiva e séria, e não meramente subjetiva, intuitiva, assente em meras conjeturas ou suposições”.
Neste caso, os arguidos não quiseram prestar declarações sobre os factos (só o arguido C… decidiu falar depois de se ter produzido prova inequívoca de que foram os arguidos/recorrentes quem procedeu à venda dos objectos em ouro furtados e apenas para confirmar que vendeu esses objectos em lojas de Estarreja, recusando-se, no entanto, a esclarecer como foram por eles obtidos), pelo que subsiste, intacto, o juízo de certeza bastante, a que se chegou por prova indirecta, de que foram eles os autores dos furtos cometidos nas casas de residência de H… e M….
Apenas porque não se verifica a mesma proximidade temporal[45] entre o furto e a venda dos objectos furtados, não poderemos considerar que existe uma conexão directa e inequívoca entre a base indiciária e o factum probandum, ou seja, que foi o arguido C… o autor do furto cometido em 24.10.2012 na casa de residência de E….
Assim, nesse ponto, impõe-se a alteração da decisão recorrida em matéria de facto, eliminando-se do elenco de factos provados o n.º 15 e passando os n.ºs 1 a 4 a ter o seguinte conteúdo:
1 - No dia 24 de Outubro de 2012, entre as 20h30 e as 7h30, indivíduo cuja identidade não foi possível apurar decidiu assaltar a casa de habitação sita na Rua …, n.º .., no …, pertença de E….
2 - Para esse efeito, dirigiu-se para o local e, através de chave falsa, conseguiu introduzir-se nessa casa de habitação.
3 - Daí retirou, delas se apoderando e levando-as consigo, diversas peças em ouro, nomeadamente:
- Um par de brincos com a imagem do tio da ofendida
- Uma aliança em ouro
- Um anel em ouro com pedra de diamante
- Uma carteira com documentos e cartão multibanco,
tudo no valor de, sensivelmente, 500,91.
4 - O arguido C… diligenciou pela venda, numa loja em Viseu, dos objectos em ouro retirados da casa de habitação da ofendida E….
Consequentemente, ao elenco de factos não provados, é aditado o seguinte:
21 - Foi o arguido C… quem, nas circunstâncias de tempo e modo descritas nos n.ºs 1 e 2 do elenco de factos provados, retirou da casa de residência de E… os objectos em ouro mencionados no n.º 3.
22 - O arguido C… agiu com o propósito de retirar os objectos referidos da casa da ofendida E… e de os integrar no seu património e com o intuito de, mais tarde, os vender, sabendo bem que tais bens não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade da respectiva dona.
*
Os recorrentes, também, impugnam a decisão em matéria de direito.
Contudo, omitiram, completamente, as razões da sua discordância (o recorrente C… limita-se a afirmar que, “em relação à decisão de direito, é manifesto que o Tribunal enquadrou e subsumiu erradamente os factos às normas legais aplicáveis” e o recorrente B… nada diz).
Como se disse no início, a divergência só se compreende na medida em que os recorrentes impugnam a decisão em matéria de facto e é a almejada procedência dessa impugnação que os leva a pugnar pela sua absolvição.
Uma vez que só em relação ao recorrente C… o recurso procede parcialmente, nos termos que ficaram atrás definidos, também só em relação a ele se justifica a alteração da decisão em matéria de direito, devendo ser absolvido de um dos crimes de furto e mantendo-se a sua condenação, tal como em relação ao arguido B…, pela prática, em co-autoria material, de dois crimes de furto qualificado (os furtos cometidos em 28.12.2012 e em 01.01.2013).
*
Vejamos se algum reparo merece o procedimento seguido na escolha e na determinação das penas concretamente aplicadas.
Depois de referências aos parâmetros de determinação das penas (como se refere na decisão recorrida, e decorre do disposto no art.º 71.º, n.º 1, do Código Penal, é em função do binómio prevenção-culpa que se há-de encontrar a medida da pena, assim se satisfazendo a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a exigência de que a vertente pessoal do crime limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção), o tribunal, para chegar à medida legal das penas aplicáveis pelos crimes cometidos, ponderou a aplicação ao arguido C… (à data dos factos com 19 anos de idade) o regime penal especial para jovens delinquentes contido no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.
Afastou a aplicação desse regime e a decisão não merece (não mereceu do próprio arguido C…) qualquer censura.
A determinação das penas (parcelares) aplicadas está assim fundamentada:
“Estão em causa a prática de crimes de furto qualificado efectuados em residências.
Neste caso e em concreto fazem-se sentir de modo assinalável as exigências de prevenção geral, considerando principalmente o modo de execução do crime.
Importa referir que os furtos a residências, nas condições em que ocorreram os furtos em análise nestes autos, criam na comunidade em geral um sentimento de insegurança e de alarmismo que é preciso considerar.
Por outro lado, são cada vez mais frequentes os furtos a residências, sendo primordialmente vitimas a população mais idosa e com menor capacidade de resistência.
Impõe-se, pois, a aplicação de uma pena que responda a tais exigência de prevenção.
A ilicitude do facto reveste-se de grau elevado atendendo ao modo de actuação dos arguidos.
(…)
Os arguidos C… e B… de comum acordo e em execução de um plano que ambos traçaram, deslocaram no dia 28 de Dezembro de 2012 e no dia 1 de Janeiro de 2013, às habitações de H… e de M…, tendo acedido ao interior destas residências através de uma janela. Os arguidos do interior das residências retiram e levaram consigo diversos objectos em ouro (entre outros), e igualmente de comum acordo os mesmos procederam à sua venda, deslocando-se para o efeito a casas que adquirem artigos em ouro.
Dos bens que foram retirados apenas uma parte foi recuperado, sendo que essa recuperação resultou da intervenção dos militares da GNR.
Contra os arguidos milita ainda a circunstância de os mesmos terem actuado com dolo directo.
No que concerne às exigências de prevenção especial, cumpre referir que no caso do arguido C… o mesmo na ocasião contava apenas com 19 anos de idade e que o mesmo apenas tinha antecedentes criminais pela prática de crime de condução sem habilitação legal. No entanto e posteriormente à prática dos factos em apreço nestes autos, foi já condenado pela prática de vários crimes de furto e de roubo.
O arguido encontra-se actualmente preso em cumprimento de pena.
O arguido apesar de ter trabalhado como segurança, não apresenta um percurso profissional estável. O arguido não se encontrava integrado em meio familiar estruturado.
No que se refere ao arguido B… o mesmo tem antecedentes criminais pela prática de vários crimes de roubo e de furto. O arguido cumpriu já pena de prisão e quando praticou os factos em apreço nestes autos o mesmo estava em período de liberdade condicional.
O arguido apesar de actualmente se encontrar a trabalhar, não apresenta um percurso profissional estável, nem desenvolvia actividades de natureza profissional que lhe permitissem dispor de um rendimento regular.
O arguido tem ainda um passado ligado ao consumo de produtos estupefacientes.
O arguido após ter estado detido preventivamente à ordem destes autos, iniciou um novo relacionamento, sendo que actualmente vive com a sua companheira e encontra-se a trabalhar.
No entanto e no que se refere aos arguidos são pois elevadas as exigências de prevenção especial, sendo que os arguidos revelam propensão para a prática de crimes contra o património.
Assim e ponderando as circunstâncias a que se fez referência considera-se que os crimes praticados pelos arguidos devem ser punidos com uma pena idêntica, dado que as circunstancias que envolveram sua prática foram semelhantes, assim como foi semelhante o método utilizado e como foram semelhantes as consequências resultantes da sua prática.
No entanto e dado que as condições pessoais de cada um dos arguidos são distintas, cada um dos arguidos deve ser punido de forma distinta.
No caso do arguido C… o mesmo será condenado pela prática de três crimes de furto qualificado, na pena de 3 (três) anos de prisão, por cada um dos crimes de furto qualificado cometidos pelo arguido.
No que concerne ao arguido B… o mesmo será condenado pela prática de dois crimes de furto qualificado, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão por cada um dos crimes”.
Nenhum dos arguidos/recorrentes põe em causa a justeza destas penas e afigura-se-nos que elas são perfeitamente adequadas às exigências de prevenção que se fazem sentir e respeitam os limites da culpa de cada um dos arguidos.
Destaque merece a circunstância de os furtos terem sido cometidos em casas de habitação. Quanto tal sucede, é também a intimidade da vida privada, e não apenas o património, que o crime de furto afecta com a violação do domicílio.
Tal circunstância gera fortes sentimentos de insegurança (e o consequente alarme social) na comunidade e por isso o tribunal não pode deixar de a ponderar devidamente quando procede à determinação da pena, pois, de contrário, estaria a frustrar as expectativas comunitárias na validade das normas.
Só o arguido/recorrente C… se insurge contra a pena única de 5 anos e 3 meses de prisão, limitando-se, contudo, a afirmar que é uma pena “demasiado severa” e a imputar ao tribunal, sem qualquer concretização, a violação do artigo 71.º do Código Penal.
No entanto, a única razão para a alteração da pena única para este arguido é a circunstância de se ter concluído que, tal como em relação ao arguido B…, lhe ser imputável a prática, de dois (e não três) crimes de furto qualificado.
Por outro lado, a circunstância de os limites inferior e superior da moldura penal do concurso (entre 3 e 6 anos de prisão) serem ligeiramente mais baixos que os da moldura (entre 3 anos e 3 meses e 6 anos e 6 meses de prisão) da pena única aplicável ao arguido B… não é razão atendível para fixar penas diferentes.
Os factos, globalmente apreciados, evidenciam o mesmo grau de ilicitude significativamente elevado.
Por outro lado, há um conjunto de factores que, inelutavelmente, levam a concluir que são muito fortes as necessidades de prevenção especial.
Além das fortes carências de socialização que evidenciam, ambos os arguidos/recorrentes revelam tendência para cometer crimes contra a propriedade.
A sucessão de crimes praticados pelos arguidos denuncia características da sua personalidade particularmente desvaliosas, denota grande dificuldade em manter uma conduta lícita e por isso pode afirmar-se que não estamos perante uma situação de pluriocasionalidade, mas antes face a uma clara tendência delinquente.
Tudo isso releva, não só por via da culpa, mas também por via da prevenção especial. Prevenção que não tem de actuar, sempre e só, ao nível da (res)socialização.
Neutralização, intimidação ou (re)inserção social são meios especial-preventivos sempre ao serviço de um objectivo: impedir ou fazer desistir o delinquente de cometer futuros crimes.
Neste caso, tem de prevalecer a função de advertência e de inocuização.
Por tudo o exposto, mostra-se ajustada a pena única de 4 anos e 6 meses de prisão para cada um dos arguidos/recorrentes.
*
Sendo considerações de prevenção geral e de prevenção especial (de (res)socialização)[46] que estão na base da aplicação das penas de substituição, o tribunal só deve recusar essa aplicação “quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente” ou, não sendo o caso, a pena de substituição só não deverá ser aplicada “se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”[47].
Estando verificado o requisito formal da suspensão da execução da pena (agora, em relação a ambos os arguidos/recorrentes), há que indagar se ocorre o respectivo pressuposto material, isto é, se se pode concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, designadamente se bastarão para afastar os arguidos da criminalidade, pois é esta a finalidade precípua do instituto da suspensão[48].
Quando ponderou a aplicação desta pena de substituição ao arguido B…, o tribunal “a quo” formulou um juízo de prognose negativo (não contestado) e justificou assim a conclusão a que chegou:
“A pena exerce, assim, uma função pedagógica de interpelação social que veicula uma mensagem cultural de chamada de atenção para a relevância de valores e bens jurídicos e, nessa medida, traduz-se numa forma de protecção desses bens jurídicos e da ordem jurídica em geral.
Ora, a suspensão da pena pode ser interpretada pela consciência comunitária como uma forma de desvalorização de bens jurídicos a que dá particular importância e como um sinal de prática impunidade, uma mensagem contraditória com um propósito de tutela desses bens.
Haverá que verificar se no caso concreto isso se verifica, podendo até optar-se pela não suspensão da pena de prisão mesmo quando a pena, por ser inferior a cinco anos, o permitiria e essa suspensão fosse aconselhada pelas exigências da prevenção especial e a necessidade de não desinserção social do arguido.
As finalidades da punição a ter em conta nessa opção incluem, como vimos, além das de prevenção especial, as de prevenção geral, em especial as de prevenção geral positiva, com o sentido acima indicado.
Analisando o caso em concreto, resulta que o arguido B…, tem antecedentes criminais pela prática de crime de furto e de crime de roubo.
O arguido cumpriu pena de prisão pela prática de crimes de idêntica natureza. O arguido praticou os factos estando em período de liberdade condicional.
Ou seja, apesar da solene advertência de que foi alvo, o arguido voltou a praticar crimes e de idêntica natureza aos que já haviam determinado a sua condenação em pena de prisão.
O arguido não revelou arrependimento e não diligenciou pela reparação dos prejuízos.
O arguido não trabalhava na altura da prática dos factos.
Actualmente o arguido trabalha e vive com uma companheira, sendo que o arguido iniciou recentemente essa relação.
Por outro lado e como já se fez menção, no caso em concreto, as exigências de prevenção geral são acentuadas, exigindo a comunidade a aplicação de uma pena que não seja interpretada pela consciência comunitária como uma forma de desvalorização de bens jurídicos violados e como um sinal (de) impunidade.
Ou seja, face às circunstâncias apontadas, não é possível fazer em relação ao arguido B… um prognóstico favorável a respeito do comportamento do arguido no futuro, caso lhe seja aplicada uma pena não privativa da liberdade.
Por outro lado, do ponto de vista da comunidade e das elevadas exigências de exteriorização física da reprovação, solução distinta da aplicação duma pena de prisão efectiva seria sentida como uma injustificada indulgência.
A circunstância de o mesmo ter começado recentemente a trabalhar e ter iniciado um novo relacionamento, não são condições que se apresentem como suficientes para fazer em relação ao arguido um juízo de prognose favorável.
Pelo exposto, será aplicada ao arguido B… uma pena de prisão efectiva”.
No caso do arguido C…, verificam-se, no que se afigura essencial, as mesmas razões que justificaram a denegação da suspensão da pena ao arguido B….
Se a pena privativa da liberdade surge sempre como a última “ratio” do nosso sistema punitivo[49], tal não significa que não haja casos em que só essa pena é adequada a satisfazer os fins das penas.
É óbvio que, ao aumentar o limite da pena de prisão (dos 3 anos para os 5 anos) dentro do qual é possível a suspensão da execução, o legislador pretendeu alargar o âmbito de aplicação da pena de substituição, mas não tornar menos exigente o pressuposto substantivo da sua aplicação.
Está bem de ver que o passado criminal do arguido é fundamental na avaliação que o tribunal tem de fazer, sobretudo, quando pondera a aplicação da pena de suspensão da execução da prisão, que exige um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido.
De resto, há quem entenda que “o desrespeito pelo aviso contido em diversas condenações anteriores, por factos de idêntica natureza, constituem factores impeditivos de que a simples censura dos actos e a ameaça da prisão realizem, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, protejam de forma adequada a segurança da Colectividade, no seu todo, ou constituam suficiente dissuasor para a recorrência do condenado em actividades criminosas de idêntica, ou de outra natureza” (cfr. acórdão da Relação de Coimbra de 08.09.2010, acessível em www.dgsi.pt).
Se é certo que a existência de condenações anteriores constitui um índice de exigências acrescidas de prevenção, também se aceita facilmente que essa circunstância, por si só, “não é impeditiva a priori da concessão da suspensão”[50].
No entanto, é inteiramente fundada a conclusão de que a probabilidade de o arguido C… voltar a delinquir, designadamente de continuar a cometer crimes contra a propriedade, é muito elevada.
Este arguido, à semelhança do arguido B…, revela incapacidade de auto-responsabilização e de avaliar criticamente os seus comportamentos delituosos e, bem assim, que não interiorizou a censurabilidade das suas condutas.
A ressocialização do arguido parte da sua vontade de querer nortear-se pelo respeito dos valores ético-jurídico comunitários e de respeitar os bens jurídicos, postura que tem de manifestar-se em atitudes comportamentais que, objectivamente, elucidem que está realmente interessado no caminho da reinserção social.
Nada indica que seja esse o caminho que o arguido quer trilhar e, bem pelo contrário, dos factos provados resulta que ele revela traços da sua personalidade particularmente desvaliosos, como é a tendência para cometer crimes contra a propriedade.
São, pois, muito fortes as exigências de prevenção, sobretudo de prevenção especial, a justificarem a pena de prisão efectiva.

IIIDispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
A) Conceder parcial provimento ao recurso interposto por C… e, em consequência:
1. alterar a decisão sobre matéria de facto, nos termos supra referidos;
2. absolver o arguido C… da acusação pela prática, em 24.10.2012, de um crime de furto qualificado previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 202.º, al. f), 203.º, n.º 1, e 204°, n.º 2, al. e), todos do Código Penal;
3. manter a condenação do arguido C… pela prática, em co-autoria material, de dois crimes de furto qualificado previstos e puníveis pelas disposições conjugadas dos artigos 202.º, al. e), 203.º, n.º 1, e art. 204.º, n.º 2, al. e), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um deles;
4. em cúmulo jurídico, condenar o arguido C… na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.
B) Negar provimento ao recurso interposto por B… e, quanto a ele, confirmar, integralmente, a decisão recorrida.

Sem tributação quanto ao recorrente C….
Por ter decaído totalmente, pagará o recorrente B… taxa de justiça que se fixa em quatro UC´s (artigos 513.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, 1.º, n.º 2, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 09-09-2015
Neto de Moura, relator por vencimento
Francisco Marcolino, Presidente da Secção
Lígia Figueiredo (vencido conforme declaração que junta)
_____________
[1] Também acusada da co-autoria material de dois crimes de furto qualificado, estava AB… que, antes da audiência de julgamento, foi declarada contumaz, com a consequente separação de processos.
[2] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[3] Excluindo-se, por desnecessários, os factos relativos às condições de vida, processo de socialização e aspectos da personalidade da arguida D….
[4] Como se pode ler no acórdão do STJ de 27.05.2010 (www.dgsi.pt/jstj), “a partir da reforma de 1998 passou assim a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do artigo 410º, nº 2, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão e uma outra, mais ampla e abrangente, porque não confinada ao texto da decisão, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
[5] Há nesta definição uma aproximação ao conceito de factos notórios do processo civil (cfr. art.º 514.º do Cód. Proc. Civil), que não nos parece descabida. Assim também, o acórdão do STJ de 06.04.1994, CJ XIX, T. II, 185).
[6] Para uma exaustiva delimitação (negativa e positiva) do erro notório na apreciação da prova, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, 1102-1103.
[7] Uma das poucas excepções é a prova pericial.
[8] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11.07.2007 (www.dgsi.pt/jstj), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[9] Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I vol, 199 e ss.), “uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada “verdade material”.
[10] A prova não pode nunca basear-se numa intuição da verdade de uma proposição.
[11] A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, Coimbra, 1968, pág.52
[12] Sem esquecer que no processo mental que subjaz à formação da convicção do juiz nem tudo pode ser racional ou lógico, nele intervindo, não raro, elementos não racionalmente justificados, sem que tal impeça uma convicção objectivada.
[13] Joaquim Correia Gomes, “A motivação judicial em processo penal e as suas garantias constitucionais” in Revista “Julgar”, n.º 06, Setembro/Dezembro de 2008, p. 92.
[14] Importância que se expressa em numerosos artigos e estudos, de que destacamos a obra de José António Mouraz Lopes (“A fundamentação da sentença no sistema penal Português – Legitimar, Diferenciar, Simplificar”, Almedina, 2011), de M. Taruffo (cfr., entre outros estudos, o publicado in Consideraciones sobre la prueba judicial, Madrid, Fundación Coloquio Juridico Europeo, 2009, sob o título “Consideraciones sobre prueba y motivacion”), o já citado artigo do Desembargador Joaquim Correia Gomes e a comunicação apresentada por Paulo Saragoça da Matta in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais” com o título “A livre apreciação da prova e a fundamentação da sentença”.
[15] A razão principal é possibilitar o controlo, em sede de recurso, da racionalidade da inferência.
[16] Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
[17] Sobre as repercussões extra-processuais do princípio, cfr. o estudo de José Souto Moura, “A questão da presunção de inocência do arguido”, Rev. do Ministério Público n.º 42, 31 e segs. [18] Cfr. G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, 152.
[19] No processo criminal de um Estado de Direito democrático, não é comunitariamente suportável a possibilidade de cominar a alguém uma pena que tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, se esta não está comprovada para além da dúvida razoável.
[20] Importa, no entanto, aqui fazer notar que esta não é a única perspectiva do princípio e do seu âmbito de aplicação. Por exemplo, o entendimento do Professor Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, vol. I, 217) é o de que o in dubio pro reo se assume como um princípio geral de processo penal, não circunscrito a matéria de facto, antes podendo a sua violação conformar também uma verdadeira questão de direito que cabe dentro dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça. É esta, também, a posição defendida por Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, 1102) que considera não constituir o vício de erro notório na apreciação da prova a violação do princípio in dubio pro reo. Porém, o STJ tem rejeitado a possibilidade de invocar o princípio em sede de interpretação ou de subsunção legal dos factos.
Sendo entendido na perspectiva de que respeita a matéria de prova, a sua eventual violação será insindicável pelo STJ, a não ser que o vício decorra, de forma evidente, da decisão recorrida (nomeadamente da fundamentação da decisão de facto).
[21] Mas, se não tem qualquer dever de dizer a verdade, ao contrário do que recorrentemente se propala, também não tem o direito de mentir. Se o arguido não quer contar (toda ou parte da) a verdade, deve remeter-se ao silêncio (assim, o acórdão do TC n.º 172/92, www.tribunalconstitucional.pt).
[22] Neste erro incorre o recorrente B… ao imputar ao tribunal a violação do in dubio pro reo ao tribunal porque, na sua perspectiva, este “deveria ter tido dúvidas acerca dessa intenção” (conclusão 27.ª) de praticar os furtos e, não obstante a dúvida (que entende devia persistir), decidiu-se pela sua condenação.
[23] Embora, em bom rigor, não se possa falar em ónus da prova em processo penal.
[24] Neste sentido, o acórdão do STJ de 29.05.2008 (Relator: Cons. Rodrigues da Costa), disponível em www.dgsi.pt/jstj.
[25] “Consideraciones sobre prueba e motivacion”, Jueces para la Democracia, Information y Debate, n.º 59, Julho de 2007, pág. 74).
[26] O “proof beyond any reasonable doubt” com origem na jurisprudência inglesa e depois adoptado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA.
[27] LAUDAN, Larry, in «Truth, Error and Criminal Law – An Essay in Legal Epistemology», Cambridge University Press, Cambridge, 2006, p. 36 e segs., citado no acórdão da Relação de Lisboa de que transcrevemos o sumário, aponta, cinco concepções diferentes do conceito de «prova da culpa para além de qualquer dúvida razoável»: 1) uma segurança da convicção apropriada para a tomada de importantes decisões na vida de cada um; 2) uma convicção duradoura de culpa; 3) uma alta probabilidade; 4) a inexistência de uma dúvida em relação à qual podiam ser apontados motivos; 5) a inexistência de uma dúvida que faria um homem prudente hesitar em agir.
[28] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 1131.
[29] Idem
[30] E enumerar não é o mesmo que numerar.
[31] Assim, Francisco Pastor Alcoy, Prueba de Indicios, Credibilidad del Acusado y Presunción de Inocencia, Tirant lo Blanch, Valencia, 2003, p. 145
[32] Sobre as razões destas reservas, veja-se o texto de Euclides Dâmaso Simões “Prova Indiciária (Contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente)”, publicado na revista “Julgar”, n.º 02, 2007, 203 e segs.
[33] Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do TRP, de 28.01.2009, do TRC, de 30.03.2010 e do STJ, de 11.07.2007 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
[34] Como já se frisou, mas não é demais repisar, que não é a verdade ontológica que se busca, mas a verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos, pois que, estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos.
[35] Aliás, na tese de L. Pires de Sousa, Prova por presunção no direito civil, Almedina, 2012, p. 18, a não ser no caso da inspecção judicial, toda e qualquer prova é, em alguma medida, prova indiciária. O que distinguiria a prova dita directa da prova dita indirecta seria o número de passos inferenciais requeridos para estabelecer o factum probandum. “Toda a prova assenta numa inferência e sempre que julgamos presumimos” (p. 20).
[36] Como ensinava o Professor Cavaleiro Ferreira (“Curso de Processo Penal”, II, 1981, p. 292) «existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica».
[37] O recorrente B… escuda-se nas declarações do co-arguido C… para sustentar que o tribunal não podia dar como provado que, também ele, procedeu à venda dos objectos furtados, mas as testemunhas I… e AH… foram peremptórias na afirmação de que foram ambos os arguidos, em conjunto, quem procedeu à venda, embora tivesse sido sempre o arguido C… a fornecer a identificação e a assinar as exigidas declarações.
[38] Assim, o acórdão da Relação de Coimbra de 11.0.2005 (relatado pelo então Desembargador e agora Conselheiro Oliveira Mendes), acessível em www.dgsi.pt, que incidiu sobre um caso em que as semelhanças com este que nos ocupa são flagrantes.
[39] Argumento que o recorrente C… recupera na motivação do seu recurso (conclusão y)).
[40] Cfr. Marta João Dias, A fundamentação do juízo probatório – Breves considerações, Revista Julgar, n.º 13, Janeiro/Abril de 2011, p. 178.
[41] Os furtos de veículos automóveis de gama alta para venda (em peças ou inteiros) já exigem uma estrutura organizativa e logística.
[42] “Algunas consideraciones sobre leoria de la prueba indiciaria em el processo penal y los derechos fundamentales del imputado”, (acessível em http://porticolegal.com).
[43] Margarida Lima Rego (loc. cit., 130) informa que a posição dominante na doutrina e na jurisprudência alemãs é a de que, para se dar como provado determinado facto, o grau de certeza que se exige é, também, a de “uma muito elevada probabilidade”.
[44] Também nos casos em que a decisão se ancora em prova directa temos, sempre, de admitir que outras provas podem existir, mas que, por razões várias e variadas, não foram produzidas no processo, provas essas que até poderiam ter a virtualidade de ilidir as que foram submetidas ao contraditório. No entanto, isso não impede a formação do juízo probatório, do juízo de certeza bastante para a condenação.
[45] Ou, se assim se preferir, já será mais difícil sustentar que a venda, em Viseu, dos objectos furtados três dias depois, seja um facto concomitante do furto, pelo que a base indiciária não tem a mesma consistência.
[46] Por conseguinte, não são considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos de prognose sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.
[47] Professor Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, 333.
[48] Como afirma o Professor Figueiredo Dias, Op. Cit., 343, é na “prevenção da reincidência” que se traduz o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização.
[49] É o que decorre do seguinte trecho do preâmbulo do Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março (que, recorde-se, operou a primeira grande reforma do Código Penal de 1982): “A pena de prisão – reacção criminal por excelência – apenas deve lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelarem inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção”.
[50] Ainda, Figueiredo Dias, Ob.Cit., 344.
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Voto de vencida

Com o muito respeito que me merecem os subscritores do acórdão e a posição que nele mereceu vencimento, não podemos subscrever a mesma por com ela não concordarmos na parte em que manteve a condenação dos arguidos B… e C… pela prática dos crimes de furto qualificado que lhes vinham imputados no dia 1 de Janeiro de 2013 e 28 de Dezembro de 2012.
Como se sumariou no acórdão desta Relação de 23/10/2013, proferido no processo 2020/10.8.PBMTS.P1 do qual foi relator o juiz Desembargador Vaz Pato, e a cuja fundamentação aderimos, “. Para a condenação em processo penal exige-se um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável e não de mera probabilidade. II.O facto de o arguido ter na sua posse o objecto furtado e de não ter procedido à venda do mesmo pouco tempo depois da prática do furto não é suficiente como indício seguro e inequívoco, capaz de fundar um juízo de certeza para além de toda a duvida razoável, e não de mera probabilidade de que foi ele o autor do furto.” [1]
Sempre com o devido respeito, afigura-se que tal como se entendeu no que concerne ao furto que vinha imputado ao arguido C… no dia 24/10/2012, também no caso dos furtos ocorridos nos dias 28 de Dezembro de 2012 e 1 de Janeiro de 2013, inexiste quer uma conexão temporal estrita quer outros indícios que permitam ainda que conjugados com as regras da experiência concluir terem sido os arguidos as pessoas que os praticaram.
Efectivamente no caso do furto ocorrido no dia 28 de Dezembro de 2012, o tribunal partiu do facto conhecido de os arguidos terem sido as pessoas que venderam uma das peças furtadas, para concluir que os mesmos cometeram o furto.
Porém, entendo que o facto provado não é consequência típica do facto conhecido, pois e apesar de a venda do objecto furtado até ter ocorrido no mesmo dia do furto, a verdade, é que tendo o furto ocorrido entre as 12h00 e as 17h00, e não tendo a testemunha I… logrado concretizar a que horas ocorreu a venda designadamente se foi de manhã ou de tarde, necessariamente que permanecem duvidas no espírito do julgador sobre terem sido os arguidos quem praticou o furto, ou se o objecto furtado – e apenas um foi vendido pelos arguidos – foi parar às mãos dos mesmos por outro modo.
Igualmente quanto ao furto ocorrido no dia 1 de Janeiro de 2013, o tribunal concluiu terem sido os arguidos com base no facto conhecido de tendo o furto ocorrido no dia 1 de Janeiro de 2013, os arguidos C… e B… terem encetado “diligência para venda dos artigos em ouro furtados” nos dias 2 e 3 de Janeiro, e de o arguido C… ter procedido à venda de artigos de ouro nos dias 2 e 9 de Janeiro de 2013.
Mais uma vez, com o devido respeito, entendemos inexistir uma conexão temporal, as diligências de venda por parte dos arguidos ocorreram no dia seguinte ao furto, que permita só por si concluir com uma certeza para além de toda a duvida razoável que foram os arguidos os autores do furto.
E não é o facto conhecido, e considerado na decisão recorrida, de os arguidos, C… e B…, bem como a arguida D…, terem sido vistos pelas testemunhas N… e O… (as declarações desta foram lidas em julgamento) próximo da residência assaltada, que permite superar tal duvida ou ser considerado um indício relevante para a conclusão de que foram os arguidos recorrentes as pessoas que praticaram o furto ocorrido no dia 1 de Janeiro de 2012.
Na verdade, tal indício, fica a nosso ver abalado por duas razões: por um lado e como referiu a testemunha F…, o arguido B… residia no seguimento da Rua …, a “500 metros talvez” da casa assaltada, o que se por um lado acentua o conhecimento por parte do arguido da residência assaltada, por outro poderá justificar a sua presença no local, bem como a do arguido C…, já que como se refere na fundamentação do acórdão, à data em que ocorreram os furtos “os arguidos relacionavam-se e foram vistos por várias vezes juntos”; por outro é a mesma testemunha N… que também refere em tribunal que posteriormente ao dia em que ocorreu o assalto voltou a ver os arguidos juntos outra vez pela zona e rua do assalto, o que reforça a normalidade da presença dos arguidos naquela zona e retira uma especial conotação à mesma.
Realça-se que à data que ocorreram os furtos a informação constante dos autos indicava que o arguido C… residia em Estarreja na companhia do arguido B… e D…, sendo que como também o acórdão dá conta, “a arguida D… tinha uma relação de natureza afectiva com o B… e o arguido C… é seu filho”.
Assim, entendemos que os factos conhecidos pelo tribunal sendo embora um indício de que os arguidos poderão ter sido com alguma probabilidade os autores dos furtos, não permitem só por si estabelecer com recurso às regras da experiência, tal certeza sem que outras hipóteses possíveis se intrometam no espírito do julgador, designadamente a possibilidade de ter sido outra pessoa a praticar o furto, e que os objectos furtados tenham vindo posteriormente a entrar na posse dos arguidos, por meio que também não se apurou, mas que até poderá ter sido através da prática de crimes de receptação
Como tal, e com todo o respeito, continuamos a entender que o raciocínio seguido pelo Tribunal a quo para chegar ao facto presumido, que não é consequência típica daquele de que se parte, carece de sequência lógica, compatível com as regras da experiência e mostra-se violador dos princípios do in dubio pro reo e da presunção de inocência, este último consagrado no artº32º nº2 da CRP.
E nessa medida incorreu o tribunal em erro notório na apreciação da prova nos termos do artº 410º nº2 al.c) do CPP, já que como se escreveu em acórdão do STJ de 27/10/2010, “o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410º, nº 2, al. c) do CPP, é uma anomalia de confecção técnica decisória, a resultar do texto da decisão recorrida, quando nela existam ou se revelam distorções de ordem lógica entre factos provados e não provados ou que traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, que, por isso mesmo não passa despercebida imediatamente a uma verificação e observação sem esforço, tomando-se como ponto de referência o homem médio (…)» - cfr. CJ - ASTJ – Ano XVIII, tomo III, pág. 243 e ss.
Mas, também por via da apreciação da impugnação efectuada pelos recorrentes, chegamos à mesma conclusão, pois a apreciação da prova produzida não permite adquirir a certeza para além uma dúvida insanável e razoável de que os arguidos foram os autores dos furtos e, como tal a prova produzida não é suficiente para se adquirir uma certeza prático-jurídica capaz de afastar a presunção de inocência.
Pelo exposto e tal como propus enquanto relatora teria julgado procedentes ambos os recursos e absolvido os arguidos dos crimes de furto qualificados que lhes vinham imputados.

Lígia Figueiredo
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[1] Ac. RP de 23/10/2013 proferido no processo nº2020/10.8PBMTS.P1, (relator Pedro Vaz Pato).