ACIDENTE DE TRABALHO
ESPAÇO PRÓPRIO DO SINISTRADO
TRAJETO PROTEGIDO
Sumário

I - Não se caracteriza como acidente de trabalho in itinere o acidente verificado quando a sinistrada regressava a casa vinda do seu local de trabalho e, após sair do veículo em que se fazia transportar, deu uma queda na rampa de acesso à sua moradia, já dentro da sua propriedade privada.
II - O espaço próprio do sinistrado, constituindo uma área sob o seu domínio e cujo risco o mesmo controla, deve considerar-se excluído do “trajecto protegido” pela lei reparadora dos acidentes de trabalho.

Texto Integral

Processo n.º 643/13.2T4AVR.P1
4.ª Secção

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

II
1. Relatório
1.1. B… participou no então Tribunal do Trabalho de Aveiro, em 10 de Julho de 2013 ter sofrido um acidente de trabalho de que teria sido vítima no dia 6 de Abril desse ano, no regresso para sua casa do local afecto à prestação de trabalho para a sua entidade empregadora C…, Lda., quando, ao apear-se do carro do seu filho, colocou mal o pé direito, desequilibrou-se e fracturou o perónio.
Na tentativa de conciliação efectuada na fase conciliatória do processo (fls. 42 e ss.), interveio a seguradora D…, S.A., para quem se encontrava transferida a responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho por parte do empregador, atendendo à totalidade do salário auferido pela sinistrada ali declarado, as partes não chegaram a acordo porquanto a seguradora não aceitou a existência do acidente nem a sua caracterização como acidente de trabalho, nem a relação de causalidade entre as lesões descritas e o acidente, por o evento ocorrido ser do foro pessoal da sinistrada e o local da ocorrência situar-se no interior da área de residência da sinistrada, pelo que negou tratar-se de um acidente de trabalho in itinere.
A sinistrada veio em 26 de Junho de 2014 requerer a abertura da fase contenciosa do processo apresentando petição inicial contra a seguradora (fls. 444 e ss.), onde peticionou, a final, a condenação da R. seguradora a pagar-lhe:
- o capital de remição correspondente a uma pensão anual e vitalícia de € 223,06, com início em 6 de Julho de 2013, a que corresponde a prestação única de € 2.455,00.
- indemnização por ITA entre 6 de Abril e 5 de Julho de 2013, no valor de € 2.009,52.
- juros de mora sobre as referidas quantias, contados à taxa legal e até efectivo pagamento, a partir de 5 de Julho de 2013.
Posteriormente reclamou € 20,00, aquando do exame por Junta Médica realizado (auto de fls. 9 e verso do apenso A), a título de reembolso por despesas de transporte com deslocações a esta tribunal e aos locais onde realizou exames médicos.
Alegou para tanto, em síntese: que no dia 6 de Abril de 2013, quando se dirigia para sua casa, depois de cumprir um dia de trabalho, cerca das 20H15, sofreu uma queda, na rampa de aceso à moradia onde vive; que na sequência dessa queda, sofreu lesões que lhe determinaram um período de ITA até 05 de Julho de 2013, ficando a partir daí com sequelas que lhe causaram uma IPP de 2,775% e que o empregador tinha a sua responsabilidade infortunístico-laboral transferida para a R., a quem compete indemnizá-la pelos danos resultantes do sinistro.
Citado o Instituto da Segurança Social, I.P., veio a fls. 55 e ss. deduzir contra a R. pedido de reembolso do valor de € 246,96 que pagou à A. a título de subsídio de doença, no período de 8 de Maio de 2013 a 31 de Maio de 2013, em que esta esteve com baixa médica, em consequência das lesões resultantes do acidente de trabalho em discussão, mais juros de mora legais, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
A R. seguradora apresentou contestação a fls. 63 e ss. na qual não aceitou a caracterização do acidente como sendo de trabalho, nem o nexo causal entre o acidente e as lesões sofridas pela A.. Alegou, em suma: que o veículo onde a A. estava a ser transportada foi estacionado já dentro da sua propriedade, pelo que a queda ocorreu dentro da residência da A., não podendo como tal o acidente ser qualificado como acidente de trabalho “in itinere”; que resultava dos anteriores arts. 6° n.º 2, al. a) da Lei n.º 100/97, 13 de Setembro e 6º n.º 2 do D.L. n.º 143/99, 30 de Abril, que apenas estão abrangidos os acidentes verificados no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para a via pública (caso se trate de residência em propriedade singular), até às instalações que constituem o seu local de trabalho, ou seja, apenas se inicia o percurso na porta de acesso à via pública, esteja essa porta no próprio edifício da habitação ou na extremidade de um jardim, quintal ou outra área ainda maior, mas pertencente ao uso da habitação; e que, embora a Lei n.º 98/2009, de 04/09, no seu art. 9º, n.º 2, tenha vindo alterar a extensão do conceito de acidente de trabalho, deixando de constar “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública”, o legislador não afastou com essa alteração, a razão de ser da limitação existente no anterior art. 6º, isto é, o trajecto continua a iniciar-se numa zona já fora do controle directo do trabalhador, por contraposição ao domínio exclusivo do proprietário.
Quanto ao pedido da Segurança Social, alegou que, pelas razões expressas na contestação ao pedido da A., não é responsável pelos montantes despendidos pelo ISS e que, caso venha a ser considerada responsável pelo acidente de trabalho, a eventual pensão deve reflectir os montantes já auferidos da Segurança Social (fls. 75 e ss.).
Foi proferido despacho saneador e fixados os factos assentes, bem como a base instrutória (fls. 80 e ss.).
Ordenada a realização de junta médica e organizado o apenso respectivo relativo á fixação da incapacidade do A., foi por decisão ali proferida considerado que a A. ficou afectada uma IPP (incapacidade permanente parcial) de 2,775% em consequência do acidente em apreço, desde 06 de Julho de 2013 (dia seguinte ao da alta).
Procedeu-se ao julgamento com observância das formalidades legais, foi respondida a matéria de facto em litígio sem reclamação (fls. 99 e ss.) e em 20 de Maio de 2015 o Mmo. Julgador a quo proferiu sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
«Em face de todo o exposto, julgando a acção parcialmente procedente e o pedido de reembolso formulado pelo Instituto da Segurança Social, I.P. procedente, decide-se:
I. Fixar em 2,775% o grau de incapacidade permanente parcial para o trabalho de que a A. ficou afectada, em consequência do acidente em discussão, desde 06/07/2013 (dia seguinte ao da alta).
II. Condenar a R. a pagar à A.:
a) O capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 223,06 (duzentos e vinte e três euros e seis cêntimos), com efeitos desde 06/07/2013;
b) € 1.735,04 (mil setecentos e trinta e cinco euros e quatro cêntimos), de indemnização por incapacidade temporária para o trabalho – valor já deduzido dos € 246,96 (duzentos e quarenta e seis euros e noventa e seis cêntimos) que recebeu do Instituto da Segurança Social, I.P., a título de subsídio de doença;
c) € 20,00 (vinte euros), a título de reembolso de despesas de transporte suportadas pela A. com deslocações a este tribunal e aos locais onde realizou exames médicos;
d) Juros de mora à taxa legal (actualmente de 4%) sobre as referidas quantias, até integral pagamento, contados desde 06/07/2013, no que respeita às aludidas supra nas als. a) e b); e desde a notificação à R. da reclamação por parte do A. das despesas de deslocação, no tocante à quantia referida na al. c).
III. No mais, absolver a R. do pedido formulado pela A..
IV. Condenar a R. a reembolsar o Instituto da Segurança Social, I.P. dos € 246,96 (duzentos e quarenta e seis euros e noventa e seis cêntimos) por este pagos à A., a título de subsídio de doença, relativamente ao período de tempo compreendido entre 08/05/2013 e 31/05/2013, acrescidos de juros de mora desde a notificação da R. para contestar o pedido de reembolso, até integral pagamento, à taxa legal (actualmente de 4%).
*
Custas da acção por A. e R., na proporção do respectivo decaimento (sem prejuízo da isenção de que beneficia a A.), ficando as do pedido de reembolso exclusivamente a cargo da R. – art.º 527º n.ºs 1 e 2 do actual Cód. de Processo Civil.
Valor da acção: € 4.464,52 (art. 120º do Cód. de Processo de Trabalho).
Valor do pedido de reembolso: € 246,96.
[…]»

1.2. A R., inconformada, interpôs recurso desta decisão, tendo formulado, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
“1. Na douta Sentença de que ora se recorre, o douto Tribunal a quo concluiu que o evento dos presentes autos deve ser considerado acidente de trabalho in itinere, nos termos do artigo 9º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea b) da Lei n.o 98/2009, de 4 de Setembro.
2. O evento ocorreu, dentro da propriedade privada da Recorrente, pelo que não pode ser considerado acidente de trabalho in intinere. 3. A Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, no artigo 9°, n.º 2. veio alterar a extensão do conceito de acidente de trabalho, deixando de constar a expressão 'desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública" existente no artigo 6°, n.o 2 do Decreto-lei n.o 143/99, de 30 de Abril.
4. O legislador não afastou, com esta alteração, a razão de ser da limitação patente no anterior artigo 6°, isto é, deve entender-se que o trajecto se Inicia numa zona já fora do controle directo do trabalhador, por contraposição ao domínio exclusivo do proprietário, mantendo-se no todo o que se contemplava no referido artigo 6° da Lei n.o 100/97.
5. Dispõe a Norma Regulamentar do Instituto de Seguros de Portugal n.º 1/2009-R, publicada em DR. 2ª série. n.º 16, 23.01.2009, que aprova a Parte Uniforme das Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores por Conta de Outrem, bem como as respectivas Condições Especiais, a adoptar pelos Seguradores, na sua cláusula 2ª, alínea b) ii) que é considerado acidente de trabalho "o acidente ocorrido normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhado na ida e de regresso para e do local de trabalho, entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas do edifício ou para a via pública, até ás instalações que constituem o seu local de trabalho."
6. O conceito de acidente trabalho, tal como previsto no artigo 9° da Lei n.º 9812009, comporta uma extensão altamente injusta, desvantajosa e desproporcionada para o empregador, pois, reduzindo ao absurdo o conceito, atendendo apenas ao critério temporal durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador"] do trajecto ["entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho"], qualquer acidente ocorrido desde que o trabalhador acordasse, independentemente do local, seria considerado acidente de trabalho,
7. É. por conseguinte, Impreterível atender aos critérios da ligação ao trabalho e da autoridade do empregador.
8. A Recorrente já não se encontrava “ligada ao serviço que prestava ao empregador, nem aos actos subsequentes ligados á prestação laboral”, sendo este um elemento fundamental para se aferir se estamos perante um acidente de trabalho.
9. A Sinistrada tão pouco se encontrava sujeita à autoridade patronal, elemento essencial para se exigir a responsabilidade do empregador pelos acidentes ocorridos ao seu serviço.
10. O critério determinante para qualificar um evento como acidente de trabalho é a existência ou não de risco de autoridade do empregador. sendo que estando o trabalhador em espaço por si controlado, em espaço da sua esfera privada. esse risco não existe. neste sentido veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora no âmbito do processo n.º 35/09.8TTSTB.E1, e o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito do processo n.º 1506/12.4TTPNF.P1.
11. O evento em causa nos presentes autos, por ter ocorrido em propriedade privada da Sinistrada, não deve ser considerado como acidente de trabalho in itinere, nos termos do artigo 9°, n.º 1, alínea a} e n.º 2, alínea b} da Lei n.º 9812009, de 04 de Setembro, e. por conseguinte, o mesmo não se afigura indemnizável.”
1.3. A A., patrocinada pelo Digno Magistrado do Ministério Público, apresentou contra-alegações defendendo a manutenção da sentença.
1.4. O Instituto da Segurança Social, I.P. não apresentou contra-alegações.
1.5. Mostra-se lavrado despacho de admissão do recurso a fls. 133.
1.6. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto não emitiu Parecer por se encontrar a sinistrada patrocinada pelo Ministério Público.
Cumprido o disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013[1], de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
*
2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho –, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão essencial que se coloca à apreciação deste tribunal consiste em saber se o acidente sofrido pela A. em 6 de Abril de 2013 constitui um acidente de trabalho, na modalidade de acidente in itinere.
*
3. Fundamentação de facto
*
Na sentença sob censura, o Mmo. Julgador a quo considerou provados os seguintes factos:
«[...]
1. Em Abril de 2013, a A. exercia as funções de Chefe de Seção para a sociedade “C…, Ld.ª”, com sede na …, n.º ., ….-… ….
2. Auferindo a remuneração anual de € 11.483,00.
3. A A. exercia a sua actividade num espaço comercial da sua entidade patronal, sito na Rua …, em Aveiro.
4. No dia 6 de Abril de 2013, quando se dirigia para sua casa, depois de cumprir um dia de trabalho, cerca das 20.15 horas, a A. foi vítima de uma queda, na rampa de aceso à moradia onde vive, sita na Rua …, n.º .., …, ….-… Aveiro.
5. O veículo no qual a A. efectuou o trajecto do local de trabalho até à sua residência era conduzido pelo seu filho.
6. Foi após sair do veículo e ao iniciar a subida de acesso à sua habitação, que a A. torceu o pé direito, caindo sobre o mesmo.
7. Queda essa que ocorreu dentro da propriedade da A..
8. À data do acidente, a A. praticava um horário de trabalho das 09.30 horas às 13.00 horas e das 15.00 horas às 20.00 horas.
9. A referida queda ocorreu no trajecto normalmente efectuado pela A. para regressar do local de trabalho à sua residência e durante o período de tempo que habitualmente gastava para o percorrer.
10. Na sequência da queda, foi diagnosticada à A. fractura do maléolo peronial direito.
11. Tendo a A. sido tratada conservadoramente, mediante imobilização.
12. De acordo com o exame médico realizado pelo Perito Médico deste Tribunal, da aludida queda resultaram para a A. “sequelas de anterior fractura ao nível da região distal do perónio; ligeiro estreitamento da interlinha articular tíbio-társica, bem como do maciço do tarso; e esporão sub-calcâneo”.
13. O mesmo Perito Médico considerou a A. afectada, em resultado do acidente em questão, de uma IPP de 2,775%, a partir de 90 dias após a data do acidente, entendendo ainda que o período de tempo de 90 dias entre o acidente e a data da consolidação deve ser de ITA.
14. A entidade patronal da A. tinha a sua responsabilidade infortunístico-laboral transferida para a R., com base na totalidade da retribuição auferida pela A., mediante contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho, titulado pela apólice n.º 1025004702.
15. Em consequência das lesões sofridas em resultado do acidente descrito, a A. esteve com baixa médica subsidiada de 08/05/2013 a 31/05/2013.
16. Por tal facto, o demandante Instituto da Segurança Social, I.P. (Centro Distrital de Aveiro) pagou à A., a título de subsídio de doença, a quantia de € 246,96.
[...]».
*
Estes os factos a atender para a decisão jurídica do pleito uma vez que não foi impugnada a decisão de facto e não se vislumbra fundamento para a sua alteração oficiosa.
*
*
4. Fundamentação de direito
*
4.1. Ao caso sub judice aplica-se a disciplina legal da reparação dos acidentes de trabalho que consta do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro e da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, uma vez que o acidente ocorreu em 6 de Abril de 2013 – cfr. os artigos 187.º e 188.º da Lei n.º 98/2009 (LAT).
O nº 1 do art. 8º da Lei n.º 98/2009 estatui que “[é] acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
Resulta deste preceito (que reproduz textualmente o artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 100/97 de 13 de Setembro e o artigo 6.º, n.º 1 do DL n.º 143/99 de 30.4) que o conceito de acidente de trabalho é caracterizado por três elementos delimitadores, de verificação cumulativa, além da existência de um contrato de trabalho. São eles: o elemento espacial (local de trabalho); o elemento temporal (tempo de trabalho); e o elemento causal (nexo de causa e efeito entre o acidente e a lesão, perturbação ou doença e entre esta e a morte ou a redução da capacidade de ganho).
Mas há hipóteses em que, apesar de se não verificarem estritamente os elementos espacial e temporal supra referidos (ou verificando-se apenas algum deles, como aqui ocorre), a lei confere a determinados acidentes a protecção prescrita na lei especial reparadora dos acidentes de trabalho em consonância com a teoria do “risco económico ou de autoridade” em que assenta a responsabilidade civil objectiva pela reparação dos acidentes laborais.
Segundo Carlos Alegre[2], o critério do legislador foi, também aqui, o risco resultante da subordinação ao empregador, ainda que no momento específico do acidente a actividade do trabalhador escape ao controlo e fiscalização directa do empregador.
É justamente ao nível da extensão do conceito de acidente de trabalho operada pelo artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro no que diz respeito aos acidentes in itinere, que se situa a questão essencial a apreciar uma vez que o acidente sofrido pelo recorrente em 6 de Abril de 2013, cerca das 20.15 horas não ocorreu no local de trabalho, mas quando a trabalhadora se dirigia para sua casa, verificando-se o acidente na rampa de acesso à moradia onde vive.
Nos termos do preceituado no referido artigo 9.º da LAT de 2009:
«1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) (…)
c) (…)
d) (…)
e) (…)
f) (…)
g) (…)
h) (…)
2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) (…)
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) (…)
d) (…)
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) (…)
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4 - (…).»
No caso vertente está essencialmente em causa saber quando é que termina o “trajecto protegido” pela lei reparadora, já que esta não resolve expressamente essa questão.
A sentença da 1.ª instância, louvando-se no Acórdão da Relação do Porto de 22 de Abril de 2013[3], considerou que o acidente sofrido pela A. no dia 6 de Abril de 2013, enquadra-se na protecção da LAT e constitui um acidente de trabalho indemnizável, “dado que ocorreu no trajecto que a A. normalmente fazia entre a sua residência e o seu local de trabalho, dentro do período de tempo habitualmente gasto para o efeito, produzindo-lhe lesões corporais que lhe determinaram ITA desde o dia do acidente, até 05-07-2013 (data da alta), bem assim como uma IPP de 2,775%, a partir daí”. E entendeu que a R. não tem razão quando defende que deve continuar a entender-se que são requisitos necessários à qualificação do sinistro como acidente de trabalho “in itinere”, aqueles que o art. 6°, n.º 2 do D.L. n.º 143/99, 30 de Abril previa, ao estabelecer, regulamentando o art. 6º n.º 2, al. a) da Lei n.º 100/97, 13 de Setembro, que apenas estão compreendidos os acidentes “que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador: a) Entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho”. Segundo exarou a sentença, “tais normativos não têm aplicação ao acidente aqui em discussão, não contendo o actual regime de reparação dos acidentes de trabalho limitação idêntica à supra assinalada, nada autorizando a interpretação de que continua a ser necessário que o acidente ocorra na via pública (e não, por exemplo, no logradouro da residência do sinistrado), na medida em que tal não resulta da letra nem do espírito das normas que na Lei n.º 98/2009, de 04/09 regem sobre a matéria – cfr. arts. 9° n.ºs 1 al. a) e 2, al. b).”
A recorrente, por seu turno, sustenta que a queda da A. na rampa de acesso à sua moradia ocorreu na sua propriedade privada, e que o artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro não permite estender o conceito de acidentes de trabalho a situações do domínio exclusivo do proprietário. Segundo alega, com a alteração da extensão do conceito de acidente de trabalho que ficou a constar da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, no artigo 9°, n.º 2, que suprime a expressão “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública" existente no artigo 6°, n.º 2 do Decreto-lei n.º 143/99, de 30 de Abril, o legislador não afastou a razão de ser da limitação patente no anterior artigo 6°, devendo entender-se que o trajecto se inicia numa zona já fora do controle directo do trabalhador, por contraposição ao domínio exclusivo do proprietário, mantendo-se no todo o que se contemplava no referido artigo 6° da Lei n.º 100/97.
A questão essencial que no caso sub judice se coloca não tem sido objecto de uma resposta unânime da jurisprudência, particularmente à luz da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.
Assim, o Acórdão da Relação do Porto de 22 de Abril de 2013, já citado, entendeu que:
«(…) com a alteração legislativa retirou-se do conceito de acidente de trajeto um "colete de forças" que foi imposto pela dicotomia local privado/público e colocou-se o enfoque no essencial da relação laboral controvertida e do risco a ela associado, "in casu", o trajeto "lato sensu" percorrido pelo trabalhador desde a residência e o local de trabalho.
Em suma, não decorre da letra da lei, do espírito ou da interpretação sistemática do artigo 9°, n.º 1 al. a) e n.º 2, al. b) da Lei n.º 98/2009 que é requisito da qualificação de acidente de trabalho "in itinere" o facto do mesmo ter de ocorrer num local público. ”.
Ora, sendo o acidente in itinere uma extensão do conceito de acidente de trabalho proprio sensu, a dimensão desse alargamento depende da vontade que o legislador ordinário tiver em cada momento. Face à assinalada evolução legislativa dessa extensão, cremos que o legislador tem procurado levar mais longe o princípio do risco da autoridade, ficcionando que o trabalhador já está sob a sua subordinação jurídica desde que o trabalhador passa a porta de saída da sua habitação, ou ainda o está até que chegue a tal porta, independentemente de viver num apartamento ou numa moradia, tal acontecendo por ir ou ter estado a desenvolver atividade de que ele é o beneficiário. Daí que o legislador da lei vigente, contrariamente ao seu antecessor, tenha feito equivaler o logradouro das habitações unifamiliares às partes comuns de um edifício dividido em frações, deixando de parte o critério da natureza – pública ou privada – do trajeto percorrido normalmente pelo sinistrado, sendo suficiente à caraterização do acidente como in itinere que ele tenha ocorrido no trajeto normal e no tempo habitual de deslocação entre as instalações do local de trabalho e a porta da habitação onde o sinistrado reside.».
Dentro deste entendimento foi também proferido o Acórdão da Relação de Guimarães de 26 Fevereiro de 2015[4], decidindo que se “caracteriza como um acidente de trabalho it itinere a queda que a trabalhadora sofreu quando, ao sair de casa para se dirigir para o local de trabalho, caiu nas escadas que conduzem ao logradouro da moradia onde reside habitualmente”, embora com um voto de vencido.
Mas em sentido diverso foram proferidos ainda à luz da LAT de 1997 os Acórdãos da Relação de Évora de 24 de Maio de 2011[5] (não configurando como acidente in itinere o ocorrido em caminho particular na propriedade privada do trabalhador, após este transpor o portão de acesso à via pública, quando se deslocava em direcção à sua habitação, pois em tal situação, o acidente ocorre em espaço privado do trabalhador, e por ele controlado, em relação ao qual não se verifica o “risco de autoridade” do empregador) e de 02 de Maio de 2013[6] (este decidindo que o acidente sofrido por um trabalhador dentro do espaço afecto à residência e por ele controlado – acesso à garagem da sua residência e propriedade – não era de qualificar como de trabalho).
E já à luz da LAT de 2009 esta Relação do Porto decidiu no seu acórdão de 13 de Abril de 2015[7] que não configura acidente de trabalho a queda sofrida pelo trabalhador nas escadas exteriores da sua casa, situadas no logradouro da mesma, quando se dirigia ao veículo automóvel que lhe estava atribuído pela sua entidade empregadora e com vista ao exercício das funções de que estava incumbido, justamente com o argumento de que tal acidente ocorreu em espaço privado do trabalhador, e por ele controlado, em relação ao qual não se verifica o “risco de autoridade” do empregador, pelo que não pode qualificar-se como acidente in itinere.
E veio a reiterar esta Relação no seu acórdão de 27 de Abril de 2015[8] que não configura acidente de trabalho o acidente sofrido pela trabalhadora que ocorreu depois de esta retirar o seu veículo da garagem, o ter imobilizado na rampa, que fica situada entre a aludida garagem e o portão que dá acesso à via pública, saiu do mesmo e se dirigiu ao portão da garagem a fim de o fechar, quando o aludido veículo automóvel, por razões desconhecidas, descaiu, atingindo-a com a traseira, exactamente com o mesmo argumento.
Reponderada a questão de saber quando é que o “trajecto protegido” pela lei se inicia ou termina – consoante o acidente se dá na ida ou no regresso do trabalho – tendo em consideração o regime expresso na LAT de 2009 e a evolução legislativa que a precedeu, não vemos razões ponderosos para nos afastarmos desta jurisprudência que é já maioritária na Relação do Porto e que, revendo a posição anteriormente assumida, sufragamos.
A propósito desta questão Júlio Gomes, deixando também uma nota crítica ao referido Acórdão da Relação do Porto de 22 de Abril de 2013, escreveu o seguinte:
«Em certos casos pode ser delicado saber em que local exato é que principia o trajeto protegido e, mesmo, quando é que deve considerar-se findo.
O problema tem-se colocado, sobretudo, quando o trabalhador reside em fração de um prédio em regime de condomínio ou propriedade horizontal. Em tal hipótese deverá considerar-se que a tutela dos acidentes de trabalho só se inicia quando o trabalhador acede à via pública ou, mesmo antes, quando abandona a sua fracção e entra nas áreas comuns (pondo-se, é claro, o mesmo problema também quanto ao término do trajecto)? A questão é de resposta delicada, não só porque o direito comparado mostra que as duas soluções são possíveis e defensáveis – compare-se a solução alemã que, em princípio, considera que o trajeto tutelado relativamente a acidentes de trabalho, só tem inicio quando se acede à via pública [] com a francesa que opta por considerar que o condómino inicia o trajeto protegido já quando sai da sua fração, para se deslocar nas áreas comuns do prédio [] – mas e sobretudo porque já teve resposta expressa na nossa lei, em norma entretanto revogada [], sem que tenha sido substituída por outra em que o legislador tome expressamente posição sobre esta questão. Em primeiro lugar, parece-nos poder dizer-se que da revogação da norma não se pode inferir, sem mais, o abandono da solução preexistente. Além da hipótese de lapso, a revogação pode ficar a dever-se, ao invés, à convicção de que a solução resultaria das regras gerais e da ratio da tutela dos acidentes in itinere e da exclusão, em princípio, dos acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador. Os acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador não são tutelados, provavelmente, por se situarem numa esfera de risco do próprio trabalhador, num espaço por ele controlado e a cujo perigo sempre se exporia, mesmo sem o trabalho [][9].
(…)
O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-04-2013 (FERREIRA DA COSTA) vai substancialmente mais longe do que a nossa própria proposta ao considerar que é acidente de trabalho o ocorrido no logradouro propriedade privada do trabalhador. Estaria, pois, já incluído no trajeto protegido o percurso entre a porta da moradia do trabalhador e o portão de acesso à via pública. (…) O Acórdão diverge, expressamente, do Acórdão da Relação de Évora de 24/05/2011 [supra citado] que distinguia os espaços comuns de um edifício em propriedade horizontal e os caminhos privados de acesso a uma residência ou moradia familiar. Afirma-se que “esta era uma visão que (…) nos parecia demasiado fragmentária da realidade e que se centrava num preciosismo cuja bondade, além de duvidosa, era geradora de tratamentos desiguais entre situações materialmente idênticas”. Com todo o respeito, temos dúvidas em seguir esta decisão do TRP e não nos parece que a decisão do TRE assente num “preciosismo”. Em primeiro lugar impressiona-nos pouco a circunstância de uma queda no pátio, propriedade privada do trabalhador, não ser acidente in itinere e já o ser no passeio público contíguo porque é sempre em alguma medida arbitrário o ponto em que se começa e finda o trajeto protegido. Aliás, mesmo na posição do TRP se poderia questionar por que é que há-de ser diferente o tratamento do logradouro e do percurso no próprio interior da moradia: se o trabalhador se magoar a abrir a porta da moradia, carregado com a pasta e outros instrumentos de trabalho, não haveria acidente in itinere, mas já haveria se caísse no logradouro contíguo. Mas não nos parece, sobretudo, que seja um “preciosismo” distinguir entre espaços diretamente controlados pelo trabalhador (em que este é directamente responsável pelo seu estado, limpeza e conservação) e espaços, como as partes comuns de um prédio em propriedade horizontal» [10].
E escreveu-se no citado Acórdão desta Relação do Porto de 13 de Abril de 2015, aludindo ao da Relação de Évora de 24 de Maio de 2011:
«(…) se o trabalhador cai, por exemplo, no jardim da sua residência, no logradouro, nas escadas exteriores da sua moradia que conduzem ao portão de acesso à via pública, ele está num espaço da sua disponibilidade, que pode percorrer (e até gerir) como melhor entender.
Ou seja, esses espaços são directamente controlados pelo trabalhador, estando na total dependência dele, por exemplo, o estado, limpeza e conservação das escadas exteriores da sua moradia.
Alargar o “trajeto protegido” a tais espaços que se encontram no domínio total e absoluto do trabalhador seria criar enorme incerteza e insegurança em torno da delimitação dos acidentes de trajectos.
Se na delimitação do “trajeto protegido” fosse de desprezar esse controlo do espaço por parte do trabalhador, e relevasse apenas o facto do trabalhador se deslocar da sua residência para o local de trabalho, então não se vê razão para, como assinala Júlio Gomes (obra citada, pág. 182) não se considerar também acidente de trabalho, por exemplo, quando o trabalhador se magoa ao abrir a porta da moradia, carregado com a pasta e outros instrumentos de trabalho e até no percurso no próprio interior da moradia.
Em tais situações estava-se a criar incerteza e arbitrariedade na delimitação do “trajeto protegido” e, como salienta a recorrida, a estender o mesmo a situações do foro pessoal do trabalhador, a acidentes domésticos.
Por isso, quando a lei qualifica de acidente de trabalho aquele que ocorre entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador e as instalações que constituem o seu local de trabalho, tem sempre como pressuposto que o acidente ocorreu num espaço fora do controlo do trabalhador, fora do “espaço privado” deste, em que se pode ficcionar que ele está já sob o risco de autoridade do empregador.
É certo que na anterior legislação [artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30-04] se referia expressamente ser acidente de trabalho o que se verificasse «[e]ntre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública (…)», o que levava Carlos Alegre a sustentar (Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais – Regime Jurídico Anotado” – 2ª Edição – Almedina pags. 183 e 184) que neste último caso, ou seja, de saída directa para a via pública, «(…) o percurso inicia-se na porta de acesso à via pública, esteja essa porta no próprio edifício da habitação ou na extremidade de um jardim, quintal ou outra área ainda maior, mas pertencente ao uso da habitação».
Ou seja, a lei expressamente considerava que iniciando-se o trajecto protegido desde a residência, entendia-se esta, não se tratando de condomínio ou arrendamento em prédio múltiplo, desde a porta para a via pública.
A actual lei limita-se a considerar acidente de trajecto o que verifica desde a residência, sem aludir a porta de acesso para a via pública.
Não obstante, pelas razões que se deixaram apontadas, maxime que não pode considerar-se acidente o ocorrido em espaço privado do trabalhador, daí não decorre que tenha sido intenção do legislador alterar a delimitação dos acidentes de trabalho desde a residência do trabalhador até às instalações que constituem o seu local de trabalho.
Isto é, e dito de modo directo: tratando-se de uma residência isolada ou com saída directa para a via pública, só desde o acesso directo para essa via pública (através de porta ou outra abertura) – e não, por exemplo, desde o logradouro que rodeia a habitação – é que se inicia o trajecto protegido.
[…]».
Sufragamos na sua essencialidade estas considerações, que foram igualmente acolhidas no também citado Acórdão desta Relação de 27 de Abril de 2015.
Apenas se nos oferece acrescentar que, tendo em consideração a ratio da extensão do conceito de acidente de trabalho em que se consubstancia a protecção dos acidentes in itinere, é absolutamente lógico que se faça depender a caracterização do acidente de trajecto da circunstância de o trabalhador ter já saído da sua área particular de risco, pelo que tudo redundará em saber se o trabalhador se mantém em área que depende de si próprio, que está sob o seu controle e na sua esfera de actuação ou se já saiu da mesma e se encaminha para o seu local de trabalho, encontrando-se em local cujo risco não domina e por onde tem que passar para ir desenvolver a sua prestação laboral.
Como ensina Pedro Romano Martinez, “a responsabilidade por acidentes de percurso não abrange situações em que o trabalhador se encontra num espaço por ele controlado, em particular na sua vida privada”[11].
Não se nos afigura, por outro lado, que a alteração da letra da lei da LAT de 1997 no que diz respeito a esta extensão do conceito de acidente de trabalho para o que ficou a constar da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro – que no artigo 9°, n.º 2, que suprime a expressão “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública" existente no artigo 6°, n.º 2 do Decreto-lei n.º 143/99, de 30 de Abril –, demonstre uma intenção do legislador de alterar a delimitação dos acidentes de trabalho verificados entre a residência do trabalhador e o seu local de trabalho.
Com efeito, mesmo com a redacção mais completa do anterior artigo 6°, mantinha-se a razão de ser da delimitação a que agora se procedeu e que passa por saber se o acidente se verifica dentro, ou fora, de um espaço privado do trabalhador, de uma área que está sob o seu domínio e cujo risco o mesmo controla. Lançando mão mais uma vez da palavra de Júlio Gomes, a ratio da tutela dos acidentes in itinere exclui, em princípio, “os acidentes ocorridos numa esfera de risco do próprio trabalhador, num espaço por ele controlado e a cujo risco sempre se exporia, mesmo sem o trabalho”[12].
Aliás, deve dizer-se que mesmo antes da vigência do Decreto-Lei n.° 143/99 se consideravam incluídos nos acidentes in itinere os verificados nos espaços comuns de edifícios em propriedade horizontal (que não são, evidentemente, espaços sob o exclusivo domínio do trabalhador), o que denota a desnecessidade da inclusão na lei da expressa referência que ficou a constar do 6°, n.º 2 do Decreto-lei n.º 143/99 e que agora a LAT de 2009 não contém.
Na verdade, referia-se já no Parecer da Procuradoria Geral da República n.º 38/76, de 16 de Junho de 1976 (in BMJ 262/81) que as partes comuns dos edifícios não apresentam qualquer intimidade com o habitante do apartamento, pelo que o desastre aí verificado deve ser considerado acidente de trabalho[13].
Não deverá pois, a nosso ver, retirar-se da alteração verificada no texto da lei entre 1999 e 2009 uma qualquer indicação no sentido de que o legislador pretendeu alargar ou restringir, neste específico aspecto do “trajecto protegido”, a tutela reparadora dos acidentes de trabalho in itinere.
No caso sub judice o espaço onde a sinistrada B… se encontrava quando se verificou a queda é um espaço que lhe pertence, que cabe na sua esfera particular de gestão: uma rampa que se situa dentro da sua propriedade e que dá acesso à moradia onde vive (factos 4., 6. e 7.).
Assim, a despeito de estar a regressar a casa vinda do seu local de trabalho, uma vez que no momento em que caiu se encontrava já fora do espaço público, num local que dominava e se situava sob a sua alçada, dentro de uma área de risco que a mesma controlava, deve considerar-se tal espaço próprio excluído do “trajecto protegido” pela lei reparadora dos acidentes de trabalho.
Destarte, não sendo de considerar que o acidente se subsume à previsão do artigo 9.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea b) da Lei n.º 98/2009, de 04-09, não pode qualificar-se o mesmo como acidente de trabalho.
Procedem as conclusões das alegações de recurso, sendo de revogar a sentença da 1.ª instância, com a concomitante absolvição da R. dos pedidos formulados pela A. e pelo Instituto da Segurança Social, I.P., uma vez que quanto a ambos a responsabilização da seguradora, dependente do contrato de seguro em que assumiu a responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho que recaísse sobre a empregadora, tinha como pressuposto a caracterização do acidente sofrido pela A. no dia 6 de Abril de 2013 como acidente de trabalho.
*
*
4.2. Porque ficaram vencidos, o artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil coloca a cargo dos recorridos (a A. e o ISS, I.P.) a obrigação de suportar o pagamento das custas respectivas.
Haverá que atender a que a A. se mostra isenta de custas, uma vez que é patrocinada pelo Ministério Público e não auferiu rendimento ilíquido superior a 200 UCs, como resulta da declaração de I.R.S. de fls. 5-6 – cfr. o art. 4º n.º 1, alínea h) do Regulamento das Custas Processuais. A isenção não abrange, todavia, a responsabilidade da A. pelos encargos a que tenha dado origem, uma vez que a sua pretensão foi totalmente vencida (art. 4º, nº 6, do Regulamento das Custas Processuais), nem pelos reembolsos previstos no art. 4º, nº 7, do mesmo Regulamento.
Ter-se-á ainda em consideração que o Instituto da Segurança Social, I.P., não é responsável pelo pagamento de taxa de justiça no recurso, uma vez que não contra-alegou (artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais).
*
*
5. Decisão
*
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso interposto pela D…, S.A., e, em consequência, revoga-se a sentença da 1.ª instância, absolvendo a recorrente dos pedidos formulados pela B… e pelo Instituto da Segurança Social, I.P.
Custas pela A. ora recorrida, no que diz respeito ao pedido formulado na petição inicial, sendo a sua condenação restrita ao que houver a pagar nos termos dos nºs 6 e 7 do artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais, atendendo à isenção de que beneficia nos termos do art. 4º, nº 1, al. h), do mesmo diploma.
Custas pelo ISS, IP, no que diz respeito ao pedido pelo mesmo formulado no requerimento de fls. 56 e ss., sendo que no recurso o mesmo não é responsável pelo pagamento de taxa de justiça.
*
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, anexa-se o sumário do presente acórdão.
*
Porto, 19 de Outubro de 2015
Maria José Costa Pinto
António José Ramos
Jorge Loureiro
_____________
[1] Diploma a ter em vista pelo Tribunal da Relação no presente momento processual, por força dos arts. 5.º a 8.º da Lei Preambular do Código de Processo Civil de 2013.
[2] In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, p. 45.
[3] Proferido no Processo n.º 253/11.0TTVNG.P1 e disponível em www.dgsi.pt, subscrito também pela ora relatora na veste de segunda adjunta.
[4] Processo 437/11, publicado no JusJornal, N.º 2114, 25 de Março de 2015.
[5] Proc. n.º 35/09.08TTSTB.E1, in www.dgsi.pt e também in www.colectaneadejurisprudencia.com.
[6] Proc. n.º 590/08.0TTSTR.E1, in www.dgsi.pt.
[7] Proc. n.º 485/13.5TTPNF.P1, inédito, ao que supomos, e subscrito como Adjunto pelo ora primeiro Adjunto.
[8] Proc. n.º 1506/12. 4TTPNF.P1, também inédito, ao que supomos, e relatado pelo ora primeiro Adjunto.
[9] In O Acidente de Trabalho, O Acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra, 2013, pp. 179-181.
[10] Mesma obra, a pp. 181-182, nota 419.
[11] In Direito do Trabalho, 4.ª edição, Coimbra, 2007, p. 855.
[12] In ob. e loc. cits.
[13] E por isso se considerava também, a contrario sensu, que se o infortúnio ocorre na intimidade do trabalhador não é acidente de trabalho - vide Pedro Romano Martinez, in Direito do Trabalho, citado, p. 855, nota 2.
______________
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, lavra-se o sumário do antecedente acórdão nos seguintes termos:
I - Não se caracteriza como acidente de trabalho in itinere o acidente verificado quando a sinistrada regressava a casa vinda do seu local de trabalho e, após sair do veículo em que se fazia transportar, deu uma queda na rampa de acesso à sua moradia, já dentro da sua propriedade privada.
II - O espaço próprio do sinistrado, constituindo uma área sob o seu domínio e cujo risco o mesmo controla, deve considerar-se excluído do “trajecto protegido” pela lei reparadora dos acidentes de trabalho.

Maria José Costa Pinto